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D o i s : C R Ô N I CA S D E DA R I E N
        E M T E M P O S I M E MOR I A I S , H Á M I L Ê N IO S , O M U N D O DE DA R I E N
                               ERA UM SÓ: O REINO DE KANDRA.



        O ANTIGO REINO DE KANDRA                                 OS PODERES MÁGICOS DOS KANDRIANOS

Os kandrianos eram tão antigos quanto o próprio Reino.           Os kandrianos eram mestres da arte da magia – todos eles,
Seu código de leis rígidas mas benevolentes imperava em          mesmo os mais simplórios, eram capazes de transformar
todo o território, até nos pontos mais remotos. Era              água em cerveja e sabiam como acabar com verrugas, até
diferente de todos os códigos conhecidos, pois não               as mais feias. Acreditava-se que, juntos, os Five Wizards of
dependia, para ser aplicado e seguido, nem de uma                Kandra (Cinco Magos de Kandra) tinham poder suficiente
burocracia gigantesca nem de redes de espionagem nem de          para destruir todo o universo. E acreditava-se também que,
guarnições armadas espalhadas por todas as vilas e               pelo menos em parte, esse poder brotava de um objeto
cidades. O poder do Reino de Kandra emanava do controle          secreto, muito bem guardado, conhecido como Heart of
que os kandrianos tinham sobre o Mana, as forças                 Thesh (Coração de Thesh). Dizia-se que quem possuísse o
mágicas.                                                         Coração de Thesh disporia de uma força descomunal e


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DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



devastadora, contra a qual não havia defesa ou proteção             trabalhavam com concentrações muito grandes de Mana,
possíveis.                                                          gerava-se um mineral muito raro, conhecido como
   Felizmente, os Cinco Magos de Kandra eram, além de               mogrito, substância que dava poderes mágicos aos seres
poderosos, muito sábios. Embora soubessem,                          humanos – mesmo aos mais humildes – e os tornava
simultaneamente, de cada vez que seu código – chamado               imortais.
Laws of Life (Leis da Vida) – era desrespeitado e, embora
todas as infrações fossem punidas, os magos jamais                                AS CINCO RELÍQUIAS

abusavam de seu poder e posição, pois sabiam que                    Não demorou muito para que os kandrianos percebessem
qualquer abuso que violasse as leis naturais inerentes à            o valor do mogrito. As cinco rochas de mogrito
manipulação do Mana levaria ao desastre e à tragédia.               encontradas foram reunidas, trabalhadas e transformadas
Assim, se seu imenso poder provocava neles algum prazer             em cinco peças – conhecidas como as Cinco Relíquias: um
pessoal ou era motivo de alegria, esses sentimentos eram            colar, um bracelete, um cetro, um anel e... um trono.
logo ofuscados pela consciência de sua enorme                          Cada uma dessas Relíquias simbolizava um dos quatro
responsabilidade.                                                   elementos – terra, água, ar e fogo. A quinta Relíquia era
   Os magos de Kandra praticavam suas artes mágicas em              tida como um amálgama desses quatro elementos e
lugares especiais, sagrados, que acentuavam o poder da              formava uma única entidade: o mundo. Assim, o colar com
magia. Esses locais, demarcados por um círculo de pedras            a pedra de mogrito – chamado Stone of Darien (Rocha de
em pé, continham provavelmente extraordinárias                      Darien) – simbolizava a terra; o bracelete com outra pedra
concentrações de Mana. O que se sabe, sem sombra de                 – chamado Soul of Kandra (Alma de Kandra) – simbolizava
dúvida, é que até hoje as propriedades mágicas desses               o ar. O cetro, encimado com a pedra chamada Angvir’s
locais mantêm-se intactas. Às vezes, quando os magos                Flame (Chama de Angvir), simbolizava o fogo; e o anel,

                                                            I99 i
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CRÔNICAS DE DARIEN



cuja pedra era um fragmento pequeno mas incrivelmente              uma pedra de mogrito, cada um recebia muito mais do que
puro de mogrito, chamado Macha’s Tear (Lágrima de                  poderes mágicos. O mogrito lhes dava outras coisas:
Masha), simbolizava a água.                                        ficaram imunes a todas as doenças, seus ferimentos
  A maior das Relíquias de mogrito, símbolo da                     cicatrizavam em instantes e tinham vida bem mais longa.
indivisibilidade do mundo, ficou conhecida como Modron’s           Os magos descobriram que as pedras de mogrito
Eye (Olho de Modron). A pedra de mogrito foi incrustada            incrustadas nas Cinco Relíquias aumentavam muito os
no espaldar do Throne of Ludd (Trono de Ludd) –                    seus poderes. O Olho de Modron, em particular, tornava
imponente peça esculpida em rocha-negra, abundante em              seu proprietário – ou guardião – praticamente imortal.
Darien e resistente como aço.                                      Ora, o princípio de unidade, que mantinha coesos os Cinco
   As Cinco Relíquias ficaram sob a guarda dos Cinco               Magos era, precisamente, a absoluta igualdade entre eles.
Magos de Kandra. Durante um ano, cada um dos magos era             Ao descobrirem os poderes mágicos das Relíquias, os
responsável por uma das Relíquias. Ao final do ano, os             magos também descobriram que o guardião do trono no
magos trocavam as Relíquias entre eles, prática que foi            qual estava incrustado o Olho de Modron teria, no período
adotada para que todos tivessem sempre em mente que                em que a Relíquia estivesse sob sua guarda, mais poder que
não eram proprietários, mas meros guardiães, das Relíquias.        os demais.
                                                                      Como se não bastasse isso, nem todos os kandrianos
O D E C L Í N I O DA C I V I L I Z A Ç Ã O K A N D R I A NA        estavam satisfeitos com a extraordinária longevidade dos
Os kandrianos imaginavam que, sob a guarda dos magos,              magos. O ressentimento cresceu lenta mas continuamente.
as Relíquias estariam bem resguardadas e protegidas para           De modo geral, os kandrianos tinham vida longa – um
sempre. Infelizmente, porém, eles estavam enganados!               kandriano comum tinha uma expectativa de vida de bem
  Com o tempo, os magos se deram conta de que, com                 mais de 100 anos. Mas passadas duas gerações de

                                                              I1 0 i
DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



kandrianos, sempre com os mesmos Cinco Magos a                      poder. Àquela altura, cada um já tinha uma Relíquia
governar o Reino, o mal-estar estabeleceu-se e começaram            preferida – ou ambicionada – e, de todas, a mais cobiçada
as indagações.                                                      era o trono com o Olho de Modron.
   Os cinco candidatos à sucessão dos magos interrogavam               A catástrofe final eclodiu de repente, sem aviso. Não há
quase abertamente os velhos regentes. O treinamento dos             documentos nem registros precisos sobre a causa direta do
candidatos, escolhidos dentre os kandrianos mais                    trágico colapso do Reino de Kandra. Teria um dos magos
talentosos, demorava 36 anos. Era um treino duro, nas               forçado um golpe de Estado, na luta pelo poder absoluto? Ou
condições de isolamento quase absoluto em que viviam os             um dos eternos candidatos, frustrado com a longa espera,
magos. Um grupo de candidatos sucumbiu, sem jamais ter              teria aplicado seus conhecimentos em alguma atividade
colocado em prática os conhecimentos tão duramente                  menos nobre, ou mesmo proibida?
aprendidos. Os candidatos à sucessão dos magos, aliás,                  Ninguém sabe e ninguém jamais saberá.
protestavam cada vez com mais veemência, muitas vezes
em público, e isso era um escândalo sem precedentes na                      O D I A D O G R A N D E C ATA C L I S M O

história de Kandra.                                                 A única prova que resta e que chegou até nós informa que
                                                                    427 anos – precisamente! – depois de as Relíquias terem
               A Q U E DA D E K A N D R A                           sido postas sob a guarda dos Cinco Magos, Darien foi
Nos bons tempos, os Cinco Magos saberiam                            atingida por um golpe fatal. Desastre! As leis naturais, de
instantaneamente que seu povo não estava satisfeito. Teriam         um momento para outro, deixaram de prevalecer. Nas
corrigido os erros, punido os culpados – caso houvesse – e          fazendas, os animais incharam e explodiram, como se o
tudo, em pouco tempo, teria voltado ao normal. Mas os               sangue em suas veias, repentinamente, se tornasse gasoso.
magos, então, já estavam mais e mais envolvidos na luta pelo

                                                               I1 1 i
CRÔNICAS DE DARIEN



Homens e mulheres morreram numa espécie de                          ao cataclismo. Não sabiam por que nem como haviam sido
autoflagelação, com os corpos contorcidos e os ossos                poupadas, mas também não se atreveram a investigar.
partidos, dobrados por alguma força inexplicável, olhos             Imediatamente após a desgraça, Darien foi abençoado por
esgazeados, rostos desfigurados, crânios rebentados como            um período de bom tempo e bem-aventurança
frutos apodrecidos. Na capital de Kandra, as árvores que            inacreditáveis, que durou quase um século. Da terra
margeavam as grandes avenidas retorceram-se e se                    brotaram novas fontes de água cristalina; onde havia
racharam de alto a baixo, cuspindo uma seiva de visgo,              desertos surgiram campos recobertos de grama verdejante
vapor e mau cheiro. Os mares e os lagos ferveram, os rios           e macia; os pássaros voltaram a cantar e a fazer ninhos nas
secaram e sumiram em desfiladeiros profundos. As                    árvores, outra vez cobertas de brotos.
montanhas ruíram e desapareceram na forma de planícies                 Foi como se a natureza houvesse decidido acalantar o
de pedra e pó. Por fim, até o chão gemeu, um gemido de              mundo e curá-lo de todos os males. Aos poucos, os infelizes
morte e horror, e toda a terra de Darien foi sacudida por           sobreviventes da catástrofe reuniram-se novamente em clãs
um terrível terremoto.                                              e tribos. Mas, por mais distantes que vivessem uns dos
   O horror foi absoluto, mas breve: alguns instantes... e o        outros, mesmo que uns sequer soubessem da existência
silêncio voltou a envolver o mundo torturado de Darien.             dos demais, em todos esses pequenos núcleos de
E do céu caiu uma chuva de sangue, por três noites e                civilização havia uma única crença, e todos partilhavam a
três dias.                                                          mesma postura: o mais profundo e absoluto horror por
                                                                    tudo que lembrasse o tempo em que o mundo fora
         O R E NA S C I M E N TO D E DA R I E N                     dominado pelas artes mágicas. Qualquer palavra ou gesto
Por incrível que pareça, alguns resistiram e sobreviveram a         que fizesse lembrar o ‘tempo mágico’ da história de Kandra
tudo – pobres testemunhas, enlouquecidas, que assistiram            era punido com extrema severidade.

                                                               I1 2 i
DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



  Perdeu-se, assim, o enorme patrimônio de conhecimento            progresso voltou e muitas áreas de conhecimento voltaram
mágico que os kandrianos haviam acumulado. E, à medida             a ser exploradas, de tal modo que, em relativamente pouco
que os casebres formavam vilas, e as vilas viravam cidades,        tempo, os fragmentos de saber de cada grupo de
os kandrianos desenvolveram uma nova fé: a certeza de              kandrianos tornaram-se acessíveis a toda a população.
que tudo estava absolutamente perfeito. Se uma coisa era             Uma área do saber, contudo, permaneceu intocada,
de um certo jeito, aquele era o modo como ela tinha de ser,        evidentemente aquela que mais preocupava a todos: a
indiscutivelmente, para sempre.                                    magia kandriana. Para os criadores da nova civilização de
                                                                   Darien, a magia era como uma Caixa de Pandora que
                  O N OVO DA R I E N
                                                                   aniquilaria quantos se atrevessem a usá-la.
O renascimento de Darien durou milhares de anos. As
                                                                      Naquela época, não eram necessárias leis que proibissem
novas tribos que se formaram adotaram um novo                      atividades relacionadas à magia. Para a maioria da
calendário, que começava no dia do Grande Cataclismo,              população do novo Darien, admitir qualquer tipo de
tomado como Dia Um. Por isso, sabemos hoje que Darien              interesse nas artes mágicas seria tão absurdo quanto, entre
recomeçou a cultivar a terra no final do Primeiro Milênio;         nós, admitir algum tipo de interesse em, por exemplo,
que no início do Segundo Milênio a flora e a fauna                 assassinatos em série. Tudo parecia resolvido.
ganharam uma grande diversidade de novas espécies; e                   Até que surgiu Garacaius.
que, ao final do Terceiro Milênio, já haviam desaparecido
quase todas as cicatrizes deixadas no solo de Darien,                            O M E N I N O DA F L O R E S TA

novamente recoberto de campos e florestas. Na metade do            Era um dia especial: o último dia do Quarto Milênio. Pesco,
Quarto Milênio, quase todas as tribos que habitavam o              um pescador, conduzia seu barco junto à praia, numa costa
território de Darien já haviam restabelecido contato. O            de vegetação fechada. Não era tarefa simples, porque um

