O artigo descreve o trabalho do artista urbano Guga Ferraz, conhecido por suas intervenções na cidade do Rio de Janeiro criticando aspectos da arquitetura e da sociedade por meio de placas alteradas e outros projetos. Guga sonha em fazer melhorias nas favelas cariocas com tobogãs, teleféricos e trazer de volta sons do mar para lugares onde já não chega mais. Sua arte surgiu do skate e tem como objetivo questionar e transformar a cidade.
1. O GLOBO ● RIO ● PÁGINA 23 - Edição: 1/04/2012 - Impresso: 31/03/2012 — 10: 35 h PRETO/BRANCO
Domingo, 1 de abril de 2012 O GLOBO RIO ●
23
Perfil • GUGA FERRAZ
‘Eu faço isso por raiva’
Pioneiro da interferência urbana, Guga Ferraz sonha com tobogãs em
favelas, sal grosso marcando a linha histórica do mar e corrida de rolimã
Arnaldo Bloch (skate de rua), coisa de pular de muro, manobrar a cidade.
arnoch@globo.com Na adolescência a maioria de seus amigos ia à Barra surfar ou
jogar bola por aí. Guga preferia o bairrinho.
P
— Andar de skate era underground. Malvisto. Não era nem
lacas de ônibus cobertas, na proporção exata, por dese- queria ser esporte. E acabou sendo a base do meu trabalho.
nhos de ônibus incendiados. Imagens de cadeirantes Para os mais acostumados aos traçados lineares, as curvas
com barra perpendicular de “proibido” cobrindo o aviso de Guga, à primeira vista, não encaixam no autorama. Mas a coi-
falso de que deficientes são bem acomodados. Dezenas sa não é assim: com o sonho de fazer uma cidade mais amiga do
de camas junto a um muro, sugerindo que o trabalhador que skate, com menos quinas e mais sinuosa, com muitos circuitos
perde o ônibus na madruga tem o direito a uma soneca ao re- e ladeiras, é que cursou quatro anos arquitetura na UFRJ.
lento que não seja em bancos com alça, “inumanos”. Dois acidentes concorreram para que, antes do fim, ele aban-
Trabalhos assim são o núcleo da obra de Guga Ferraz, 38, ca- donasse a faculdade: um acidente perceptivo, ao constatar
rioca nascido e crescido na Tijuca, que hoje também faz cená- quão tortuosos são os labirintos da arquitetura quando se trata
rios para espetáculos e vende trabalhos de rua e desenhos. Sua de o mínimo de racionalidade e humanismo; o outro acidente foi
“formação”, faz questão de esclarecer, começou aos seis anos na carne: ao descer um corrimão em Ribeirão Preto, capotou
de idade, descendo a Rua Homem de Melo em carrinho de ro- feio e caiu de muito mau jeito sobre aquelas partes que, quando
limã. Um dia, rolou um skate na área. atingidas por uma bola, sofrem até o fundo da alma. Só que em
— O pessoal descia sentado, eu achava mais divertido em pé. vez de uma bola foi a quina do corrimão.
Aos dez anos já competia. Peguei a onda inicial do street skate — Achei que nunca mais ia fazer sexo. Mas foi alarme falso.
PLACAS
Arnaldo Bloch
ALTERADAS:
marcas do
trabalho de
Guga Ferraz,
que ganha a
vida com
cenários de
shows, peças e
balés, vende
desenhos, mas
cujo cerne da
energia é
dedicado à arte
de rua
D
esistir da arquitetura maior trampo, e meio-dia já es- caso de assalto ao avistar ar- uma de minhas utopias.
e dar uma pendurada tava tudo arrancado. ma de fogo não reaja”, coladas Utopia boa é assim: dessas
no skate não teve na- A constatação era de que a sobre as clássicas “Em caso de que se põem em prática. A “ci-
da a ver com jogar a cidade engolia a criação e que emergência puxe a alavanca” dade dormitório” ficou quatro
toalha: Guga deu uma guinada a quantidade não era o segre- ficaram mais de um ano circu- meses nas paredes do espaço
para as Belas Artes. do, mas a qualidade e nível de lando após a instalação. Gentil Carioca. Muita gente
— Até hoje não fui apanhar impacto da mensagem. — Uma repórter da Globo morou lá. Hoje está viajando
o diploma porque tinha mais o — Quando eu fiz a placa do descobriu e foi atrás de mim. pelo país com a Intrépida Tru-
que fazer. Eu e uma constela- ônibus incendiado, sem mu- O assunto deu editorial e re- pe, que usa a montagem como
ção de nômades como o Ale- dar a morfologia, bastaram portagem. Prova de que o que cenário de um espetáculo.
xandre Vogler ou o Ducha, que umas 20 para abalar. A polícia faço é do bem, mesmo que
fez o Cristo Vermelho.
