O documento reflete sobre a experiência escolar do autor e faz uma análise crítica da escola através de várias camadas. A escola é descrita como um lugar aborrecido que promove a competição em vez da cooperação e onde a avaliação numérica substitui a aprendizagem. Os grupos de colegas são apontados como mais dinâmicos e importantes para o desenvolvimento do que os pais e professores.
"Aspectos psicoafetivos na relação professor-aluno"
Reflexões após mais de 10 anos de investigação
1. Todos os direitos reservados ao autor.
APAS – Associação Pedagógica
UM OLHAR SOBRE A EDUCAÇÃO
Como nos fomos construindo?
Reflexões sobre a escola que temos e os
paradigmas da aprendizagem.
Auto-questionamentos e observações.
2ª parte de um trabalho de investigação
com mais de 10 anos.
2. Todos os direitos reservados ao autor.
A MINHA ESCOLA É UMA CEBOLA
Como descascar a minha visão de escola e as várias camadas de
interpretação
A ESCOLA: O QUE ME LEMBRO, O QUE VEJO E O QUE SEI (E O QUE JULGO QUE
SEI)
“A school which is successful in the wordly sense is more often than not a failure
as an educational centre.” – Krishnamurti, Jiddu, Education and the
Significance of Life
Desde os 5 anos até hoje, tenho estado quase ininterruptamente em escolas e
quase sempre na posição de aluna. As memórias que tenho são muito diversas
mas claro são os pontos comuns que saltam à vista quando penso em todos os
anos de escola. As salas tristes e feias em que por vezes a tentativa de
decoração alegre realça a frieza, nudez e aridez do local. O quadro branco
ou preto foi por vezes substituído por um projector de acetatos ou um
powerpoint que produziam um rectângulo talvez mais colorido e organizado
mas sempre menos versátil e igualmente aborrecido – e aqui me confesso,
mesmo quando era eu a dar a aula. O professor, em certos casos formador,
domina a aula. Decide pausas, se as houver, descreve a matéria num sumário
determinista do que vai ser os próximos cinquenta minutos ou duas horas de
toda a gente e em muitos casos, como um tirano todo-poderoso decide quem
e quando pode ir à casa de banho.
Os colegas formam grupos que assumem importâncias diferentes, às vezes
estes grupos são mais importantes que a família, religião ou outro meta grupo.
Os amigos da escola definem a nossa roupa, sejam porque podemos ser iguais
(ou diferentes) sejam porque não podemos mas queríamos. Certas manhãs o
nó que temos no estômago com a perspectiva de irmos outra vez para a
escola é demasiado grande. Sei de colegas que fingiram várias vezes estar
doentes, outros tentaram mesmo ficar doentes, dormindo com os pés de fora,
abrindo a janela do quarto ou outras estratégias semelhantes para evitar ir à
escola. As razões variavam (e variam). À memória vêm-me as avaliações. Nos
dias de teste, aqueles que não se sentem preparados não querem ir à escola –
nestas últimas semanas, ver o prazo de entrega dos trabalhos aproximar-se
sem que eles estejam prontos fez-me ver que a escola onde estou não é tão
diferente daquelas em que estive1.
As avaliações são e sempre foram, mesmo quando fui eu a fazê-las, um
exercício de inutilidade. Quando me dizem que tenho um quinze por ter
1
Não obstante o facto de todos os professores solicitados do primeiro semestre terem alargado o prazo de entrega. No momento
em que escrevo já passou o primeiro prazo de entrega deste trabalho.
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entregado um texto, eu fico exactamente na mesma. Apenas sei que os que
tiveram dezasseis a vinte foram considerados melhores e os que tiveram
catorze ou menos foram considerados piores. Há ainda a bizarria de todos os
trabalhos avaliados em quinze serem considerados iguais, apesar de, aposto
eu serem fundamentalmente, estruturalmente, gramaticalmente diferentes.