                                                              I1 3 i
CRÔNICAS DE DARIEN



denso nevoeiro descera sobre a água, e Pesco tinha de               vira árvore como aquela. O bebê tornou a chorar e Pesco foi
desviar dos troncos que boiavam e, também, evitar os                tomado pela sensação de que algo estava para acontecer.
juncos que brotavam junto à praia, na água mais rasa. Ele           Assustado, nem sentia a água escorrendo do chapéu e
tinha pressa porque a noite prometia muita festa para               molhando seu rosto. O ar estava parado. Impulsionado por
comemorar a chegada do Novo Milênio, e a pressa foi a sua           uma força incontrolável, o braço de Pesco agarrou um dos
perdição. O fundo do barco, de repente, bateu num tronco            galhos da árvore. Momentos depois, o pescador caminhava
parcialmente submerso, o barco saltou como um cavalo                em meio ao musgo e à grama, ferindo seus pés nos
assustado e Pesco caiu na água.                                     espinhos espalhados pelo chão.
   Por sorte estava no raso, a água mal chegava à cintura, o          O bebê estava à sua frente. Quase tropeçou nele, ao passar
que não o impediu de vociferar alguns palavrões. Depois de          entre os ramos de um arbusto seco. Estava no centro de uma
tirar o excesso de água do chapéu, colocou-o de volta sobre         pequena clareira, completamente nu, com uma bolsinha de
a careca e olhou em volta. A primeira coisa que percebeu            couro amarrada ao pé.
foi que os peixes estavam de volta à água, festejando a                Com uma habilidade que ninguém esperaria daqueles
inesperada liberdade. Pescara os peixes e os deixara vivos          dedos calosos, Pesco desatou as tiras de couro e olhou o
porque era um homem bom, mas eles escaparam.“Eu                     conteúdo da pequena bolsa. E soltou-a, apavorado, com a
devia ter...” – ia recomeçar com os palavrões e os berros,          expressão de quem vira o rosto da morte. Num gesto rápido,
quando ouviu... um choro de bebê! De olhos arregalados,             jogou a bolsinha na direção da floresta, com toda a força, o
tentava enxergar através da névoa. E ouviu outra vez: havia         mais longe que pôde.Aquelas sementinhas claras, macias...
um bebê por ali!                                                    aquilo era coisa de mágicos... só podia ser! O bebê tinha um
  Deu alguns passos na água e aproximou-se, intrigado, de           saco de sementes mágicas amarrado ao pé!
uma árvore retorcida que avançava sobre a praia; nunca                  Pesco, ofegante, olhou em volta, à procura de algo que

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DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



pudesse usar como arma, um galho ou uma pedra. Pegou                           O HUMILDE PESCADOR
um pedaço de madeira, respirou fundo para criar coragem           Há registros de que no quinto dia do sexto mês do décimo
e aproximou-se do bebê.                                           sexto ano do Quinto Milênio, um jovem chamado
   Um bebê! Um menino... Pesco tinha nove filhos e mesmo          Garacaius foi aprovado no exame final da Academia Ugarit
se aquela criança não trouxesse a marca do demônio, ele           e saiu da famosa instituição de ensino seguido por uma
não teria como alimentar mais uma boca. Mas... e se               nuvem negra.
achasse alguém para criá-lo? Não... que idéia! E a bolsa             Antes da formatura, cada aluno tinha de apresentar um
com as sementes mágicas?!                                         ensaio sobre um tema extracurricular, de sua livre escolha.
  Ele ergueu o pedaço de madeira, aproximou-se do                 O assunto, de fato, não era importante – o que interessava
bebê... mas parou.                                                aos professores era avaliar a capacidade do estudante de
  Um bebê... um bebê...                                           expor suas idéias, argumentar logicamente e convencer os
                                                                  interlocutores. Naquele ano, um dos ensaios premiados foi
  Com um grito de raiva, Pesco jogou a arma, que caiu
                                                                  “A alegria de voar: exame das relações entre insetos
longe, entre as árvores, com um ruído seco. Não parou de
                                                                  domésticos selecionados e o pote de geléia de amora”, além
maldizer a sorte, um instante sequer, enquanto pegava o
                                                                  do sensacional “Histórias que meu pai (que é mudo) nunca
bebê e o levava ao barco; e continuou a praguejar, durante
                                                                  me contou: a aventura da carpintaria”. E o jovem Garacaius
toda a viagem, até chegar em casa.
                                                                  ousou escrever um tratado sobre o ... Mana! O Mana e a
  Pesco era conhecido por blasfemar demais. Por isso
                                                                  função da magia no mundo natural!
pescava sozinho.
                                                                    Para muitos, foi a prova que faltava de que o tal
                                                                  Garacaius não merecia confiança. Para começar, todos
                                                                  sabiam que a Academia só o recebera porque era um dos

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CRÔNICAS DE DARIEN



protegidos do clã dos Leimar, que mandavam e                        Pesco recusou-se a falar sobre o seu nascimento.
desmandavam em Ugarit.Verdade que o rapaz dizia                        Como não tinha para onde ir, Garacaius decidiu ficar e
sempre que não pertencia àquele clã, sobretudo depois da            passou a pescar com Pesco – o primeiro homem a fazer tal
tensão entre os Leimar e os Balistan ter crescido tanto que         coisa! – e o velho começou a gostar de ter um
os grupos chegaram a se enfrentar em combate. A quem                companheiro, principalmente porque o rapaz não
lhe indagasse sobre suas origens, Garacaius dizia que               reclamava de seus maus modos e ajudava em algumas
nascera numa aldeia de pescadores ao sul de Ugarit. Mas             tarefas que, com o tempo, iam tornando-se cada vez mais
alguns estudantes, que haviam visitado a aldeia à procura           difíceis. Melhor que tudo isso, contudo, foi que, em pouco
de informações, descobriram que lá ninguém jamais                   tempo, Pesco percebeu que o rapaz tinha talento... e isso o
ouvira falar dele. Em resumo, mesmo antes de seu                    divertia.
polêmico trabalho de formatura, muita gente já tinha
motivos para suspeitar de Garacaius e, em toda a cidade,                     O BA RC O Q U E M U D O U DA R I E N

não havia um único lugar onde ele pudesse sonhar em                 Pesco trabalhava com um barco de fundo chato, como
conseguir emprego.                                                  todos fabricados em Darien. O barco era excelente em
   O rapaz, aliás, não pediu ajuda a ninguém. Deixou Ugarit         águas rasas e calmas e servia perfeitamente para os rios da
e partiu de volta à aldeia de pescadores onde acreditava ter        região. Mas uma chuva forte já significava perigo.
nascido. Seus ‘parentes’ do clã dos Leimar haviam contado              Depois de muita insistência, Pesco afinal concordou em
sobre um pescador muito humilde, que não tinha como                 ajudar Garacaius a construir outro barco, de maior calado e
alimentar mais uma boca... E Garacaius, afinal, encontrou           desenho revolucionário. Mais da metade do casco ficaria
Pesco na aldeia, já muito, muito velho, mas ainda                   abaixo da linha d’água. Pesco argumentou que, daquele
perfeitamente capaz de praguejar. Para tristeza do rapaz,           jeito, ficaria difícil de manobrar o barco, ele seria lento e,

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DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



pior, quem conseguiria fazê-lo parar?! E, além disso, com            se não houvesse dia seguinte, beliscando todas as moças
tanto casco submerso, seria difícil de calafetá-lo. De nada          que passassem por ele. Certa noite, depois de muito beber,
adiantaram os argumentos – Garacaius era mais teimoso                o pobre Pesco voltava para casa. No caminho, tropeçou e
que mula empacada e, afinal, Pesco acabou cedendo.                   caiu num buraco, cheio de água de chuva. Más línguas
  No ano seguinte, ao começar a temporada de pesca, o                diziam que já estava morto ao cair na água.
barco estava pronto. Para surpresa geral, era quase tão fácil          As más línguas diziam também que Pesco, embriagado,
de manobrar quanto o modelo tradicional. Mais: como o                contara que Garacaius havia usado artifícios sobrenaturais
novo barco era muito mais estável que os modelos antigos,            para encher as redes. Que os dois discutiram. Que houve
podia-se usar vela mesmo em dias de vento mais forte. Não            briga. O fato é que Pesco, o velho pescador, completamente
demorou para que Pesco e Garacaius pudessem viajar para              embriagado, morreu afogado em um palmo de água. E
mais longe e alcançar áreas de pesca até então inacessíveis.         Garacaius, de repente, virou suspeito. A família de Pesco o
   Numa dessas viagens mais longas, afinal, Pesco contou a           acusou do crime, menos de um mês depois de tanto ter-lhe
Garacaius como o encontrou, ainda bebê, abandonado na                agradecido por haver mudado a sorte de todos.
floresta. Entretanto, não se sabe com certeza se falou, ou              Uma semana após a morte de Pesco, Garacaius carregou
não, sobre a bolsinha mágica. O que se sabe, sim, é que              seus poucos pertences e partiu com seu barco em direção
Pesco e Garacaius passaram a trazer cada vez mais peixe;             ao Oeste, rumo ao alto-mar. Os pescadores que
numa das viagens os dois pescaram mais peixe que todos               remendavam as redes na ponta do píer levantavam a
os outros pescadores da aldeia juntos.                               cabeça, de tempos em tempos, para ver afastar-se aquela
   Pela primeira vez em sua longa vida de labuta, Pesco              vela solitária. A vela foi ficando cada vez menor, até
tinha dinheiro para passar os fins de semana no bar da               transformar-se num pequeno ponto branco no mar
aldeia, bebendo como se cada garrafa fosse a última, como            dourado pelo crepúsculo e desaparecer.

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CRÔNICAS DE DARIEN



       A B OA S O RT E D O S M E RC A D O R E S                  Garacaius acrescentou-lhe uma grande vela quadrada. A
                    DE IRGIRON                                   estabilidade que o calado mais fundo dava ao barco –
A ilha de Irgiron, localizada bem no centro de Darien,           como explicou aos mercadores – permitia usar a vela em
sempre foi um importante centro comercial. Ao final do           praticamente todas as condições de tempo, mesmo em
Quinto Milênio, havia instalada em Irgiron uma dúzia de          tempestades. Além disso, havia muito mais lugar para
grandes casas comerciais, que praticamente controlavam           armazenar carga. Garacaius dizia que seu barco tinha
todo o comércio intercontinental de Darien.                      capacidade para transportar uma quantidade de
   O único fator que limitava o sucesso dos mercadores de        mercadorias equivalente à que meia dúzia de barcos
Irgiron eram seus barcos, de fundo chato, como quase             tradicionais comportava. E, com ele, a mercadoria sempre
todos naquele tempo, pesados e pouco ágeis. Resultado da         chegava ao destino.
péssima tecnologia naval de que dispunham, os                       Estava certo. Em poucos anos, a população de Irgiron
mercadores, na prática, acabavam perdendo no mar quase           duplicou. Novas fábricas surgiam, praticamente, a cada
a mesma quantidade de bens que conseguiam comerciar.             semana, e os mercadores de Irgiron engordavam e sentiam-
Não surpreende, portanto, que a chegada de um jovem que          se cada vez mais felizes.
dizia haver inventado um barco realmente adequado
àqueles mares tenha despertado muito interesse.                           A AS C E N S Ã O DE G A R AC A I U S

   Em pouco tempo, Garacaius conseguiu todo o patrocínio         Quanto a Garacaius, ele cuidara de estabelecer seus
e o apoio de que precisava para começar a construir um           próprios entrepostos de comércio nos principais portos
grande barco, capaz de enfrentar os oceanos. O novo barco        de Darien e, em pouco tempo, era um dos homens mais
ainda tinha remos – as naves de Darien sempre haviam             ricos do Reino. Estabeleceu seu centro de operações em
sido movidas pela força de braços humanos – mas                  Estoril, a maior cidade de Irgiron, e ali construiu uma

