O documento apresenta um livro de poemas de Renata Bomfim intitulado "Mina". O prefácio descreve a poética da autora como fragmentada e em constante aprendizagem, retratando vozes femininas que desafiam a civilização falocêntrica. Os poemas abordam temas como sensorialidade, questões identitárias, natureza e relações femininas.
7. Mina:
uma poética colcha de retalhos
Em Mina, primeiro livro de poemas de Renata
Bomfim, como uma transfusão de sangue de letras
garatujas, de rabiscos, é possível observar uma
poética igualmente incompleta, inacabada,
transicional, de passagem e, por isso mesmo,
emendada, retalhada, de aprendiz. Mina é uma
colcha de retalhos de poemas emendados e suas
vozes poéticas constituem-se em fluxos de
aprendizagem de poesia, com seus eus-líricos
femininamente fragmentados, esboçando, seja em
cada poema, seja no conjunto deles, um perfil
poético indefinido, demarcado por cicatrizes de
incontáveis traços femininos, no embate, na vida
e na sobrevida de, numa e contra a nossa
falocêntrica civilização.
São, assim, vozes de incontáveis ventríloquos
femininos as que se inscrevem, como mina, nos
poemas deste livro, escavando-se, escavadas e a
escavar, embora sem pretensão de encontrar veios
de ouro, de diamante, ou de qualquer metal
precioso, uma vez que, sendo poemas
assumidamente incompletos, como a vida, são,
como devem ser, colagens de mulheres imperfeitas,
irregulares, rebeldes, incompreendidas, viscerais,
solitárias, fortes, frágeis, apaixonadas; ora
MINA
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8. confiantes, ora deprimidas, mas sempre marcadas
pela vontade de se expressar, de, enfim, participar
da trama tramada do mundo, como é possível
inferir tendo em vista o poema “Experimental”:
Rompeu-se o que era de ouro e fino e delicado.
Brocado de oníricas texturas,
Agora, embrutecido, pedra dura,
guarda tramas, fissuras de sonhos amordaçados.
Fóssil de um eu cintilante e genuíno
que celebrava o dia e bebia o vinho do porvir
ornamentado de linho fino e rendas.
Agora, sorve o amargor da lembrança
Sem saber qual direção seguir.
Haverá cura para esse mal
que embarga a voz?
Haverá saída desse escarpado íngreme?
Uma fenda, um vão?
Preces e rogos e oferendas
Para um deus pagão
Cultos para aplacar no corpo o desejo ardente,
Para cessar o brilho intermitente,
ofuscado apenas pela dúvida.
Ao fim, encenar num gesto
indecente- libertino- libertário
Voo inaugural para uma nova existência.
Diante dessa agônica pergunta, relativa __ eis
uma tentativa de Interpretação __ ao embargo que
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RENATA BOMFIM
9. uma civilização como a nossa impõe sobre toda e
qualquer alteridade, a feminina se expressa como?
brocado de oníricas texturas?, através de uma
escrita afetiva, para utilizar um argumento caro
ao pensador indiano, Homi Bhabha, ao analisar a
literatura produzida nas margens estilhaçadas das
instituições verticais-falocêntricas, no contexto de
uma sociedade pós-colonial.
A escrita poética de Renata Bomfim, em Mina, é
também afetiva, seguindo a esteira de poetas como
Ana Cristina César, Elza Beatriz, Florbela Espanca,
Sylvia Plath, e uma profusão de outras, por serem
vozes poéticas que, não obstante as diferenças
expressivas entre elas, inscreveram uma
disseminação fissurada de sentidos marginais,
estilhaçados, em suas afetivas escritas poéticas,
como forma, todas elas, de enfrentamento ao duplo
mal que nos embarga a todos, e antes de tudo às
alteridades, que são esses de sermos mortais e de
estarmos construindo uma civilização baseada na
submissão, humilhação, exploração e violação a
tudo que é vital, cuja força propõe, em movimento,
outra dinâmica social, de alteridades expressivas,
com seus? indecentes ? libertino ? libertário/ voo
inaugural para uma nova existência,? Como nos
sugere o poema “Experimental”.
Assim, embora Renata Bonfim, neste seu
primeiro livro, esteja ainda em busca de sua melhor
MINA
9
10. expressão poética, ainda que seja pela via da
irregularidade e da precariedade, Mina nos mostra
uma poeta em formação, é verdade, mas apta, não
obstante, a nos brindar com poemas como
“Experimental”, “Pororoca”, “Personae”, “A flor”,
“Mulherárvore”, “Bluechip”, “Juramento
hipócritas”, e outros.
Seja bem-vinda, Renata, ao clube das infinitas
inclusões poéticas: água de todos e de ninguém.
Luis Eustáquio Soares
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RENATA BOMFIM
11. A Lili, Elvis, Verinha,
Elvis Júnior, Dedo e
Luiz Alberto, com amor...
MINA
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15. Corpos humanos são palavras, miríades de
palavras.
Nos melhores poemas o corpo ressurge, o da
mulher, o do homem, bem-formado, natural, feliz.
Todas as partes habilitadas, ativas, receptivas, sem
demonstrar vergonha e sem a necessidade da
vergonha. Ar, água, terra, fogo – essas são palavras.
Walt Whitman
MINA
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17. Irmandade
Há fontes que geram em nós
novas águas,
despertando olhos cristalinos e
fazendo brotar da terra ressequida
a vida e o desejo primordial,
sopro que podemos traduzir
como entendimento, sentido.
Há terras que fazem brotar em nós
outras sementes,
tornando- nos híbridos,
desfazendo a hegemonia da matriz e
pluralizando os frutos que
despertam para novos paladares.
Há forças que não podemos explicar.
Elas fazem com que nos juntemos
e queiramos estar
no desejo do outro
e desejemos ser o outro,
bebendo da fonte e brotando da terra.
Um outro tão espe(ta)cular
e próximo que bem
poderia ser nós mesmos.
MINA
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18. Musiva
Eu sou pedra bruta
girando na ciranda viva
ao som do vento
e das águas.
Eu sou a pedra que se agita,
clama e grita,
chama do fogo sagrado
que o peito inflama.
Tesselas-sonhos,
desejos da mente:
o tempo não apaga,
o coração não sossega.
Ser inteira novamente:
a brisa na alma
justifica o existir
dá leveza ao presente.
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RENATA BOMFIM
19. Sensorialidade
O tátil se apoderou de mim!
Já não te busco mais, atada
ao fio dos meus pensamentos.
Te experimento inteiro
com meus olhos,
teu cheiro fala à minha boca
e sussurra indecifráveis sentidos,
no silêncio dos amantes.
Meus poros estão abertos
para te captar em vibrações.
Eu te canto no presente,
batendo as palmas das mãos,
meus pés em bailados desconcertados.
Te submeto aos meus desejos
mais indecentes,
Com as gotas adocicadas
do meu suor.
É assim que eu te quero,
é assim que eu te busco,
no céu da minha boca.
Ânsia louca camuflada na calmaria aparente,
a urgência da gente
nas mãos, nos braços, nos entres:
nossa vivência metassexorial.
MINA
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20. Questões poéticas
Antônio, o que faço?
Colonizaram a minha bandeira.
Agora toda empresa é responsável,
toda exploração, sustentável,
toda carne, sadia,
mesmo que o bicho nasça, viva e morra
de forma miserável.
Anto, onde me encaixo?
Neste mundo, estou tão Só!
Me espanca este plágio:
“Ó dobres dos poentes às Ave-Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreia da Maia!
Estrada de Santiago! Sete-Estrelo!
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...”
E você, José, que faz versos,
que ama, protesta?
Me diz: onde está a poesia?
O verbo também
tornou-se terra pisada?
Os ritos de fecundidade,
necessários para garantir a safra
do bem-dizer, serão ainda executados?
Me diz: e agora, José?
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RENATA BOMFIM
21. Canto de abertura
Brilham sóis na minha lua.
