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Diversidade no pensamento de friedrich engels materialismo e natureza
1. DIVERSIDADE NO PENSAMENTO DE FRIEDRICH ENGELS:
MATERIALISMO E NATUREZA
José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior1
Juscinaldo Góes Almeida2
Thiers Fabrício Santos Tiers3
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: Materialismo e natureza
Um dos mais ricos debates existentes no campo do conhecimento filosófico diz
respeito à dicotomia materialismo-idealismo. Obviamente, esta disputa entre os que
advogam a criação da matéria pelo espírito (idealismo) e os que defendem uma
concepção contrária no sentido de enfatizar o papel principal à matéria (materialismo)
incorporou diferentes tonalidades ao longo do tempo. No caso do idealismo podemos
dar dois importantes nomes: o filósofo irlandês George Berkeley (1685-1753)4 e o
filósofo alemão George W. F. Hegel (1770-1831); e no caso do materialismo têm-se os
também filósofos Epicuro (341 a.C - 270 a.C), Francis Bacon (1561-1626), René
Descartes (1596-1650), Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895)5.
O idealismo hegeliano caracteriza-se, em especial, pelo método dialético. A
dialética é em Hegel idealista posto que concebe a realidade como manifestação do
Espírito a partir dos movimentos de exteriorização (manifestação nas obras produzidas)
e interiorização (sabedoria, reconhecimento e compreensão de que as obras são produto
do Espírito) . Além disso, a filosofia da história de Hegel apresenta como motor interno
a contradição, bem como essa mesma história é, na verdade, a história do Espírito
(CHAUÍ, 2008).
1
Mestrando em Geografia Humana (USP). E-mail: josearnaldo@usp.br
2
Graduando em Geografia (UFMA). E-mail: juscinaldogoes@hotmail.com
3
Graduando em Geografia (UFMA). E-mail: thiers.fabricio@gmail.com
4
O idealismo filosófico de Berkeley consiste em demonstrar que a existência das coisas está
condicionada às sensações (POLITZER, 1986).
5
Por questões de espaço salientamos apenas estes nomes. Mas a lista de influentes filósofos idealistas e
materialistas poderia incluir também Platão, Aristóteles, Demócrito, Hobbes, Locke, Hume, Diderot. A
escolha em utilizar Epicuro, Bacon e Descartes, deve-se que ambos representam traços importantes da
filosofia materialista “pré-marxista”. Não cabe aqui uma discussão pormenorizada dos materialismos de
Epicuro, Bacon e Descartes (fazemos isso de maneira curta apenas oferecendo um panorama geral sobre
as principais ideias). Importante destacar é que classificamos como “filosofia materialista pré-marxista”
toda filosofia materialista simultânea ao desenvolvimento das ciências; todavia tanto as ciências quanto o
materialismo não eram contemporâneos, ou seja, estavam em molduras temporais diferentes. Além
disso, era uma filosofia materialista mecânica, ignorava o desenvolvimento histórico e era contemplativo,
em oposição à capacidade transformadora do materialismo marxiano (de Marx e Engels).
2. Saliente-se que essa concepção hegeliana do real enquanto manifestação do
espírito é uma das característica do judaico-cristianismo: Deus é o espírito e a
materialidade é apenas o reflexo das ações de Deus. A Natureza e os homens são apenas
exteriorizações de Deus e o próprio Deus se reconhece enquanto produtor destas
exteriorizações (interiorização). A própria história em Hegel, apesar de não concebê-la
como uma dimensão mecânica e sim como dialética, no final das contas é uma história
do Espírito, de Deus.
Na história do materialismo Epicuro figura como um dos mais renomados. Isso
porque na filosofia materialista de Epicuro a perspectiva de análise é antiteleológica, ou
seja, rejeita todas as explicações naturais alicerçadas em causas finais, na intenção
divina (FOSTER, 2010).
A rejeição das causas finais também aparece em Novum Organum de Francis
Bacon (2002). A defesa de Bacon para que se estude no “grande livro da natureza” é
uma tentativa dele escapar à metafísica, bem como ao domínio da filosofia aristotélica e
da escolástica, com vistas a uma ciência experimental atacando a superstição
(POLITZER, 1986).