Além disso, não resisto a citar o José Pacheco2 que numa conversa que tive
com ele acerca de todo o ensino primário e secundário me disse: “Os testes
são uma perda de tempo. Os alunos que sabem deviam usar esse tempo para
aprender outras coisas e os que não sabem deviam usar esse tempo para
tentar aprender.” Vejo ainda, hoje aqui com os meus colegas que a avaliação
subverte e usurpa a aprendizagem. Estou num curso para ser avaliada, ter
uma nota e um grau e não para aprender o que quer que seja que me
queiram ensinar. A minha habilidade mais útil é de fazer testes, exames e
trabalhos.
Os toques de campainha, o silêncio na aula, a obediência aos professores, o
não olharmos pela janela quando o professor está a falar e toda a
parafernália de comportamentos e de acções mais a catadupa de castigos
(pequenos e grandes) desenhados para nos dar disciplina são castradores e
para muitos dos meus colegas das memórias mais duras da escola e de toda a
sua juventude, reflectindo muitos dos adultos de hoje. Paradoxalmente tem
sido a minha experiência que as aulas em que as minhas turmas se “portavam
melhor” eram aquelas em que nós gostávamos do professor, nada tendo a ver
com as inúteis medidas coercivas. Vejo também que a disciplina que eu tenho
e que muitos dos meus colegas também adquiriram (ou não) nada tem a ver
com aquilo que passámos na escola mas sim como nos organizámos fora dela.
Lembro-me que sempre gostei de ir à escola – ainda hoje gosto ou muito
provavelmente não estaria a escrever isto – que nunca sofri violências que vi
outros sofrerem, que nunca fui ostracizada como vi outros serem nem nunca
tive grandes dificuldades com as disciplinas como vi outros terem. Não é a
memória da minha experiência da escola que é particularmente má. No
entanto não posso deixar de partilhar que quando chegou a altura de colocar
o meu próprio filho na escola não fui capaz de lhe fazer tal violência. Na
minha visão misturam-se memórias que nunca foram nem muito nem
maioritariamente más com aquilo que entretanto tenho lido acerca da escola,
de como ela foi desenhada, quais os seus verdadeiros objectivos e as
alternativas que temos para educar as novas gerações. Não vou expor essas
teorias. Creio que ao analisar o que já escrevi sobre a escola elas se irão tornar
patentes.
Para terminar quero focar-me num dos pontos que julgo centrais na escola –
competição. Quer o sistema de avaliação exclusivamente comparativo quer
a impossibilidade de um professor dar o mesmo afecto e atenção a todos os
alunos, quer ainda o limitado “tempo de antena” que cada aluno tem ao
longo do ano escolar fazem da escola o grande ampliador da
competitividade, já de si existente no ser humano. Desde os “novos” jogos
pedagógicos até às palavras meigas da professora tudo serve para cada
aluno competir com os demais. E esta competição existe mesmo quando o
2
José Pacheco foi o iniciador e principal motor do projecto da Escola da Ponte. A Escola da Ponte era uma escola normal, pública
que na primeira metade da década de setenta começou a sofrer uma transformação pedagógica e organizacional. Agora não
divide os alunos em turmas, não divide as matérias em aulas de cinquenta minutos e à parte das auto-avaliações feitas pelos
alunos não tem testes nem trabalhos de avaliação.
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aluno desiste de competir. Não posso deixar de pensar ao ver as notícias que
muitos dos nossos problemas de hoje teriam menos pressão se na escola se
fomentasse a cooperação em vez da competição.
DESCASCANDO A CEBOLA
“To understand at all is to understand differently” – Hans J. Gadamer
Creio que uma das coisas que salta à vista naquilo a que chamo a minha
visão da escola é o aborrecimento de ver uma descrição de escola que podia
ter sido feita por qualquer pessoa. O que salta à vista não é a visão única de
alguém influenciado pela sua história particular e preconceitos próprios mas
uma história repetida à exaustão e recontada por milhões de vozes diferentes.
