O documento apresenta três lendas de Fernando de Noronha: a lenda da Alamoa, uma mulher fantasmagórica que atrai e seduz homens; a lenda do Cajueiro da Cigana, sobre um fantasma que aparece embaixo de uma árvore; e a lenda do Tesouro do Capitão Kidd, que escondeu um tesouro em uma caverna da ilha.
Lendas e histórias de mistério de Fernando de Noronha
1. NORONHA
A outra face
do paraíso
Procurada por sua vocação de lazer, a única ilha
habitada do arquipélago também guarda lendas,
histórias de mistério e heranças de violência
texto e fotos Fred Navarro
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Fernando de Noronha fica a 545
km do Recife e a 360 km de Natal. As
praias que hipnotizam os turistas e os
mergulhos com visibilidade de até
40 m são suas principais atrações, mas o
arquipélago abriga histórias e mistérios
que costumam se esconder do visitante
mais apressado ou desatento. Ao longo
do tempo, isolados parcialmente
do país, mas não do mundo, seus
habitantes herdaram lendas dos muitos
navegantes que lá encontraram repouso
em meio à travessia do Atlântico.
O arquipélago foi ocupado e
conquistado entre os séculos 16 e 18 por
holandeses, franceses e portugueses,
mas nesse período foi visitado com
frequência por piratas e aventureiros
de diversas origens, e a serviço de
inúmeros reinos e bandeiras (ingleses,
alemães e espanhóis entre eles). Essa
diversidade – aliada à contribuição da
cultura continental, especialmente a
pernambucana – gerou mitos ao longo
dos séculos, e eles hoje enriquecem
a memória e a cultura locais.
Outro aspecto marcante na história
do arquipélago diz respeito ao fato
de ele ter funcionado, por mais de
300 anos, como presídio. Episódios
dolorosos, decorrentes das violências
praticadas na Fortaleza dos Remédios,
na Solitária do Sueste e em outras
dependências da ilha, são passados
adiante, de geração em geração.
Assim é que narrações do
maravilhoso, do além-mar e memórias
do cárcere formam um conjunto de
lendas, mitos e histórias de Noronha,
contados pelos ilhéus e registrados por
pesquisadores. Diante dos cenários onde
supostamente ocorreram e das marcas
que deixaram na ilha principal, somos
levados a uma percepção do fantástico,
para além do encantamento diante da
beleza natural do lugar. A principal ilha
é a única habitada das 21 que compõem
o arquipélago. Com apenas 17 km2, tem
histórias fascinantes e insuspeitas para
contar, como as que se seguem.
CACIMBA DO PADRE
Em 1888, o padre Francisco Adelino
de Brito Dantas, capelão do presídio
da Fortaleza dos Remédios, descobriu
água potável nas imediações da casa
onde morava, na praia da Quixaba, e
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2. lá construiu uma cacimba de 14 m de
profundidade. Sua fama espalhou-se
tanto, que o nome da praia, nas décadas
seguintes, passou a ser Cacimba do Padre.
Situada na área central do chamado
Mar de Dentro da ilha principal, a praia
tem cerca de 500 m de areia branca,
fica diante das imponentes Ilhas Dois
Irmãos (indiscutível “cartão-postal” do
arquipélago) e dá acesso, de um lado, à
Baía dos Porcos, e, do outro, às praias do
Bode, do Americano e do Boldró. Contam
os ilhéus que o padre nunca se desapegou
do lugar, que por ele seria assombrado.
Registro do mal-assombro é feito
por Campos Aragão, em Guardando céu
nos trópicos: “Nas imediações da fonte,
ruínas indicam grandes construções
do passado, possivelmente a casa
onde viveu o legendário padre. Dizem
que, à noite, o reverendo aparece
no lugar, montado numa mula
branca como a neve, chegando até
a beira da cacimba, como a vigiá-la.
E o lugar, silencioso e belo, guarda
segredos jamais desvendados”.