Descartes, por sua vez, é o embrião de um materialismo francês. Isso porque
apesar dele não “sepultar” a religião, promove uma crítica tenaz ao pretenso monopólio
da verdade pela Igreja, lançando mão do alcance da verdade via razão (POLITZER,
1986).
Essas duas cosmologias (materialismo e idealismo) diferentes e co-existentes,
pelo seu próprio caráter de explicação, trazem implicações assaz importantes para
analisar hodiernamente a relação entre a ecologia e a economia, bem como o modo
binário de pensamento/prática no que diz respeito à diversidade-unidade. Neste
trabalho, objetivamos analisar as contribuições materialistas e ecológicas presentes no
pensamento de Friedrich Engels (1820-1895) na obra Ludwig Feuerbach e o fim da
filosofia clássica alemã.
2 NOTA PRELIMINAR À CRÍTICA DA DOUTRINA FEUERBACHIANA
Engels (1982), na nota preliminar do livro em questão, nos faz retornar à
Ideologia Alemã, uma obra fundamentalmente histórica. Em outro momento (RIBEIRO
JUNIOR; ALMEIDA; TIERS, 2010) já abordamos que a história que se fazia na
3. Alemanha era uma história das ideias: muito devido à influência de Hegel, dos filósofos
neo-hegelianos (como David Strauss e Max Stirner) e Bruno Bauer.
Assim, n’A Ideologia Alemã, Marx e Engels promovem um verdadeiro acerto de
contas, tal como na Sagrada Família, com os filósofos neo-hegelianos. Segundo Marx e
Engels, o objetivo desses filósofos era superar o sistema hegeliano a partir da dialética.
Todavia, para eles a intenção podia até ser válida, mas todos os filósofos fracassaram,
pois a crítica feita a Hegel absteve-se dos aspectos materiais e ignorando a realidade
histórica da Alemanha. A filosofia alemã à época, salvo o materialismo mecanicista de
Ludwig Feuerbach, é uma “filosofia que desce do céu a terra”.
O filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804-1872) exerceu profunda influencia
no pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels. Isso porque para ambos os filósofos,
Feuerbach representa o elo entre a filosofia hegeliana (expoente do idealismo alemão) e
o materialismo histórico-dialético.
Feuerbach ao atacar a religião, o cristianismo, ataca a essência do homem
alienado teologicamente. Mas, Feuerbach fica apenas no campo teórico, no campo das
essências, de onde surge a crítica de Marx ao enfatizar o lado prático/relacional, a ação
transformadora do homem. Não obstante, como o próprio Engels (1982) menciona na
nota preliminar, o acerto de contas com Feuerbach ainda não havia acabado, o objetivo
não havia sido alcançado totalmente, muito porque quando escreveu, com Marx, A
Ideologia Alemã, conhecia pouco a história econômica, o que fez considerar que a
crítica a doutrina feuerbachiana estava por ser concluída.
3 DISCUTINDO UM “MATERIALISMO ECOLÓGICO”
Abordamos inicialmente a diversidade do materialismo: um materialismo da
Antiguidade, representado principalmente por Epicuro; um materialismo inglês no qual
figura o renomado Francis Bacon; um materialismo francês embrionário e tímido tal
qual o de René Descartes; e o materialismo marxiano. Podemos perceber que existe uma
pluralidade interna no materialismo pela diversidade de correntes existentes. Esse
materialismo incorporou em parte, essa pluralidade internalizando, por exemplo, a
antiteleologia epicurista, a ciência experimental baconiana e a crítica do monopólio
teológico da verdade, em Descartes. A pergunta que fazemos é: quais as implicações
que uma interpretação materialista da natureza pode nos trazer para abordarmos uma
ecologia relacional, ou seja, uma ecologia que privilegia as relações socionaturais
4. (geográficas) internas e externas entre homem e natureza? Até que ponto Engels pode
contribuir para este desafio? É possível um materialismo ecológico?
