1. "É possível pensar em mudança paradigmática na economia?"
Alan Ainer Boccato-Franco
Palestra proferia no Congresso Brasileiro de Agroecologia, Porto Alegre, 2013.
É uma honra participar do Congresso Brasileiro de Agroecologia. Vejo a agroecologia como
uma disciplina acadêmica e, sobretudo, como prática social fundamental para as mudanças
paradigmáticas necessárias, dentre as quais algumas que vamos discutir aqui.
"É possível pensar em mudança paradigmática na economia?"
Resposta: É necessário!
Não nos resta outra opção que não seja uma mudança paradigmática. Mas qual
paradigma?
Eu vou focar na necessidade de superação do Paradigma do Crescimento Ilimitado da
Economia me inspirando, em parte, na estrutura argumentativa de um movimento social recente
e em construção que é o movimento pelo Decrescimento. Movimento este ainda pouco
conhecido no Brasil.
Questionar esse paradigma, o do Crescimento Ilimitado de modo radical parece ser uma
heresia que coloca no mesmo lado grupos que outrora e em outros tema estão de lados
radicalmente opostos.
O paradigma do Crescimento Econômico Ilimitado em que se baseia as economias
modernas prendeu, a muito pouco tempo atras, a civilização humana dentro de uma “Gaiola do
Consumismo”.
Vivemos num modelo socioeconômico que para se ter uma suposta “estabilidade” é
necessário um crescimento ininterrupto e ilimitado. E a base de sustentação desse crescimento é
o consumismo.
Porém, esse modelo é inviável no longo prazo, pois o crescimento ilimitado é impossível
em termos biofísicos e também é inviável no curto prazo, pois em termos sociais é gerador de
desigualdades.
Esse paradigma nos coloca numa espécie de dilema: o “dilema do crescimento” pois por
um lado 1) é insustentável já que o aumento do consumo de recursos naturais e o aumento dos
2. custos ambientais estão agravando as profundas disparidades no bem estar-social e 2) O nãocrescimento ou retração econômica é instável já que o declínio na demanda de consumo leva ao
aumento do desemprego, à perda de competitividade e a uma espiral de recessão. Isso dentro da
lógica do crescimento onde não crescimento é sinônimo de crise.
Então vivemos sob um paradigma que se é seguido nos coloca frente a um problema
insolúvel: crise ambiental. E se não é atingido também nos coloca frente a um outro problema:
“crise social” (como se mesmo dentro dele não vivêssemos uma crise social). Um paradigma que
nos coloca num dilema, ou seja, na ausência de saídas, não deve ser mantido como um
paradigma civilizatório.
No processo de superação desse paradigma um primeiro passo é deixar claro que nem
todos gozarão das benesses desse modelo que está posto. Temos de ser claros: Nem todos
seremos ricos (em termos monetários)! Nem todos seremos classe média! Afirmo isto pensando
em termos de civilização humana presente e futura, e não de um ou outro Estado Nação.
Tem uma questão ética aqui que a humanidade tem de decidir.
Qual a ética que assumimos? É uma ética universalizante, onde todos deverão ter boas
condições de vida? Ou é uma ética excludente, onde assumiremos que uma parcela, a menor, da
população humana tem direitos a uma boa condição de vida com acesso aos avanços que a
civilização humana construiu coletivamente ao longo de toda a sua história?
Eu parto de uma ética universalizante, composta pela múltipla diversidade cultural,
histórica, ecossistêmica, política, etc. E por isso eu tenho de rejeitar o paradigma do crescimento.
Por que?
Porque no paradigma do Crescimento Ilimitado não caberão todas as pessoas em
igualdade de condições.
Mas porque não?
Em primeiro lugar, simplesmente porque é um sistema excludente por essência. A base de
sustentação do paradigma do crescimento ilimitado é a exclusão. A exclusão não é uma aberração
ou uma deficiência do sistema socioeconômico. É sua condição fundamental de existência e
manutenção. Isso tem de ficar claro!
Um dia desses dialoguei com um economista: “queremos acabar com a desigualdade,
então vamos iniciar um processo de transição para a construção de um sistema de taxação da
riqueza, da herança, e definir um teto de salário, de renda e de riqueza, de modo a dificultar a
3. concentração e facilitar a distribuição”.... “Não temos um salário mínimo e a linha da extrema
pobreza? Então vamos definir um salário máximo e um limite de extrema riqueza”. O que
acontece? O economista pragmático me disse: “no dia seguinte os investidores irão abandonar o
Brasil e teremos uma crise econômica”.
Então está ai a resposta.... a percepção de que a condição para o investimento é a
concentração. É a possibilidade de concentrar renda, salários e bens. E a concentração é o fato
gerador de desigualdade, de exclusão. E se não tiver concentração não tem investimento.
Portanto, a concentração é condição do sistema, não sua aberração!!
E mais um fato que inviabiliza a universalização do sistema: o princípio básico da relação
entre as pessoas no paradigma do crescimento ilimitado é a competição. Um sistema em que o
valor fundamental é a competição não há possibilidade de universalização. Ele é excludente. Pois
para se ter ganhadores deve haver perdedores. Quantos perdedores são necessários para se ter
um ganhador? Com quantos pobres se faz um rico?
