1. REVISTA DE (IN)FORMAÇÃO PARA AGENTES DE LEITURA | ANO 9 | FASCÍCULO 19 | PRINCESAS AFRICANAS | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR | DISTRIBUIÇÃO DIRIGIDA
PRINCESAS AFRICANAS
2.
3. LEITURASCOMPARTILHADAS
REVISTA DE (IN)FORMAÇÃO PARA AGENTES DE LEITURA | ANO 9 | FASCÍCULO 19 | PRINCESAS AFRICANAS | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR | DISTRIBUIÇÃO DIRIGIDA
Leituras Compartilhadas
Março/2009
Princesas
Diretor Responsável: Jason Prado
Editor: Ana Claudia Maia
Conselho Editorial: Ana Lúcia Silva Souza e Sueli de Oliveira Rocha
Africanas
Direção de Arte e Produção Gráfica: Suzana Lustosa da Fonseca
Ilustrações: Taisa Borges
Outras Ilustrações:
Montagens feitas por Suzana Lustosa da Fonseca a partir de ilustrações
de Taisa Borges (págs. 18, 19, 38, 39, 56, 57, 66, 71).
Banco de Imagens: Fotolia
Revisão: Sueli de Oliveira Rocha
Colaboração: Márcio Von Kriiger
Tiragem: 10.000 exemplares
Leituras Compartilhadas é uma publicação do Leia Brasil
distribuída gratuitamente às escolas conveniadas.
Todos os direitos foram cedidos pelos autores para os fins aqui descritos.
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4. O
África dos meus sonhos
potencial de sustentabilidade A nova edição do Leituras Compartilhadas
de todo e qualquer empreendimento é um mostra o desejo constante do Programa em
dos fatores que confere excelência à inicia- atender as demandas de nossos maiores
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tiva. E, para isso, a gestão participativa – parceiros: os mais de nove mil professores
processo em que as partes envolvidas e 300 mil alunos que constroem o sucesso
expõem suas possibilidades e necessidades desta ação nas 310 escolas onde o Petrobras
– é fundamental na conquista dos bons Programa de Leitura Bacia de Campos é
resultados. Assim é o Petrobras Programa desenvolvido. As Princesas Africanas condu-
de Leitura Bacia de Campos, iniciativa zirão um estudo menos superficial da África,
social apoiada pelas unidades de Negócio continente que esconde suas riquezas na
da Bacia de Campos e do Rio de Janeiro pluralidade de tradições que remontam à
em 17 municípios da área de influência da origem da humanidade.
maior província petrolífera do país. A sustentabilidade de nossas ações
Por seu constante alinhamento às depende dessa disposição em aprofundar
demandas de seu público-alvo, alunos e os conhecimentos, tanto no passado quanto
professores da rede pública de ensino das nos desafios impostos pelas novas eras que
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cidades atendidas, o Petrobras Programa de virão. Assim a Petrobras conduz seus inves-
Leitura Bacia de Campos vem contribuindo timentos empresariais e sociais. Para que
para a melhoria dos índices que mensuram chegássemos ao imenso tesouro escondido
a educação. Exemplo disso, a pontuação na camada pré-sal, tivemos que buscar as
que as escolas e municípios atendidos con- regiões mais distantes, profundas. E para
quistaram na pesquisa que mediu o Índice que exploremos aquela riqueza, necessário
de Desenvolvimento da Educação Básica, o será aprimorar o conhecimento adquirido
IDEB, em 2007. até aqui.
Em Macaé, onde o programa é desenvol- Como o que ora é proposto pelo Leituras
vido desde 1994, todas as 37 escolas atendi- Compartilhadas. Como a ostra que guarda o
das pelo caminhão-biblioteca atingiram tesouro dentro de si, a África será aqui
pontuação acima da média nacional, tendo o revelada pelo que esconde de mais precio-
Colégio Municipal do Sana obtido média 6,5, so: sua dignidade, sua nobreza, mergulho
índice maior que a meta estipulada pelo esse conduzido pelo mais rico dos univer-
Governo Federal (6) para o ano de 2021. sos, o literário.
4 5
5. Princesas africanas
D
Jason Prado
uas palavras, tantos sentidos. morte, leoas no exercício da função mater-
Quando ouvi a sugestão de publicar um na, mulheres com vontades e desejos...
Caderno de Leituras Compartilhadas com Para além disso, mulheres especiais, que
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este tema, não me dei conta dos desvãos do se distinguem das outras em sua superiori-
caminho. dade, seja em graça, beleza ou astúcia.