No tópico I da obra, Engels (1982) promove uma crítica ao sistema de Hegel
enquanto filosofia oficial do Estado monárquico prussiano. Tal crítica é bem semelhante
a que Marx faz a Hegel na obra Crítica da Filosofia do Direito. Em Princípios da
Filosofia do Direito, Hegel diz “a personalidade do Estado só é real como pessoa: o
monarca” (HEGEL, 2003: 255-256). Por isso, Marx (1983) vai ser incisivo ao expressar
que o grande objetivo de Hegel é apresentar o monarca como um ser onipotente e
onisciente, uma espécie de “Homem-Deus”.
Engels (1982: 174) nos diz que o sistema filosófico de Hegel é teleológico (pra
não dizer que é teoteleológico) e nos dá o exemplo de uma das obras hegelianas:
Na Lógica, [Hegel] pode fazer novamente desse fim um ponto de partida,
pois ali o ponto final, a idéia absoluta - que só tem de absoluto o fato de que
ele nada sabe dizer sobre ela - se “exterioriza”, isto é transforma-se na
natureza, para mais tarde recobrar seu ser no espírito, ou seja, no pensamento
e na história
Podemos visualizar aqui dois aspectos interessantes: o primeiro é a crítica que
Engels faz ao dogmatismo hegeliano que acaba por contradizer a dialética do sistema de
Hegel. E o segundo aspecto, que fica mais claro na obra hegeliana Filosofia da
Natureza, é que uma interpretação idealista acaba por refletir que a natureza é uma
exteriorização do Espírito (de Deus), ou ainda, uma alienação do próprio Espírito que só
é interiorizada via o movimento de reflexão.
O ambiente político-religioso da Alemanha à época (Séc. XIX) não permitia
tanta “ousadia”, a superação do sistema filosófico de Hegel especialmente o seu caráter
teoteleológico. A tentativa de superação encabeçada pelos neo-hegelianos os fez cair em
uma contradição: enquanto o materialismo aceita que a única realidade, no dizer de
Engels, é a natureza, por outro lado, o idealismo hegeliano concebe-a como
exteriorização do Espírito.
A resolução dessa contradição foi dada, segundo Engels (1982), por Feuerbach
ao lançar A Essência do Cristianismo6. Para ele, Feuerbach havia restaurado o
materialismo no trono, abolido a dependência da natureza em relação à filosofia e
pulverizado os entes religiosos.
6
Publicado originalmente em Leipzig, 1841.
5. Assim, no tópico II, Engels se propõe a discutir a questão fundamental da
filosofia moderna, a relação entre pensamento e ser, em outras palavras, espírito e
matéria. Fazendo uma crítica tenaz ao desenvolvimento das religiões (de um politeísmo
a um monoteísmo) o autor crítica o processo alienante das religiões, bem como
classifica como selvagens e inferiores povos que são dominados por “sonhos”, numa
clara alusão ao caráter supersticioso, quiçá até mesmo místico.
É preciso ter em mente para entender o debate e as acusações de Engels que ele
faz as críticas num momento histórico de desenvolvimento progressivo das ciências
naturais e da indústria que vai concedendo, pouco a pouco, o monopólio do
conhecimento verídico à ciência em detrimento da teologia. Para Engels, é
perfeitamente plausível o exclusivismo epistemológico da ciência em detrimento de
formas de conhecimento não-científicas, como é o caso da filosofia e teologia.
Todavia, é preciso estar ciente também que, além das críticas por nós
supracitadas, a observação de Engels tem outro sentido. O referido filósofo possuía,
assim como Marx, um amplo domínio do conhecimento religioso judaico-cristão bem
como da história da filosofia. Partindo desse pressuposto a crítica de Engels ao processo
de alienação religiosa enquadra-se na perspectiva da idolatria que remonta à Bíblia.
Nesse aspecto, Engels está criticando a submissão do criador para com a criatura,
colocando nas mãos deste último o seu destino, objetificando a si mesmo. Para Engels a
idolatria não é apenas religiosa, mas está também representada na divinização do Estado
(tal como presente em Hegel), no poder da Igreja, na fetichização da mercadoria, ou
seja, em tudo que possibilita ou funcione como mecanismo de coerção social, de
repressão ideológica, que ofusque o processo de alienação.