Como é possível que as histórias da escola sejam tão pouco variadas. Se
tomarmos o ponto de vista histórico e se admitirmos, como eu admito, que a
escola tal como a conhecemos hoje foi criada no séc. XIX com o intuito
explicito de alienar os próprios alunos de modo a que estes produzissem bons
operários fabris e soldados nacionalistas3, podemos interpretar a uniformidade
dos relatos sobre a escola como o resultado de uma experiência ao mesmo
tempo traumática e uniformizadora – a própria escola.
Posso assim sair airosamente de cena. Aquilo que expus tem menos a ver com
a minha experiência pessoal e com os meus preconceitos próprios mas mais
com uma experiência partilhada por muitos, geradora dos próprios
preconceitos com que agora a analisamos. A isto também não é alheio o
facto de, seja qual for o conceito de cultura usado, as escolas através do
tempo e em todas as sociedades ter sempre servido como transmissora da
cultura vigente no grupo em que se inseria4. Assim armada com as
experiências e os preconceitos reconhecidamente comuns a quase todos os
que como eu passaram pela escola (modelo oitocentista) vamos começar, ou
continuar, a descascar a cebola.
Começamos pela casca, o edifício ou melhor a sala de aula. Não resisto a
contar uma anedota conhecida: Se Rip van Winckle tivesse adormecido em
1890 e só acordasse hoje ficaria maravilhado com as cidades, com os aviões
que passam em cima, com os automóveis com que se cruzava na rua, com as
fábricas robotizadas e com os gadgets digitais que usamos, mas quando
chegasse a uma escola e entrasse numa sala de aula diria “Ah, aqui sei onde
estou, estou numa escola!”. Parece-me que o pacote físico apresenta-se-nos
como embrulhando um produto acabado, uma caixinha feia e vazia onde a
mesma experiência ocorre há mais de cento e vinte anos. Aqui não há o
estarmos “a caminho” para a verdade (Hogan, 2000) – o centro de
aprendizagem por excelência está estático5 sem a dinâmica característica do
paradigma hermenêutico de aprendizagem.
3
Para uma visão radical ver a opinião de John Taylor Gatto, várias vezes premiado como professor do estado de Nova York e que
depois se dedicou a desconstruir e a expor o sistema da educação pública. Para uma visão menos radical ver as conferências de Sir
Ken Richardson no TED ou mais particularmente na SBA.
4
Ver por exemplo o artigo “education” na Encyclopedya Britannica Online.
5
Obviamente que não está estático, a minha escola não foi a escola dos meus pais nem será a do meu filho. O meu ponto é que as
mudanças – as reformas periódicas que a escola e a educação sofrem – são apenas superficiais e não mudam o essencial do que é
a experiência escolar de todos e de cada um.
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O papel do professor tem mais camadas do que a simples sala de aula. Na
minha visão foquei-me mais na questão da autoridade. Nesse sentido como
senhor absoluto (ou quase) da matéria a dar, da ocupação do tempo na sala
e do que constitui um bom comportamento ou uma boa aprendizagem o
professor não expõe os seus preconceitos nem usa as experiências dos alunos
para fazer um diálogo de onde a interpretação inerente à matéria estudada
(e não da matéria dada) pudesse surgir e evoluir. Outra camada que poderia
facilmente ter surgido é a de armazém de conhecimento, como descrito e
argumentado no ensaio de Derme Boyles (Boyles, 1994) e sobre a qual não me
vou alongar.
Ao falarmos dos grupos de colegas chegamos a uma camada que tem algum
dinamismo, eu diria a mais dinâmica de todas. Quando Judith Harris nos diz
para não culparmos os nossos pais por sermos quem somos (Harris, 1998) ela
está de facto a dizer que as pessoas com quem aprendemos mais não são
nem os pais nem os professores, mas os colegas. Do ponto de vista do
paradigma hermenêutico isto faz todo o sentido. Com a cabeça cheia dos
valores, informações e disciplina que os pais e os professores nos tentam incutir
é com os colegas que acabamos por discutir o que achamos ser digno de
discussão. Nesse ir e vir dialogante aprendemos mais do que em todas as aulas
(fica claro a questão mas o que é que aprendemos?). Todas as questões de
moda e regras dos grupos a que pertencemos vão sendo interpretadas e
modificadas nesse movimento. Se a escola vence e consegue incutir a sua
cultura tem mais a ver com aspectos materiais do mercado de trabalho e com
o factor perverso da avaliação.
