SlideShare ist ein Scribd-Unternehmen logo
1 von 4
Downloaden Sie, um offline zu lesen
O fim e o início
                      um conto por Ana Reis




                                                             Créditos da imagem: George Lu

O acordar foi violento. Quando voltei a mim uma torrente de água gelada e escura
lançava-se contra a minha face. E apenas os faróis do carro, que continuavam acesos,
me deixavam antever o mundo que me rodeava.

Um arrepio molhado percorreu a minha espinha e por momentos esqueci-me de
respirar. Não me lembrava do que tinha acontecido, mas se não encontrasse forma de
sair dali para fora não iria ter tempo para descobrir.

A água continuava a entrar pelo pára-brisas. Levei as mãos ao cinto e tentei soltar-me.
Estava preso, tentei forçá-lo mas não cedeu. O pânico reclamou os meus sentidos.
Comecei a bater no vidro ao meu lado com toda a força que conseguia. Gritei até
esvaziar os meus pulmões de qualquer ar.

Não veio ninguém. Estava perdida. Mas o meu corpo continuava a lutar sem descanso
contra aquela prisão de metal que se afundava lentamente. Observei com horror
enquanto a superfície do lago desaparecia. E em todo esse tempo não deixei de
esbracejar como uma louca.

Sentia-me desligada do meu corpo. A minha mente estava já resignada mas o meu
corpo não estava disposto a desistir. Via agora com clareza o destino que me
aguardava. Ia morrer de uma morte horrível e não havia nada que eu pudesse fazer
para me salvar.

Finalmente a água ocupou tudo, não deixando mais espaço para o ar entrar. Foi então
que me lembrei. A faca, eu tinha trazido a faca no banco da frente. Num segundo
despertei, ignorando a imensa escuridão que se agigantava à minha volta. Virei-me em
todas as direcções e finalmente encontrei a mochila. Estava a flutuar na parte de trás
do carro.

                                                                                       1
Ignorei a dor no meu ombro direito e estiquei-me o máximo que consegui até agarrar
uma das alças. Puxei a mochila para perto de mim e tacteei o seu interior numa
escuridão cada vez mais intensa. Quando a minha mão encontrou o cabo da faca,
lágrimas de alegria saíram dos meus olhos para se unirem à água do lago.

Encostei a lâmina brilhante ao cinto e comecei a cortar. O meu braço movia-se o mais
rápido possível, mas cedo a falta de ar e a água gelada reclamaram as minhas últimas
forças.

Senti a minha consciência escoar de forma alarmante enquanto as minhas mãos
afrouxavam o aperto que sustinha a faca, a minha única salvação. E em poucos
segundos tudo ficou escuro.

Quando voltei a mim alguém me arrastava para fora da água. E senti que arrancavam
partes da minha alma. Voltei a respirar por um momento. E uma dor intensa encheu o
meu peito.

O ar estava gelado. Tão gelado que me fez querer voltar a enfrentar a escuridão do
lago.

Nos meus ouvidos soava uma música infernal de ventos, vozes e tempestades. Os
meus olhos apenas distinguiam sombras que se apinhavam ao longe.

Naquele momento eu era apenas um emaranhado de dor, sangue e confusão. Senti o
meu corpo a ser arrastado pelo chão. A terra grossa raspando a minha pele. Pensei que
ia morrer ali, dilacerada por aquelas minúsculas pedras que se cravavam na minha pele
a ferro e fogo.

A música era agora mais intensa. Como se estivéssemos prestes a chegar ao clímax
daquela diabólica composição. Instintivamente encolhi-me. Tentei falar com os
demónios que me cercavam, mas o ruído que saiu da minha boca nada tinha de
humano.

O frio era agora demasiado intenso para ignorar. Gelava-me a pele e as roupas
molhadas. “Que forma horrível de morrer” pensei. Mas quem quer que me
contemplasse não pareceu ouvir os meus pensamentos.