O desenvolvimento do materialismo caminha pari passu ao desenvolvimento das
ciências naturais e da indústria. É a lenta evolução das ciências, em especial a química e
a biologia, que permitem a superação do materialismo mecanicista. Engels tinha
conhecimento da teoria da evolução de Darwin7 e dos conhecimentos químicos de
Justus Liebig8 (1803-1873).
7
O século XIX terá de esperar por Charles Darwin para conseguir uma explicação natural da evolução.
Com ele, a evolução fica provada como um processo natural e, portanto, objetivo. [...] A evolução passa a
ser concebida como um processo natural, inexorável e independente da vontade dos homens. Tem o seu
tempo certo, como uma fruta que não pode ser arrancada antes ou depois do tempo (PORTO-
GONÇALVES, 2006: 52).
8
O trabalho deste eminente químico está atrelado à química dos solos e ao crescimento da indústria de
fertilizantes que caracterizou a revolução agrícola entre 1830-1880 (FOSTER, 2010).
6. Engels também fez a crítica do materialismo por não conceber o mundo como
um processo histórico. Daí decorre a sua condenação ao método metafísico pelo seu
caráter fantasioso, religioso, pautado em princípios sobrenaturais e imateriais oposto a
qualquer mobilidade (POLITZER, 1986). O raciocínio metafísico conduzia a uma
oposição entre natureza e história tal qual Marx e Engels haviam percebido n’A
Ideologia Alemã:
Até agora, toda a concepção histórica tem omitido completamente a base real
da história, pois a tem considerado como algo secundário, sem qualquer
vinculação com o curso da história. Resultam daí noções de que a história
deva sempre ser escrita de acordo com um critério localizado fora dela. A
produção real da vida aparece como se estivesse separada da vida comum,
como alguma coisa extra e supraterrenal. Por isso, as relações dos homens
entre e natureza são excluídas da história, o que faz surgir a oposição
entre natureza e história (MARX; ENGELS, 2007: 66-67, os grifos são
nossos).
A partir do momento em que se negligencia a base real da história vai-se pouco a
pouco dando alto relevo a base ideal da história. Como se releva a idealidade da história
acaba-se por desvencilhar a história da materialidade. Em se fazendo isso, a história
sobe da terra ao céu. E então o que ficou na base material, na realidade, é governado por
algo fora dela: uma Verdade Eterna, um Espírito. A Natureza aparece então como
materialidade, como algo terreno, e a história como coisa ideal, supraterrenal. Como
ambas estão em dimensões diferentes as relações que os homens têm com a Natureza e
com a história são separadas e opostas (RIBEIRO JUNIOR; ALMEIDA; TIERS, 2010).
Engels ainda advoga que a Idade Média foi progressista. Ele não nos fornece
uma explicação9 para essa afirmação e passa logo adiante a falar da dominação cultural
européia. O que nos questionamos é: como um filósofo dotado de um pensamento
9
Uma possível explicação para uma visão progressista da Idade Média nos é fornecida por Porto-
Gonçalves (2006: 32-33): A assimilação aristotélico-platônica que o cristianismo fará em toda a Idade
Media levará a cristalização da separação entre espírito e matéria. Se Platão falava que só a ideia era
perfeita, em oposição à realidade mundana, o cristianismo operará sua própria leitura, opondo a perfeição
de Deus à imperfeição do mundo material. Essa leitura de Aristóteles e Platão efetuada pela Igreja na
Idade Media se faz evitando-se outras leituras através da censura, como muito bem o demonstrou
Umberto Eco em O Nome da Rosa. Enfim, com o cristianismo, os deuses já não habitam mais esse
mundo, como na concepção dos pré-socráticos. E, apesar da acusação de obscurantismo que mais tarde os
pensadores modernos lançarão aos tempos medievais, a dívida que a Ciência e a Filosofia modernas têm
para com a Idade Media é maior do que se admite. Foi na Idade Media, por exemplo, que teve início a
prática de dissecação de cadáveres no ocidente europeu. Esse fato é de uma importância muito grande e
se constituiu numa decorrência lógica de uma Filosofia que separa corpo e alma. Se a alma não habita
mais o corpo depois de morto, este, como objeto pode ser dissecado anatomicamente. Afinal, aquilo que o
anima (do grego ânima, alma) não está mais presente. O corpo, matéria, objeto pode então ser dissecado,
esquartejado, dividido. O sujeito, o que faz viver, foi para os céus ou para os infernos e o corpo pode
então virar objeto... O método experimental já estava em prática nos monastérios e universidades
católicas muito antes de Galileu.