Sou toda bruma,
rio a deslizar pelos penhascos,
terra úmida
à espera da tua semente
como se fosse a última.
Não há mais solidão,
a pedra quebrou-se,
fez-se múltipla.
Brilham os sóis da minha lua
E sou toda e todos e sou nada
– o pó dessa terra,
o povir desse chão,
as mãos febris que constroem
a paz esperada.
MINA
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22. Sensações
O sopro do vento na cara,
a descida do morro,
a alma ferida.
Amor protelado,
espaços cedidos,
silêncios perdidos.
Tudo isso faz de mim Ser emergente;
esse tudo me reduz, me faz gente;
esse isso, confuso, me embriaga.
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RENATA BOMFIM
23. Ave paraíso
Amo a minha terra!
Canto de longe as serras plenas
os pássaros e as matas.
Meus pés se deliciam e deslizam
na poeira da estrada.
Caminho, caminho, errante,
em um nomadismo fascinante.
omo é difícil parar!
Amo cada centímetro desse chão,
cada fungo, cada inseto.
A sinfonia do tempo convida a meditar.
Esse cantão onde nasci
embriaga de cinza e verde meus olhos,
Nele estão as pedras mais valiosas,
as tábuas dos mandamentos sagrados
que ensinam a amar cada pássaro solitário
e a aprender com outros vários
como é bom estar junto.
Sou um ser aberto e dobrável,
uma fagulha angustiada
quer fazer fogo e arder
e se multiplicar em brasas,
acendendo as luzes de dentro da alma,
brilhando até implodir
de uma felicidade rara.
MINA
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24. Canto solar
Meu corpo
metamorfose!
Já não sou mais
aquela dos vinte
ou dos trinta...
Bebo do vinho do tempo
com alegria
e agradeço a vida,
esse presente!
Dádiva que colho
em cada amanhecer.
Espírito renovado
corpo
desejo e fogo
Fênix!
E me percebo novinha em folha
em flor
caindo em pétalas,
reverente,
na rosa dos ventos.
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RENATA BOMFIM
25. Irmãs
Há mulheres que são rios;
outras, pedras;
outras, serpentes emplumadas;
E eu amo a todas elas!
Amo aquelas que o tempo silenciou
a rebelada
a escabelada
a indecisa...
amo também as que se ofereceram
em sacrifício,
até mesmo as que preferiram
ser homens.
Nos unem os ciclos da lua,
a terra do corpo que vibra.
Sou mulher, portanto,
a minha alma cintila,
comunga e dialoga
com todas as estrelas da tua.
MINA
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26. Eus
Meus duplos
querem tudo!
O doce e o azedo
o prazer e a dor.
Me querem toda
devorada
reduzida.
Eus de mim que não
se entendem e se deixam possuir.
Camadas de peles nuas
peles por sobre os pelos
suores e agonias.
Saudades da unidade perdida
Eu, ovo,
Ova
guardada no saco
do escroto,
batizada n’água da bacia,
purificada
dos pecados dos outros!
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RENATA BOMFIM
27. Rastros
No meu rastro caminham
sombras, lembranças;
vagueiam sonhos precipitados
vestígios dessas andanças.
Por terras vermelhas e pisadas
sigo os sinais do destino,
ligada por um fio,
sei lá onde ou a quem,
formando uma tessitura
que desconheço.
Fio a fio sou a lã
tramada- entrelaçada,
nódoa maculando a pureza
que também me é das mais
estranhas.
Continuo andando
e deixo involuntários
novos rastros.
MINA
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28. Experimental
Rompeu-se o que era de ouro e fino e delicado.
Brocado de oníricas texturas,
Agora, embrutecido, pedra dura,
guarda tramas, fissuras de sonhos
amordaçados.
Fóssil de um eu cintilante e genuíno
que celebrava o dia e bebia o vinho do porvir
ornamentado de linho fino e rendas.
Agora, sorve o amargor da lembrança
Sem saber qual direção seguir.
Haverá cura para esse mal
que embarga a voz?
Haverá saída desse escarpado íngreme?
Uma fenda, um vão?
Preces e rogos e oferendas
Para um deus pagão
Cultos para aplacar no corpo o desejo ardente,
Para cessar o brilho intermitente,
ofuscado apenas pela dúvida.
Ao fim, encenar num gesto
indecente- libertino- libertário
Voo inaugural para uma nova existência.
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RENATA BOMFIM
30. Moqueca Capixaba
Ela vai sendo aquecida, lenta e
delicadamente, em fogo brando.
Sobre a mesa, o namorado,
temperado com amor, espera.
Pretinha de barro, filha de índio
seu colo acolhe o fruto do mar
fervilhante, emana seu odor
Esperam-na todos, deleitantes.
Um bom vinho, à mesa,
um silêncio respeitoso,
as bocas anseiam e marejam
como velas errantes ao mar.
E o namorado vai sendo devorado,
Transubstanciação, pode-se sentir o
Espírito Santo no céu da boca.
Divina moqueca capixaba!
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RENATA BOMFIM
31. Personae
Sigo, amor, numa luta ferrenha
para ser eu mesma.
Encaixando os meus fragmentos
nas partes do mundo que cabem e
calando a incerteza dos pensamentos
sob a máscara de poeta.
MINA
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32. Possessão
Explosões sem fim
que reverberam.
Ecos dos meus sonhos.
Indecifráveis enigmas.
Trafego ocupado
na viela psíquica.
Labirinto por aí
com saudades do antes,
da origem,
do começo.
Reconheço o caos como sendo
a minha casa.
Nele não me perco.
Ele me pulsa e arremessa para o alto.
Ouço sinfonias dissonantes,
vozes que falam do que não sabem,
mas que, mesmo sem qualquer intenção,
me impulsionam para fora
fincando meus pés no aqui e no agora.
Posso dizer que estou
possuída por mim.
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RENATA BOMFIM
33. Palavra- seta
A tua palavra
tesa
Voa da língua
É seta
Me acerta.
Íngua!
Dói
e não cessa
Abscesso inelutável.
E eu que não sou
uma pobrezinha,
insuflo em você
Ares de Vênus.
Veneno!
Para te devolver
em valores,
as tais palavras-dores
imbuídas em
fel
Solução borbulhante
na taça
onde
desvanece
a minha fantasia.
MINA
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34. Caminhante
Caminho!
A vida, estendida,
oferta.
Humanamente,
ora surtada, louca,
na desmedida certa,
pego atalhos,
sigo retas,
sem discriminação.
Quando centrada,
julgo estar perto
da chegada,
mas logo me interroga
a bifurcação.
Há jornadas e jornadas,
nelas encontramos pessoas
em busca
de si
de um outro
de nada.
Eu apenas sigo,
quietinha e devagar.
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RENATA BOMFIM
35. Colhendo flores,
ouvindo os pássaros,
torcendo o pé,
tropeçando,
sacudindo a poeira.
Absorta em imagens que,
coloro com as minhas saudades
e atualizo
com a fé.
MINA
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36. Palavra
Eu busco na palavra abrigo e
contemplo o tempo vivo
nos sulcos da minha face,
nas minhas mãos estendidas.
Busco amores esquecidos,
rosas murchas, meu coração
está prenhe de saudade.
Sou a Lua adolescente
vista por olhos seculares,
esferas constituintes
das formas elementares,
ameba, átomo, fractal,
espetáculo de cores.
Sou um soneto
que aquela poeta cantou
fazendo vibrar a alma.
E choro baixinho
Deslumbro- emocionada
Em mim giram uni-versos,
pós de estrelas
Criando letras e
gerando galáxias-palavras.
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RENATA BOMFIM
37. Vibrações
Vem buscar a palavra.
As letras estão espalhadas
pelo meu ventre.
Acentos exclamam extasiados:
__
“Verbo!”
Minha anca vibra.
Nas esquinas da minha anatomia,
as vogais reunidas
uma a uma,
celebram conso(n)antes
e fazem sentido no meu coração.
