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Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade. Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles.
Eu nem sabia bem de que espécie de bala  ou bombom  se tratava.  Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar:  com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de  casa para a escola me explicou: -Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca  se acaba.  Dura a vida inteira. - Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa. - Não acaba nunca, e pronto.
Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas.  Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer.  Examinei-a, quase  não podia acreditar  no milagre.
Eu que, como outras crianças, às vezes tirava  da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois,  só para fazê-la durar mais.  E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência  tão inocente, tornando possível o mundo  impossível do qual  já começara a me dar conta.
Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca. - E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.
[object Object],[object Object],[object Object],- Perder a eternidade? Nunca .
[object Object],[object Object],[object Object]
Assustei-me, não saberia  dizer por quê.  Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita.
Na verdade eu não estava gostando do gosto.  E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição.  Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar. Até que não suportei mais, e, atravessando  o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no  chão de areia.
[object Object],Agora não posso mastigar mais!  A bala acabou!
[object Object],[object Object],[object Object],[object Object],[object Object],[object Object],[object Object]
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que  o chicle caíra na boca por acaso. Mas aliviada.  Sem o peso da eternidade sobre mim. Clarice Lispector
Imagens:  Fractais – Autor – Don Ten  Música:  Ernesto Cortazar Formatação Christina Meirelles Neves

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O meu primeiro contato com a eternidade do chicle

  • 1.  
  • 2. Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade. Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles.
  • 3. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
  • 4. Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou: -Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira. - Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa. - Não acaba nunca, e pronto.
  • 5. Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre.
  • 6. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
  • 7. Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca. - E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.
  • 8.
  • 9.
  • 10. Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita.
  • 11. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
  • 12. Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar. Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
  • 13.
  • 14.
  • 15. Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso. Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim. Clarice Lispector
  • 16. Imagens: Fractais – Autor – Don Ten Música: Ernesto Cortazar Formatação Christina Meirelles Neves