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DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



magnífica moradia. Essa casa abrigava, dizia-se, a maior           animais, e de gente ainda agarrada à vida, mesmo depois
biblioteca de Darien.                                              de seus olhos terem sido arrancados das órbitas e de sua
   Mas Garacaius não dava sinais de querer aproveitar os           carne, apodrecida, soltar-se dos ossos. Os homens também
frutos de tanto trabalho – com freqüência cada vez maior,          falavam de outros lugares – imensos círculos de pedra,
deixava os negócios entregues a empregados de confiança e          onde o chão brilhava com uma luz úmida e suave.
desaparecia durante meses, em expedições particulares.                Mas já no dia seguinte, se alguém lhes pedisse que
Explorou assim todos os mares de Darien, e dizia-se que            explicassem melhor o que haviam visto, que contassem
havia chegado até terras estranhas e muito distantes, bem          outras coisas, os homens balançavam a cabeça e calavam-
além de Darien. Também explorou o interior do território           se. Só havia uma coisa que nunca se cansavam de repetir e
e, numa dessas viagens, chegou à cidade perdida de                 diziam com alegria, a quem quer que perguntasse: que
Waleph, cujos habitantes viviam, há cinco mil anos,                Garacaius era um homem excepcional, em quem confiavam
separados de Darien.                                               plenamente, de corpo e alma. Mas bastava essa rara e
                                                                   estranha referência ao mundo espiritual para fazer
 AS E ST R A N H AS V I AG E N S DE G A R AC A I U S               estremecer os curiosos que, imediatamente, desistiam do
Os homens que acompanhavam Garacaius em suas                       interrogatório.
expedições eram de pouca conversa. Mas, vez ou outra,                 A mais longa das expedições de Garacaius, que o levou
quando o alívio por ter voltado os fazia relaxar e soltava-        ao coração de Zhon, estendeu-se por quase dois anos. Ao
lhes a língua, eles falavam de coisas extraordinárias.             voltar, sua tripulação ganhara mais um membro: uma bela
   Falavam de cidades-fantasmas, com ruas pavimentadas             mulher, cujos cabelos negros e pele muito morena faziam
e casas de pedra, onde só viviam pássaros e outros animais         forte contraste com a tez clara de Garacaius. Em tempos
selvagens. Falavam de seres estranhos, meio homens, meio           normais, bastaria a chegada de Lasha, aquela deusa

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CRÔNICAS DE DARIEN



morena, para gerar infindáveis comentários e despertar             Garacaius tentou manter-se neutro mas, naquelas
olhares curiosos. Mas as coisas haviam mudado muito                circunstâncias, a neutralidade era difícil, senão impossível.
entre a partida e a volta de Garacaius. Nada estava como           Um mês depois de ele ter voltado, um de seus entrepostos
antes. Darien inteiro havia sido tocado pela chama da              comerciais da ilha de Caora foi saqueado por soldados que
guerra.                                                            chegaram por mar e todos os habitantes da ilha foram
                                                                   assassinados a golpes de espada. Garacaius organizou um
   A G R A N D E G U E R R A C I V I L D E DA R I E N
                                                                   pequeno exército de voluntários para punir os saqueadores
Tudo começou em Taros, a terra que Garacaius deixara,              e, quase sem perceber, acabou envolvido em meia dúzia de
tantos anos antes, ao partir para tentar a sorte no mar.           confrontos armados contra diferentes facções.
Os clãs de Leimar e Balistan haviam passado por outro
                                                                      A Grande Guerra Civil de Darien durou oito anos.
período de conflitos mas, desta vez, a Casa de Ontinor
                                                                   Durante os primeiros cinco, a guerra não chegou a se
havia decidido intervir. Ontinor era ligada à Casa de
                                                                   disseminar: os confrontos não passavam de combates
Aidenfel, na terra de Aramon, e na confusão que se seguiu,
                                                                   rápidos, seguidos de curtos períodos de paz, novamente
a Casa de Buriash, também de Aramon, aproveitou para
                                                                   interrompidos por batalhas, quase sempre violentas e
invadir um território que há anos estava em disputa. Daí, a
                                                                   sangrentas.
guerra alastrou-se como fogo em campo seco.
  Um ano mais tarde, todos os clãs e todas as Casas                           O NASCIMENTO DE VERUNA

Nobres de Darien estavam envolvidas em algum tipo de               Ao final do quinto ano de guerra, porém, as coisas
hostilidade contra um ou vários inimigos. A rede de                mudaram. As várias facções independentes, muitas das
comunicações que Garacaius havia tecido com seus barcos            quais se reuniam em torno de Casas Nobres, clãs e tribos
serviu para disseminar a guerra por todos os portos.               de Darien, finalmente organizaram-se em quatro grandes

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DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



grupos. Três desses grupos estavam decididos a continuar            Garacaius, resistiam e derrotavam os atacantes com
em guerra até a morte. O quarto grupo – uma federação de            espantosa facilidade. No sexto ano da guerra, uma das
cidades-estado insulares – queria a paz imediata e pregava          Casas Nobres de Aramon, a Casa de Dernhest, declarou-se
que as diferenças fossem discutidas e resolvidas pela               aliada de Veruna e, ao final do ano, Garacaius já controlava
negociação. A atitude pacifista desse grupo não era                 todo o continente de Veruna. No ano seguinte, sétimo ano
surpreendente, pois as cidades localizadas nas ilhas                da guerra, Garacaius ocupou, no sul, a terra de Zhon. Mas,
constantemente eram obrigadas a se defender de ataques              à medida que se expandia o território controlado por
inimigos, uma vez que haviam sido apanhadas pelo fogo               Garacaius, cresciam também os rumores de que o líder das
cruzado em um campo de batalha global.                              Forças da Verdade vinha empregando recursos mágicos
   Ninguém tampouco se surpreendeu quando Garacaius                 para derrotar seus inimigos.
foi eleito líder da federação das ilhas. Afinal, há anos que           No oitavo ano da guerra, Garacaius invadiu Taros. Seus
ele operava nas ilhas, nelas construíra sua base e os ilhéus        soldados desembarcaram na praia, a menos de um
tinham profundo respeito por ele. Surpresa para todos,              quilômetro de distância da aldeia de pescadores onde ele
sim, foi o nome escolhido para batizar a federação das              vivera. Encontraram-na deserta: com medo de serem
ilhas: Veruna, uma antiqüíssima palavra, do kandriano               massacrados, os habitantes haviam fugido antes da
clássico, que significava “profundo respeito à verdade” .           invasão. Na mesma noite, horas depois do desembarque,
                                                                    Garacaius sentia-se muito triste e andava, pensativo, pelo
         O S T R I U N F O S DE G A R AC A I U S
                                                                    acampamento dos soldados, de olhos perdidos, vendo o sol
Em pouco tempo, ficou evidente que o vínculo entre os               se pôr no horizonte, para além das casas vazias e ruelas
kandrianos era bem mais profundo que o nome que                     desertas.
adotaram. As forças de Veruna, sob o comando de

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CRÔNICAS DE DARIEN



        O R E A PA R E C I M E N T O D A M A G I A                    Por sorte, já na primeira tentativa, os pobres magos
É possível que, naquele momento, Garacaius estivesse                  conseguiram cegar um destacamento avançado de
prevendo o que viria. A campanha de Taros foi a mais                  cavalaria que sondava a estrada de acesso a Elam, capital
selvagem e violenta de toda a guerra. As Casas Nobres de              de Taros.
Taros deixaram de lado as lutas internas e uniram-se para                Os historiadores são unânimes ao afirmar que Garacaius
enfrentar o invasor. Mas, com número menor de soldados,               quase enlouqueceu de fúria ao receber a notícia. Ordenou
os nobres de Taros logo perceberam que não teriam como                avanço imediato sobre Elam, em marcha forçada, e exigiu
resistir e, desesperados, recorreram à antiga e eterna arma           rendição completa e incondicional dos exércitos que
secreta dos kandrianos: magia.                                        defendiam a cidade. A resposta demorou. Quando já era
   Sempre houve, em Taros, um número maior de magos do                evidente que Taros não se renderia, Garacaius voltou à sua
que no restante do território. Para alguns, isto se explicaria        tenda e de lá saiu usando um anel que ninguém jamais
pela existência de muitos vulcões ativos na cordilheira de            vira. Andou para a linha de frente de suas tropas, ergueu os
Kaf – a espinha dorsal do continente. Nas celas do Palácio            braços e, aos gritos, pronunciou algumas palavras numa
da Justiça, em Elam, sempre havia meia dúzia de                       língua estranha. Depois, ajoelhou-se e baixou a cabeça.
desgraçados, condenados por prática de magia ou algum                 Como um só homem, todo o seu exército de 50 mil
tipo de interesse mórbido nas artes mágicas. Naquele                  soldados fez o mesmo.
momento, com os exércitos de Garacaius em rápido avanço                  Contam as testemunhas que um estranho nevoeiro,
sobre o continente, aqueles patéticos aprendizes de magos             escuro e denso, desceu sobre Elam e fez calar os gritos e
foram arrancados das masmorras e convocados a salvar o                insultos dos soldados que defendiam as muralhas da
exército de Taros do que parecia ser uma derrota inevitável.          cidade. Fez-se um longo silêncio, de espanto e terror, e a


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DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



neblina começou a se dissipar. Um momento depois,                   Garacaius imediatamente cuidou de reformar sua
Garacaius levantou-se e, com seu exército, avançou sobre as         magnífica casa, ainda em bom estado, e transformou-a
muralhas e entrou na cidade. Não havia ninguém. A                   num verdadeiro palácio.
população inteira havia desaparecido, sumido no ar.                    No dia em que oficialmente assumiu o poder, Garacaius
   Nunca, antes, houve exército de ocupação mais atônito e          discursou para os nobres de Darien, reunidos na
silencioso. Ninguém ousava falar, e os soldados mal                 assembléia do novo parlamento. Nesse histórico discurso,
conseguiam acreditar no que viam: Garacaius era um mago             revelou que, ao longo de muitos anos, havia trabalhado
com grandes poderes, tão grandes quanto os mais terríveis           para recuperar o saber mágico dos kandrianos e que, em
poderes dos infames e malditos Magos de Kandra.                     suas expedições, conseguira recuperar as Cinco Relíquias, o
                                                                    grande legado desse povo. No mesmo discurso – que a
  O N OVO I M P E R A D O R- M AG O D E DA R I E N
                                                                    história registra como o Juramento de Darien – Garacaius
Consumada a vitória, não havia como duvidar de que                  jurou jamais fazer mau uso do saber mágico que tinha
Darien estava outra vez unificado. Quanto a quem seria o            conquistado. Só lançaria mão da magia como último
novo Imperador, só havia um possível candidato:                     recurso e se estivesse de acordo com a vontade de seu povo.
Garacaius.                                                          Jurou também jamais, em nenhum caso, quaisquer que
   Garacaius movimentou-se com cautela. Começou por                 fossem as circunstâncias, usar seus saberes mágicos em
estabelecer a nova capital de Darien na cidade de Estoril,          benefício próprio.
na ilha de Irgiron, sua terra e seu lar durante tanto tempo.
                                                                              O R E I NA D O DE G A R AC A I U S
Em parte a escolha deve ter sido motivada por afeto que
nutrira por aquela região onde havia começado sua                   Nos anos seguintes, Garacaius manteve a palavra. O novo
fortuna. Mas também foi uma brilhante escolha estratégica.          Império enfrentou sérias dificuldades.Vez ou outra houve

                                                               I2 3 i
CRÔNICAS DE DARIEN



ameaças de guerra interna, pois os derrotados na Grande             dedicar-se um pouco mais à família, o que parecia fazer-lhe
Guerra Civil se rebelaram. Mas jamais, em momento                   muito bem. Garacaius sempre foi um homem muito ativo,
algum, o Imperador lançou mão de seus poderes                       cuja fisionomia deixava transparecer a tensão em que sua
extraordinários. As discussões seguiram o curso normal, as          alma se debatia. Mas, afinal, na maturidade, parecia
disputas acabaram resolvidas pelos meios tradicionais, sem          relaxado, calmo e quase feliz.
intervenção de qualquer força sobrenatural. Houve mesmo
                                                                                  A T R Á G I C A M O RT E DA
quem começasse a murmurar que seria mil vezes melhor
                                                                                   I M P E R AT R I Z L A S H A
usar alguma magia temporária para vencer os adversários
do que matá-los com o aço frio das espadas.                         A tragédia atingiu a família real como sempre: de repente.
   Os primeiros cinco anos do reinado de Garacaius também           Certo dia, Garacaius levou a família para um passeio no
foram marcados por eventos de caráter privado. O Primeiro           primeiro barco que construiu, aquele que revolucionou a
Imperador-Mago (título que, diziam alguns, Garacaius                engenharia náutica de Darien. Não parecia haver qualquer
detestava e só adotara porque era expressão da vontade da           perigo, e o Imperador não planejava aventurar-se em alto-
população, assustada, mas também muito grata) uniu-se               mar. O dia estava lindo, ensolarado, sem vento. Mas, no
oficialmente a Lasha – a beldade morena que o acompanhava           mar, o tempo pode mudar repentinamente; afinal, Estoril,
desde a expedição à terra de Zhon. Dessa união nasceram             na ilha de Irgiron, estava localizada no centro de um
quatro filhos muito belos: um menino e uma menina                   grande oceano.
morenos como a mãe e um casal louro como o pai.                       O furacão atingiu o porto como o bote de uma serpente.
   Quando seus filhos aproximavam-se da idade adulta,               Num instante, o mar ondulava como um lago; no outro,
Garacaius já havia pacificado todo o Reino: Darien era um           encrespava-se em ondas encapeladas e ameaçadoras, e o
território de paz e prosperidade. O Imperador podia, afinal,        vento uivava. As crianças entraram em pânico. O barco