Num segundo o arrastar parou. Deixei-me ficar ali como se fosse o lugar mais
confortável do mundo, enquanto no meu coração a vontade de desistir tentava
destruir às dentadas o meu instinto de sobrevivência.

Abri os olhos para ver se havia alterações no cenário que me rodeava. E naquele
momento pude ver uma face. Era a Morte quem me contemplava. Nunca saberei
como foi que o soube. Mas aquele rosto que transmitia uma compaixão infinita
parecia falar por si só. Não pude aguentar o seu olhar.




                                                                                     2
Tentei desviar-me, ignorar a sua presença. Mas a Morte não aliviou o seu abraço
gelado. E esperou paciente ao meu lado, enquanto a minha resistência e lamento
foram dando espaço a uma doce resignação.

Não podia afastá-la mais. Olhei a Morte nos olhos mais uma vez, só porque não podia
suportar a sua presença silenciosa. E o seu olhar parecia querer dizer que tudo ia ficar
bem. Naquele momento teria dito que sim a qualquer coisa só para acabar com aquela
dor.

Quando finalmente aceitei o meu destino a minha alma começou a escorregar para
fora de mim. Por momentos estava a voar para longe do meu corpo, para longe de
toda aquela dor e confusão.

A alegria que me invadiu era imensa. Estava livre, livre, livre...

Mas tudo voltou a ficar escuro. Senti uma dor aguda no peito. E acordei de novo para
aquela realidade assustadora da qual pensava ter escapado.

Estamos a perdê-la...

Disse uma voz rebentando os meus ouvidos. Sentia-me traída. Só queria que
parassem. Que me deixassem voar para longe dali.

A voz pareceu ignorar os meus pedidos e senti outro golpe no meu peito.

1,2,3... Fica comigo.

Senti outra vez a dor do despertar. A dor duma alma a preencher um corpo vazio.

Estamos a perdê-la outra vez...

Acabei por perder de novo a consciência. Mas desta vez não voltei a sentir aquela
incrível sensação de liberdade, de poder voar para longe de mim.

Quando acordei de novo fui inundada por uma luz imensa que me cegou por uns
instantes. Tive que esperar que os meus olhos se habituassem à claridade depois de
ter experimentado a escuridão do inferno gelado.

Depois de me adaptar comecei a explorar com cautela aquela nova realidade. A dor
ainda lá estava, mas pelo menos tinha sobrevivido. E já não me sentia como um
emaranhado de sangue e confusão.

Lágrimas de alívio voltaram a invadir os meus olhos.

E naquele momento senti a necessidade de experimentar a força das minhas pernas.
Nunca pensei que fosse tão importante para mim voltar a sentir os meus pés no chão.
Voltar a sentir-me livre, apesar das fronteiras do meu corpo.

                                                                                      3
Quando me tentei mover todo o meu corpo rangeu num agudo protesto. Tive que me
controlar para não gritar, mas no final a minha vontade venceu e consegui arrastar as
minhas pernas para fora da cama.

O chão estava gelado, mas não me importei. E embora as minhas articulações
continuassem o seu silencioso protesto, decidi avançar.

Após dois passos sentia-me já estafada e pronta para desistir. Mas ao parar pude ouvir
com clareza a minha respiração rasgada e o bater do meu coração. Nunca me senti tão
sortuda por poder apreciar algo tão simples. Naquele momento aquela melodia
parecia-me a mais bela do mundo.

A minha boca rasgou-se num sorriso involuntário.

Decidi continuar a avançar. E quando dei por mim estava a encarar uma porta branca.
Abri-a de rompante, na emoção da descoberta.

Do outro lado encontrei aquilo que parecia ser uma casa de banho. Em louça branca e
brilhante que me cegou por um pequeno instante. Estava prestes a voltar para a cama
quando algo prendeu a minha atenção.