Aqui gostaria de fazer um aparte para falar do gosto de ir à escola. Uma
dinâmica dialogante que envolva aquilo que é importante para nós dá, na
minha opinião lugar a um gosto pela interpretação do que se está a aprender
– mesmo que se esteja a aprender o que já se sabe a priori, mas desde
Heidegger que não temos outra hipótese. Defendo pois que uma escola
baseada no paradigma hermenêutico seria uma escola onde alunos e
professores gostariam de ir o que manifestamente não acontece na escola
que temos. Tenho dificuldade em decidir quem gosta menos de ir à escola se
os alunos, se os professores.
A avaliação é o mecanismo mais poderoso da instituição escola. Ao mesmo
tempo cenoura e pau é o ponto central da escola e uma entidade inútil na
aprendizagem. Como disse, creio ser a avaliação o factor decisivo para a
escola conseguir incutir uma cultura nos seus alunos (e professores) apesar dos
grupos de colegas em diálogo serem muitas vezes uma contra cultura. Uma
avaliação comparativa – seja ela numérica ou falsamente qualitativa como
um “muito bom” ou um “não satisfaz” – é sempre um ponto final na discussão.
A história chegou ao fim, a espiral hermenêutica é afinal um círculo ou mesmo
apenas um ponto. Tenho de clarificar que apenas falo neste tipo de avaliação
e não numa avaliação extensiva que devolve ao aluno os seus pontos fracos e
pontos fortes como interpretados pelo professor. Esta última seria apenas mais
um passo para continuar a discussão, uma abertura da abrangência da
espiral hermenêutica. O problema é que esta avaliação não serve a máquina.
Dois relatórios qualitativos sobre dois alunos diferentes podem não dar uma
ideia clara de qual deles é “melhor”. Deste modo a avaliação comparativa
tomou o lugar central na educação. Eu venho para ter um canudo com
média de dezasseis mesmo que me esqueça de tudo o que me foi passado
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pelo caminho para chegar ao dezasseis. Defendo que numa escola definida
(ou melhor em definição) pelo paradigma hermenêutico a aprendizagem
seria algo de central à instituição mesmo que ela não precisasse de o dizer a
toda a hora.
A questão do comportamento é outra que se prende com a estagnação ou
imutabilidade do paradigma oitocentista da escola. Num paradigma
hermenêutico as experiências de cada aluno seriam centrais para a
aprendizagem que iria acontecer. E sim o comportamento correcto seria
muito difícil de descrever num livro de regras para dar ao mestre-escola para
este as fazer cumprir. Podemos compreender que o não saber para onde vai
um caminho possa assustar quem o está a percorrer, mas acredito como Filipe
Verde que este caminho do paradigma hermenêutico leva a uma verdade (à
verdade plural) (Verde, 2009). Daí a minha interpretação é que a escola tem
medo da verdade.
Claro que todas estas camadas voltam sempre para a figura do professor e
para a sua centralidade na aula. Num modelo que temos, o oitocentista o
professor é formalmente central ocupando normalmente posições que eu diria
marginais – ou é indiferente à aprendizagem do aluno ou é um obstáculo.
Arrisco a avançar a hipótese que quando não é porque está a por em prática
o paradigma hermenêutico, como diz Boyles na sua vertente de interpretação
e compreensão e não como método. Um exemplo ilustrativo é o professor que
sabe e gosta da prática hermenêutica para a sua investigação (e
aprendizagem). Isso não é antídoto automático para que ele não caia no
modelo oitocentista. Nesse modelo, em que ele passa aquilo que ele
interpretou e aprendeu num paradigma hermenêutico de uma forma
metodológica de incutir conhecimento e boas interpretações aos alunos. Estes
aprendem sozinhos ou em grupo em discussões, dinâmicas ou investigações a
solo. O professor foi uma indiferença ou simples obstáculo.