ALAMOA
Luís da Câmara Cascudo, em Geografia dos
mitos brasileiros, afirma: “É uma entidade
fantasmagórica que aparece na ilha de
Fernando de Noronha. É moça branca,
loura, nua, tentando os pescadores
ou caminhantes retardatários.
Transforma-se depois em um esqueleto,
endoidecendo o namorado que a seguiu.
É também vista como uma luz ofuscante,
policolor, perseguindo quem foge dela”.
Segundo a tradição, essa mulher
inefável mora no Morro do Pico. Como
lenda mais popular do arquipélago,
nomeia pousadas, lojas, restaurantes
e também uma importante estrada da
ilha principal que dá acesso às preciosas
praias do Meio e da Conceição.
O pesquisador Pereira da Costa, no
Folclore pernambucano: subsídios para a história
da poesia popular em Pernambuco, considera
a lenda da Alamoa “uma reminiscência
do tempo dos holandeses”, quando os
nativos pela primeira vez se depararam
com mulheres brancas, altas e louras
no arquipélago. Câmara Cascudo
refutou essa tese (“... pode ser uma
convergência de várias lendas de sereias
e iaras estrangeiras...”) e afirmou ser
difícil determinar com exatidão a sua
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origem, por ser recorrente no imaginário
popular o tema da mulher bela e
sobrenatural que primeiro atrai e seduz
os homens, e em seguida os destrói
implacavelmente.
Em tempos mais recentes, a
Alamoa passou a ser chamada pelos
ilhéus de Mulher de Branco (ou
Dama de Branco), pois é vestida
com roupas alvas que “ela” pede
carona aos que passam pela BR363 (única estrada asfaltada da ilha
habitada do arquipélago, com apenas
7 km de extensão). Inúmeros ilhéus,
mulheres inclusive, relataram já
terem se deparado com a Alamoa,
principalmente em altas horas da noite.
Em Portugal (na região das
Beiras), é feminino de “alemão” e,
3
como gíria, equivale a mulher forte
e corpulenta. A Alamoa é citada
também na lenda da Porta do Pico.
CAJUEIRO DA CIGANA
Por volta de 1739, dois anos após a
expulsão definitiva dos franceses, os
portugueses trouxeram os primeiros
prisioneiros, inaugurando a função
do arquipélago como presídio-exílio
para aqueles considerados “vadios ou
desordeiros”, ou seja, incômodos ao
Reino por quaisquer motivos.
O grupo inicial era composto por
chefes de famílias ciganas de todo o
Brasil. Depois, chegaram os líderes
farroupilhas derrotados (1844) e os
praticantes de capoeira (em 1890,
acusados de “vagabundagem”). Desde
antes da República, e ao longo de boa
parte do século 20, Noronha foi o destino
de prisioneiros comuns e de presos
políticos de todos os matizes.
Parte da herança desses “moradores
por obrigação” pode ser encontrada na
lenda do Cajueiro da Cigana: “Era uma
linda cigana. Vivia em um casebre, em
lugar deserto, no caminho do Sueste.
Ao lado do mocambo, plantou um dia
um cajueiro, que cresceu, tornandose árvore frondosa. (...) Dizem que
ali, em noite escura, costumam se
encontrar os fantasmas materializados
de um ‘general’ montado a cavalo, de
chapéu, gibão e espada na mão; de um
‘ordenança’, de couraça e armado com
uma lança; e de um ‘padre’ com seu
solidéu. (...) Outras vezes, um vulto
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1 mOrro do pico
Um dos cartõespostais da Ilha é
cenário de três
contos do fantástico
Nestas páginas
2
alamoa
É a lenda mais popular
do arquipélago.