Do outro lado do espelho uma jovem mulher devolvia o meu olhar. Uma cicatriz feia a
romper a têmpora direita. Os lábios rasgados pelo frio. As faces descoradas e o nariz
vermelho. E dei por mim a sentir-me irresistivelmente atraída pelo seu olhar.

Destemido, brilhante, selvagem. Aquele olhar eclipsava todos os cortes feios que
rompiam a pele daquela face.

Possuía um brilho que eu nunca antes tinha visto. Quase não me reconheci, mas
percebi de imediato o significado daquele olhar. Uma parte de mim morrera de
verdade no acidente, morrera aquela parte que tinha contido aquele olhar apaixonado
e feroz durante tantos anos.

E agora eu estava livre.


                                              FIM
                                            … ou o início


 Sobre os direitos de autor

 A cópia integral deste texto está expressamente proibida. Para quem se sente tentado a isso uma
 palavra de aviso: eu vou encontrá-lo e denunciá-lo se o fizer.

 É permitido distribuir livremente e copiar partes deste conto (não mais de dois parágrafos) desde que
 se cite a fonte, e se crie uma hiperligação para o blogue arevolucaodamente.com.



                                                                                                     4

Weitere ähnliche Inhalte

Was ist angesagt?

Revista Outras farpas.quinta edição
Revista Outras farpas.quinta ediçãoRevista Outras farpas.quinta edição
Revista Outras farpas.quinta ediçãoActon Lobo
 
Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02
Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02
Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02Telma Costa
 
AMOR,ALEGRIAS E LAGRIMAS
AMOR,ALEGRIAS E LAGRIMASAMOR,ALEGRIAS E LAGRIMAS
AMOR,ALEGRIAS E LAGRIMASKhamia carvalho
 
Prece de Divaldo P Franco
Prece de Divaldo P FrancoPrece de Divaldo P Franco
Prece de Divaldo P FrancoRita Steter
 
Desejos obscuros livro II- Fragmentada
Desejos obscuros livro II- FragmentadaDesejos obscuros livro II- Fragmentada
Desejos obscuros livro II- FragmentadaRaquel Alves
 
O diário das dores (guardado automaticamente)
O diário das dores (guardado automaticamente)O diário das dores (guardado automaticamente)
O diário das dores (guardado automaticamente)fernandoCarlos59
 
Desejos Obscuros- livro VI- O adeus
Desejos Obscuros- livro VI- O adeusDesejos Obscuros- livro VI- O adeus
Desejos Obscuros- livro VI- O adeusRaquel Alves
 
Manual Sobre Vampiros
Manual Sobre VampirosManual Sobre Vampiros
Manual Sobre Vampirosgrigoriow7
 
Contos de um coração quebrado
Contos de um coração quebradoContos de um coração quebrado
Contos de um coração quebradoRaquel Alves
 
Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)Angelo Magliani
 
O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2
O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2
O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2lousrondon
 
Diário de Kassandra: a marca da bruxa
Diário de Kassandra:  a marca da bruxaDiário de Kassandra:  a marca da bruxa
Diário de Kassandra: a marca da bruxaRaquel Alves
 
To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)
To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)
To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)UniversoFrusciante
 

Was ist angesagt? (20)

Revista Outras farpas.quinta edição
Revista Outras farpas.quinta ediçãoRevista Outras farpas.quinta edição
Revista Outras farpas.quinta edição
 
Despedida de uma alma
Despedida de uma almaDespedida de uma alma
Despedida de uma alma
 
Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02
Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02
Alysonnoel osimortais06-infinito-130428165846-phpapp02
 
AMOR,ALEGRIAS E LAGRIMAS
AMOR,ALEGRIAS E LAGRIMASAMOR,ALEGRIAS E LAGRIMAS
AMOR,ALEGRIAS E LAGRIMAS
 
Prece de Divaldo P Franco
Prece de Divaldo P FrancoPrece de Divaldo P Franco
Prece de Divaldo P Franco
 