7. revolucionário pode “concordar” com tal domínio cultural europeu? Uma possível
resposta é acreditar que Engels, para além do “ser europeu”, considera aceitável a
apropriação dos territórios coloniais pelas “grandes nações de poderosa vitalidade que
se vinham formando” (ENGELS, 1982: 183).
As contribuições materialistas e ecológicas de Engels (1982: 184) podem ser
percebidas quando este defende que o “homem não vive apenas na natureza, mas
também na sociedade humana”, numa clara alusão a indissociabilidade entre natureza e
sociedade.
Por fim, neste tópico, Engels (1982: 186) adverte da inconsistência e preconceito
que muitos possuem acerca do materialismo:
O filisteu entende por materialismo o comer e o beber sem medida, a cobiça,
o prazer da carne, a vida faustosa, a ânsia do dinheiro, a avareza, a sede do
lucro e as especulações na bolsa; numa palavra, todos esses vícios infames
que ele secretamente acalenta; e, por idealismo, a fé na virtude, no amor ao
próximo e, em geral num “mundo melhor” [...]
Engels chama de filisteus os covardes, pessoas que não valorizam a beleza, as
artes, a intelectualidade e interessam-se apenas pela melhoria da sua vida privada
cômoda.
No tópico III, Engels direciona sua análise a tentativa de Feuerbach não em
suprimir a religião, mas sim de completá-la. O idealismo de Feuerbach pauta-se em
relações (sociais e de poder) abstratas consagradas sob nome de religião. Em síntese
todas as relações materiais para Feuerbach só ganham sentido se unificadas de um ponto
de vista religioso. Em que pese a investigação sobre o Cristianismo, Feuerbach mostra
que o Deus cristão é o reflexo imaginário do próprio homem. Temos então uma espécie
de tensão no pensamento feuerbachiano: simultaneamente critica a reflexão imaginaria
do cristianismo; por outro lado “torna-se completamente abstrato ao falar das relações
entre os homens que não sejam as simples relações sexuais” (ENGELS, 1982: 189).
No tópico IV, para além das críticas já realizadas (aos neo-hegelianos [Strauss,
Bauer, especialmente Feuerbach]; a indissociabilidade materialista entre natureza e
história; o idealismo filosófico de Hegel; as dificuldades do materialismo pré-marxista),
Engels traça, dialeticamente, a oposição sistemática entre a burguesia e o proletariado
no cerne do progresso do capitalismo. Tal luta de classes deriva para Engels de motivos
puramente econômicos.
8. Primeiro, é bom destacar que, tal como estamos abordando aqui, Engels possui
uma visão econômica que engloba não só o desenvolvimento das forças produtivas, mas
também a dimensão política (enquanto luta pelo poder, imposição de limites10) e a base
natural (processos ecológicos11); então somos instados a nos livrar da acusação
peremptória de que Engels (e/ou Marx) era(m) “produtivista(s)”, uma vez que, como
fica claro na Ideologia Alemã:
No desenvolvimento das forças produtivas chega-se a uma etapa em que são
originadas forças produtivas e formas de trocas as quais, no quadro das
relações existentes, produzem apenas estragos e não são mais forças
produtivas, e sim forças destrutivas (maquinaria e dinheiro); e junto disso,
surge uma classe que tem de suportar todos os ônus da sociedade sem
usufruir de suas vantagens (MARX; ENGELS, 2007:105).