Em segundo lugar, é impossível universalizar simplesmente porque não há recursos
naturais suficientes. Vivemos num sistema biofísico finito, num sistema materialmente fechado, de
modo que a expansão universalizante e ilimitada desse sistema socioeconômico é impossível. É
biologicamente impossível. É entropicamente impossível. Eu diria que acreditar na expansão
ilimitada e universalizante desse sistema é uma utopia alienante. É uma utopia ingênua, mas
perversa. É uma utopia desumana!
O conhecimento do dado sobre concentração de renda mundial, e no Brasil, poderá nos
dar uma boa ideia dessas duas condicionantes que inviabilizam o crescimento ilimitado e
universalizante: a social e a biofísica.
Concentração de renda
O que gera impacto é o consumo de bens e serviços. E quem consome? Quem tem renda.
Pois bem, segundo Branko Milanovic quem têm renda anual de até $ 12.000 esta no topo dos
10% mais ricos e os que tem renda até $ 70.000 faz parte dos 0,1% mais ricos do mundo. Ou
seja, a grande maioria da população mundial tem baixo poder de consumo. Os impactos
ambientais extraordinários que vemos hoje são causados por pouco mais, pouco menos do que
10% da população humana (alguns autores falam em 20%). Como universalizar um sistema
desses?
É notoriamente injusto e inviável uma concentração de renda como a do Brasil: em 2011 os
20% mais ricos detinham 57,7% dos rendimentos do pais, enquanto os 20% mais pobres tinham
4. apenas 3,5%1. A fortuna dos 49 ultramilionários brasileiros somam 300 bilhões de dólares, o que
equivale à renda anual de quase 90% das famílias brasileiras (cerca de 57 milhões de famílias)2.
É disso que estou falando: paradigma do crescimento é igual a exclusão... igual a
inviabilidade biofísica. Não é, portanto, um problema de gestão, mas é uma pré-condição. E os
discursos como economia verde, desenvolvimento sustentável, as discussões nas COPs sobre
mudança climática, etc nos querem fazer acreditar que é um problema de insumos...mas não é!
A superação do paradigma do crescimento ilimitado implica em outras dimensões. Por
exemplo a da técnica e da industrialização da vida...
Implica na (re)conquista da verdadeira autonomia do ser humano, em que não seremos
dependentes dos sistemas técnicos e das burocracias, sejam elas privadas ou públicas. A
ampliação da determinação que a técnica assumiu em praticamente todas as dimensões da vida
humana, está levando ao desaparecimento das condições da autodeterminação humana. Desta
forma, há uma perda da liberdade provocada pela hipertrofia das estruturas técnicas e de gestão.
O progresso técnico, necessário para o avanço da industrialização, base do paradigma do
crescimento ilimitado, gerou uma sociedade que controla todos os setores da existência individual
e coletiva, culminando na perda da autonomia e da liberdade. Por ser o progresso técnico típico
da sociedade industrial, a expansão da industria restringe os espaços de autonomia,
determinando a vida humana em função da própria indústria.
Um exemplo disso é o processo de “coisificação” que consiste na transformação da
percepção das necessidades reais em produtos manufaturados de massa. As necessidades reais
das pessoas se transformam na necessidade por produtos industriais. Por exemplo, a sede se
transforma na necessidade de um refrigerante, a mobilidade se transforma na necessidade de se
ter um carro e a saúde se transforma na necessidade de tomar remédios e suplementos
comprados numa farmácia. Assim, a indústria passa a deter um monopólio radical sobre as
necessidades em que a técnica industrial não só cria as necessidades para as pessoas, como
somente os bens e serviços produzidos por ela é que são capazes de atenderem essas
necessidades.
Com as necessidades atreladas ao produto industrial ocorre uma profissionalização dos
serviços de todos os tipos, tornando o indivíduo incapaz de cuidar de si, de autodeterminar suas
necessidades e de satisfazê-las por sua própria conta.
1 IBGE (2011) “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD”
2 Cruzamento de dados da Revista Forbes e PNAD-IBGE
5. Os desejos das pessoas também são submetidos à indústria pela técnica. Os desejos são
satisfeitos por produtos (que logo são substituídos). Uma vez que a técnica submeteu à si as
dimensões humanas elementares, como as necessidades, os desejos e o trabalho, o indivíduo
passa a ter toda sua existência e sua inserção na sociedade remodelada pela técnica.
Mas um fato que potencializa a negatividade do domínio da técnica é que ela não está
disponível para a maioria das pessoas. Ela é controlada pelo capital que produz apenas as
técnicas que sejam passíveis de entrar na lógica da dominação. As sementes, os pesticidas, as
máquinas e os agrotóxicos são exemplos muito conhecidos de todos e todas vocês.
A sociedade do crescimento ilimitado é altamente estatizada e burocratizada. Isto somado
e associado à tecnicização da vida fez com que o indivíduo perdesse sua autonomia política, na
medida que reduziu sua capacidade de intervenção direta nas decisões políticas.