CONCLUSÃO
“Human understanding is thus constituted less by the rational autonomy of
critical consciousness than by an unavoidable interpretative engagement with
others, (…)” - (Hogan, 2000)
Como disse a aprendizagem, a educação e a escola são pontos centrais para
mim neste momento. Se há uma expectativa que tenho na Antropologia é
que esta, a caminho de me ajudar a compreender o que é o Homem, me
ajude a compreender como é que o Homem aprende e se pode aprender em
liberdade. Com este exercício forcei-me a olhar para a minha visão da escola.
Apesar de acreditar no valor intrínseco de uma escola pública que prodigue
educação e aprendizagem para todos, vejo que tenho desta uma imagem
extraordinariamente negativa. Este trabalho nasce de uma contradição
interna de me querer educar e aprender num sistema no qual não acredito
mas no qual quero acreditar. Foi grande a minha surpresa ao encontrar as
propostas de Heidegger e Gadamer para a compreensão humana. Estes
autores e a visão que Filipe Verde tem deles vieram dar-me a mesma
esperança que ele tem para a Antropologia em relação à Educação.
Enquanto preparava este texto foi uma agradável surpresa ter encontrado
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outros trabalhos a caminhar na mesma direcção. Por muito negra que seja a
nossa visão actual da escola o paradigma hermenêutico veio mostrar um
caminho, ou melhor, uma pluralidade de caminhos que se podem percorrer
para que a aprendizagem e a compreensão humana, de si mesmo e das
coisas sirvam para a edificação humana. Creio que Filipe Verde ao definir
Antropologia definiu aquilo que eu julgo ser o âmago da Educação: “Olhar
para nós de uma forma que nos enriquece”. É isso que quero fazer!
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A ESCOLA COMO UNIFORMIZADOR GLOBAL
Classificar para a uniformização e para o relativismo ou
categorizar para a diversidade e universalismo?
CATEGORIZAÇÃO PARA A DIVERSIDADE
Diversidade:
2 – Conjunto que apresenta aspectos, condições, qualidades ou tipos
diferentes. (Acade & Lisboa, 2001).
Tem sido central nas Ciências Naturais a categorização do observado. Esta
quer-se objectiva e estruturada por critérios bem definidos para que as
categorias sejam o mais “reais” possível. Um dos grandes triunfos da taxonomia
é dizer que uma das suas categorias, as espécies têm uma existência real e
não são apenas arbitrariedades humanas para convenientemente catalogar
os seres vivos. Não me parece importante se estas categorias são “reais” ou
não. Todas elas são humanas e todas deixam os catalogados absolutamente
indiferentes.
Se observarmos a catalogação de diferentes aspectos culturais humanos,
especificamente as línguas, veremos que o paralelismo é grande. Do mesmo
modo as línguas são indiferentes à categoria em que são colocadas. No
entanto as categorias podem influenciar a maneira como os homens olham e
lidam com essas línguas ou com essas espécies.
Ao realçar as diferenças entre cada elemento dessas realidades (espécies ou
línguas) não se está a enfraquecer o que têm em comum. Todas as espécies
são conjuntos de seres vivos que partilham a dependência uns dos outros e do
planeta. Todas as línguas são usadas por seres humanos para comunicar e
permitem enfoques especiais sobre a realidade que as criou, em particular
permitindo maneiras de pensar totalmente diferentes.6 O realçar as diferenças
permite no entanto singularizar aspectos em espécies e línguas diferentes. O
que temos a aprender com duas espécies diferentes ou com duas línguas
diferentes são sempre coisas diferentes. Uma espécie tem uma história única
de milhões de anos no planeta Terra para chegar aonde chegou. Uma língua
tem uma história única de milhares de anos na humanidade para chegar
aonde chegou. Neste aspecto, categorizar não passa por uniformizar. Eu não
exijo a cada língua ou cada espécie as mesmas características nem as
classifico positiva ou negativamente consoante se desviam mais ou menos de
6
Ver como o grupo de indígenas brasileiros conhecido por munduruku não tem plurais nem palavras
para além do número cinco. Ao trabalhar com eles, o estudante Pierre Pica perdia ao fim de algumas
semanas de trabalho de campo toda a noção de tempo, quantidades e distâncias. A língua que estava a
estudar e na qual se emergia retirava-lhe essa capacidade de pensamento comum no ocidente.