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DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



virou. Excelente nadador, Garacaius conseguiu salvar os           acumular. Em todo o Darien, reabriam-se velhas feridas,
quatro filhos, mas Lasha, sua amada Imperatriz, afogou-se.        surgiam novas. Garacaius permanecia distante e
Assim como surgira, o furacão desapareceu rapidamente,            indiferente: mal atendia os emissários, que não paravam de
mas nada, nunca mais, seria como antes. Garacaius poderia         chegar, dispensava-os com um aceno de mão e voltava,
ter salvo a Imperatriz se lançasse mão de seus poderes            calado, ao seu inferno particular.
mágicos. É possível até que tenha pensado nisso, mas                 Por fim, reuniu-se, em Estoril, uma assembléia de
vacilou, temeroso de quebrar seu juramento solene.                representantes das várias tribos e Casas Nobres de Darien.
Quando afinal decidiu-se, já era tarde demais.                    Discutiram durante um dia inteiro e, afinal, decidiram
  Naquela manhã, ao ver a família embarcar em seu velho           apresentar um ultimato a Garacaius: que voltasse a
barco, Garacaius era um homem no esplendor da                     governar ou abdicasse em favor de um de seus filhos.
maturidade e, graças às Relíquias que conservava muito            Parecia justo, e os nobres esperavam que o Imperador não
bem guardadas, podia contar ainda com muitos anos de              se enfurecesse – quem se arriscaria a desafiar a ira de um
saúde e prosperidade. Na mesma noite, o Imperador era             mago desesperado? Se o sucessor de Garacaius fosse um
                                                                  bom Imperador, ótimo. Se não, ele – ou ela – poderia ser
um velho, alquebrado e amargurado. E, à medida que os
                                                                  manipulado.
dias passavam, mais ele se deixava afundar no desespero e
na dor, atormentado pela própria consciência.                        Garacaius optou por uma solução intermediária: não
                                                                  abdicaria mas, na prática, o Império passaria a ser
     O DE C L Í N IO D O I M PE R A D OR- M AG O                  controlado pelos quatro príncipes. Dividiu o território em
O tempo passou, mas não cicatrizou as feridas. O grande           quatro partes e entregou cada uma delas a um de seus
Imperador-Mago parecia cada dia menos interessado no              filhos, consideradas suas características particulares: às
destino do Império. Os problemas começaram a se                   princesas entregou os territórios que mais bem se

                                                             I2 5 i
CRÔNICAS DE DARIEN



adaptavam aos seus temperamentos; aos príncipes, aqueles            famosa Academia de Engenharia e Projetos de Aramon, em
que estavam de acordo com suas habilidades. Cada jovem             Kaluen, nova capital provincial. Para confirmar e assegurar
rei recebeu também uma das Cinco Relíquias. De posse das           sua ascendência e seu poder, coube a Elsin, dentre as Cinco
Relíquias, os jovens sempre teriam como se proteger das            Relíquias, o colar de mogrito chamado Rocha de Darien.
intrigas palacianas e gozariam de mais poder do que                  Na linha de sucessão de Garacaius estava, a seguir, a
qualquer eventual aspirante ao trono.                              princesa Thirsha, morena como a mãe e muito parecida
             A S Q UAT R O C O R OA Ç Õ E S
                                                                   com ela. Thirsha amava a terra natal da Imperatriz, a terra
                                                                   de Zhon, em cujas selvas fechadas e perigosas se
O primogênito, Elsin, o Louro era conhecido por seu
                                                                   embrenhava para caçar, semanas a fio, acompanhada
caráter franco e aberto e por ser muito justo. Era honrado,
                                                                   apenas por um servo.
muito prático, muito objetivo, mas não era considerado
                                                                      Garacaius entregou a Thirsha o seu bem-amado Zhon, o
excepcionalmente inteligente. Dizia-se que só pensava em
                                                                   continente mais selvagem e menos explorado de Darien.
fazer justiça, que não via nada além da justiça. Havia,
                                                                   Com o território, Thirsha recebeu o bracelete de mogrito
contudo, uma área na qual Elsin, o Louro era insuperável –
                                                                   chamado Alma de Kandra. Fazia pleno sentido, pois as
a ciência da engenharia, com suas leis e regras muito
                                                                   florestas de Zhon escondiam muitas ruínas misteriosas do
claras, precisas, incontestáveis.
                                                                   período anterior ao Grande Cataclismo. Como no caso de
   A Elsin, o Louro Garacaius entregou a terra de Aramon,
                                                                   Elsin, que recebeu Aramon, a entrega de Zhon a Thirsha
talvez o melhor dos quatro territórios em que o Império foi
                                                                   mostrou-se perfeita. Em pouco tempo, a nova rainha
dividido. Aramon já era o continente mais desenvolvido de
                                                                   controlava as tribos semicivilizadas de seu continente.
Darien, e Elsin rapidamente o fez progredir muito mais:
                                                                   Entre as tribos, ficou conhecida como Thirsha, a Caçadora.
fundou cidades, construiu estradas e pontes e fundou a

                                                              I2 6 i
DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



   O príncipe Lokken, o terceiro filho de Garacaius, foi         com o pai. Entre as muitas semelhanças, os dois eram
criado como uma das grandes esperanças do Reino. Mas             apaixonados pelo mar, um amor que, no caso de Kirenna,
depois da morte da mãe, tudo o que antes era brilho e            sobreviveu à morte da mãe. Logo que teve idade para viajar
inteligência transformou-se em ressentimento e amargura.         sozinha, Kirenna engajou-se em várias expedições que
Garacaius amava-o ternamente, provavelmente mais do              partiam de Estoril e conheceu todo o Império de seu pai.
que a Elsin. Ele acreditava que mentes inquietas precisam        Os companheiros de viagem logo passaram a chamá-la de
de estímulo apropriado, ou correm o risco de desvanecer.         Maga do Mar, porque ela sabia, como ninguém, prever as
Por isso, decidiu ocupar a mente de Lokken.                      mudanças dos ventos e do tempo e era capaz de conduzir
   Lokken recebeu Taros. O antigo continente era habitado        qualquer barco, em segurança, no mais denso nevoeiro.
por algumas tribos rivais dos kandrianos e vivia em                 A Kirenna coube o domínio de Veruna e o anel com a
conflito. As quatro Casas Nobres de Taros eram separadas         pedra de mogrito chamado Lágrima de Macha. Uma de
por disputas que se arrastavam há anos, e o território           suas primeiras providências foi abolir todos os impostos
estava devastado por infindáveis combates. Junto com a           internos e dobrar o salário pago aos marinheiros mais
terra, Lokken recebeu o cetro com o mogrito chamado              experientes. Os ilhéus da federação de Veruna tinham,
Chama de Angvir. Também nesse caso, a decisão de                 afinal, uma governante que sabia, instintivamente, do que
Garacaius mostrou-se sábia: em um ano, Lokken                    eles eram capazes: em pouco tempo, Veruna detinha o
estabeleceu a paz, que muitos acreditavam ser impossível.        monopólio de todo o comércio marítimo.
Para tanto, usou uma eficiente combinação de diplomacia,           A Garacaius coube, nos primeiro anos, a tarefa de
violência e magia.                                               supervisionar o trabalho dos filhos. Mas ele era uma figura
  A filha caçula, Kirenna, era de todos a mais parecida          miserável e soturna que vagava pelo palácio de Estoril, um

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CRÔNICAS DE DARIEN



velho triste, sentado no Trono de Ludd, a quinta das                 O dia da festa raiou, numa aurora colorida. O palácio de
Relíquias, esculpida em rocha-negra. Embora o Olho de              Estoril brilhava. As pedras brancas do chão pareciam
Modron – fragmento de mogrito incrustado no trono – lhe            tocadas pelo pincel de um mestre que as recobria de tons
garantisse saúde e vitalidade, o pobre Garacaius envelhecia        suaves, quando Gudnor, criado que acompanhava
dia a dia. Falava pouco e respondia com um olhar                   Garacaius nos últimos 40 anos, resolveu sair à procura do
infinitamente triste a todos que o procuravam em busca de          seu mestre. Começou pelos quartos do palácio. Estava
conselhos.                                                         decidido a convencê-lo a se preparar para as festividades.
                                                                   Por menos que Garacaius quisesse, era importante que se
                O FIM DE UMA ERA
                                                                   apresentasse bem.
Os anos passaram. No palácio de Estoril, preparavam-se as
                                                                      O Imperador não estava em seu quarto nem havia sinal
grandes festas comemorativas dos dez anos das Quatro
                                                                   de que houvesse dormido em sua cama. Ao aproximar-se da
Coroações, com inúmeras atrações: um desfile marítimo
                                                                   Sala do Trono, depois de muito procurar, Gudnor já
das mais belas naves da armada de Veruna; a inauguração
                                                                   começava a dar sinais de extrema preocupação. Que idéia...
da Grande Feira de Darien, na qual seriam exibidas as mais
                                                                   passar outra noite em claro, sentado em seu trono,
modernas máquinas criadas pela Academia de Engenharia
                                                                   justamente na véspera de um dia tão importante. Na manhã
de Aramon; a inauguração de uma galeria – Maravilhas de
                                                                   seguinte às noites em que não dormia, o Imperador parecia
Zhon – onde todos poderiam conhecer as preciosidades do
                                                                   ainda mais velho e alquebrado. Gudnor apertou na mão a
artesanato e da produção artística dessa terra exótica. À
                                                                   caixinha de pomada que Kirenna lhe entregara e entrou na
noite, esperava-se com ansiedade a exibição dos Comedores
                                                                   Sala do Trono. E o palácio estremeceu, primeiro com os seus
de Fogo de Taros, grupo de artistas especializado na
                                                                   gritos, em seguida com os seus soluços desesperados.
manipulação do fogo, nas mais incríveis situações.

                                                              I2 8 i
DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



Por que Garacaius não estava lá? Não havia ninguém
sentado no Trono de Ludd. E no espaldar, no lugar onde
devia estar, como sempre estivera, o Olho de Modron, havia
um buraco vazio.




                                                             I2 9 i
CRÔNICAS DE DARIEN




                                        O s Q u a t ro Re i n o s
   O D E S A PA R E C I M E N T O D E G A R A C A I U S O C O R R E U H Á 1 5 2 7 A N O S . S E U S
     F I L H O S , I M O RTA I S P O R P O S S U Í R E M A S R E L Í Q U I A S , C O N T I N UA M A
                            G OV E R NA R S E U S R E S P E C T I VO S R E I N O S .



Mais uma vez, estamos às vésperas de grandes mudanças.              Os Quatro Reinos já lutaram entre si mas, a certa altura,
  Nos últimos dois séculos, as diferenças entre os quatro         começou a surgir uma grande divisão entre os Reinos do
monarcas se acentuaram cada vez mais. O surgimento de             Oeste e do Leste.
quatro diferentes “religiões de Estado” é uma evidência de           Mesmo depois do desaparecimento de Garacaius, os
que a unidade de Darien já é passado e dificilmente poderá        Reinos de Aramon e Veruna mantiveram-se leais ao
ser restituída. Em Darien, havia uma só religião. De              juramento de Garacaius e renunciaram às práticas
repente, os cidadãos de Aramon passaram a exibir anéis de         mágicas, exceto em casos de extrema necessidade. Os dois
prata com a Mão de Anu, o Senhor da Luz. O povo de Taros          monarcas, para construir Reinos poderosos, usaram
cultua uma terrível entidade noturna chamada Belial. Em           recursos econômicos: Aramon cuidou da indústria e do
Zhon, cultua-se Tammuz, a Deusa da Caça. Em Veruna,               desenvolvimento interno; Veruna é uma potência do
pratica-se o culto a Lihr, uma poderosa divindade marinha.        comércio intercontinental. Elsin, governante de Aramon, e


                                                             I3 0 i
DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN



a Maga do Mar de Veruna, Kirenna, não têm dúvidas de               magia. Orgulhosa e independente, a Caçadora reagiu com
que a lei de seu pai tem de ser obedecida para que não             escárnio às exigências de Elsin e Kirenna. Não reconhece o
haja guerra.                                                       direito de ninguém dizer-lhe onde e quando usar seus
   No Leste, Taros rebelou-se contra a lei de Garacaius.           encantamentos e apóia abertamente o direito de Lokken
Lokken já usara recursos mágicos desde os primeiros                fazer, em seu Reino, o que bem entender.
tempos, quando teve de subjugar, pelo terror, as Casas                Nos séculos precedentes, as diferenças entre os irmãos
Nobres de Taros, que se recusaram a aceitá-lo. Fascinado           monarcas já haviam levado à guerra várias vezes. Aramon
pela facilidade com que venceu os primeiros combates,              enfrentou Veruna nos pântanos de Kuvera, no noroeste, e
Lokken jamais deixou de recorrer à magia e chegou a                em várias ilhas do Mar de Mannan. Os piratas de Zhon
remodelar a natureza de seu Reino, o que teve                      atacam os barcos de Veruna e massacram tripulações
conseqüências que ele, de modo algum, poderia ter                  inteiras. As tribos de Zhon assaltam as ricas costas de
previsto. Pelas antigas Leis Kandrianas da Vida, aquele que        Aramon, cujo monarca, em retaliação, envia expedições
manipula o Mana é como um nadador que cruza um rio                 que invadem o território de Zhon. Um ódio implacável
caudaloso. É possível tirar vantagem de suas águas se se           separa os Reinos de Taros e Aramon, que várias vezes
nadar a favor da corrente. Mas quem tentar domar o rio, ou         envolveram-se em guerras sangrentas, motivadas sempre
nadar contra a corrente encontrará a tragédia. Lokken              por diferenças ideológicas.
afirma que tudo está correndo como planejado, mas as                 Cada um dos monarcas tem muitas restrições contra os
coisas não parecem bem.                                            demais, e o Império está a ponto de explodir. Os monarcas
  Ao sul de Taros, no coração das selvas de Zhon, a                reúnem seus soldados e se preparam para uma guerra
Caçadora Thirsha também recorre freqüentemente à                   iminente.