Para a superação da sociedade do crescimento ilimitado é necessário, portanto, a
retomada do poder de decisão para os indivíduos e coletividades. Os indivíduos devem se
apropriar dos espaços de deliberação, de modo que as decisões, sobretudo políticas e
econômicas, sejam tomadas de maneira mais próxima possível ao conjunto das pessoas que
serão abrangidas por essas decisões.
Por fim, para a superação do paradigma do crescimento ilimitado precisamos de um
processo de resignificação da noção de bem estar, em que a ideia da simplicidade voluntária,
austeridade, sobriedade, dentre outras deverão estar presentes. A humanidade necessita, a
grosso modo, dispender menos tempo com trabalho assalariado, de produzir menos e de
consumir menos. Mas não se trata de uma auto-limitação no sentido de uma vida miserável, mas
como uma reação ao hiperconsumismo.
Não se trata de se submeter a uma vida de frustração masoquista de carências. Mas, a
opção de viver melhor, de outra maneira em que se substitui a corrida pelos bens materiais por
valores mais satisfatórios.
Não se trata de uma imposição externa de austeridade, entendida como obrigação moral.
Nem de substituir uma compulsão de consumo pela compulsão de austeridade. Mas sim uma
mudança do imaginário que a busca pela simplicidade seja um comportamento natural.
Mas o potencial de transformação da simplicidade voluntária individual é muito limitada
frente a lógica de organização das cadeias produtivas convencionais. Parte razoável do aumento
da pegada ecológica e da concentração de renda tem sido determinada não pelo aumento do
6. consumo de produtos básicos, mas a sua forma de produção e de distribuição.
Por exemplo, hoje vem incorporado aos produtos milhares de quilômetros rodados, toda
uma variedade substâncias, como pesticidas, conservantes e corantes, além de grande
quantidade de embalagens.
Deste modo, não é somente o sobreconsumo de produtos de necessidades criadas pela
industria que cresceu, mas também o consumo de produtos básicos se tornou altamente
impactante. Assim, não é somente o nosso modo de vida que tem se tornado perverso, mas a
lógica que o engendra e que o permite existir.
Assim, não se trata de se ter somente indivíduos mais austeros, mas sim uma sociedade
mais sóbria. E tampouco se trata de se produzir menos valores de uso, como água, luz, alimentos
e moradia mas sim de produzi-los de outra maneira.
E uma dessas outras formas de produzir é a autoprodução no que for possível. Para a
superação do paradigma do Crescimento Ilimitado será necessário ampliarmos a prática da
autoprodução, da co-produção e outras formas de organizar a produção.
Assim, a superação do paradigma do crescimento ilimitado preconiza a necessidade de
mudanças radicias nas relações sociais de produção e de distribuição. Essas são medidas que
podem contribuir para uma forma de vida mais simples e austera que implica, procurar atingir as
mesmas satisfações sem recorrer ao sistema mercantilista. É sair da economicismo.
Como mudar?
No Brasil é excepcionalmente difícil colocar esse debate, pois há uma crença fortemente
sedimentada de que a resolução da miséria e da pobreza passa pelo crescimento. É uma luta
para uma descolonização do pensamento. Mas uma luta extremamente desigual, pois as armas
de sedução e de convencimento dos antagonistas são muito maiores, abrangentes e eficientes. E
no Brasil o grande mercado é o de produtos básicos, pois temos uma população ainda
demandante de bens e serviços elementares. Por isso, no Brasil para uma demanda prioritária é
discutir a forma de produção.
E qual a contribuição da agroecologia nesse debate?
i)
ii)
base social para a implementação das transformações dos padrões de desenvolvimento;
estratégia de transformação de “baixo para cima”, absolutamente democrático, com forte
protagonismo social;
iii)
estrutura produtiva rural redistribuída, com propriedades em extensão limitada,
7. preferencialmente em dimensões familiares ou cooperativas;
iv) mercado local, com estímulo à autoprodução e ao autoconsumo;
v) entendimento do mercado como meio para trocas econômicas, além de um espaço de
aprendizado e de fortalecimento dos laços comunitários;
vi) rompe com a agricultura produtivista, industrial e estimular a agricultura de base
camponesa, sem o uso de agroquímicos e de baixo “input” de energia e matéria e;
vii) recuperação do conhecimento, técnicas, valores, sementes, animais e hábitos tradicionais.
Obrigado!
BIBLIOGRAFIA
BAYON, D. et al. Decrecimiento : 10 preguntas para comprenderlo y debatirlo. [Mataró]:
Ediciones de interveción cultural/El Viejo Topo, 2011.
Boccato-Franco, A. A.; Nascimento, E. P. do. Decrescimento, agroecologia e economia solidária
no Brasil: em busca de convergências. Revista Iberoamericana de Economía Ecológica, v. 21:
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Values Environmental Values, v. 22, n. 2, p. 191–215, 2013.
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JACKSON, T. Prosperidade Sem Crescimento: Vida Boa em um Planeta Finito. Ed. Planeta
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LATOUCHE, S. Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. Tradução Claudia Berliner. São
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