A essa altura, virada para os
disse que ia investigar. O Ri-
cardo Hallak, chefe da Civil,
muitas vezes me cause crises
de consciência e medo. Povo lindo e forte
anos 2000, ninguém fazia inter-
ferência urbana. A cena de ar-
ainda não havia sido preso e
me perseguiu, achando que
Medo que não segura a von-
tade de fazer e de criar estên- pra caramba
te estava estagnada, fechada era apologia dos incêndios. ceis (técnica de desenho vaza-
na Geração 80. Não havia mer- Era o contrário: chocado com do e recortado) de si próprio. ● Com referência a uma tem-
cado em expansão, nem tantas a morte de uma senhora de O “Rendido”, imagem referen- porada de “Beijo no asfalto”,
galerias como hoje. idade no ponto do 401, eu tive te ao Carandiru, que mostra de Nelson Rodrigues (a quem
— Acabou sendo por neces- essa idéia de “avisar” que es- Guga deitado com a mão na ele reputa como uma de suas
sidade que a gente se lançou à tavam incendiando ônibus. nuca foi obra encomendada e influências, junto com Henfil e
rua. Santa Teresa não era tão paga e está até hoje na estação Hélio Oiticica) Guga espalhou
chique em 1998, quando a gen-
te pegou o primeiro ateliê. Cônsul levou da Carioca.
A sede de mexer com a
pela cidade mais de centena
de estênceis de dois amigos
Os grupos foram se suce-
dendo. Atrocidades Maravii- placa alterada consciência da cidade não co-
nhece limites: uma tonelada
seus à beira de um beijo.
— Trabalhei em restauro de
lhosas. Zona Franca. Alfânde- de sal grosso em 200 metros na Pedra do Sal, com alto-fa- ainda tem muita coisa para fa- fachada em Realengo e vi mui-
ga. O espaço eram as ruas, a ● Muitos ambicionam essas de faixa foram dispostos em lantes instalados no Morro da zer. Eu acho incrível não ouvir to aquele contrafluxo de trans-
Fundição Progresso, os mu- placas alteradas, no que ele frente à Caixa Econômica Fe- Conceição, “devolvendo a pai- mais tiro, por isso é que me porte com a passagem do jeito
ros, as placas cujas mensa- confessa: mais de uma vez, deral mostrando até onde ia o sagem sonora àquele lugar ao mudei para o Rio Comprido. que está. Um povo lindo forte
gens não correspondiam à rea- roubou a própria obra, o que mar quando o Rio era como de qual o mar já não chega”. O Rio Comprido, justamen- pra caramba que é oprimido
lidade circulante. não seria um pecado se não le- fato, e a Praia de Santa Luzia — A não ser em projetos te, pode vir a ser a plataforma- por todo esse poder público
— A gente começou com vasse junto o suporte. Uma de- não era uma memória brumo- com a participação de alguma piloto de um de seus projetos que vive à sua volta, de mando
cartazes, achando, ingenua- las foi vendida ao cônsul de sa impressa em fotos. fundação, não peço autoriza- mais ambiciosos: os tobogãs e desmando e corrupção, des-
mente, que se espalhássemos um país europeu. — Meu sonho era fazer uma ção para quase nada. Não te- para favelas, teleféricos lúdi- de que me entendo por gente é
uns cinco mil não ia ter quem — Eu diria que foi a única linha de sal grosso percorren- nho envolvimento com o cri- cos, informais e, francamente, assim — ele improvisa, na ca-
não enxergasse. Eram 25 pes- coisa errada que fiz na vida. do a arrebentação de toda a ci- me. O crime é que nos envol- bem mais práticos. O proble- minhada para as fotos na Cine-
soas, 200 cartazes para cada. Guga se surpreende com a dade, perfazendo a marca ori- ve. Se você está em casa e es- ma é arrumar dinheiro. lândia. Pára de frente para a
Eu logo comi bola: os meus fo- perenidade de algumas inter- ginal do mar. cuta tiro, está envolvido. A — Vou começar devagar, e é Assembléia Legislativa. Morde
ram parar num muro da Com- venções que eram para ser fu- Pôs em prática projetos que gente está nessa Zona Sul um preciso garantir a segurança os lábios.
lurb. Passei a noite colando, gazes. Mensagens como “Em traziam o som do mar batendo pouco mais pacificada mas dos “passageiros”... mas é — Eu faço isso por raiva. ■