Nomeia estrada,
pousadas, lojas e
restaurantes
3-5 Cacimba
Conta-se que o
padre aparece, à
noite, para vigiar a
fonte de água que
deu nome à praia
4
Pescador
As aparições do
Gigante da MeiaNoite ocorreriam no
Casarão do Sueste
5
moreno de rara beleza vagueia, como
estranha aparição, naquele lugar onde,
segundo contam, existe enterrado um
caixão de ferro e cobre, com rico tesouro
deixado pelos holandeses...”. Quem
registrou tais aparições foi Maria José
(Marieta) Borges Lins e Silva, em Fernando
de Noronha: lendas e fatos pitorescos.
GIGANTE DA MEIA-NOITE
A lenda diz respeito a um pescador
de estatura gigante, com um enorme
chapéu negro sobre o rosto, que surge no
pesqueiro da Sapata (extremo sudoeste
da ilha). Quando não está pescando, é
visto nas imediações da Casa-Grande
(ou Casarão) do Sueste, onde mora. Em
tempos remotos, essa casa-grande foi
residência de veraneio dos comandantes
A Alamoa também é
chamada de Mulher de
Branco pelos ilhéus.
Dizem que ela vira um
esqueleto, depois de
atrair as presas
do presídio e também hospital para
afetados pelo beribéri (inflamação ou
processo degenerativo provocado pela
carência de vitamina B-1).
A descrição de Olavo Dantas, no
citado Sob o céu dos trópicos, é digna
das narrativas de piratas, em que se
insere até o curioso personagem do
duende. “Quando o Gigante da Meia-
Noite começa a pescar, nenhum outro
pescador consegue mais apanhar coisa
alguma. Só ele é feliz na pescaria. Depois
de apanhar 10 grandes xaréus, o pescador
misterioso se retira com a gravidade e a
lentidão adequadas à dos fantasmas. (...)
O Gigante da Meia-Noite, comandando
a legião de fantasmas, dança, com seus
comparsas, no vasto pátio da CasaGrande enquanto uma orquestra de
duendes abala as colunas de basalto, com
o som rouco de seus acordes noturnos.”
QUEBRA-ROÇO
Nome de uma sala existente no antigo
presídio da Fortaleza dos Remédios, onde
eram aplicados castigos e suplícios. A
fortaleza fica 45 m acima do nível do mar,
e foi construída em 1737 sobre as ruínas
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5. de um forte holandês de 1629, resquício
do período em que boa parte do nordeste
brasileiro (de Pernambuco ao Maranhão)
esteve sob domínio desse povo.
Alguns de seus calabouços e
subterrâneos foram cenários de torturas
e assassinatos durante mais de três
séculos, mas há bastante tempo foram
aterrados com barro e cimento, e o
silêncio aos poucos cumpre seu papel
de encobrir muitos dos dramas que
ocorreram por lá. Mas não todos, como
nos conta Olavo Dantas.
“Uma porta pequena (mais uma
abertura do que uma porta) comunicava
a sala com o subterrâneo, que terminava
na Caverna dos Suspiros ou do Funil,
no penhasco embaixo da Fortaleza.
Quando as torturas não davam resultado,
o último argumento era precipitar a
vítima pela abertura, de onde jamais
sairia com vida. Ou então, apinhada a
sala de presos, eram eles comprimidos
uns aos outros, até que alguém caísse
pela abertura e se perdesse para sempre.
Seu nome, ‘quebra-roço’, significava
que, ali, todo orgulho, vaidade ou
coragem eram quebrados, com a força de
‘argumentos irrefutáveis’.”
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TESOURO DO CAPITÃO KIDD
Junto à Praia do Cachorro, no penhasco
do Morro do Forte (onde fica a Fortaleza
dos Remédios), encontra-se a Caverna
dos Suspiros ou Caverna do Funil, nomes
populares para um conjunto de fendas
que desembocam num enorme salão,
cavado pelo mar. Ao penetrá-las, com
violência, a água do mar comprime a
massa de ar no seu interior, que escapa
por diversos orifícios superiores e
produz estrondos ouvidos à distância,
semelhantes a uma avalancha contínua,
chamada também de Urro do Leão.