Os pensadores aqui tecem críticas às forças produtivas, mostrando que, ao
atingir um determinado nível “evolutivo”, elas podem transformar-se em forças
destrutivas. É claro que eles não lançam mão de um exemplo ecológico, tampouco se
pode afirmar, pelo exemplo, que a destruição em questão é a da Natureza (LÖWY,
2005).
Mas, suponhamos que a força destrutiva, suscitada por Marx e Engels em
questão, tenha como alvo a Natureza. A crítica então passa a ter um sentido ampliado:
de um lado a racionalidade capitalista condena uma classe, o proletariado, a suportar
todas as desvantagens da produção, como exemplo a precarização das condições de
trabalho; na outra ponta o produtivismo capitalista destrói a Natureza, rompe o
equilíbrio ecológico e promove impactos ambientais (RIBEIRO JUNIOR; ALMEIDA;
TIERS, 2010).
Uma observação interessante pontuada por Engels (1982) é quando ele nos fala
de ideologias mais elevadas e do período renascentista. Engels diz que essas ideologias
mais elevadas são a filosofia e a religião posto que se afastam das bases materiais. Já o
10
Possivelmente, uma das melhores obras de Marx para se analisar metodologicamente a política
enquanto luta pelo poder é o 18 Brumário de Luís Bonaparte, posto que nesta obra o materialismo
histórico marxista é posto em prática para se analisar o golpe de Estado de Napoleão III (Luís Bonaparte)
em França. Marx faz uma análise minuciosa das disputas políticas dos atores envolvidos (burguesia,
camponeses, proletários, o Estado) no espaço da França que é onde se desenrola (ousamos dizer assim) as
principais lutas classistas e sociais. Não é a toa que a França é o foco privilegiado das análises políticas
(enquanto luta pelo poder) de Marx expresso não apenas nessa obra, mas também em Guerra Civil na
França e Lutas de Classes em França.
11
Engels (1982), assim como Marx, tinha conhecimento de três grandes descobertas que serviram de
alicerce para a construção de sua base natural: a descoberta da célula, a transformação da energia e a
teoria da evolução.
9. período da Renascença, “desde metade do século XV, foi em sua essência um produto
das cidades e, portanto da burguesia, e o mesmo cabe dizer da filosofia que renasce a
partir de então” (ENGELS, 1982: 203). Essa assertiva pode ser ampliada para uma
cosmologia da Natureza. O filósofo Merleau-Ponty (2006: 4) nos diz que Natureza, “a
palavra latina vem de nascor, nascer, viver; [...] existe natureza por toda parte onde há
uma vida que tem um sentido, mas onde, porém, não existe pensamento”. A nosso ver,
pesando tudo aquilo que Engels falou sobre a Renascença, este período histórico marca
uma nova cosmologia da natureza que ainda estará incipiente e se desenvolverá
posteriormente com os trabalhos de Francis Bacon (Novum Organum), René Descartes
(Discurso do Método), mas também com a Reforma Protestante e a Revolução
Francesa. Essa cosmologia da natureza é pouco a pouco, racionalizada, vai se livrando
de aspectos metafísicos, enfim, vai se modernizando.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Hermenêutica de uma ecologia relacional
Não foi objetivado aqui exaurir as discussões existentes na obra em questão. A
intenção foi ampliar o debate entre materialismo e natureza tendo como foco a análise
de Engels sobre a filosofia clássica alemã, em especial Ludwig Feuerbach.
O embate entre o idealismo e o materialismo não é algo recente: vem desde a
antiguidade (Platão, Aristóteles, Demócrito, Epicuro) até os tempos modernos
(Berkeley, Hegel, Bacon, Marx) tendo sempre a capacidade de se renovar, incorporar e
excetuar elementos oriundos da teologia, filosofia e das ciências.
O idealista assume, em última, instância, a criação da natureza pela figura divina
(o Deus judaico-cristão, a Ideia Absoluta hegeliana). Em contrapartida, a cosmovisão
materialista da natureza histórica e da história natural, advoga que tanto natureza e
história devem ser entendidas como um processo dialético dotadas de uma
transformação interna e externa, ou seja, natureza e história se transformando
internamente e externamente uma em relação com a outra.