MINA
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38. Verdade
O que queres
com teu sorriso dourado,
fogo-fátuo que ludibria
o outro ser e
derrete o gelo
em água que não sacia?
O que buscas
nas noites e dias
em que teu corpo, com frio, chora,
e tuas mãos encolhidas, à janela,
onde o vento corta, bordam acanhadas
formas desalinhadas?
Por que anseias, Penélope aloprada?
tens cobras nos cabelos?
queres impor medo?
Pois sabe que vais morrer
um dia!...
Então vive o hoje.
Há melodia na catástrofe inaudita
maldita ou bem-dita.
Dita as regras do teu jogo
E acredita.
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RENATA BOMFIM
39. Joga o dado do teu destino.
Teu estatuto é viver!
Então vive!
O amanhã... quem sabe?
Sorrirás o dourado-ouro
tão buscado,
Ópus do teu lótus de mil pétalas,
como Santa Tereza D’Avila
canoniza-te e vai!
Sê o teu projeto!
Realiza o teu mito!
Deixa aos outros as vaias e
os aplausos,
deixa aos outros
um palco vazio.
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40. Fluidez
Gestos fluem de mim
Em ações
Conflitando, afligindo,
Desbravando, colidindo
Convertendo em jardins
as terras secas.
Novos gestos confluem e
retornam para o leito.
Sofro por ser essa coisa revoltada
resistindo à coisificação.
Meus gestos deixam
gosto de letra na língua.
Na boca do mu(n)do
A linguagem assombrada, furiosa
e meio dis-sol-vida
insurrecta- ousada,
porém um pouco perdida,
Líquida-mente,
Vira poesia e
Nada.
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RENATA BOMFIM
45. Rogo
Vem, amor,
entra aqui de mansinho e
conhece o meu mundo,
revelado só para ti.
Desliza por entre os lençóis,
senta à mesa.
São teus os meus espaços,
os meus sonhos e embaraços.
Entra, traz contigo braços fortes,
me abraça e cobre com
beijos ardentes,
traz também,
o teu sorriso de luz.
Cava o meu chão e
planta a tua semente,
rega com amor essa terra,
ressequida de solidão.
Faz cair sobre mim maná,
faz jorrar, abundantemente,
o teu leite e mel,
e me sacia com o teu pão.
MINA
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46. Afins
Somos afins,
máscaras que combinam na cor e na forma.
Nos esgotamos e nos testamos até o limite.
Seguimos construindo pontes de bambu
que atravessamos sorrindo, cautelosos,
ao sabor do vento, balançados
ao sabor das incertezas do amanhã,
experimentando doces e amargos.
Somos afins, sim;
a fome na boca da noite
e no escuro;
lascivos e exaltados,
nos devoramos até não sobrar nada;
deliramos banhados em lágrimas
de dor, de amor e de frustração.
É tanta emoção sem nome,
é vontade de cuidar,
de preservar e de destruir,
com carinho e delicadeza.
Unhas na seda,
Espinho na carne macia,
Água e sangue brotando da rocha...
Prazer e puríssima perversão __
esse amor que se constrói e aniquila
nas raias da solidão.
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RENATA BOMFIM
47. A flor
Sim,
seus pistilos eram doces
Perturbavam-na insetos e pássaros,
e ela, objeto, se ofertava em dores.
Cálice divino a derramar-se
em pleno Jardim das delícias.
Fruição e pavor em perfeita harmonia.
Sacrifício,
Estigma,
Sua assinatura sinistra.
MINA
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48. No reino sensível das frutas
Eu quero rebentar!
No reino plantae fructíferus.
Quero voltar fruta- amaru,
ter o caroço roxo e,
por cima da casca fina,
uma penugem dourada.
Ser aquela que desejas
morder e chupar.
Aquela que, só de imaginar
o líquido carmim,
secretamente trama gracejos a salivar.
Mas na hora H, vou te ferrar!
Meu pêlo- espinho vai perfurar a palavra
camuflada/entalada na tua garganta.
E a tua inflorescência será revelada,
fantoche barato.
Vai ser engraçado!
Vai ser cômico!
Há, há, há!
Vai ser bizarro!
Ver- te como és,
Ver- te como ex,
Ver- te quebrado
in- vertebrado.
Vingança, vingança de fruta-floral...
Ninguém te avisou do perigo?
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RENATA BOMFIM
49. Rosas
Quem sabe uma chuva de pétalas de rosas,
Como desejou Santa Tereza,
ao banhar nosso corpo, lhe restaure a pureza,
religandos-o ao divino?
Gotas de orvalho para potencializar o rito
de passagem para outra dimensão,
a do sagrado.
Fantasia, delírio, logo pensarão!
Mas quem já não foi picado pela serpente
do medo, do ódio e da mágoa?
Ou não teve o seu corpo contaminado
com as toxinas da indiferença e
da desilusão?
Eis que nossos poros estão obstruídos
para o outro; e, nos olhos, grossas escamas
impedem a passagem da luz.
Quem sabe as rosas possam devolver-nos
o frescor e a inocência,
Para que desça sobre nós, do céu, a pomba
da gentileza, petencostes pós-moderno
às avessas.
Assim falaremos outras línguas:
amabilidade,
cuidado, bem-dizer.
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50. Babel do saber e não do poder.
Pois onde há poder não há amor,
e, onde o amor impera, o
sacrifício é sacro, é santo,
ofício de doação per se.
Que surja uma nova era,
a era das rosas, era de ouro,
era de mim e do outro, era de nós.
Assim, nosso banho de rosas
será dourado.
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RENATA BOMFIM
51. Derramamento
O mel escorria
fluídico de sua boca
e já lhe alcançava os seios.
Aquelas gotas douradas
pareciam armadilhas
prontas para capturar o ávido
olhar, o viscoso.
Uma doçura,
melaço negro,
spectrum com sabor de abismo
e de morte.
MINA
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52. Mulher
Mulher,
seu rosto reluz,
polido.
Seus olhos,
janelas que se abrem
para outros tempos.
Banhos de luz
resplandecentes
desenham a sua face
raios do destino.
De onde vem o seu olhar e
a sua boca encarnada,
que grita e canta e xinga,
e compulsiva quer devorar o mundo?
Tantas vezes me causa
estranhamento.
Mulher,
Eu me vejo nos seus olhos.
Quem é você?
Por que me impõe esse
olhar de executora?
Sinto os açoites,
as dores...
O que você reflete de mim?
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RENATA BOMFIM
53. Transpassar suas venezianas
não é tarefa fácil
mas busco te enxergar você
Catedral envidraçada,
Templo óptico,
Onde, invertida, reflito.
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54. Mulherárvore
Por mais que ela quisesse parecer humana,
sua pele, quase casca, a denunciava.
A cada manhã mais veios,
a seiva suave já a percorria, toda.
Mulherárvore.
Urgia o tempo, e ela precisava
reconhecer a sua natureza.
Há tantos anos vivendo entre os humanos,
raça inimiga da sua,
e com eles estabelecendo alianças de sombras,
Seu inferno, asfalto.
Ela era de uma espécie rara e
Híbrida; se descoberta, logo seria alvo
De algum fio afiado.
E a mulher, metamorfose,
já se sentia brotando.
Mais um pouco, e não poderia
esconder-se entre ruges e rendas.
Logo teria galhos e folhas
e o alvoroçado assédio dos pássaros,
que, brigando por um espaço para seus ninhos,
a denunciariam.
O tempo urge,
e a mulherárvore sabe ser chegada a hora
de realizar a sua natureza.
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RENATA BOMFIM
55. Rumos
Nesse momento raízes brotam do meu peito e
saem pela minha boca
Ramos e ramos que se multiplicam,
E, com ímpeto, me desviam para outros rumos ,
diversos, plurais
Busco o Ser da era de ouro,
Plástico, macho e fêmea,
que abdicou das armas e dos espartilhos.