Era uma tarde fria de junho e eu estava Guerreiras, sensíveis, capazes de perceber um
na Refinaria do Paraná, fazendo o terceiro grão de ervilha sob pilhas de colchões de plumas.
de uma série de encontros sobre a participa- Ungidas pelos deuses no nascimento e
ção africana na formação cultural brasileira. donas do direito divino de povoar as cabe-
Foi quando Analu me desafiou: por que ças dos homens.
vocês não fazem um Caderno sobre as princesas Princesas, qual promessa de flor, também
negras? à espera dos varões que as farão reinar em
Ana Lúcia1 é uma dessas pessoas de seus próprios castelos.
vontade forte, com formação e conteúdo Mas também africanas. Em sua maioria,
invejáveis, cheia de fé no que diz. É, ela negras, exuberantes e fortes como a guer-
mesma, a própria imagem da guerreira reira que projetou a atriz jamaicana de
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africana. Conan, ou como tantas outras que conhe-
Como se não bastasse, Rogério Andrade cemos no dia-a-dia. Vindas – para a maioria
Barbosa tinha passado a manhã daquele dia de nós brasileiros, seus descendentes – de
falando de suas viagens pelas nações africa- um universo desconhecido, povoado com
nas, das culturas exóticas, de ritos tribais... imagens de animais ferozes, de lanças cru-
Nos subsolos da minha mente já se agi- zando os céus e tan-tans em frenesi, de cor-
tava a figura emblemática e saltitante de pos esguios e fome. Muita fome – somali,
Grace Jones num filme trash dos anos 802, etíope, biafrense... Africanas, brancas e
como a incentivar a empreitada. Não pude negras. Submetidas e espoliadas por sécu-
evitar as armadilhas de minha própria ima- los, como seu continente, até se perderem
ginação: topei o desafio. de si mesmas.
Aos poucos, como os animais que “mas- Para esta edição de Leituras Compartilhadas
tigam” muito depois de engolir, fui me – em que o “eu” torna-se “nós”, no compar-
dando conta dos conteúdos ali envolvidos. tilhamento das minhas ponderações com a
Logo de cara, uma bifurcação: princesas; equipe da ONG Leia Brasil –, evoluímos
portanto, mulheres. para Princesas Africanas, curvando-nos não
Não apenas mulheres, em suas dimensões só à grandiosidade do continente mas tam-
humanas: heroínas na luta pelo pão-nosso e bém à Cleópatra, à Rainha de Sabá e a
6 7
pela sobrevivência diária, frágeis diante da todas as mulheres que remontam à mais
6. ilustre e desconhecida de todas as prince- cesas são a matéria-prima de nossa organi- frustra nossas expectativas e subverte a civi- preconceituoso e o preconceito é rasteiro,
sas: Lucy3, a africana que todos temos no zação social. lidade, nos pilhamos dizendo: “isso é coisa imprevisível, dissimulado e elitista. E quan-
sangue. Em meados do século XVI, surgiu na de preto”? do falo em elite, caio mais uma vez na pan-
Durante os meses necessários para que Inglaterra uma expressão que se atribui a Isso posto, toquemos num ponto nevrál- tanosa questão das classes sociais, dos
os artigos e textos fossem encomendados e um jurista inglês5, e que se tornou a base gico: a questão africana. dominantes e dominados, dos príncipes e
escritos, para que essas belíssimas ilustra- da Bill of Rights, expressivo nome de um Partindo de Lucy, somos todos afro-des- mendigos...
ções fossem produzidas e a edição come- capítulo da Constituição norte-americana: cendentes. Uns mais, outros menos. E o Voltando ao preconceito, o problema é
çasse a ganhar forma, muitas foram as a man’s home is his castle – a casa de um que é mais importante ainda, estamos jun- que ele dói, mas nem é crime. Embora a
dúvidas que, pouco a pouco, se materializa- homem é o seu castelo6. tos na humanidade. manifestação do preconceito seja crime
ram como bolhas que levantam da fervura. Tudo bem que essa frase tenha servido Por que é tão difícil que a descendência (tipificado pela Lei nº 7.716, de 05/01/89),
A mais inquietante delas, talvez, seja relati- para assegurar a inviolabilidade do lar, mas negra ganhe cidadania no Brasil, a ponto de seu sentimento não pode ser criminalizado.