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um padrão que me parece mais apetecível. As diversidades que as categorias
catalogam e apresentam são reais. Eu posso usar uma espécie em vez de
outra ou uma língua em vez de outra mas, essa substituição nunca é perfeita.
Há em cada um destes elementos uma unicidade singular.
O classificar espécies ou línguas com várias categorias de ameaça também é
indiferente a cada uma delas. Permite-nos no entanto agir a tempo de não as
perdermos mantendo assim uma maior diversidade.
Os critérios para as categorias de ameaça são bem definidos e permitem a
qualquer pessoa verificar se estão a ser bem aplicados e portanto se
concorda ou não com a sua aplicação. Além disso, são afinados e revistos
periodicamente consoante as lições no terreno vão sendo aprendidas pela
comunidade científica. É usual ver numa classificação de ameaça a data
dessa classificação, de modo que os critérios se tornam claros. Este esforço
serve para tornar a
categoria mais “real”. Mais uma vez me parece imaterial a realidade da
categoria. Parece-me que o central é saber o que nós, seres humanos,
fazemos com essa categorização.
Quando classifico um aluno como “burro” as pessoas à sua volta tratá-lo-ão
de maneira diferente e ele próprio irá reagir a essa classificação, abraçando-
a, rejeitando-a ou algo no meio dos dois. Quando classifico uma espécie ou
uma língua como ameaçada estas não reagem, é apenas a nossa reacção a
elas que pode mudar. Neste sentido a classificação escolar
aponta para uma normalização da sua população (todos nós), enquanto que
a categorização de entidades como espécies e línguas permite, ao
reconhecer as suas fragilidades valorizá-las ou não como coisas singulares que
são.
AFINAL PARA QUE QUERO A DIVERSIDADE?
Valor:
12 – Qualidade do que produz o efeito pretendido. (Acade & Lisboa,
2001)
13 – Grau de aproveitamento de um aluno. (Acade & Lisboa, 2001)
Na última discussão que tive sobre biodiversidade numa empresa de
educação ambiental, num trabalho com vista a publicação, os três aspectos
que se realçaram do valor da biodiversidade foram: o valor económico
directo, o valor económico indirecto e o valor ético. Do mesmo modo a razão
mais comum para a preservação de uma língua moribunda (ou mesmo morta)
é o valor do conhecimento humano (Sober, Elliott;, 1994). São simples valores
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humanos e não a miríade de argumentos e razões contra os quais esgrime
Elliott Sober (Sober, Elliott;, 1994). Quero com isto dizer que a biodiversidade é
importante para nós Homens e não para todas as outras espécies. Quer dizer
que o conhecimento das seis mil línguas do mundo é importante para nós e
não para outra entidade qualquer.
“This is indeed a value per se, flowing from a normative decision which needs
no justification as such when humanity as a whole agrees to confirm it: when it
comes to culture, diversity is preferable to monotony.” (Descola, Philippe;,
2008).
Mais uma vez não me parece pertinente uma quantificação “real” dos valores
em questão. Antes me parece importante verificar que são valores
reconhecidos por entre grupos muito diferentes em todas as partes do mundo.
Para mim um dos principais está categorizado como um valor ético. Se
permitirmos a extinção de certas espécies e mesmo de certas línguas, essa
permissividade transforma-nos como seres humanos, e essa é também uma
transformação normalizadora.