                                                              I3 1 i

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  • 1. D o i s : C R Ô N I CA S D E DA R I E N E M T E M P O S I M E MOR I A I S , H Á M I L Ê N IO S , O M U N D O DE DA R I E N ERA UM SÓ: O REINO DE KANDRA. O ANTIGO REINO DE KANDRA OS PODERES MÁGICOS DOS KANDRIANOS Os kandrianos eram tão antigos quanto o próprio Reino. Os kandrianos eram mestres da arte da magia – todos eles, Seu código de leis rígidas mas benevolentes imperava em mesmo os mais simplórios, eram capazes de transformar todo o território, até nos pontos mais remotos. Era água em cerveja e sabiam como acabar com verrugas, até diferente de todos os códigos conhecidos, pois não as mais feias. Acreditava-se que, juntos, os Five Wizards of dependia, para ser aplicado e seguido, nem de uma Kandra (Cinco Magos de Kandra) tinham poder suficiente burocracia gigantesca nem de redes de espionagem nem de para destruir todo o universo. E acreditava-se também que, guarnições armadas espalhadas por todas as vilas e pelo menos em parte, esse poder brotava de um objeto cidades. O poder do Reino de Kandra emanava do controle secreto, muito bem guardado, conhecido como Heart of que os kandrianos tinham sobre o Mana, as forças Thesh (Coração de Thesh). Dizia-se que quem possuísse o mágicas. Coração de Thesh disporia de uma força descomunal e I8 i
  • 2. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN devastadora, contra a qual não havia defesa ou proteção trabalhavam com concentrações muito grandes de Mana, possíveis. gerava-se um mineral muito raro, conhecido como Felizmente, os Cinco Magos de Kandra eram, além de mogrito, substância que dava poderes mágicos aos seres poderosos, muito sábios. Embora soubessem, humanos – mesmo aos mais humildes – e os tornava simultaneamente, de cada vez que seu código – chamado imortais. Laws of Life (Leis da Vida) – era desrespeitado e, embora todas as infrações fossem punidas, os magos jamais AS CINCO RELÍQUIAS abusavam de seu poder e posição, pois sabiam que Não demorou muito para que os kandrianos percebessem qualquer abuso que violasse as leis naturais inerentes à o valor do mogrito. As cinco rochas de mogrito manipulação do Mana levaria ao desastre e à tragédia. encontradas foram reunidas, trabalhadas e transformadas Assim, se seu imenso poder provocava neles algum prazer em cinco peças – conhecidas como as Cinco Relíquias: um pessoal ou era motivo de alegria, esses sentimentos eram colar, um bracelete, um cetro, um anel e... um trono. logo ofuscados pela consciência de sua enorme Cada uma dessas Relíquias simbolizava um dos quatro responsabilidade. elementos – terra, água, ar e fogo. A quinta Relíquia era Os magos de Kandra praticavam suas artes mágicas em tida como um amálgama desses quatro elementos e lugares especiais, sagrados, que acentuavam o poder da formava uma única entidade: o mundo. Assim, o colar com magia. Esses locais, demarcados por um círculo de pedras a pedra de mogrito – chamado Stone of Darien (Rocha de em pé, continham provavelmente extraordinárias Darien) – simbolizava a terra; o bracelete com outra pedra concentrações de Mana. O que se sabe, sem sombra de – chamado Soul of Kandra (Alma de Kandra) – simbolizava dúvida, é que até hoje as propriedades mágicas desses o ar. O cetro, encimado com a pedra chamada Angvir’s locais mantêm-se intactas. Às vezes, quando os magos Flame (Chama de Angvir), simbolizava o fogo; e o anel, I99 i i
  • 3. CRÔNICAS DE DARIEN cuja pedra era um fragmento pequeno mas incrivelmente uma pedra de mogrito, cada um recebia muito mais do que puro de mogrito, chamado Macha’s Tear (Lágrima de poderes mágicos. O mogrito lhes dava outras coisas: Masha), simbolizava a água. ficaram imunes a todas as doenças, seus ferimentos A maior das Relíquias de mogrito, símbolo da cicatrizavam em instantes e tinham vida bem mais longa. indivisibilidade do mundo, ficou conhecida como Modron’s Os magos descobriram que as pedras de mogrito Eye (Olho de Modron). A pedra de mogrito foi incrustada incrustadas nas Cinco Relíquias aumentavam muito os no espaldar do Throne of Ludd (Trono de Ludd) – seus poderes. O Olho de Modron, em particular, tornava imponente peça esculpida em rocha-negra, abundante em seu proprietário – ou guardião – praticamente imortal. Darien e resistente como aço. Ora, o princípio de unidade, que mantinha coesos os Cinco As Cinco Relíquias ficaram sob a guarda dos Cinco Magos era, precisamente, a absoluta igualdade entre eles. Magos de Kandra. Durante um ano, cada um dos magos era Ao descobrirem os poderes mágicos das Relíquias, os responsável por uma das Relíquias. Ao final do ano, os magos também descobriram que o guardião do trono no magos trocavam as Relíquias entre eles, prática que foi qual estava incrustado o Olho de Modron teria, no período adotada para que todos tivessem sempre em mente que em que a Relíquia estivesse sob sua guarda, mais poder que não eram proprietários, mas meros guardiães, das Relíquias. os demais. Como se não bastasse isso, nem todos os kandrianos O D E C L Í N I O DA C I V I L I Z A Ç Ã O K A N D R I A NA estavam satisfeitos com a extraordinária longevidade dos Os kandrianos imaginavam que, sob a guarda dos magos, magos. O ressentimento cresceu lenta mas continuamente. as Relíquias estariam bem resguardadas e protegidas para De modo geral, os kandrianos tinham vida longa – um sempre. Infelizmente, porém, eles estavam enganados! kandriano comum tinha uma expectativa de vida de bem Com o tempo, os magos se deram conta de que, com mais de 100 anos. Mas passadas duas gerações de I1 0 i
  • 4. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN kandrianos, sempre com os mesmos Cinco Magos a poder. Àquela altura, cada um já tinha uma Relíquia governar o Reino, o mal-estar estabeleceu-se e começaram preferida – ou ambicionada – e, de todas, a mais cobiçada as indagações. era o trono com o Olho de Modron. Os cinco candidatos à sucessão dos magos interrogavam A catástrofe final eclodiu de repente, sem aviso. Não há quase abertamente os velhos regentes. O treinamento dos documentos nem registros precisos sobre a causa direta do candidatos, escolhidos dentre os kandrianos mais trágico colapso do Reino de Kandra. Teria um dos magos talentosos, demorava 36 anos. Era um treino duro, nas forçado um golpe de Estado, na luta pelo poder absoluto? Ou condições de isolamento quase absoluto em que viviam os um dos eternos candidatos, frustrado com a longa espera, magos. Um grupo de candidatos sucumbiu, sem jamais ter teria aplicado seus conhecimentos em alguma atividade colocado em prática os conhecimentos tão duramente menos nobre, ou mesmo proibida? aprendidos. Os candidatos à sucessão dos magos, aliás, Ninguém sabe e ninguém jamais saberá. protestavam cada vez com mais veemência, muitas vezes em público, e isso era um escândalo sem precedentes na O D I A D O G R A N D E C ATA C L I S M O história de Kandra. A única prova que resta e que chegou até nós informa que 427 anos – precisamente! – depois de as Relíquias terem A Q U E DA D E K A N D R A sido postas sob a guarda dos Cinco Magos, Darien foi Nos bons tempos, os Cinco Magos saberiam atingida por um golpe fatal. Desastre! As leis naturais, de instantaneamente que seu povo não estava satisfeito. Teriam um momento para outro, deixaram de prevalecer. Nas corrigido os erros, punido os culpados – caso houvesse – e fazendas, os animais incharam e explodiram, como se o tudo, em pouco tempo, teria voltado ao normal. Mas os sangue em suas veias, repentinamente, se tornasse gasoso. magos, então, já estavam mais e mais envolvidos na luta pelo I1 1 i
  • 5. CRÔNICAS DE DARIEN Homens e mulheres morreram numa espécie de ao cataclismo. Não sabiam por que nem como haviam sido autoflagelação, com os corpos contorcidos e os ossos poupadas, mas também não se atreveram a investigar. partidos, dobrados por alguma força inexplicável, olhos Imediatamente após a desgraça, Darien foi abençoado por esgazeados, rostos desfigurados, crânios rebentados como um período de bom tempo e bem-aventurança frutos apodrecidos. Na capital de Kandra, as árvores que inacreditáveis, que durou quase um século. Da terra margeavam as grandes avenidas retorceram-se e se brotaram novas fontes de água cristalina; onde havia racharam de alto a baixo, cuspindo uma seiva de visgo, desertos surgiram campos recobertos de grama verdejante vapor e mau cheiro. Os mares e os lagos ferveram, os rios e macia; os pássaros voltaram a cantar e a fazer ninhos nas secaram e sumiram em desfiladeiros profundos. As árvores, outra vez cobertas de brotos. montanhas ruíram e desapareceram na forma de planícies Foi como se a natureza houvesse decidido acalantar o de pedra e pó. Por fim, até o chão gemeu, um gemido de mundo e curá-lo de todos os males. Aos poucos, os infelizes morte e horror, e toda a terra de Darien foi sacudida por sobreviventes da catástrofe reuniram-se novamente em clãs um terrível terremoto. e tribos. Mas, por mais distantes que vivessem uns dos O horror foi absoluto, mas breve: alguns instantes... e o outros, mesmo que uns sequer soubessem da existência silêncio voltou a envolver o mundo torturado de Darien. dos demais, em todos esses pequenos núcleos de E do céu caiu uma chuva de sangue, por três noites e civilização havia uma única crença, e todos partilhavam a três dias. mesma postura: o mais profundo e absoluto horror por tudo que lembrasse o tempo em que o mundo fora O R E NA S C I M E N TO D E DA R I E N dominado pelas artes mágicas. Qualquer palavra ou gesto Por incrível que pareça, alguns resistiram e sobreviveram a que fizesse lembrar o ‘tempo mágico’ da história de Kandra tudo – pobres testemunhas, enlouquecidas, que assistiram era punido com extrema severidade. I1 2 i
  • 6. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN Perdeu-se, assim, o enorme patrimônio de conhecimento progresso voltou e muitas áreas de conhecimento voltaram mágico que os kandrianos haviam acumulado. E, à medida a ser exploradas, de tal modo que, em relativamente pouco que os casebres formavam vilas, e as vilas viravam cidades, tempo, os fragmentos de saber de cada grupo de os kandrianos desenvolveram uma nova fé: a certeza de kandrianos tornaram-se acessíveis a toda a população. que tudo estava absolutamente perfeito. Se uma coisa era Uma área do saber, contudo, permaneceu intocada, de um certo jeito, aquele era o modo como ela tinha de ser, evidentemente aquela que mais preocupava a todos: a indiscutivelmente, para sempre. magia kandriana. Para os criadores da nova civilização de Darien, a magia era como uma Caixa de Pandora que O N OVO DA R I E N aniquilaria quantos se atrevessem a usá-la. O renascimento de Darien durou milhares de anos. As Naquela época, não eram necessárias leis que proibissem novas tribos que se formaram adotaram um novo atividades relacionadas à magia. Para a maioria da calendário, que começava no dia do Grande Cataclismo, população do novo Darien, admitir qualquer tipo de tomado como Dia Um. Por isso, sabemos hoje que Darien interesse nas artes mágicas seria tão absurdo quanto, entre recomeçou a cultivar a terra no final do Primeiro Milênio; nós, admitir algum tipo de interesse em, por exemplo, que no início do Segundo Milênio a flora e a fauna assassinatos em série. Tudo parecia resolvido. ganharam uma grande diversidade de novas espécies; e Até que surgiu Garacaius. que, ao final do Terceiro Milênio, já haviam desaparecido quase todas as cicatrizes deixadas no solo de Darien, O M E N I N O DA F L O R E S TA novamente recoberto de campos e florestas. Na metade do Era um dia especial: o último dia do Quarto Milênio. Pesco, Quarto Milênio, quase todas as tribos que habitavam o um pescador, conduzia seu barco junto à praia, numa costa território de Darien já haviam restabelecido contato. O de vegetação fechada. Não era tarefa simples, porque um I1 3 i