va à questão Princesa. Dúvidas não pro- não caberia perguntar: quem mora em cas- ser necessária a criação de um movimento Ninguém pode ser punido por associar um
priamente quanto às funções tribais da filha telos? E por que pessoas de todas as classes pela consciência negra e a promulgação de negro, numa rua deserta, à noite, a uma
do chefe, mas quanto a esse conceito que sociais – inclusive nas sociedades de castas uma lei que obrigue as escolas a ensinar a situação de iminente perigo. Mas deve
permeia nossa vida e nos faz chamar nossas – se referem assim às suas herdeiras? História e a Cultura Africana7? doer (e revoltar) a qualquer jovem negro
filhas de princesas, que permite às mulheres Será demais remeter o conteúdo ideoló- Mais uma vez, volto a particularizar assistir a um estranho desviando de seu
se atribuírem esse título, sempre tão impreg- gico das princesas (e toda a sua entourage) minha fala e recorro aos significados. caminho.
nado de bondade. às questões da família, da propriedade e do Embora não tenha autoridade para falar a Do outro lado desse comportamento
No romance Peixe dourado4, um belíssi- estado? Será puro maniqueísmo? esse respeito, vou me permitir ser opiniáti- está, por exemplo, a clara leitura que
mo livro sobre princesas africanas, Jean- Por outro lado, por que valorizamos co: não creio que o movimento tenha se podemos fazer da miséria a que as elites
Marie Clézio (Prêmio Nobel de Literatura tanto esse negócio de realeza, nobreza e constituído apenas em decorrência da dor condenaram os negros no Brasil. Miseráveis
de 2008) usa o termo princesa centenas de outras iniqüidades coroadas? ainda viva de nossos avós amarrados no famintos – como os escravos “libertos”
vezes, a maior parte delas para se referir às Há 16 anos – em 1993, na reta final do pelourinho, muito menos pela imoralidade pela Lei Áurea, sem teto e sem perspectivas
moças de um prostíbulo marroquino, bus- século XX – nosso Congresso promoveu, a do tráfico, que aniquilou milhões e, pela – são marginais potenciais. Mas essa lógica
cando assim suavizar o caráter do ganha- um custo financeiro exorbitante, um plebis- escravidão, transformou outro tanto em nunca ocupou espaços na sociedade, que é
pão dessas mulheres. cito (referendo popular) sobre a forma de mortos-vivos. preconceituosa (de certa forma, o senti-
Que mágica tem essa palavra? De onde governo no Brasil. Nada menos que 6,8 Embora sejam recentes, esses fatos mento do preconceito exime e protege de
vem sua força? milhões de brasileiros votaram a favor da remontam ao já longínquo século XIX. É culpa as pessoas). O preconceito só se des-
Deixando de lado as razões teosóficas monarquia, pensando seriamente em entre- preciso falar deles porque somos um país monta com educação, com a lógica. E essa
(ou o pseudo “direito divino” de alguém ser gar a coroa (e nós, as caras) aos portugueses decorre de um pensamento arejado, da
melhor que os outros e, a partir dessa lógi- que exportaram nossas riquezas e importa- compreensão de cada componente
ca, praticar todas as vilanias possíveis con- ram da África, como mercadoria, seres do todo.
tra a humanidade), em que pensamos quan- humanos. Com essas considera-
do empregamos essa palavra? Por que, mesmo sabendo disso (da ções, retomo o propó-
Em primeira e última instância, prince- vergonha e sofrimento que nos cau- sito desta edição
sas são as herdeiras do rei. São elas que sam os que se julgam acima do bem de Leituras
viabilizam a constituição de novos reinados e do mal; da podridão que alicerça a Compartilhadas:
(famílias), garantindo a transição entre um aristocracia), quando alguém tem uma criada para ajudar
antigo e um novo regime. Se é verdade que atitude digna, elogiável, quase beata, dize- os professores a reconhecer e positivar as
as histórias tecem o terreno por onde cons- mos que foi um “gesto nobre”? E por que, diferenças, combater o racismo e o precon-
truímos nossas noções de mundo, as prin- no extremo oposto, quando algo inesperado ceito étnico-racial, ela não pode se propor
8 9
7. a oferecer respostas, mas a ajudar a instalar
perguntas que desconstruam comportamen-
tos e pré-julgamentos.
Sendo assim, com o excepcional conteúdo
que se segue e que é oferecido às futuras
gerações de brasileiros, deixo no ar uma
Princesas
homenagem a todas as princesas negras
(e africanas) que nunca estiveram em nosso
imaginário e às outras tantas que não pude-
ram comparecer a esta edição.