Obviamente, a deficiência do materialismo pré-marxista está diretamente
atrelada à incipiência das ciências naturais, especialmente a química e a biologia; só
depois de assentadas as bases da história natural, pautadas na descoberta da célula,
transformação de energia e na teoria da evolução, é que o materialismo e as ciências
podem ser contemporâneos.
10. O ponto louvável da doutrina feuerbachiana está calcado que a sua filosofia
materialista forneceu a ponte necessária para o rompimento com o idealismo de Hegel.
Todavia, o materialismo de Feuerbach ainda era incapaz de dar conta do caráter
transformador da ação humana: era um materialismo contemplativo, baseado numa
mecânica de causa-efeito.
Em Marx e Engels podemos ver um materialismo evoluído, capaz de
acompanhar as descobertas científicas, bem como a história econômica, traduzidas num
processo ecológico relacional que se funda no metabolismo natureza e sociedade. A
interpretação materialista dada por Engels à natureza permite a fuga de um raciocínio
que vê a história natural como exteriorização do poder divino, ressaltando a importância
telúrica do mundo, o que conduz a uma crítica do produtivismo capitalista não só nesta
obra, mas também na Ideologia Alemã.
Todavia, o Iluminismo de Engels assume dois lados: 1) a louvação do domínio
cultural europeu/crítica de conhecimentos não-científicos e 2) a noção ampla de
economia que ele possui, aqui defendida por nós. No primeiro caso é perigoso o
raciocínio cientificista que acabou por subalternizar “conhecimentos alternativos” como
é o caso da filosofia e teologia; além disso, pode significar a morte de sistemas de
conhecimento não-científicos atrelados a matrizes culturais indígenas, negras e
camponesas. Nesse aspecto a diversidade epistemológica do mundo está posta em
xeque em nome de uma ciência que pode ser muito bem alienígena e funcionar como
monopólio do conhecimento12 (SANTOS; MENESES; NUNES, 2005).
No segundo caso, Engels tem plena noção de que a economia não se restringe
somente ao desenvolvimento das forças produtivas, mas também aos processos
ecológicos e à dimensão política. Assim, “a ecologia de Engels” permite
contemporaneamente uma análise que fortaleça a diversidade ecológica sob os auspícios
de processos químicos, biológicos e geológicos, ao mesmo tempo em que interpreta a
natureza como um corpo indissociável da humanidade.
REFERÊNCIAS
12
Não foi objetivo aqui questionar a orientação da ciência, mas a ciência em si mesma como única forma
de conhecimento possível.
11. BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da
Interpretação da Natureza. Trad. José Aluysio Reis de ANDRADE. 2002. Versão
eletrônica disponível em: www.dominiopublico.gov.br.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2ªed. São Paulo: Brasiliense, 2008.
ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: Obras
Escolhidas. Volume 3. São Paulo: Alfa-Omega, 1982.
FOSTER, J. B. A ecologia de Marx: Materialismo e natureza. Trad. Maria Teresa
MACHADO. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito. 3ª tiragem. Trad. Orlando
VITORINO. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LÖWY, Michael. Ecologia e Socialismo. São Paulo: Cortez, 2005.
MARX, Karl Heinrich. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 2ªed. Portugal-Brasil:
Editorial Presença, 1983.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Feuerbach - A Oposição entre
as Cosmovisões Materialista e Idealista. Trad. Frank Müller. São Paulo: Martin Claret,
2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
POLITZER, Georges. Princípios Elementares de Filosofia. Trad. Silvio Donizete
CHAGAS. São Paulo: Moraes, 1986.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Os (des)caminhos do meio ambiente. 14. ed.
São Paulo: Contexto, 2006.
RIBEIRO JUNIOR, J. A. S; ALMEIDA, J. G; TIERS, T. F. S. O vermelho e o verde:
Rastreando um marxismo ecológico n’A Ideologia Alemã. Anais do X Encontro
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SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula G de; NUNES, João
Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica
do mundo. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Semear outras soluções: Os
caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, pp.21-121.