  • 7. CRÔNICAS DE DARIEN denso nevoeiro descera sobre a água, e Pesco tinha de vira árvore como aquela. O bebê tornou a chorar e Pesco foi desviar dos troncos que boiavam e, também, evitar os tomado pela sensação de que algo estava para acontecer. juncos que brotavam junto à praia, na água mais rasa. Ele Assustado, nem sentia a água escorrendo do chapéu e tinha pressa porque a noite prometia muita festa para molhando seu rosto. O ar estava parado. Impulsionado por comemorar a chegada do Novo Milênio, e a pressa foi a sua uma força incontrolável, o braço de Pesco agarrou um dos perdição. O fundo do barco, de repente, bateu num tronco galhos da árvore. Momentos depois, o pescador caminhava parcialmente submerso, o barco saltou como um cavalo em meio ao musgo e à grama, ferindo seus pés nos assustado e Pesco caiu na água. espinhos espalhados pelo chão. Por sorte estava no raso, a água mal chegava à cintura, o O bebê estava à sua frente. Quase tropeçou nele, ao passar que não o impediu de vociferar alguns palavrões. Depois de entre os ramos de um arbusto seco. Estava no centro de uma tirar o excesso de água do chapéu, colocou-o de volta sobre pequena clareira, completamente nu, com uma bolsinha de a careca e olhou em volta. A primeira coisa que percebeu couro amarrada ao pé. foi que os peixes estavam de volta à água, festejando a Com uma habilidade que ninguém esperaria daqueles inesperada liberdade. Pescara os peixes e os deixara vivos dedos calosos, Pesco desatou as tiras de couro e olhou o porque era um homem bom, mas eles escaparam.“Eu conteúdo da pequena bolsa. E soltou-a, apavorado, com a devia ter...” – ia recomeçar com os palavrões e os berros, expressão de quem vira o rosto da morte. Num gesto rápido, quando ouviu... um choro de bebê! De olhos arregalados, jogou a bolsinha na direção da floresta, com toda a força, o tentava enxergar através da névoa. E ouviu outra vez: havia mais longe que pôde.Aquelas sementinhas claras, macias... um bebê por ali! aquilo era coisa de mágicos... só podia ser! O bebê tinha um Deu alguns passos na água e aproximou-se, intrigado, de saco de sementes mágicas amarrado ao pé! uma árvore retorcida que avançava sobre a praia; nunca Pesco, ofegante, olhou em volta, à procura de algo que I1 4 i
  • 8. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN pudesse usar como arma, um galho ou uma pedra. Pegou O HUMILDE PESCADOR um pedaço de madeira, respirou fundo para criar coragem Há registros de que no quinto dia do sexto mês do décimo e aproximou-se do bebê. sexto ano do Quinto Milênio, um jovem chamado Um bebê! Um menino... Pesco tinha nove filhos e mesmo Garacaius foi aprovado no exame final da Academia Ugarit se aquela criança não trouxesse a marca do demônio, ele e saiu da famosa instituição de ensino seguido por uma não teria como alimentar mais uma boca. Mas... e se nuvem negra. achasse alguém para criá-lo? Não... que idéia! E a bolsa Antes da formatura, cada aluno tinha de apresentar um com as sementes mágicas?! ensaio sobre um tema extracurricular, de sua livre escolha. Ele ergueu o pedaço de madeira, aproximou-se do O assunto, de fato, não era importante – o que interessava bebê... mas parou. aos professores era avaliar a capacidade do estudante de Um bebê... um bebê... expor suas idéias, argumentar logicamente e convencer os interlocutores. Naquele ano, um dos ensaios premiados foi Com um grito de raiva, Pesco jogou a arma, que caiu “A alegria de voar: exame das relações entre insetos longe, entre as árvores, com um ruído seco. Não parou de domésticos selecionados e o pote de geléia de amora”, além maldizer a sorte, um instante sequer, enquanto pegava o do sensacional “Histórias que meu pai (que é mudo) nunca bebê e o levava ao barco; e continuou a praguejar, durante me contou: a aventura da carpintaria”. E o jovem Garacaius toda a viagem, até chegar em casa. ousou escrever um tratado sobre o ... Mana! O Mana e a Pesco era conhecido por blasfemar demais. Por isso função da magia no mundo natural! pescava sozinho. Para muitos, foi a prova que faltava de que o tal Garacaius não merecia confiança. Para começar, todos sabiam que a Academia só o recebera porque era um dos I1 5 i
  • 9. CRÔNICAS DE DARIEN protegidos do clã dos Leimar, que mandavam e Pesco recusou-se a falar sobre o seu nascimento. desmandavam em Ugarit.Verdade que o rapaz dizia Como não tinha para onde ir, Garacaius decidiu ficar e sempre que não pertencia àquele clã, sobretudo depois da passou a pescar com Pesco – o primeiro homem a fazer tal tensão entre os Leimar e os Balistan ter crescido tanto que coisa! – e o velho começou a gostar de ter um os grupos chegaram a se enfrentar em combate. A quem companheiro, principalmente porque o rapaz não lhe indagasse sobre suas origens, Garacaius dizia que reclamava de seus maus modos e ajudava em algumas nascera numa aldeia de pescadores ao sul de Ugarit. Mas tarefas que, com o tempo, iam tornando-se cada vez mais alguns estudantes, que haviam visitado a aldeia à procura difíceis. Melhor que tudo isso, contudo, foi que, em pouco de informações, descobriram que lá ninguém jamais tempo, Pesco percebeu que o rapaz tinha talento... e isso o ouvira falar dele. Em resumo, mesmo antes de seu divertia. polêmico trabalho de formatura, muita gente já tinha motivos para suspeitar de Garacaius e, em toda a cidade, O BA RC O Q U E M U D O U DA R I E N não havia um único lugar onde ele pudesse sonhar em Pesco trabalhava com um barco de fundo chato, como conseguir emprego. todos fabricados em Darien. O barco era excelente em O rapaz, aliás, não pediu ajuda a ninguém. Deixou Ugarit águas rasas e calmas e servia perfeitamente para os rios da e partiu de volta à aldeia de pescadores onde acreditava ter região. Mas uma chuva forte já significava perigo. nascido. Seus ‘parentes’ do clã dos Leimar haviam contado Depois de muita insistência, Pesco afinal concordou em sobre um pescador muito humilde, que não tinha como ajudar Garacaius a construir outro barco, de maior calado e alimentar mais uma boca... E Garacaius, afinal, encontrou desenho revolucionário. Mais da metade do casco ficaria Pesco na aldeia, já muito, muito velho, mas ainda abaixo da linha d’água. Pesco argumentou que, daquele perfeitamente capaz de praguejar. Para tristeza do rapaz, jeito, ficaria difícil de manobrar o barco, ele seria lento e, I1 6 i
  • 10. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN pior, quem conseguiria fazê-lo parar?! E, além disso, com se não houvesse dia seguinte, beliscando todas as moças tanto casco submerso, seria difícil de calafetá-lo. De nada que passassem por ele. Certa noite, depois de muito beber, adiantaram os argumentos – Garacaius era mais teimoso o pobre Pesco voltava para casa. No caminho, tropeçou e que mula empacada e, afinal, Pesco acabou cedendo. caiu num buraco, cheio de água de chuva. Más línguas No ano seguinte, ao começar a temporada de pesca, o diziam que já estava morto ao cair na água. barco estava pronto. Para surpresa geral, era quase tão fácil As más línguas diziam também que Pesco, embriagado, de manobrar quanto o modelo tradicional. Mais: como o contara que Garacaius havia usado artifícios sobrenaturais novo barco era muito mais estável que os modelos antigos, para encher as redes. Que os dois discutiram. Que houve podia-se usar vela mesmo em dias de vento mais forte. Não briga. O fato é que Pesco, o velho pescador, completamente demorou para que Pesco e Garacaius pudessem viajar para embriagado, morreu afogado em um palmo de água. E mais longe e alcançar áreas de pesca até então inacessíveis. Garacaius, de repente, virou suspeito. A família de Pesco o Numa dessas viagens mais longas, afinal, Pesco contou a acusou do crime, menos de um mês depois de tanto ter-lhe Garacaius como o encontrou, ainda bebê, abandonado na agradecido por haver mudado a sorte de todos. floresta. Entretanto, não se sabe com certeza se falou, ou Uma semana após a morte de Pesco, Garacaius carregou não, sobre a bolsinha mágica. O que se sabe, sim, é que seus poucos pertences e partiu com seu barco em direção Pesco e Garacaius passaram a trazer cada vez mais peixe; ao Oeste, rumo ao alto-mar. Os pescadores que numa das viagens os dois pescaram mais peixe que todos remendavam as redes na ponta do píer levantavam a os outros pescadores da aldeia juntos. cabeça, de tempos em tempos, para ver afastar-se aquela Pela primeira vez em sua longa vida de labuta, Pesco vela solitária. A vela foi ficando cada vez menor, até tinha dinheiro para passar os fins de semana no bar da transformar-se num pequeno ponto branco no mar aldeia, bebendo como se cada garrafa fosse a última, como dourado pelo crepúsculo e desaparecer. I1 7 i
  • 11. CRÔNICAS DE DARIEN A B OA S O RT E D O S M E RC A D O R E S Garacaius acrescentou-lhe uma grande vela quadrada. A DE IRGIRON estabilidade que o calado mais fundo dava ao barco – A ilha de Irgiron, localizada bem no centro de Darien, como explicou aos mercadores – permitia usar a vela em sempre foi um importante centro comercial. Ao final do praticamente todas as condições de tempo, mesmo em Quinto Milênio, havia instalada em Irgiron uma dúzia de tempestades. Além disso, havia muito mais lugar para grandes casas comerciais, que praticamente controlavam armazenar carga. Garacaius dizia que seu barco tinha todo o comércio intercontinental de Darien. capacidade para transportar uma quantidade de O único fator que limitava o sucesso dos mercadores de mercadorias equivalente à que meia dúzia de barcos Irgiron eram seus barcos, de fundo chato, como quase tradicionais comportava. E, com ele, a mercadoria sempre todos naquele tempo, pesados e pouco ágeis. Resultado da chegava ao destino. péssima tecnologia naval de que dispunham, os Estava certo. Em poucos anos, a população de Irgiron mercadores, na prática, acabavam perdendo no mar quase duplicou. Novas fábricas surgiam, praticamente, a cada a mesma quantidade de bens que conseguiam comerciar. semana, e os mercadores de Irgiron engordavam e sentiam- Não surpreende, portanto, que a chegada de um jovem que se cada vez mais felizes. dizia haver inventado um barco realmente adequado àqueles mares tenha despertado muito interesse. A AS C E N S Ã O DE G A R AC A I U S Em pouco tempo, Garacaius conseguiu todo o patrocínio Quanto a Garacaius, ele cuidara de estabelecer seus e o apoio de que precisava para começar a construir um próprios entrepostos de comércio nos principais portos grande barco, capaz de enfrentar os oceanos. O novo barco de Darien e, em pouco tempo, era um dos homens mais ainda tinha remos – as naves de Darien sempre haviam ricos do Reino. Estabeleceu seu centro de operações em sido movidas pela força de braços humanos – mas Estoril, a maior cidade de Irgiron, e ali construiu uma I1 8 i
  • 12. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN magnífica moradia. Essa casa abrigava, dizia-se, a maior animais, e de gente ainda agarrada à vida, mesmo depois biblioteca de Darien. de seus olhos terem sido arrancados das órbitas e de sua Mas Garacaius não dava sinais de querer aproveitar os carne, apodrecida, soltar-se dos ossos. Os homens também frutos de tanto trabalho – com freqüência cada vez maior, falavam de outros lugares – imensos círculos de pedra, deixava os negócios entregues a empregados de confiança e onde o chão brilhava com uma luz úmida e suave. desaparecia durante meses, em expedições particulares. Mas já no dia seguinte, se alguém lhes pedisse que Explorou assim todos os mares de Darien, e dizia-se que explicassem melhor o que haviam visto, que contassem havia chegado até terras estranhas e muito distantes, bem outras coisas, os homens balançavam a cabeça e calavam- além de Darien. Também explorou o interior do território se. Só havia uma coisa que nunca se cansavam de repetir e e, numa dessas viagens, chegou à cidade perdida de diziam com alegria, a quem quer que perguntasse: que Waleph, cujos habitantes viviam, há cinco mil anos, Garacaius era um homem excepcional, em quem confiavam separados de Darien. plenamente, de corpo e alma. Mas bastava essa rara e estranha referência ao mundo espiritual para fazer AS E ST R A N H AS V I AG E N S DE G A R AC A I U S estremecer os curiosos que, imediatamente, desistiam do Os homens que acompanhavam Garacaius em suas interrogatório. expedições eram de pouca conversa. Mas, vez ou outra, A mais longa das expedições de Garacaius, que o levou quando o alívio por ter voltado os fazia relaxar e soltava- ao coração de Zhon, estendeu-se por quase dois anos. Ao lhes a língua, eles falavam de coisas extraordinárias. voltar, sua tripulação ganhara mais um membro: uma bela Falavam de cidades-fantasmas, com ruas pavimentadas mulher, cujos cabelos negros e pele muito morena faziam e casas de pedra, onde só viviam pássaros e outros animais forte contraste com a tez clara de Garacaius. Em tempos selvagens. Falavam de seres estranhos, meio homens, meio normais, bastaria a chegada de Lasha, aquela deusa I1 9 i