Caules longos crescem para cima e para baixo,
Já alcançam grandes proporções,
e meu corpo está todo (re)coberto.
Sou o meu avesso
te alcançando e abraçando
num enxerto.
Híbridos,
nos reproduziremos fora do padrão,
buscando o exercício harmonioso da
alegria e do contentamento.
MINA
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56. Sedução
Caminho
entre a areia das certezas
e o mar agridoce que brinca
batendo potentes ondas;
repentinamente
a tua língua me traga toda,
me puxa com força.
Estou dentro.
Não luto e espoco
espuma dourada.
Sou tua amante fecunda,
tudonada,
estendo as mãos ao horizonte e,
sem limites,
crio asas e olhos de sereia.
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RENATA BOMFIM
57. Lírios
Barrar os sinais
do outono que brotam
do canto dos olhos como lírios.
Suavidade de um tempo temperado
que acompanha um corpo que se permite
ser sol e tempestade de raios reluzentes.
Parar ou voltar no tempo, não!
basta à vivência uma vez.
E nesta inédita realização
que se autocopia apenas em paródia
vejo que o tempo não existe
Portanto torna-se impossível (mani) pulá-lo.
MINA
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59. Primordial
Assim que ela surgiu das sombras
fez-se silêncio
O vento parou para escutá-la
Primordial.
Sua música fazia brotar as sementes
Incentivava os filhotes
a arriscar o primeiro voo.
Eu, ali, imóvel,
assim como o vento e tudo o mais,
paralisado pela beleza,
Desejava estar com ela.
Eu a conhecia, lá do íntimo,
Era ela quem me despertava toda manhã
E inflamava o meu desejo.
Nunca a possuí.
Ela era de todos e de ninguém,
dormia com a lua, despertava com o Sol,
copulava com as estrelas.
Todos se enamoravam dela.
Mãe e amante de tudo que vive e respira.
Mulher que verte mel e toca a musica
Que compõe a natureza.
MINA
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60. Alquimia
A entrega foi
deliciosa
do leito
deleite
um cálice inverso
universo
de estrelas, gelo e martini
derramados sobre mim.
E eu que era potência e força
certeza e tirania e
te concebia como uma parte de mim
Minha toda , eu te
conduzia pelos caminhos do meu desejo.
Eu, homem aço, ouro e mercúrio
Amalgamado no espelho cruel de Narciso
Eu todo poderoso
Tudo, Todo
Eu.
Agora, ébrio, débil e
prostrado, reconheço ser Nada
Frente ao teu corpo de flor.
Talvez a nuvem que um menino viu
Mas que o vento carregou
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RENATA BOMFIM
61. Pra tão longe que
agora, sem forma, derrama-se todo
e, em partes, chora .
É a história desse homem
Redução/emoção
Que trocou o poder pela
Impossibilidade
Desse pobre que na solidão
conheceu a alegria.
MINA
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62. Girassol
No canteiro ela girava
e girava e girava...
Sol a pino
voluptuosa!
Seu amarelo ofuscava o ouro.
encantava os céticos,
acalmava os desventurados.
Ornamentos sagrados
seus pistilos doces.
Oferendas para os deuses da
polinização e deleite para as abelhas.
Quem me dera girar na tua ciranda e
revestir meu corpo com tuas pétalas.
Quisera poder voltar
e rever o local onde primeiro te vi.
Hoje te admiro dos meus sonhos
Terreiro onde encontro energias e
seres que não são nem de carne
nem de osso.
Lá continuas a girar sol a sol.
Da noite iluminas a minhalma
para que meus olhos brilhem
durante o dia.
62
RENATA BOMFIM
63. Questões poéticas II
O poeta suja as mãos de sangue?
O verbo criador
visita a puta, o insano
ou o doente?
Brota poesia da pedra ou
da pétala da flor?
MINA
63
64. Estranhas entranhas
Você me julga!
Durante muito tempo (a)colhi julgamentos
mas o tempo me ensinou a ensurdecer.
Das entranhas de uma mulher
só ela é quem sabe!
As más águas que por ali correram
Regando sementes que dormitavam
fingindo de mortas.
As dores que floresceram e ainda florescem
vestidas de sangue secam as sementes de solidão.
Então, não venha me dizer que
sou, do mundo, a mais feliz das fêmeas.
Das minhas (estranhas) entranhas
Eu é que sei!
64
RENATA BOMFIM
65. Pertencimento
Pertencimento
Palavra cara
Primorosa
Anula o esquecimento
ameniza a dor
Palavra que une
familiariza
também distingue
singulariza
Milagre
unguento para
a solidão perniciosa
e também para a ira e a fadiga
É certeza de Ser
lembrado
e ser esquecido
momentaneamente
e não se importar
pois sabe ter lugar
no coração do outro
É ter casa
pra voltar
alguém pra abraçar
um corpo dotado de alma
para amar
É estar amparado
MINA
65
66. neste mundo fragmentado
e ser fragmento
no mosaico cósmico
fazer parte do todo
mesmo sendo
uma poeirinha de estrela
e viajar pelo infinito.
66
RENATA BOMFIM
67. sogno
Quando criança eu não sonhava
não sei como nem por quê,
não imaginava que um dia cresceria,
nem as consequências desse fato.
Como somos magníficos!
aprendemos tudo nesta vida,
quando queremos,
inclusive a sonhar...
Eu, laboratório particular
de venezianas sempre abertas
a contemplar o mundo, e que mundo!
Singularidade- constructo dos meus
não-sonhos de criança,
e dos sonhos que, a duras penas,
aprendi a tecer.
MINA
67
71. Ela estava deitada e deixa-se amar,
Do alto do seu divã, ela sorri sem medo,
Ao meu amor profundo e doce como o mar
Que procura alcançá-la assim como um rochedo.
O olhar fixado em mim, como um tigre domado,
Com ar vago e distante ensaiava as poses,
E o seu candor unido ao ar mais debochado,
Só vai fatalizar suas metamorfoses.
As Flores do Mal / Charles Baudelaire
MINA
71
73. Gato
A Lili, Verinha, Elvira, Elvis,
Elvis Júnior e Dedo
Deslizo por entre bibelôs e livros e
leio histórias de outros tempos.
Sou amante de filosofia e artes e
penetro os mistérios do invisível.
Faço do homem meu companheiro,
meu amigo, e o amo profundamente.
Se esse não me retribui,
felinamente saio,
fujo, pulo de qualquer andar.
Transponho os muros do ódio
e da crueldade que se elevam
e busco
o mato,
o rato,
afeto.
Aceito os vivos e os mortos
amigos visíveis e invisíveis,
muitos visíveis ausentes,
muitos presentes da vida na morte.
Aprendi a saltar e a escalar as árvores,
E, ao contrário do que pensam,
não sou inimigo do cachorro
nem do pássaro.
Não sou ingrato ou ladrão,
MINA
73
74. fui difamado,
por não me submeter à prisão,
à domesticação.
Sou primo do tigre, do leão,
sinônimo de beleza,
No antigo Egito fui adorado
Mas não sou um deus,
Sou um gato.
74
RENATA BOMFIM
75. Felinamente
Mulher pega no ar,
pressente.
Aproveita vezes sete
a vida que tem,
presente e dádiva.
Mulher peca nua,
santamente.
Seu gozo resgata do purgatório
sete almas,
transmuta karmas,
acalma,
acalenta,
Atalanta.
Lanha o peito do amado
até o coração que,
encarnado,
sangra,
e lá ela descansa,
felinamente.
MINA
75
76. Rainha de Copas
Embaralhada
na mesa
manda a Rainha.
Vulnerável?
Não!
Venerável!
Voltada para cima,
Contempla o futuro.
Sua casa,
a mobilidade.
Setenta e sete súditos
Por ela ardem de desejo.
O rei/escravo submete-se.
Os naipes se curvam humildemente.