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Africanas
Notas:
1 Ana Lúcia Silva Souza (Analu) é socióloga, dou-
toranda em Lingüística Aplicada (Unicamp - Instituto
de Estudos da Linguagem), mestre em Ciências Sociais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Parti-
cipa desta edição de Leituras Compartilhadas como
articulista e conselheira editorial.
2 Conan, o destruidor, de 1984.
3 Lucy Dinqines (que significa você é maravilhosa) –
nome do esqueleto da fêmea hominídea de 3,2 milhões
de anos encontrado na Etiópia; é a mais antiga ances-
tral da humanidade.
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4 Peixe dourado, de Jean-Marie Clézio, Companhia
das Letras, 2001.
5 Sir Edward Coke, Inglaterra, 1552-1634.
6 É curioso que esse respeito à privacidade e esse
reconhecimento à inviolabilidade do lar tenham se
consolidado duzentos anos depois, ao tempo da inde-
pendência americana, que coincide com a Revolução
Industrial e o fim do Feudalismo, no qual as pessoas
serviam à nobreza e sequer possuíam a roupa do corpo,
quanto mais uma casa.
7 Lei 10.639 / 2003 – altera a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) e estabelece a
obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-
brasileira e Africana no Brasil.
Jason Prado é jornalista, criador e Diretor Uma contribuição para o estudo da
Executivo da Leia Brasil – ONG de promoção cultura afro-brasileira nas escolas públicas.
da leitura. (De acordo com a Lei 10.639/2003)
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8. Índice
• África dos meus sonhos - Petrobras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5
Princesas africanas - Jason Prado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7
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•
• O sonho de ser princesa - Andréa Bastos Tigre - Rossely Peres . . . . . . . . . . . . . . . .15
• As princesas nos contos de fadas - Sonia Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17
• São outras as nossas princesas - Sueli de Oliveira Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21
• Que fada é essa? - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25
• A donzela, o sapo e o filho do chefe - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . .27
• Rainhas negras na África e no Brasil - Luiz Geraldo Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31
• As princesas africanas - Braulio Tavares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33
• O casamento da princesa - Celso Sisto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37
• Minha princesa africana - Márcio Vassalo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41
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• Uma princesa em São Tomé e Príncipe - Ana Lúcia Silva Souza . . . . . . . . . . . . . . .43
• Princesa de África, o filme - Uma entrevista com Juan Laguna . . . . . . . . . . . . . . . .47
• Iya Ibeji, a mãe dos gêmeos - A leitura dos símbolos nagô - Marco Aurélio Luz . . . . . .51
• A lenda da princesa negra que incendiou o mar - Geraldo Maia . . . . . . . . . . . . . . .55
Taisa Borges tem formação em artes plásticas e estilis- • Nas malhas das imagens e nas trilhas da resistência: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
heroínas negras de ontem e de hoje - Andréia Lisboa de Sousa . . . . . . . . . . . . . . .59
mo. Ilustrou para a Folha de S. Paulo, Vogue, entre outros.
Uma guerreira - Julio Emilio Braz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .63
É autora do livro de imagem O rouxinol e o imperador, ins-
pirado no conto de Andersen do mesmo nome, lançado
•
Princesa, não. Mas... - Marina Colasanti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65
em 2005, obra selecionada para o PNBE 2005 e para o
PNLD SP/2006, merecedor do prêmio de o Melhor livro de •
Os três cocos - Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69
imagens de 2005 pela Fundação Nacional do Livro Infantil
•
Uma princesa afrodescendente - Sueli de Oliveira Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .73
e Juvenil (FNLIJ). Em 2006, publicou na mesma coleção
João e Maria, inspirado em um conto dos irmãos Grimm,
•
Princesa descombinada - Janaína Michalski . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77
também selecionado para o PNBE 2006 e para o PNLD
SP/2007. O livro A bela adormecida, de Charles Perrault, •
Princesas africanas e algumas histórias - Tiely Queen (Atiely Santos) . . . . . . . . . . . .79
lançado em 2007, fechou seu projeto de homenagens aos
contos de fadas. •
• Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83
12 13
9. O sonho de ser princesa...
Andréa Bastos Tigre - Rossely Peres
Q
Princesa Desalento
Pise macio porque você está pisando nos impotência frente aos mais fortes, da solidão
meus sonhos.1 e do isolamento, dos segredos e sobressaltos
W. B. Yeats de se ter um corpo. São legados que nos
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Minh'alma é a Princesa Desalento,
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vêm de longe, de uma tradição oral que, no
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
ue menina não sonhou, um dia, correr do tempo, vieram a ser escritas, num
É revoltada, trágica, sombria,
em ser ou vir a ser uma princesa? O apelo encontro de papel, pluma e desejo de um
Como galopes infernais de vento!