Defendo que este cuidado com espécies biológicas e com línguas (e até
mesmo tradições) humanas não tem nada da sensibilidade relativista que
permitiria a cada grupo humano tratar os seus membros e as espécies nas suas
terras como bem entendesse, defendendo-se com a tradição cultural. Antes
pelo contrário é no sentimento de sermos todos humanos, com o valor
intrinsecamente igual que está o salvaguardar da diversidade humana. É por
saber que o índio, o indígena, o marginal e o outro são totalmente humanos
como eu, que posso respeitar as suas tradições, incluindo a língua,
valorizando-as e trazendo-as para um espaço comum da humanidade,
enriquecendo-a com mais diversidade.
Por outro lado, a uniformização levada a cabo pela instituição Escola realça
particularismos regionais de cada região ou estado para de uma maneira
igual nos separar cada vez mais. Lembro-me de na Escola, na cadeira de
história de Portugal começar por não gostar dos romanos que “nos” vinham
atacar, passando depois a não gostar dos bárbaros que também “nos”
vinham atacar, sendo estes seguidos pelos árabes (dos quais ainda hoje não
gosto porque pelos vistos ainda “nos” querem atacar). Na Escola eu sinto-me
diferente do mau aluno, do aluno estranho, do inconformista. Ainda mais,
sinto-me diferente dos estrangeiros, dos imigrantes, dos emigrantes.
Partilho da opinião de Phillipe Descola em relação à biodiversidade e à
diversidade cultural em particular: diversidade é sempre melhor do que
monotonia. Numa equipa de futebol se todos forem guarda-redes a equipa
não marca e se todos forem avançados a equipa não defende. Em qualquer
das hipóteses a equipa perde. É nesta aproximação a todos os homens, às
suas línguas e à nossa interdependência do planeta e de outras espécies que
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proponho a diversidade como um valor por si – um valor humano (e não serão
todos?) mas não menos real por isso.
Deste modo parece-me claro a minha ideia de uma classificação, a da
Escola, que nos empobrece a todos e uma categorização, a das ameaças,
que pretende deixar uma herança mais rica para as próximas gerações.
É interessante também constatar o pequeno paradoxo que é as
categorizações das ameaças de espécies ou línguas sair do universo
académico. Apesar de Ian Hacking no seu ensaio diferenciar os seus “tipos
humanos” de uma abordagem hermenêutica, parece-me que o ser humano
sempre que se põe a pensar sobre ele próprio e a sua cultura entra
invariavelmente numa abordagem hermenêutica, em que em cada ciclo de
observação e interpretação se conseguem descobrir novas maneiras de
pensar e de observar.
CONCLUSÃO
“Time to take our schools back. If they mean to have a war, let it begin now.”
(by J. T. Gatto)
Virar um olhar crítico para a Escola é sempre um risco. Por um lado de parecer
ingrata, de estar a criticar a instituição que me deu e me dá tanto. Por outro
lado, parece que não critico o suficiente e a aceito passivamente enquanto
escrevo um texto como este pronto a ser classificado (e eu categorizada).
É claro para mim que não é a Escola, tida como centro de aprendizagem,
que estou a criticar mas sim o grande classificador. Este texto vale mais a pena
como uma descoberta minha de mais esta característica da Escola do que
como um passo dado na obtenção de uma classificação que dependendo
da sua classe me poderia ser útil num futuro próximo.
Que todas as classificações e categorizações nos mudam não tenho dúvidas.
Que sermos como indivíduos incluídos num tipo humano nos transforma a nós e
ao próprio tipo, parece-me uma lição importante. Que a Escola ao classificar-
nos como grupos e indivíduos desde a nossa mais tenra idade, nos condiciona
e nos limita, tornando-nos uma massa uniforme parece-me um facto contra o
qual temos que despertar. Quero acabar fazendo minhas as palavras de John
Taylor Gatto: “A twenty-five-year-old school dropout walked the length of the
planet without help, a seventeen-year-old school dropout worked a twenty-six-
foot sailboat all by herself around the girdle of the globe. What else does it take
to realize the horrifying limitations we have inflicted on our children? School is a
liar’s world. Let us be done with it.”
12. Todos os direitos reservados ao autor.
Os textos aqui apresentados fizeram parte de
trabalhos realizados para o Mestrado de Antropologia
dando lugar a tese em curso.