Vitória régia é o seu jogo,
Curinga baila enquanto
a fêmea canta,
o fado da fortuna.
76
RENATA BOMFIM
77. Ser
Nem um corpo vazio
nem uma mente alienada.
Instâncias plurais
Em busca de definições.
A alma cantada na sua essência
clama pelo sangue e pela carne
desejosa dos fluídos divinos.
A natureza nos brinda
com seus mistérios.
Nem os ventos mais distantes
deixam de estar presentes
e de beijar as colinas próximas.
É tudo uma questão de tempo
tempo mágico, mítico.
É tudo uma questão de
Estar para além do tempo.
Nos giros da grande roda azul
os elementais do fogo trabalham
incessantemente para a purificação
da matéria organo-sutil.
E a alma,
durante a jornada,
vai sendo preenchida pelas
cinzas benditas,
por sonhos e esperanças.
MINA
77
78. Orquestrações
Quero falar do silêncio.
Esse ouro que pode ser traduzido
em espaços amplos e arejados.
Preciso apenas de um minuto das
dissonâncias do mundo.
Minha alma nesse instante
é penetrante apenas pela tua voz
e refletida por palavras espermáticas.
Recebo o recado íntimo,
palavras sagradas de amor,
sussuradas em promessas que
reverberam em mim escarlates,
harpas com tons de lira.
E voltam devagar as orquestras,
salão cheio novamente,
Inicia-se a festa!
Pano de fundo perfeito
para o teu solo privilegiado.
78
RENATA BOMFIM
79. O contador de histórias
Bem-vindo, peregrino!
Chegaste de mãos vazias
Não tens ouro nem prata
nem objetos de grande valor.
Mas trouxeste contigo as lembranças
dos caminhos percorridos.
Dias, semanas e meses vislumbrando sóis e luas
Banhando-te no orvalho.
Experiências que fizeram de ti um sábio.
Me presenteaste com histórias
do tesouro da tua alma.
Tesouro que não acumulas,
nem guardas somente para ti.
Trouxeste noticias e singularidades
de povos que eu não conhecia
e as cores dos prados, dos cerrados,
o barulho das matas e das fontes.
Com a tua chegada, a minha alma iluminou-se
foi como se dentro de mim um forte vento
abrisse antigas venezianas.
E, assim como o vento sul,
novamente partirás.
Mas sabe que tens aqui
uma irmã a te esperar.
MINA
79
80. Manifesto
Ela chegou nua
à porta do homem.
Despida dos costumeiros
Adornos de mulher.
Ela era toda verdade
e ofertava-se em cascata
desdobrando-se em
promessas translúcidas que,
com uma dose de fé,
trariam respostas ao coração mais aflito.
Mas o homem não entendeu.
Pensou que aquele corpo de seda
servisse simplesmente para
satisfazer seus desejos atravessados.
O tempo passou, e, nua, ela partiu
deixando para trás o vazio
que ele só perceberia
quando um dia acordasse
Do sono profundo.
Ela saiu da vida do homem para
nunca mais voltar e lançou-se ao desconhecido
em busca de outros corpos
para suas letras.
80
RENATA BOMFIM
81. Caminhos
Te encontrei assim,
caminhando.
Tinhas as mãos soltas,
sem pesos, nem bagagens.
Eu, toda estrada,
já vislumbrava o sem-fim,
perdida em bifurcações que
me trouxeram a este ponto,
marco precioso na topografia
do meu entendimento.
Caminhavas, e eu já te buscava,
seguia os teus passos
imaginando o teu ritmo,
o som da tua respiração.
Quem sabe, ofegantes,
pudéssemos matar a sede
na boca um do outro.
Inexplicáveis e
contraditórios sentidos,
setas e retas
atravessadas por desejos oblíquos.
Eu olho para o horizonte e
digo SIM, encantada.
MINA
81
82. Vejo este mundo todo estendido
se ofertando em novos caminhos,
desejantes de estradas abertas
Juntos agora, continuaremos seguindo,
nas estreitas e malsinalizadas curvas
dos nossos corpos, batizados de inéditos,
terra que ainda não foi pisada.
82
RENATA BOMFIM
83. Encontro
Laços e fitas e fios e linhas
Nós cegos, que importa?
Estamos unidos.
Delícias e sufocamentos,
Laços que enfeitam a vida,
olhos fitando o infinito
com seus fios cinza- dourados.
Assim a união se concretiza.
Dores e lágrimas,
medos inexplicáveis
até mesmo da plenitude e
da felicidade.
É verdade, somos humanos,
estruturados na falta,
deliciados com a ausência.
Mas o divino acontece
e nossos eus se tocam.
Eis o que acredito ser
o milagre da vida!
MINA
83
84. Dânae
O demônio da inquietude
gerando na alma
o contraponto,
o diverso.
Sangue e sêmem,
gestos a escorrer.
E eu me sinto tão tua!
Mulher, fêmea,
meu nome
é prazer.
Odisseia no mar da indiferença.
Mas te pressinto,
e firmo um novo rumo,
teu centro desconexo,
infinito,
pretenso absoluto.
Nele me perco
e encontro
o bruto da minha
feminilidade.
84
RENATA BOMFIM
85. Mentiras sinceras
Eu finjo e minto, sim!
Finjo ter o que não tenho e
ser a pessoa que não sou.
Finjo que sou a mais feliz,
e, se me convém, aquela cuja vida
é puro amargor.
Amar você finjo também,
e delicio-me com a brincadeira.
Finjo múltiplos orgasmos,
finjo sentir dor, emoção.
Finjo ser flor casta,
purinha, em pleno botão.
Aquela que precisa ser protegida.
O choro, puro fingimento.
São cenas e imagens que nascem
das camadas profundas da mente,
verbo- mentirinhas sinceras que
vão encharcando a terra da poesia,
e gerando fios e linhas
para que eu trame.
A verdade?
Essa dama obscena,
ela que se dane!
O importante é atuar com primazia.
Se todo poeta é um fingidor,
Erga-se, então, uma forca coletiva!
MINA
85
86. Mas na fila para o enforcamento
serei das últimas,
Talvez até se quebre a corda puída.
Enforca primeiro o Pessoa,
em seguida o Nobre, a Hilda,
os irmãos Campos na sequência,
e faz o Pignatari assistir.
Mas advirto: não adianta!
Poeta morto é o que mais canta,
Não acreditas?
Pega um livro da Espanca, lê,
engole em seco e cala-te.
86
RENATA BOMFIM
87. Exotérica
Somos um todo!
Foi o que disse o místico.
Vibrei e aceitei o dito
como verdade absoluta.
Tudo bem, desde que esse todo
ao qual eu pertença
seja a parte mais bonita,
gostosa e opulenta.
Quanto ao todo que
corresponde à parte,
pobre e ignorante,
que pertença a outro!
Enquanto isso vou acendendo incenso,
tomando banhos de ervas,
massagens com óleos essenciais.
Visto roupas brancas e puras
e ouço mantras transcendentais.
Se o Sol nasceu para todos,
a sombra nasceu apenas para alguns!
É a lei, a lenha, o fogo!
Sigo vencendo o medo da morte
E entoando doces melodias.
Que esse outro, sem sorte,
(des)conhecido e renegado,
se contente com a vida
que “terá” após a morte.
MINA
87
88. O céu, anjos, harpas, mas nada de
cervejinha, nem de mulher.
E o meu todo regozija,
ele é todo meu!
Neste caminho que é a vida,
sou levado a buscar o nirvana,
a estar com todos os chakras alinhados,
e com a aura multicolorida,
purpurinada.
A não cultivar a culpa nem o remorso.
Mas o místico só não me disse
o que há ao fim dessa jornada.
88
RENATA BOMFIM
89. Auras
Estou nua de mim!
A flor da minha pele desabrocha.
Perfumo o espaço que não ocupo,
reflito imagens que desconstruí.