Amante Liberto 2
Amante Liberto 2Amante Liberto 2
Amante Liberto 2
 
Forro
ForroForro
Forro
 
Desejos obscuros livro II- Fragmentada
Desejos obscuros livro II- FragmentadaDesejos obscuros livro II- Fragmentada
Desejos obscuros livro II- Fragmentada
 
O diário das dores (guardado automaticamente)
O diário das dores (guardado automaticamente)O diário das dores (guardado automaticamente)
O diário das dores (guardado automaticamente)
 
Olhos Estranhos 2
Olhos Estranhos 2Olhos Estranhos 2
Olhos Estranhos 2
 
Desejos Obscuros- livro VI- O adeus
Desejos Obscuros- livro VI- O adeusDesejos Obscuros- livro VI- O adeus
Desejos Obscuros- livro VI- O adeus
 
Poe 2
Poe 2Poe 2
Poe 2
 
Manual Sobre Vampiros
Manual Sobre VampirosManual Sobre Vampiros
Manual Sobre Vampiros
 
Contos de um coração quebrado
Contos de um coração quebradoContos de um coração quebrado
Contos de um coração quebrado
 
Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)
 
O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2
O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2
O jornalista-entediado-lous-rondon-16-11-2013-arial12-margin1-letterv2
 
Inconstancia de-fervor
Inconstancia de-fervorInconstancia de-fervor
Inconstancia de-fervor
 
Diário de Kassandra: a marca da bruxa
Diário de Kassandra:  a marca da bruxaDiário de Kassandra:  a marca da bruxa
Diário de Kassandra: a marca da bruxa
 
67
6767
67
 
To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)
To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)
To Record Only Water For Ten Days (Letras traduzidas)
 

Andere mochten auch

Andere mochten auch (7)

Effects of climate change on phytoplankton
Effects of climate change on phytoplanktonEffects of climate change on phytoplankton
Effects of climate change on phytoplankton
 
Desova
DesovaDesova
Desova
 
Estado actual das pescas
Estado actual das pescasEstado actual das pescas
Estado actual das pescas
 
Política Comum das Pescas-10ºano
Política Comum das Pescas-10ºanoPolítica Comum das Pescas-10ºano
Política Comum das Pescas-10ºano
 
Marine Home & Resort
Marine Home & ResortMarine Home & Resort
Marine Home & Resort
 
Cap 13 modificado
Cap 13 modificadoCap 13 modificado
Cap 13 modificado
 
Oceanos e mares
Oceanos e maresOceanos e mares
Oceanos e mares
 

Ähnlich wie O fim e o início

No universo pessoano
No universo pessoanoNo universo pessoano
No universo pessoanolicinioBorges
 
Nosso lar 02clarêncio
Nosso lar 02clarêncioNosso lar 02clarêncio
Nosso lar 02clarêncioDuda Neto
 
Desejos obscuros livro i
Desejos obscuros livro iDesejos obscuros livro i
Desejos obscuros livro iRaquel Alves
 
Equinócio da Primavera
Equinócio da PrimaveraEquinócio da Primavera
Equinócio da PrimaveraBibliotecAtiva
 
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃOLivro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃORaquel Alves
 
Dominante prólogo (versão 2.0)
Dominante prólogo (versão 2.0)Dominante prólogo (versão 2.0)
Dominante prólogo (versão 2.0)Mayelle Souza
 
Nuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdfNuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdfGabriel171
 
Desejos obscuros livro III- A intocável
Desejos obscuros livro III- A intocávelDesejos obscuros livro III- A intocável
Desejos obscuros livro III- A intocávelRaquel Alves
 
Leituras
LeiturasLeituras
Leiturasguida04
 
Lettya nologia impirica (SER)
Lettya nologia impirica (SER)Lettya nologia impirica (SER)
Lettya nologia impirica (SER)Arthur Dellarubia
 
Calendário junho 2010_rosely
Calendário junho 2010_roselyCalendário junho 2010_rosely
Calendário junho 2010_roselyGisele Santos
 