  • 13. CRÔNICAS DE DARIEN morena, para gerar infindáveis comentários e despertar Garacaius tentou manter-se neutro mas, naquelas olhares curiosos. Mas as coisas haviam mudado muito circunstâncias, a neutralidade era difícil, senão impossível. entre a partida e a volta de Garacaius. Nada estava como Um mês depois de ele ter voltado, um de seus entrepostos antes. Darien inteiro havia sido tocado pela chama da comerciais da ilha de Caora foi saqueado por soldados que guerra. chegaram por mar e todos os habitantes da ilha foram assassinados a golpes de espada. Garacaius organizou um A G R A N D E G U E R R A C I V I L D E DA R I E N pequeno exército de voluntários para punir os saqueadores Tudo começou em Taros, a terra que Garacaius deixara, e, quase sem perceber, acabou envolvido em meia dúzia de tantos anos antes, ao partir para tentar a sorte no mar. confrontos armados contra diferentes facções. Os clãs de Leimar e Balistan haviam passado por outro A Grande Guerra Civil de Darien durou oito anos. período de conflitos mas, desta vez, a Casa de Ontinor Durante os primeiros cinco, a guerra não chegou a se havia decidido intervir. Ontinor era ligada à Casa de disseminar: os confrontos não passavam de combates Aidenfel, na terra de Aramon, e na confusão que se seguiu, rápidos, seguidos de curtos períodos de paz, novamente a Casa de Buriash, também de Aramon, aproveitou para interrompidos por batalhas, quase sempre violentas e invadir um território que há anos estava em disputa. Daí, a sangrentas. guerra alastrou-se como fogo em campo seco. Um ano mais tarde, todos os clãs e todas as Casas O NASCIMENTO DE VERUNA Nobres de Darien estavam envolvidas em algum tipo de Ao final do quinto ano de guerra, porém, as coisas hostilidade contra um ou vários inimigos. A rede de mudaram. As várias facções independentes, muitas das comunicações que Garacaius havia tecido com seus barcos quais se reuniam em torno de Casas Nobres, clãs e tribos serviu para disseminar a guerra por todos os portos. de Darien, finalmente organizaram-se em quatro grandes I2 0 i
  • 14. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN grupos. Três desses grupos estavam decididos a continuar Garacaius, resistiam e derrotavam os atacantes com em guerra até a morte. O quarto grupo – uma federação de espantosa facilidade. No sexto ano da guerra, uma das cidades-estado insulares – queria a paz imediata e pregava Casas Nobres de Aramon, a Casa de Dernhest, declarou-se que as diferenças fossem discutidas e resolvidas pela aliada de Veruna e, ao final do ano, Garacaius já controlava negociação. A atitude pacifista desse grupo não era todo o continente de Veruna. No ano seguinte, sétimo ano surpreendente, pois as cidades localizadas nas ilhas da guerra, Garacaius ocupou, no sul, a terra de Zhon. Mas, constantemente eram obrigadas a se defender de ataques à medida que se expandia o território controlado por inimigos, uma vez que haviam sido apanhadas pelo fogo Garacaius, cresciam também os rumores de que o líder das cruzado em um campo de batalha global. Forças da Verdade vinha empregando recursos mágicos Ninguém tampouco se surpreendeu quando Garacaius para derrotar seus inimigos. foi eleito líder da federação das ilhas. Afinal, há anos que No oitavo ano da guerra, Garacaius invadiu Taros. Seus ele operava nas ilhas, nelas construíra sua base e os ilhéus soldados desembarcaram na praia, a menos de um tinham profundo respeito por ele. Surpresa para todos, quilômetro de distância da aldeia de pescadores onde ele sim, foi o nome escolhido para batizar a federação das vivera. Encontraram-na deserta: com medo de serem ilhas: Veruna, uma antiqüíssima palavra, do kandriano massacrados, os habitantes haviam fugido antes da clássico, que significava “profundo respeito à verdade” . invasão. Na mesma noite, horas depois do desembarque, Garacaius sentia-se muito triste e andava, pensativo, pelo O S T R I U N F O S DE G A R AC A I U S acampamento dos soldados, de olhos perdidos, vendo o sol Em pouco tempo, ficou evidente que o vínculo entre os se pôr no horizonte, para além das casas vazias e ruelas kandrianos era bem mais profundo que o nome que desertas. adotaram. As forças de Veruna, sob o comando de I2 1 i
  • 15. CRÔNICAS DE DARIEN O R E A PA R E C I M E N T O D A M A G I A Por sorte, já na primeira tentativa, os pobres magos É possível que, naquele momento, Garacaius estivesse conseguiram cegar um destacamento avançado de prevendo o que viria. A campanha de Taros foi a mais cavalaria que sondava a estrada de acesso a Elam, capital selvagem e violenta de toda a guerra. As Casas Nobres de de Taros. Taros deixaram de lado as lutas internas e uniram-se para Os historiadores são unânimes ao afirmar que Garacaius enfrentar o invasor. Mas, com número menor de soldados, quase enlouqueceu de fúria ao receber a notícia. Ordenou os nobres de Taros logo perceberam que não teriam como avanço imediato sobre Elam, em marcha forçada, e exigiu resistir e, desesperados, recorreram à antiga e eterna arma rendição completa e incondicional dos exércitos que secreta dos kandrianos: magia. defendiam a cidade. A resposta demorou. Quando já era Sempre houve, em Taros, um número maior de magos do evidente que Taros não se renderia, Garacaius voltou à sua que no restante do território. Para alguns, isto se explicaria tenda e de lá saiu usando um anel que ninguém jamais pela existência de muitos vulcões ativos na cordilheira de vira. Andou para a linha de frente de suas tropas, ergueu os Kaf – a espinha dorsal do continente. Nas celas do Palácio braços e, aos gritos, pronunciou algumas palavras numa da Justiça, em Elam, sempre havia meia dúzia de língua estranha. Depois, ajoelhou-se e baixou a cabeça. desgraçados, condenados por prática de magia ou algum Como um só homem, todo o seu exército de 50 mil tipo de interesse mórbido nas artes mágicas. Naquele soldados fez o mesmo. momento, com os exércitos de Garacaius em rápido avanço Contam as testemunhas que um estranho nevoeiro, sobre o continente, aqueles patéticos aprendizes de magos escuro e denso, desceu sobre Elam e fez calar os gritos e foram arrancados das masmorras e convocados a salvar o insultos dos soldados que defendiam as muralhas da exército de Taros do que parecia ser uma derrota inevitável. cidade. Fez-se um longo silêncio, de espanto e terror, e a I2 2 i
  • 16. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN neblina começou a se dissipar. Um momento depois, Garacaius imediatamente cuidou de reformar sua Garacaius levantou-se e, com seu exército, avançou sobre as magnífica casa, ainda em bom estado, e transformou-a muralhas e entrou na cidade. Não havia ninguém. A num verdadeiro palácio. população inteira havia desaparecido, sumido no ar. No dia em que oficialmente assumiu o poder, Garacaius Nunca, antes, houve exército de ocupação mais atônito e discursou para os nobres de Darien, reunidos na silencioso. Ninguém ousava falar, e os soldados mal assembléia do novo parlamento. Nesse histórico discurso, conseguiam acreditar no que viam: Garacaius era um mago revelou que, ao longo de muitos anos, havia trabalhado com grandes poderes, tão grandes quanto os mais terríveis para recuperar o saber mágico dos kandrianos e que, em poderes dos infames e malditos Magos de Kandra. suas expedições, conseguira recuperar as Cinco Relíquias, o grande legado desse povo. No mesmo discurso – que a O N OVO I M P E R A D O R- M AG O D E DA R I E N história registra como o Juramento de Darien – Garacaius Consumada a vitória, não havia como duvidar de que jurou jamais fazer mau uso do saber mágico que tinha Darien estava outra vez unificado. Quanto a quem seria o conquistado. Só lançaria mão da magia como último novo Imperador, só havia um possível candidato: recurso e se estivesse de acordo com a vontade de seu povo. Garacaius. Jurou também jamais, em nenhum caso, quaisquer que Garacaius movimentou-se com cautela. Começou por fossem as circunstâncias, usar seus saberes mágicos em estabelecer a nova capital de Darien na cidade de Estoril, benefício próprio. na ilha de Irgiron, sua terra e seu lar durante tanto tempo. O R E I NA D O DE G A R AC A I U S Em parte a escolha deve ter sido motivada por afeto que nutrira por aquela região onde havia começado sua Nos anos seguintes, Garacaius manteve a palavra. O novo fortuna. Mas também foi uma brilhante escolha estratégica. Império enfrentou sérias dificuldades.Vez ou outra houve I2 3 i
  • 17. CRÔNICAS DE DARIEN ameaças de guerra interna, pois os derrotados na Grande dedicar-se um pouco mais à família, o que parecia fazer-lhe Guerra Civil se rebelaram. Mas jamais, em momento muito bem. Garacaius sempre foi um homem muito ativo, algum, o Imperador lançou mão de seus poderes cuja fisionomia deixava transparecer a tensão em que sua extraordinários. As discussões seguiram o curso normal, as alma se debatia. Mas, afinal, na maturidade, parecia disputas acabaram resolvidas pelos meios tradicionais, sem relaxado, calmo e quase feliz. intervenção de qualquer força sobrenatural. Houve mesmo A T R Á G I C A M O RT E DA quem começasse a murmurar que seria mil vezes melhor I M P E R AT R I Z L A S H A usar alguma magia temporária para vencer os adversários do que matá-los com o aço frio das espadas. A tragédia atingiu a família real como sempre: de repente. Os primeiros cinco anos do reinado de Garacaius também Certo dia, Garacaius levou a família para um passeio no foram marcados por eventos de caráter privado. O Primeiro primeiro barco que construiu, aquele que revolucionou a Imperador-Mago (título que, diziam alguns, Garacaius engenharia náutica de Darien. Não parecia haver qualquer detestava e só adotara porque era expressão da vontade da perigo, e o Imperador não planejava aventurar-se em alto- população, assustada, mas também muito grata) uniu-se mar. O dia estava lindo, ensolarado, sem vento. Mas, no oficialmente a Lasha – a beldade morena que o acompanhava mar, o tempo pode mudar repentinamente; afinal, Estoril, desde a expedição à terra de Zhon. Dessa união nasceram na ilha de Irgiron, estava localizada no centro de um quatro filhos muito belos: um menino e uma menina grande oceano. morenos como a mãe e um casal louro como o pai. O furacão atingiu o porto como o bote de uma serpente. Quando seus filhos aproximavam-se da idade adulta, Num instante, o mar ondulava como um lago; no outro, Garacaius já havia pacificado todo o Reino: Darien era um encrespava-se em ondas encapeladas e ameaçadoras, e o território de paz e prosperidade. O Imperador podia, afinal, vento uivava. As crianças entraram em pânico. O barco I2 4 i
