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O  LIXO
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam. - BOM DIA!   -  BOM DIA!
[object Object],?
[object Object],?
  Pois é! Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente
-  Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
O meu o quê?
- O seu lixo! - Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata .   - É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
Entendo. - A senhora também... - Me chame de você. - Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes.
- Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No
- Como é que você sabe?   -  Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?   - Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.   - É.
[object Object],- Meu pai. Morreu.   - Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe? ,[object Object],[object Object]
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.   - Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo? - Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora.
- Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos... - É que eu estou com um pouco de coriza. - Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não!
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la.  Acho que foi a poesia. - Vi e gostei muito. ,[object Object],[object Object]
- Mas são muito ruins! - Se você achasse eles  ruins mesmo, teria rasgado. Eles só  estavam dobrados. - Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando
Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público. - Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo... - O quê? - Me enganei, ou eram cascas de camarão? - Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei. - Eu adoro camarão. - Descasquei, mas ainda não comi
Quem sabe a gente pode...   - Jantar juntos?
É!
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?   - Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora
- No seu lixo?
- Ou no meu? FIM
Produção Vanesa Vogel Texto Luís Fernando Veríssimo

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O lixo1

  • 2. Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam. - BOM DIA! - BOM DIA!
  • 3.
  • 4.
  • 5. Pois é! Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente
  • 6. - Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
  • 7. O meu o quê?
  • 8. - O seu lixo! - Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
  • 9. - Na verdade sou só eu.
  • 10. - Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata . - É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
  • 11. Entendo. - A senhora também... - Me chame de você. - Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
  • 12. - É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes.
  • 13. - Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
  • 14. - A senhora... Você não tem família?
  • 15. - Tenho, mas não aqui.
  • 16. - No
  • 17. - Como é que você sabe? - Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
  • 18. - É. Mamãe escreve todas as semanas.
  • 19. - Ela é professora? - Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
  • 20. - Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
  • 21. - O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
  • 22. - No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado. - É.
  • 23.
  • 24. - Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
  • 25. Foi por isso que você recomeçou a fumar?
  • 26.
  • 27. - É verdade. Mas consegui parar outra vez. - Eu, graças a Deus, nunca fumei.
  • 28. - Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
  • 29. - Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
  • 30. - Você brigou com o namorado, certo? - Isso você também descobriu no lixo?
  • 31. - Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora.
  • 32. - Depois, muito lenço de papel.
  • 33. - É, chorei bastante, mas já passou.
  • 34. - Mas hoje ainda tem uns lencinhos... - É que eu estou com um pouco de coriza. - Ah.
  • 35. - Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
  • 36. - É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
  • 39. - Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
  • 40. - Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
  • 41. - Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
  • 42. - Você já está analisando o meu lixo!
  • 43. - Não posso negar que o seu lixo me interessou.
  • 44.
  • 45. - Mas são muito ruins! - Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados. - Se eu soubesse que você ia ler...
  • 46. - Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando
  • 47. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
  • 48. - Acho que não. Lixo é domínio público. - Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
  • 49. - Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
  • 50. - Ontem, no seu lixo... - O quê? - Me enganei, ou eram cascas de camarão? - Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei. - Eu adoro camarão. - Descasquei, mas ainda não comi
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  • 52. É!
  • 53. - Não quero dar trabalho.
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  • 58. Produção Vanesa Vogel Texto Luís Fernando Veríssimo