Ähnlich wie O fim e o início (20)

Depressão 1º cap
Depressão   1º capDepressão   1º cap
Depressão 1º cap
 
No universo pessoano
No universo pessoanoNo universo pessoano
No universo pessoano
 
Nosso lar 02clarêncio
Nosso lar 02clarêncioNosso lar 02clarêncio
Nosso lar 02clarêncio
 
Desejos obscuros livro i
Desejos obscuros livro iDesejos obscuros livro i
Desejos obscuros livro i
 
Equinócio da Primavera
Equinócio da PrimaveraEquinócio da Primavera
Equinócio da Primavera
 
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃOLivro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
 
Dominante prólogo (versão 2.0)
Dominante prólogo (versão 2.0)Dominante prólogo (versão 2.0)
Dominante prólogo (versão 2.0)
 
Nuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdfNuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdf
 
Primeiras 15 páginas:
Primeiras 15 páginas: Primeiras 15 páginas:
Primeiras 15 páginas:
 
Vivendo a morte
Vivendo a morteVivendo a morte
Vivendo a morte
 
Noite profunda
Noite profundaNoite profunda
Noite profunda
 
Noite profunda
Noite profundaNoite profunda
Noite profunda
 
Desejos obscuros livro III- A intocável
Desejos obscuros livro III- A intocávelDesejos obscuros livro III- A intocável
Desejos obscuros livro III- A intocável
 
Breve Poesias.
Breve Poesias. Breve Poesias.
Breve Poesias.
 
Leituras
LeiturasLeituras
Leituras
 
POESIAS COM SABOR DE ABRAÇO.pdf
POESIAS COM SABOR DE ABRAÇO.pdfPOESIAS COM SABOR DE ABRAÇO.pdf
POESIAS COM SABOR DE ABRAÇO.pdf
 
Lettya nologia impirica (SER)
Lettya nologia impirica (SER)Lettya nologia impirica (SER)
Lettya nologia impirica (SER)
 
Olhos estranhos2
Olhos estranhos2Olhos estranhos2
Olhos estranhos2
 
Calendário junho 2010_rosely
Calendário junho 2010_roselyCalendário junho 2010_rosely
Calendário junho 2010_rosely
 
Meu viver
Meu viverMeu viver
Meu viver
 

Mehr von Ana Catarina Reis

Mehr von Ana Catarina Reis (7)

Bitacoras.com
Bitacoras.comBitacoras.com
Bitacoras.com
 
Por una gota de agua
Por una gota de aguaPor una gota de agua
Por una gota de agua
 
Estudo da qualidade da água do Rio Febros
Estudo da qualidade da água do Rio FebrosEstudo da qualidade da água do Rio Febros
Estudo da qualidade da água do Rio Febros
 
Mecanismos de migração em peixes
Mecanismos de migração em peixesMecanismos de migração em peixes
Mecanismos de migração em peixes
 
Estado actual das pescas
Estado actual das pescasEstado actual das pescas
Estado actual das pescas
 
Doenças mais comuns em Moluscos
Doenças mais comuns em MoluscosDoenças mais comuns em Moluscos
Doenças mais comuns em Moluscos
 