Sinto a brisa, o vento e a chuva,
Não preciso ser ninguém,
além dessa pele fina,
que o tempo machuca.
Marcas de mim nessa nova mulher
que rebenta em auras.
MINA
89
90. Faces
Minha face brinca de ser Outra
e à medida que o tempo passa
ela se reveste ora de sorrisos
ora de lágrimas,
se expandindo ao infinito.
Ao sabor do vento
esse rosto que não é só meu
busca abrigo nas mãos de outra pessoa.
E a imagem que você beija
e diz conhecer bem
vai se transfigurando
e ensaia ser vale
Flor
tigre
cobra
água
madeira
fogo
voltando devagar a ser essa eu/outra
conhecida e estranha
sempre em busca de metamorfoses.
90
RENATA BOMFIM
91. Blue chip
Ela
(em)cena múltiplos papéis,
moeda (in)certa
no mercado da fantasia.
Blue chip!
Da mesa à cama,
veneno e
liquidez.
A desejada!
Seduz
no movimento
(des)a- fiante,
de suas ações
inesperadas.
MINA
91
92. Calíope
Serei a dama dos teus sonhos
e dos teus pesadelos.
A morte calada.
Luz que revela os contornos da carne.
Serei amor
Visão daquele que tem a marca e
vocifera interminávelmente.
Ascenderei aos campo divinos,
serei ás e dama,
cântico sincero e
encantamento,
ao te desamarrar do mastro
do navio
da indiferença.
92
RENATA BOMFIM
93. Sereia
Ela canta e encanta.
Sereia!
Monstro-peixe- mulher.
Traz numa taça,
disputada gota dourada.
néctar!
Oferenda que sela pactos.
Ela sorri!
Ele é todo seu,
Então, realizada,
Coleriza.
Canto das profundezas,
Experiência numinosa,
Arrebatamento.
Agora,
na casa do prazer e da morte,
o homem-cativo-encantado,
chora.
MINA
93
94. Encantamento
Para espantar as entidades da má sorte
não bastam velas ou incensos
nem mesmo flores jogadas ao mar
sal fino ou grosso, abre- caminho,
espadas de são Jorge ou patuás.
O encantamento só funciona se
praticado por alguém que ainda detém
o poder de se encantar
Somente um ser encantado
pode ser encantador.
Mas esses seres, a cada dia,
são mais raros,
falta pouco para serem
encontrados; apenas nos contos de fadas,
lá nos livros, onde moram todos os
encantamentos.
Espanto é outro determinante e
funciona para o encantador como uma chave
que abre a porta da mente e do corpo.
Espantosa é a sensação de deslumbramento
em frente ao mistério da vida,
e às idéias que, pasmos,
acreditamos serem capazes de mudar o mundo.
A surpresa da aceitação,
Outro potencial humano:
aceitamos as falácias e as alegrias que
94
RENATA BOMFIM
95. viajam com o vento e
desabrocham como as flores.
Embruxamento é vital
para quem quer ter poder
para espantar a má sorte.
Só se ganha quando se perde,
eis o mistério dos mistérios.
Sempre há um preço a ser pago
por cada gota de lágrima sorridente
É preciso deixar algo ir
para que se possa receber
presentes do universo.
Mistérios?
A má sorte nada mais é que uma fada triste
cuja face o tempo maltratou.
Pobre fada, seu encanto a cegou
O feitiço voltou-se contra o feiticeiro.
MINA
95
99. As omoplatas cresceram e se cobriram de
penastransparentes como os cristais,
transformando-se em asas e, quando ficaram
fortes, eu voei. Atravessei o espaço e ia colhendo as
tesselas que encontrava e as colocava presas com o
meu sangue cheio de amor pela vida que Deus me
deu. Ao avizinhar-me do seu trono Ele estendeu-me
as mãos, ergueu-me, vi e senti o Universo todo
colorido, pleno de histórias contadas pelas tesselas
que formaram o grande mosaico do firmamento.
Amei a visão musiva com toda a força do meu
coração.
Freda Cavalcante Jardim
MINA
99
101. Querubim
Caiu!
Querubins caem a todo o momento,
Prenunciando o inevitável.
Que a queda é algo inerente
ao homem, mas atinge
até mesmo os querubins.
Almas encantadas
Com asas e caras de criança,
Eles nos ensinam
O sentido da palavra
C a i r.
Eu caio!
Princípio vital!
Levanto entorpecida
numa performance teatral,
sacudindo a poeira brilhante,
as plumas e pregas desalinhadas do vestido.
Não se deve cair de qualquer jeito!
Deve- se cair com graça,
com leveza,
para que os seus inimigos
sintam inveja, até mesmo,
do estatelar.
O prazer alheio
MINA
101
102. não está apenas na visão da queda
alheia, mas na vergonha.
Então a performance é importante,
a singularidade do tombo.
Cuidado para que não percas isso,
esse jeito especial de cair
e provocar a dor nos outros.
Nem mesmo os querubins
Têm isso!
102
RENATA BOMFIM
103. Tecendo a espera
Sempre ela e seus bordados,
tecendo a espera,
tecendo esperança,
tecendo sonhos,
desde criança.
Fio a fio no tempo,
negros fios vertendo em lágrimas,
fios da navalha,
delgados e
retorcidos.
Fios da fibra do girassol.
O rosto corado e a boca encarnada
da rosa que ficava no jardim
guardam a resistente corrente fina,
que enciúma a aranha.
Fio da vida que não espera,
Ela borda incansavelmente.
Surgem os nós,
sentenças de morte.
A bordadeira esperançosa
passa a desatadora
do tempo que passa,
e não perdoa.
E novos fios serão precisos.
Encarnados, azuis, amarelos e verdes
para reavivar o desejo da mulher,
MINA
103
104. de tecer o desejo que
o tempo afrouxou.
Representação,
traçado firme,
e o bordado
volta a brotar da agulha
em busca de novos desenhos,
de novos sonhos,
É a lei do oficio de tecer.
Filha de Pandora, a tecelã
Sua mãe lhe contou que
um dia abriu uma caixa
que não podia,
e dali saíram muitos pesadelos.
Seu castigo foi tecer até a morte
e desatar nós.
Mas ela sabia que ainda havia um sonho
preso dentro da caixa,
e pediu para a filha
libertá-lo.
Caixa de fios/ sonhos de mãe/morta.
Abre a caixa a filha,
Mudanças acontecem.
104
RENATA BOMFIM
105. Tocaia
De uma pequena fresta
meu olhar ensaia o mundo.
Fora desse lugar, desse dentro,
Universo-diverso,
Aquarelado- fluido,
quase evanescente,
O meu “EU” jaz em segurança.
Na tocaia, sempre paciente,
espera/ espreita e saliva
o desconhecido...
Será possível sair dessa casa/ toca/ tumba
com asas e voar para longe?
Ou devo corajosamente seguir
o destino de presa,
me deixando ser comida inteira,
e sem rancores,
apenas seguindo as leis imutáveis
da natureza?
Se assim for, que eu seja o melhor
banquete desse bicho/vida
faminto de infinito.
Que eu possa perpetuar em essência
a existência, driblando à força e,
sorrateiramente, o algoz.
Sendo parte de seu sangue e de sua carne
manobrarei seus ossos e
MINA
105
106. perturbarei seus sentidos.
Será o meu eu dissolvido a guiá-lo
em busca de novos eus
e infinitamente se perpetuando e
realizando, na carne/ sangue
e desejo de um terceiro.
106
RENATA BOMFIM
107. Tela corpórea
Parque de diversões
Parque de dinossauros
Palco de distrações
CORPO!
Dentro e fora se avizinham
Nessa tela onde
o desejo pinta a sua obra-prima.
Na gangorra as emoções
Derramam-se
Amores, dores e esperanças
Cativos dessa Pandora
Presente divino
Mulher-criança.
MINA
107
108. Noiva funesta
Ela estava predestinada.
