2. Pisei de mau jeito num desses caminhos da vida e peguei uma dor no tornozelo que não passava com os recursos da medicina ocidental. Aconselharam-me a alternativa que sempre se busca nessas horas: os complicados macetes da medicina oriental. Daí que adentrou em minha sala um japonês simpático, com o simpaticíssimo nome de Tada.
3. Ele e suas agulhas. Tada espetou-as não exatamente no local avariado mas em quase todo o corpo. Identificou problemas no baço – e eu nem sabia que tinha baço dentro de mim. Para amenizar o agulheiro em que me transformei, falou de sua vida e de sua quase morte. Morava em Hiroshima, tinha 6 anos quando viu um sol nascer do chão e matar todo mundo em volta.
4. Tada não sabe nem quer saber por que sobreviveu – nem perde tempo em pensar nisso. Todos os anos, em agosto, faz silêncio de um minuto para lembrar o que viu e não entendeu – e não entende até hoje.
5. Seu vocabulário em português é pobre, na realidade, é paupérrimo. Não usa verbos, usa apenas substantivos. Descreve aquela manhã de agosto de 1945 misturando alguns desses substantivos: tragédia – tristeza – política.
6. Para ele, política não é apenas companheira da tragédia e da tristeza. Mais do que um sinônimo, é uma causa. Esqueci de dizer que rosna algumas interjeições, como “ai”, “ui”, “oooh” e uma variante dessa última, que é “iiih”. O resultado é que o meu diálogo com ele corre naturalmente, pois insisto também nas mesmas interjeições, sobretudo na primeira.
7. Diz ele que a sua pele ainda tem vestígios daquela manhã. Suas agulhas também. De maneira que me sinto, de certa forma, um sobrevivente de Hiroshima.
8. Passei a entender por que não gosto de política. E a confundo com tragédia e tristeza. Carlos Heitor Cony
9. Imagens recebidas por email Música: “ Memories”– Andre Rieu Formatação : Christina Meirelles Neves