Reservas Marinhas
Reservas MarinhasReservas Marinhas
Reservas Marinhas
 

O fim e o início

  • 1. O fim e o início um conto por Ana Reis Créditos da imagem: George Lu O acordar foi violento. Quando voltei a mim uma torrente de água gelada e escura lançava-se contra a minha face. E apenas os faróis do carro, que continuavam acesos, me deixavam antever o mundo que me rodeava. Um arrepio molhado percorreu a minha espinha e por momentos esqueci-me de respirar. Não me lembrava do que tinha acontecido, mas se não encontrasse forma de sair dali para fora não iria ter tempo para descobrir. A água continuava a entrar pelo pára-brisas. Levei as mãos ao cinto e tentei soltar-me. Estava preso, tentei forçá-lo mas não cedeu. O pânico reclamou os meus sentidos. Comecei a bater no vidro ao meu lado com toda a força que conseguia. Gritei até esvaziar os meus pulmões de qualquer ar. Não veio ninguém. Estava perdida. Mas o meu corpo continuava a lutar sem descanso contra aquela prisão de metal que se afundava lentamente. Observei com horror enquanto a superfície do lago desaparecia. E em todo esse tempo não deixei de esbracejar como uma louca. Sentia-me desligada do meu corpo. A minha mente estava já resignada mas o meu corpo não estava disposto a desistir. Via agora com clareza o destino que me aguardava. Ia morrer de uma morte horrível e não havia nada que eu pudesse fazer para me salvar. Finalmente a água ocupou tudo, não deixando mais espaço para o ar entrar. Foi então que me lembrei. A faca, eu tinha trazido a faca no banco da frente. Num segundo despertei, ignorando a imensa escuridão que se agigantava à minha volta. Virei-me em todas as direcções e finalmente encontrei a mochila. Estava a flutuar na parte de trás do carro. 1
  • 2. Ignorei a dor no meu ombro direito e estiquei-me o máximo que consegui até agarrar uma das alças. Puxei a mochila para perto de mim e tacteei o seu interior numa escuridão cada vez mais intensa. Quando a minha mão encontrou o cabo da faca, lágrimas de alegria saíram dos meus olhos para se unirem à água do lago. Encostei a lâmina brilhante ao cinto e comecei a cortar. O meu braço movia-se o mais rápido possível, mas cedo a falta de ar e a água gelada reclamaram as minhas últimas forças. Senti a minha consciência escoar de forma alarmante enquanto as minhas mãos afrouxavam o aperto que sustinha a faca, a minha única salvação. E em poucos segundos tudo ficou escuro. Quando voltei a mim alguém me arrastava para fora da água. E senti que arrancavam partes da minha alma. Voltei a respirar por um momento. E uma dor intensa encheu o meu peito. O ar estava gelado. Tão gelado que me fez querer voltar a enfrentar a escuridão do lago. Nos meus ouvidos soava uma música infernal de ventos, vozes e tempestades. Os meus olhos apenas distinguiam sombras que se apinhavam ao longe. Naquele momento eu era apenas um emaranhado de dor, sangue e confusão. Senti o meu corpo a ser arrastado pelo chão. A terra grossa raspando a minha pele. Pensei que ia morrer ali, dilacerada por aquelas minúsculas pedras que se cravavam na minha pele a ferro e fogo. A música era agora mais intensa. Como se estivéssemos prestes a chegar ao clímax daquela diabólica composição. Instintivamente encolhi-me. Tentei falar com os demónios que me cercavam, mas o ruído que saiu da minha boca nada tinha de humano. O frio era agora demasiado intenso para ignorar. Gelava-me a pele e as roupas molhadas. “Que forma horrível de morrer” pensei. Mas quem quer que me contemplasse não pareceu ouvir os meus pensamentos. Num segundo o arrastar parou. Deixei-me ficar ali como se fosse o lugar mais confortável do mundo, enquanto no meu coração a vontade de desistir tentava destruir às dentadas o meu instinto de sobrevivência. Abri os olhos para ver se havia alterações no cenário que me rodeava. E naquele momento pude ver uma face. Era a Morte quem me contemplava. Nunca saberei como foi que o soube. Mas aquele rosto que transmitia uma compaixão infinita parecia falar por si só. Não pude aguentar o seu olhar. 2