Seu corpo exalava, agora,
perfume de rosa podre
aroma de adeus
Belo e triste...
A noiva fechara os olhos.
Seu amante estava lá.
Amou-a por toda a vida,
A cada lágrima derramada
a lembrança das
viagens gozosas e frustradas
Naquele corpo agora
Inerte e fúngico.
Desesperado
Lança-se sobre o corpus
Quer renovar seus votos
Obsoletos...
Do casamento implícito
Noiva de Éter
Holometabólica
Bilateral
Quem sabe o seu destino?
Seu corpo
108
RENATA BOMFIM
109. Doce...
Derrama-se,
Agora, cada vez mais
Manancial.
E dizem que...
E choram e HIPOCRISAM
Crisântemos na
vida ex vai-se
O desejo não morre
Viaja com suas asas ferrugíneas
Mandaçaia
Para além da nossa compreensão.
MINA
109
110. Cá entre nós...
Cá entre nós
Homens, mulheres, crianças,
bichos, plantas e mudas de caqui.
A vida e suas contradições
nos unindo e mantendo ligados
com a sua gosma...
A gente gozando com essa agonia...
A liberdade não nos interessa,
faz sentir claustrofobia.
Somos dois loucos
dois tresloucados
poeirinhas cósmicas
se achando gente grande
se achando grande-coisa
importantes.
não somos NADA!
Mas somos tudo um para o outro
O que fazer?
Não quero pensar no amanhã
basta viver o agora
e celebrar toda essa tirania,
com que o amor, perverso, nos açoita...
Que delícia!!!
110
RENATA BOMFIM
111. Contradições
Ser
contradição e karma.
Assediada e incendiada
pela inquietude.
Desejante e desejosa.
pedante, insuportável,
e Cleópatra, em sua glória,
buscando uma morte
cinematográfica.
MINA
111
112. Xamã
Dança
Serpente- crepitando ao redor do fogo.
Livre, corpo nu, celebra a terra
com cânticos e oferendas
Deposita sobre o altar objetos mágicos.
Energias sutís emanam dos seus pés-tambores
cadência do despertar.
Fêmea, completitude no seu nada.
Tudo no tempo e no espaço,
Da sua fenda brota o sangue sagrado,
interstício do amor sem culpa.
Braços abertos, invoca a deusa-mãe adorada
Bast e Neith.
Recadeira do tempo
fiandeira
carpideira
parca
sereia,
ela é o próprio tempo encarnado
devorando e gerando
aos outros e a si mesma.
112
RENATA BOMFIM
113. Amor etéreo
Sete foram os padecimentos da moça
Ousou amar um deus, amor de anjo.
Etéreo e sublime,
em sonhos, ele lhe ofertava
promessas ardentes.
Já não queria acordar
pesadelos da alma
Então chorou as lágrimas do adeus
E nunca mais dormiu.
MINA
113
114. Namorada
Nem esposa nem amante,
Namorada!
É o quero ser
Sonho com o estado de graça
da mulher que não tem dono,
que tem asas
que deliciosamente ameaça voar.
Mas também quer o laço
do abraço
relaxado e quente.
Mas ameaçando o nó.
Abomino a convivência amistosa,
a rotina,
a monotonia,
o lençol perfumado __
lençol de casal feliz deve ser suado
do amor que não fica sempre para amanhã.
Amanhã o lençol se molha com as lágrimas da
desesperança, vertidas na clausura da
prisão domiciliar.
Enfim, eu quero ser sua namorada,
e que linda namorada,
a mais devotada,
aquela que você deseja a todo instante
114
RENATA BOMFIM
115. que adora e até mesmo idolatra.
Eu só quero isso,
para poder me derramar,
chegar num ponto onde se pode tudo.
Até dizer “eu te amo” sem olhar para trás.
MINA
115
116. Questões eco-poÉticas
A floresta está queimando,
os mananciais se esgotam;
é a vida que pede socorro.
E eu vejo tudo aterrorizada,
e não faço nada, ou faço pouco.
A nave está desgovernada,
à deriva, a vida sob ameaça!
E eu vejo tudo aterrorizada,
e finjo, para não enlouquecer,
que não acontece nada.
116
RENATA BOMFIM
117. Terra
Letargia
Consumo
A terra agoniza,
o gemido é visceral.
Meu canto é lamento,
riso revestido de cinismo,
marca do desse nosso tempo.
A alma definha!
A morte se avizinha enquanto
muitos esperam o arrebatamento.
Temos escolha, mas,
a fauna e a flora não.
Se a terra está em nossas mãos?
Fantasia.
Arroubo.
Megalomania.
feneceremos primeiro!
MINA
117
118. Assombrações
Secaram-se as folhas das árvores e
nuvens cinzas se avizinham
trazendo consigo a chuva e o frio.
Penso em você com saudade.
Você que coloriu os meus dias,
que me inspirou um mosaico e
me deu uma flor ainda em botão.
Penso em você com amor,
do fundo de minha solidão.
Fantasmas, sombras, melodias do adeus __
É o passado que me (re)visita com lembranças,
aquecendo o coração.
Fantasmas do passado, tão presentes que,
em momentos, o hoje se torna rarefeito,
fumaça de ilusão.
118
RENATA BOMFIM
119. Fantasmas
Vou mandar rezar uma missa
Para que me deixes descansar
e para que também descanses.
E se em algum tempo
teus olhos me encontrem
não sejam faca na minha carne,
lancinante.
Minha fé está plantada no aqui e agora,
Vivo como posso,
danço a música infligida pelo tempo,
que joga comigo, com você e com nossos
parceiros invisíveis.
Se as rezas nos salvarão das regras?
Não sei te responder.
Sigamos em frente, meu ex-amor,
Já nos basta o viver.
MINA
119
120. Viagem
Imaginar o abismo dos teus olhos __
Convite obsceno,
Mergulho incomensurável.
Digo sim!
Entrega e deleite.
E de-canto poemas mortos
sob a luz da minha vergonha
do tédio e da ilusão.
120
RENATA BOMFIM
121. Honoré
É Honoré,
Sou uma mulher de trinta!
Veem em mim atrativos irresistíveis,
Esperam que eu satisfaça a tudo e a todos,
na comédia humana da vida.
Mas confesso que
às vezes me sinto feia,
presa a uma teia louca que
afirma que preciso de plástica,
de muito dinheiro, de posição.
É um vestibular diferente,
e me cobram: “escolha ou isso, ou aquilo”,
ser a gostosona,
ou ser a mãe; se não isso, ser
uma profissional machona.
Sabe o que quero, Nô?
Julgue se é pedir demais:
Viver em paz!
Esquecer essa coisa de idade,
de cobrança, de “se enquadre”.
Quero me libertar dos estereótipos.
Já passei pela faculdade.
Chega de ter que sempre escolher.
Quero acolher!
Então, já digo, na lata,
Que de mim não esperem nada!
MINA
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122. Peço que larguem do meu pé,
Deixem que eu oferte carinho,
amizade, lealdade, e me zangue também,
se tiver vontade. Que eu
trabalhe e que tenha filhos, ou não.
Não me cobrem nada!
Me deixem ser uma mulher de trinta
assim como sou hoje,
quase ajuizada.
122
RENATA BOMFIM
123. Juramento de Hipócritas
Eu juro pelo meu pai,
pela minha mãe e
por todos os santos,
depois que descolar meu diploma,
abrir uma clínica na Enseada do Suá,
particular,
com vista para o mar,
para atender senhoras e senhores
da alta sociedade
com serviços de alta qualidade
quartos assinados por decoradores
cardápio de chefe, até caviar
e mais bajulações e favores...
Juro suprir (mesmo que momentaneamente)
a ânsia dessa fina clientela
que demanda, ou melhor, que clama
por beleza e juventude;
buscar contemplar suas aspirações e sonhos
com lipoaspirações e
lipoesculturas;
corrigir a flacidez de suas peles
disfarçar suas estrias e
amenizar suas rugas com
toxina butolínica,
reaplicando-a em doses cada vez maiores
caso o sulco persista.