  • 18. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN virou. Excelente nadador, Garacaius conseguiu salvar os acumular. Em todo o Darien, reabriam-se velhas feridas, quatro filhos, mas Lasha, sua amada Imperatriz, afogou-se. surgiam novas. Garacaius permanecia distante e Assim como surgira, o furacão desapareceu rapidamente, indiferente: mal atendia os emissários, que não paravam de mas nada, nunca mais, seria como antes. Garacaius poderia chegar, dispensava-os com um aceno de mão e voltava, ter salvo a Imperatriz se lançasse mão de seus poderes calado, ao seu inferno particular. mágicos. É possível até que tenha pensado nisso, mas Por fim, reuniu-se, em Estoril, uma assembléia de vacilou, temeroso de quebrar seu juramento solene. representantes das várias tribos e Casas Nobres de Darien. Quando afinal decidiu-se, já era tarde demais. Discutiram durante um dia inteiro e, afinal, decidiram Naquela manhã, ao ver a família embarcar em seu velho apresentar um ultimato a Garacaius: que voltasse a barco, Garacaius era um homem no esplendor da governar ou abdicasse em favor de um de seus filhos. maturidade e, graças às Relíquias que conservava muito Parecia justo, e os nobres esperavam que o Imperador não bem guardadas, podia contar ainda com muitos anos de se enfurecesse – quem se arriscaria a desafiar a ira de um saúde e prosperidade. Na mesma noite, o Imperador era mago desesperado? Se o sucessor de Garacaius fosse um bom Imperador, ótimo. Se não, ele – ou ela – poderia ser um velho, alquebrado e amargurado. E, à medida que os manipulado. dias passavam, mais ele se deixava afundar no desespero e na dor, atormentado pela própria consciência. Garacaius optou por uma solução intermediária: não abdicaria mas, na prática, o Império passaria a ser O DE C L Í N IO D O I M PE R A D OR- M AG O controlado pelos quatro príncipes. Dividiu o território em O tempo passou, mas não cicatrizou as feridas. O grande quatro partes e entregou cada uma delas a um de seus Imperador-Mago parecia cada dia menos interessado no filhos, consideradas suas características particulares: às destino do Império. Os problemas começaram a se princesas entregou os territórios que mais bem se I2 5 i
  • 19. CRÔNICAS DE DARIEN adaptavam aos seus temperamentos; aos príncipes, aqueles famosa Academia de Engenharia e Projetos de Aramon, em que estavam de acordo com suas habilidades. Cada jovem Kaluen, nova capital provincial. Para confirmar e assegurar rei recebeu também uma das Cinco Relíquias. De posse das sua ascendência e seu poder, coube a Elsin, dentre as Cinco Relíquias, os jovens sempre teriam como se proteger das Relíquias, o colar de mogrito chamado Rocha de Darien. intrigas palacianas e gozariam de mais poder do que Na linha de sucessão de Garacaius estava, a seguir, a qualquer eventual aspirante ao trono. princesa Thirsha, morena como a mãe e muito parecida A S Q UAT R O C O R OA Ç Õ E S com ela. Thirsha amava a terra natal da Imperatriz, a terra de Zhon, em cujas selvas fechadas e perigosas se O primogênito, Elsin, o Louro era conhecido por seu embrenhava para caçar, semanas a fio, acompanhada caráter franco e aberto e por ser muito justo. Era honrado, apenas por um servo. muito prático, muito objetivo, mas não era considerado Garacaius entregou a Thirsha o seu bem-amado Zhon, o excepcionalmente inteligente. Dizia-se que só pensava em continente mais selvagem e menos explorado de Darien. fazer justiça, que não via nada além da justiça. Havia, Com o território, Thirsha recebeu o bracelete de mogrito contudo, uma área na qual Elsin, o Louro era insuperável – chamado Alma de Kandra. Fazia pleno sentido, pois as a ciência da engenharia, com suas leis e regras muito florestas de Zhon escondiam muitas ruínas misteriosas do claras, precisas, incontestáveis. período anterior ao Grande Cataclismo. Como no caso de A Elsin, o Louro Garacaius entregou a terra de Aramon, Elsin, que recebeu Aramon, a entrega de Zhon a Thirsha talvez o melhor dos quatro territórios em que o Império foi mostrou-se perfeita. Em pouco tempo, a nova rainha dividido. Aramon já era o continente mais desenvolvido de controlava as tribos semicivilizadas de seu continente. Darien, e Elsin rapidamente o fez progredir muito mais: Entre as tribos, ficou conhecida como Thirsha, a Caçadora. fundou cidades, construiu estradas e pontes e fundou a I2 6 i
  • 20. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN O príncipe Lokken, o terceiro filho de Garacaius, foi com o pai. Entre as muitas semelhanças, os dois eram criado como uma das grandes esperanças do Reino. Mas apaixonados pelo mar, um amor que, no caso de Kirenna, depois da morte da mãe, tudo o que antes era brilho e sobreviveu à morte da mãe. Logo que teve idade para viajar inteligência transformou-se em ressentimento e amargura. sozinha, Kirenna engajou-se em várias expedições que Garacaius amava-o ternamente, provavelmente mais do partiam de Estoril e conheceu todo o Império de seu pai. que a Elsin. Ele acreditava que mentes inquietas precisam Os companheiros de viagem logo passaram a chamá-la de de estímulo apropriado, ou correm o risco de desvanecer. Maga do Mar, porque ela sabia, como ninguém, prever as Por isso, decidiu ocupar a mente de Lokken. mudanças dos ventos e do tempo e era capaz de conduzir Lokken recebeu Taros. O antigo continente era habitado qualquer barco, em segurança, no mais denso nevoeiro. por algumas tribos rivais dos kandrianos e vivia em A Kirenna coube o domínio de Veruna e o anel com a conflito. As quatro Casas Nobres de Taros eram separadas pedra de mogrito chamado Lágrima de Macha. Uma de por disputas que se arrastavam há anos, e o território suas primeiras providências foi abolir todos os impostos estava devastado por infindáveis combates. Junto com a internos e dobrar o salário pago aos marinheiros mais terra, Lokken recebeu o cetro com o mogrito chamado experientes. Os ilhéus da federação de Veruna tinham, Chama de Angvir. Também nesse caso, a decisão de afinal, uma governante que sabia, instintivamente, do que Garacaius mostrou-se sábia: em um ano, Lokken eles eram capazes: em pouco tempo, Veruna detinha o estabeleceu a paz, que muitos acreditavam ser impossível. monopólio de todo o comércio marítimo. Para tanto, usou uma eficiente combinação de diplomacia, A Garacaius coube, nos primeiro anos, a tarefa de violência e magia. supervisionar o trabalho dos filhos. Mas ele era uma figura A filha caçula, Kirenna, era de todos a mais parecida miserável e soturna que vagava pelo palácio de Estoril, um I2 7 i
  • 21. CRÔNICAS DE DARIEN velho triste, sentado no Trono de Ludd, a quinta das O dia da festa raiou, numa aurora colorida. O palácio de Relíquias, esculpida em rocha-negra. Embora o Olho de Estoril brilhava. As pedras brancas do chão pareciam Modron – fragmento de mogrito incrustado no trono – lhe tocadas pelo pincel de um mestre que as recobria de tons garantisse saúde e vitalidade, o pobre Garacaius envelhecia suaves, quando Gudnor, criado que acompanhava dia a dia. Falava pouco e respondia com um olhar Garacaius nos últimos 40 anos, resolveu sair à procura do infinitamente triste a todos que o procuravam em busca de seu mestre. Começou pelos quartos do palácio. Estava conselhos. decidido a convencê-lo a se preparar para as festividades. Por menos que Garacaius quisesse, era importante que se O FIM DE UMA ERA apresentasse bem. Os anos passaram. No palácio de Estoril, preparavam-se as O Imperador não estava em seu quarto nem havia sinal grandes festas comemorativas dos dez anos das Quatro de que houvesse dormido em sua cama. Ao aproximar-se da Coroações, com inúmeras atrações: um desfile marítimo Sala do Trono, depois de muito procurar, Gudnor já das mais belas naves da armada de Veruna; a inauguração começava a dar sinais de extrema preocupação. Que idéia... da Grande Feira de Darien, na qual seriam exibidas as mais passar outra noite em claro, sentado em seu trono, modernas máquinas criadas pela Academia de Engenharia justamente na véspera de um dia tão importante. Na manhã de Aramon; a inauguração de uma galeria – Maravilhas de seguinte às noites em que não dormia, o Imperador parecia Zhon – onde todos poderiam conhecer as preciosidades do ainda mais velho e alquebrado. Gudnor apertou na mão a artesanato e da produção artística dessa terra exótica. À caixinha de pomada que Kirenna lhe entregara e entrou na noite, esperava-se com ansiedade a exibição dos Comedores Sala do Trono. E o palácio estremeceu, primeiro com os seus de Fogo de Taros, grupo de artistas especializado na gritos, em seguida com os seus soluços desesperados. manipulação do fogo, nas mais incríveis situações. I2 8 i
  • 22. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN Por que Garacaius não estava lá? Não havia ninguém sentado no Trono de Ludd. E no espaldar, no lugar onde devia estar, como sempre estivera, o Olho de Modron, havia um buraco vazio. I2 9 i
  • 23. CRÔNICAS DE DARIEN O s Q u a t ro Re i n o s O D E S A PA R E C I M E N T O D E G A R A C A I U S O C O R R E U H Á 1 5 2 7 A N O S . S E U S F I L H O S , I M O RTA I S P O R P O S S U Í R E M A S R E L Í Q U I A S , C O N T I N UA M A G OV E R NA R S E U S R E S P E C T I VO S R E I N O S . Mais uma vez, estamos às vésperas de grandes mudanças. Os Quatro Reinos já lutaram entre si mas, a certa altura, Nos últimos dois séculos, as diferenças entre os quatro começou a surgir uma grande divisão entre os Reinos do monarcas se acentuaram cada vez mais. O surgimento de Oeste e do Leste. quatro diferentes “religiões de Estado” é uma evidência de Mesmo depois do desaparecimento de Garacaius, os que a unidade de Darien já é passado e dificilmente poderá Reinos de Aramon e Veruna mantiveram-se leais ao ser restituída. Em Darien, havia uma só religião. De juramento de Garacaius e renunciaram às práticas repente, os cidadãos de Aramon passaram a exibir anéis de mágicas, exceto em casos de extrema necessidade. Os dois prata com a Mão de Anu, o Senhor da Luz. O povo de Taros monarcas, para construir Reinos poderosos, usaram cultua uma terrível entidade noturna chamada Belial. Em recursos econômicos: Aramon cuidou da indústria e do Zhon, cultua-se Tammuz, a Deusa da Caça. Em Veruna, desenvolvimento interno; Veruna é uma potência do pratica-se o culto a Lihr, uma poderosa divindade marinha. comércio intercontinental. Elsin, governante de Aramon, e I3 0 i
  • 24. DOIS: CRÔNICAS DE DARIEN a Maga do Mar de Veruna, Kirenna, não têm dúvidas de magia. Orgulhosa e independente, a Caçadora reagiu com que a lei de seu pai tem de ser obedecida para que não escárnio às exigências de Elsin e Kirenna. Não reconhece o haja guerra. direito de ninguém dizer-lhe onde e quando usar seus No Leste, Taros rebelou-se contra a lei de Garacaius. encantamentos e apóia abertamente o direito de Lokken Lokken já usara recursos mágicos desde os primeiros fazer, em seu Reino, o que bem entender. tempos, quando teve de subjugar, pelo terror, as Casas Nos séculos precedentes, as diferenças entre os irmãos Nobres de Taros, que se recusaram a aceitá-lo. Fascinado monarcas já haviam levado à guerra várias vezes. Aramon pela facilidade com que venceu os primeiros combates, enfrentou Veruna nos pântanos de Kuvera, no noroeste, e Lokken jamais deixou de recorrer à magia e chegou a em várias ilhas do Mar de Mannan. Os piratas de Zhon remodelar a natureza de seu Reino, o que teve atacam os barcos de Veruna e massacram tripulações conseqüências que ele, de modo algum, poderia ter inteiras. As tribos de Zhon assaltam as ricas costas de previsto. Pelas antigas Leis Kandrianas da Vida, aquele que Aramon, cujo monarca, em retaliação, envia expedições manipula o Mana é como um nadador que cruza um rio que invadem o território de Zhon. Um ódio implacável caudaloso. É possível tirar vantagem de suas águas se se separa os Reinos de Taros e Aramon, que várias vezes nadar a favor da corrente. Mas quem tentar domar o rio, ou envolveram-se em guerras sangrentas, motivadas sempre nadar contra a corrente encontrará a tragédia. Lokken por diferenças ideológicas. afirma que tudo está correndo como planejado, mas as Cada um dos monarcas tem muitas restrições contra os coisas não parecem bem. demais, e o Império está a ponto de explodir. Os monarcas Ao sul de Taros, no coração das selvas de Zhon, a reúnem seus soldados e se preparam para uma guerra Caçadora Thirsha também recorre freqüentemente à iminente. I3 1 i