  • 3. Tentei desviar-me, ignorar a sua presença. Mas a Morte não aliviou o seu abraço gelado. E esperou paciente ao meu lado, enquanto a minha resistência e lamento foram dando espaço a uma doce resignação. Não podia afastá-la mais. Olhei a Morte nos olhos mais uma vez, só porque não podia suportar a sua presença silenciosa. E o seu olhar parecia querer dizer que tudo ia ficar bem. Naquele momento teria dito que sim a qualquer coisa só para acabar com aquela dor. Quando finalmente aceitei o meu destino a minha alma começou a escorregar para fora de mim. Por momentos estava a voar para longe do meu corpo, para longe de toda aquela dor e confusão. A alegria que me invadiu era imensa. Estava livre, livre, livre... Mas tudo voltou a ficar escuro. Senti uma dor aguda no peito. E acordei de novo para aquela realidade assustadora da qual pensava ter escapado. Estamos a perdê-la... Disse uma voz rebentando os meus ouvidos. Sentia-me traída. Só queria que parassem. Que me deixassem voar para longe dali. A voz pareceu ignorar os meus pedidos e senti outro golpe no meu peito. 1,2,3... Fica comigo. Senti outra vez a dor do despertar. A dor duma alma a preencher um corpo vazio. Estamos a perdê-la outra vez... Acabei por perder de novo a consciência. Mas desta vez não voltei a sentir aquela incrível sensação de liberdade, de poder voar para longe de mim. Quando acordei de novo fui inundada por uma luz imensa que me cegou por uns instantes. Tive que esperar que os meus olhos se habituassem à claridade depois de ter experimentado a escuridão do inferno gelado. Depois de me adaptar comecei a explorar com cautela aquela nova realidade. A dor ainda lá estava, mas pelo menos tinha sobrevivido. E já não me sentia como um emaranhado de sangue e confusão. Lágrimas de alívio voltaram a invadir os meus olhos. E naquele momento senti a necessidade de experimentar a força das minhas pernas. Nunca pensei que fosse tão importante para mim voltar a sentir os meus pés no chão. Voltar a sentir-me livre, apesar das fronteiras do meu corpo. 3
  • 4. Quando me tentei mover todo o meu corpo rangeu num agudo protesto. Tive que me controlar para não gritar, mas no final a minha vontade venceu e consegui arrastar as minhas pernas para fora da cama. O chão estava gelado, mas não me importei. E embora as minhas articulações continuassem o seu silencioso protesto, decidi avançar. Após dois passos sentia-me já estafada e pronta para desistir. Mas ao parar pude ouvir com clareza a minha respiração rasgada e o bater do meu coração. Nunca me senti tão sortuda por poder apreciar algo tão simples. Naquele momento aquela melodia parecia-me a mais bela do mundo. A minha boca rasgou-se num sorriso involuntário. Decidi continuar a avançar. E quando dei por mim estava a encarar uma porta branca. Abri-a de rompante, na emoção da descoberta. Do outro lado encontrei aquilo que parecia ser uma casa de banho. Em louça branca e brilhante que me cegou por um pequeno instante. Estava prestes a voltar para a cama quando algo prendeu a minha atenção. Do outro lado do espelho uma jovem mulher devolvia o meu olhar. Uma cicatriz feia a romper a têmpora direita. Os lábios rasgados pelo frio. As faces descoradas e o nariz vermelho. E dei por mim a sentir-me irresistivelmente atraída pelo seu olhar. Destemido, brilhante, selvagem. Aquele olhar eclipsava todos os cortes feios que rompiam a pele daquela face. Possuía um brilho que eu nunca antes tinha visto. Quase não me reconheci, mas percebi de imediato o significado daquele olhar. Uma parte de mim morrera de verdade no acidente, morrera aquela parte que tinha contido aquele olhar apaixonado e feroz durante tantos anos. E agora eu estava livre. FIM … ou o início Sobre os direitos de autor A cópia integral deste texto está expressamente proibida. Para quem se sente tentado a isso uma palavra de aviso: eu vou encontrá-lo e denunciá-lo se o fizer. É permitido distribuir livremente e copiar partes deste conto (não mais de dois parágrafos) desde que se cite a fonte, e se crie uma hiperligação para o blogue arevolucaodamente.com. 4