MINA
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124. Seus narizes empinados
mais empinados deixarei
com uma rinoplastia
e próteses de mama:
P M, G, GG, extras, extragrandes,
.
turbinas privilegiadas
das endinheiradas saradas
que mais clientes me trarão...
E a coisa vai esquentar
com peelings superficiais,
médios e profundos
as faces rosadas em brasa ficarão
mas sofrer faz parte do processo,
não aceitarei reclamação.
E ao fim da carreira, velhinho,
endinheirado e
todo esticado tipo tamborim
vou morar na praia
do Francês ou da Atalaia,
pois profissional de sucesso
tem que sair de Vitória,
mesmo que seja
no fim da história.
124
RENATA BOMFIM
125. Poeminha de gratidão
O Espírito descansa
depois de um tempo de tristeza.
Relaxa e canta,
admirando a natureza.
Sou tomada, algumas vezes,
por uma nostalgia...
lembro de dias mais felizes que esses,
mas logo afasto tais fantasias.
O presente é dádiva,
é abertura ao inesperado, é expansão,
independente de tudo, há vida!
O céu, da cor que esteja, é lindo!
e eu agradeço por tudo isso
de todo o meu coração.
MINA
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126. Mote
Mote
o trote
o xote
vou seguindo
sou essa alma que grita
Inspirada!
cobra pronta a dar o bote
sou a nuvem punida pelo vento
arrastada
Banida
pro norte
pra morte
viro chuva
água bonita
vejo o arco-íris
e re-nasço
parte dessa cadeia vital
dando energia
pra roda gigante azul.
Salve a vida!
126
RENATA BOMFIM
127. Ser poeta
Ser poeta é cantar alto
mesmo com a voz embargada
enquanto o dia refracta toda a luz.
É esperar com as mãos estendidas
para doar a vida.
É cantar de um quarto escuro
de onde, mais claramente,
se pode sentir as cores e os cheiros.
É buscar o outro
e encontrar a si mesmo.
Passado, presente e
futuro fragmentados,
quando coisas esquecidas
afloram de repente.
Narciso sabia de tudo
e fez um mergulho preciso
nas águas turvas do rio do potencial
Estige.
Foi em busca do seu sol
e do sentido que o fará um dia
emergir deus.
A solidão é um abismo
e guarda uma paz preciosa!
Sou poeta e canto,
arrisco a vida
Se a voz, embargada, irrita.
Canto, canto e canto mais ainda
e não ligo.
MINA
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128. A tristeza de Ulisses
Cais do descontentamento,
Felicidade no horizonte da utopia,
Falta de algo ou de alguém...
(coro) desconhecemos o desejo...
Porto de ilusões
subúrbio do medo
(coro) salve-nos ó Deus,
das prostitutas e dos desajustados.
Desejos errantes, embriagados
e prontos para colonizar o amor;
Velas rútilo-delirantes,
Cantos de morte e de beleza,
(coro) Não há esperança...
Sereias e Deusas,
Saudades, lágrimas e dores,
overdose de horizonte,
Um mundo todo cinza e azul.
Busco Ítaca!
Busco a minha alma
na alma daquela que tece à espera
daquela que é redenção
que é o tesão da vida no Mar
128
RENATA BOMFIM
129. daquela que ressignifica a errância
Mas seu encanto acena como promessa
e dos meus sonhos
apenas a tangencio...
(coro) Vai, Ulisses, cumpre o destino
que é só teu!
MINA
129
130. Caixa de Pandora
Ela meteu a mão na cumbuca,
estava curiosa para saber
o que guardava a tal caixinha
cheia de fogo e palavras selvagens.
Era o verbo fêmea virando carne
E que carne!
Pandora era uma puta
revestida de santidade.
Encantamento puro era o seu olhar
e a sua voz era um veludo.
Epimeteu logo dela se enamorou.
Ela chegou ao mundo trazendo consigo
segredos gramaticais
e conjugações formidáveis, como
compromisso e fidelidade.
Na caixa, pasmem, havia chocolates
bombons recheados
com morango e damasco
e licor de amarula.
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RENATA BOMFIM
131. Espetáculo
Lá o duplo desfaz as tranças longas
com as mãos se desdobrando em gracejos
os pés pulsam movidos por força misteriosa
nesse lugar não lugar onde sou o oposto ao avesso
miro o horizonte de cabeça para baixo
desse palco
o corpo é flectivel ad infinitum
forma círculos
ganha aplausos
sou artista e
a cara branca de pó
mostra que o espetáculo será dantesco
mulheres e homens irão rir
quando o meu corpo voar pelos ares
preso a uma corda invisível
imagine então que este
também é aquele
desenhado em estúpidos arabescos
MINA
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132. Fome
Eu preciso dessa letra e deste verbo.
Me desculpem se incomodo.
Preciso também da (re)flexão que nutre
e dos pontos e vírgulas que afogam a sede.
Sonho com o soneto elegante
e com o haicai decidido.
A carência do conto de amor e de dor
e do romance que ainda não foi escrito
me fazem ser assim,
fazem a minha alma ansear pelo mundo
e me resigna a cumprir a pena de ser poetisa,
mesmo quando a folha é pequena
e falta espaço para a expressão latente.
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RENATA BOMFIM
133. Canção para Frida Kahlo
Quero abraçar teu desamparo.
Ser tua gêmea, invertida,
e Outra, ainda.
Quero te amparar toda
nos meus braços,
parte por parte
emendar
a tua perda irreparável.
Denuncias meus segredos
com tuas imagens:
dor, fel, doçura.
Arrancas de mim a máscara
sem que eu tenha medo,
revelada, posso respirar
liberdade.
Desejo tocar epifânica e santamente
o manto sagrado,
azul turquesa,
de tua paleta sem tinta.
Admirar teus artefatos
Falsificados e preciosos:
Colares, anéis e sonhos de jade,
vestidos longos e rodados,
que espalham flores de estampas
MINA
133
134. espetaculares.
Teu corpo frágil,é diamante,
Transmutando-se em verdes,
Ocres, preto luto e branco selvagem.
Aquarela inquietante
criando imagens da terra e do céu.
A feminilidade do teu traçado,
gera sentidos contrários.
Te mirando consigo acessar
o avesso do que escrevo.
Quero abraçar teu desamparo, sim!
Acolher a dor que mora dentro,
curar as chagas, deixar ir,
libertar os sonhos que não vivi
e ser uma com você nesse universo.
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RENATA BOMFIM
135. Minha Lili
A ela e somente ela, como amor.
Lili...
Felina
Filha!
Não sei explicar seu mistério
tão pequenina misteriosa e recatada
Você é uma fonte de amor sem fim
Fonte de luz e de bem-querer
Ninguém nunca me quis assim!
Só você!
Você aceita meus erros e ignorâncias
Faz brotar da minha boca
um sorriso verdadeiro.
Desperta e arranca de minhas entranhas
o que há de melhor.
Com você eu aprendi a ser gente!
Acredito que você é um anjo
uma gatinha-querubim.
Eu a quero pra sempre perto de mim
mas, infelizmente, sempre é tanto tempo...
um tempo sobre o qual não tenho poder!
Quando você for embora, ai, eu nem sei...
vai ficar um buraco tão grande no meu peito
MINA
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136. tão grande...
um poço!
Mas vou ver você em cada rosa
e no sorriso das crianças
Minha Lilizinha...
Lembro-me de você pequeninha
Você cresceu, cresceu, e agora
está velhinha...
Chamo você de meu amor, de “minha vovozinha”
Olhe, meu anjinho,
se a chamo minha
é mania de ser humano
de achar que possui tudo
as coisas, as pessoas, os bichinhos,
Não ligue...
A verdade é que sou eu
que sempre fui por inteiro sua!
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RENATA BOMFIM