Para um cenário tão peculiar quanto
esse, não podia deixar de haver uma
lenda, uma narrativa digna de pirata. E
é exatamente sobre o escocês William
Kidd (1645-1701), ou o Capitão Kidd,
que essa história trata. Diz-se que foi
na Caverna dos Suspiros que o capitão
escondeu seu tesouro, uma pilhagem
de ouro e pedras preciosas... Alguma
lembrança dos filmes de aventuras?
Em Sob o céu dos trópicos, também está
registrada a lenda de Kidd, à qual se
soma outro personagem de intensa
recorrência nas narrativas europeias:
o dragão. “Diziam os presidiários que
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6. 6-7 remédios
A fortaleza funcionou
por mais de 300 anos
como um presídio. No
passado, um cenário
de tortura e morte
8 Cajueiro da cigana
os
Entre
“degredados”
da lha estavam
ciganos. Aqui,
teriam enterrado
um caixão cheio de
tesouros deixados
pelos holandeses
8
morava ali um dragão terrível, guardador
do precioso tesouro e um dia, vendo,
próximo à entrada da caverna, a linda
filha de um prisioneiro, arrastou-a para
junto de si, mantendo-a presa em seus
domínios”, escreve Olavo Dantas.
IRMÃO, LUZ E PORTA DO PICO
O Morro do Pico é a máxima elevação
rochosa da maior ilha do arquipélago
e tem 321 m de altura. Em torno de
sua “face” sisuda e amedrontadora
há três contos do fantástico. Cascudo
explica que Irmão era como os
antigos condenados à prisão perpétua
referiam-se ao rochedo espontado e
alto. “Irmão do Pico era a perpetuidade
na ilha, tão inseparável dela quanto
o Pico, de quem o sentenciado se
proclamava irmão”, é o que registra
o Dicionário do folclore brasileiro.
No seu cume, há um pequeno
farol desativado pela Marinha. A
lenda da “Luz” é mencionada por
Pereira da Costa, Beatriz Imbiriba,
Campos Aragão e outros historiadores.
Uma das histórias dá
conta de que o pirata
escocês Capitão Kidd
teria escondido seu
tesouro na Caverna
dos Suspiros
“Em noite escura, uma luz brilha
e vagueia, subindo e descendo a
soturna pedra. É a Luz do Pico, que
encandeia e atrai os desavisados. (...)
Insensível, o Morro do Pico a tudo
assiste. E a misteriosa luz aparece, de
vez em quando, como um archote
que se agita ao vento, assombrando
todos”, descreve Gustavo Adolfo
Cardoso Pinto, em Risos e lágrimas.
Há desacordo entre os nativos
sobre a localização exata da Porta
do Pico, uma “entrada secreta”
supostamente acessível através da
base que circula a enorme montanha
de basalto. A maioria garante que ela
fica nas proximidades da “boca” do
semblante sisudo, vigilante e quase
onipresente em todo o arquipélago.
“Às sextas-feiras, a pedra do Pico
se fende e na chamada Porta do Pico
aparece uma luz. A Alamoa vaga pelas
redondezas. A luz atrai sempre as
mariposas e os viandantes. Quando
um desses se aproxima da Porta do
Pico, vê uma mulher loura, nua como
Eva antes do pecado. Os habitantes
de Fernando chamam-na Alamoa,
corruptela de alemã, porque para eles
mulher loura só pode ser alemã... O
enamorado viandante entra na Porta
do Pico, crente de ter entrado num
palácio de Venusberg, para fruir as
delícias daquele corpo fascinante.
Ele, entretanto, é mais infeliz que o
cavaleiro Tannhauser. A ninfa dos
montes transforma-se numa caveira
baudelairiana.” A viva descrição de
Olavo Dantas capta a imaginação do
leitor que, depois do contato com
suas lendas, jamais verá Fernando de
Noronha com a inocência de antes...
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