da beleza, da riqueza, do fausto das festas e autor. Um longo caminho de “Era uma
palácios e do “viveram felizes para sempre” vez...”, “Num certo país...”, “Há muitos e
É frágil como o sonho dum momento,
traz a magia da palavra, com seus sons e muitos anos atrás...”, para tentar responder
Soturna como preces de agonia,
encantamentos, alimento da imaginação aos enigmas: que mundo é esse? Como
Vive do riso duma boca fria! infantil. viver nele? Quem sou eu?
Minh'alma é a Princesa Desalento... A linguagem fantástica - a da poesia, do As histórias e os contos tomam a angús-
conto, das fábulas, com seus ritmos e ima- tia do existir a sério, dirigem-se a ela, à
Altas horas da noite ela vagueia... gens - permite à criança “viver outras vidas” escura incerteza do que vai acontecer.
E ao luar suavíssimo, que anseia, e, assim, construir um arcabouço imaginá- Endereçam-se ao futuro guiando a criança
Põe-se a falar de tanta coisa morta! rio necessário e fundamental para “viver a através de caminhos que ela pode aceitar e
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própria vida”. Que lugar tem, na economia compreender – princesas, cavaleiros e damas,
O luar ouve a minh'alma, ajoelhado, psíquica de uma criança, histórias de prín- animais falantes, duendes e anões conduzem-
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta...
cipes e princesas? na, pela mão, a seu mundo dos sonhos.
As palavras apresentam o mundo, a coisa A fantasia e poesia da linguagem nos
não existe sem elas, elas lhe dão existência. transportam para um país onde tudo pode
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade" acontecer. A magia da palavra lida ou ouvi-
... Digo “sol”, e a palavra brilha; da faz existir o sonho e, ao afastar-se do
Digo “pomba”, e a palavra voa; real, permite a margem do mais além, do
Digo “maçã”, e a palavra floresce.2 outro, do impossível, do espelho com suas
entradas e saídas secretas. Um texto que é
E podemos acrescentar: recebido no nível intelectual, mas que toca
Digo “princesa”, e a vida brilha, a imagi- também a sensibilidade, ganhando na escuta
nação voa, a felicidade floresce. da palavra significação afetiva e imaginativa.
São as histórias e os contos que, ao dar O próprio da linguagem poética e fan-
nome, ao pôr em palavras, permitem dar tástica é ser múltipla em sua essência. O
contorno e limite a sentimentos obscuros e convite a uma viagem ao país das palavras
angustiantes que assombram crianças – abre a porta para a criança usufruir do uso
medo da vida e da morte, do futuro incerto da linguagem e, com ela, brincar, sonhar,
14 15
do quem sou e quem serei, da raiva e da rir, acariciar, girar, ir e retornar. Lá não há
10. As princesas nos contos de fadas
N
uso ridículo ou absurdo da linguagem, o de sugerir o desconhecido, o imprevisível,
Sonia Rodrigues
desbloqueio do imaginário recria a fascina- implicando o ouvinte-leitor no trabalho de
ção da palavra e permite: “eu sou princesa”. preencher lacunas, absorver o intuído, asso-
A vida não pára de se escrever; e a histó- ciar som, imagem, textura, ritmo e cor. Se é
ria, em sua letra, se conserva através do uma trama proposta por um autor-narrador,
tempo. É a permanência do texto que sus- cabe a cada ouvinte-leitor torná-la sua.
tenta a imortalidade das obras, e, entre elas, Longa vida aos contos de príncipes e
os contos maravilhosos que comuns a toda humanidade e fornecem a
a de princesas que, nórdicas, africanas, asiá- princesas!
aparecem na cultura ocidental, as princesas base das religiões, dos mitos e dos contos
ticas ou indígenas permitem à criança olhar
costumam ocupar dois papéis: o do prêmio, maravilhosos.
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o cotidiano da vida de um jeito diferente Notas:
ou, mais raramente, o de herói. São contos Monteiro Lobato, fundador da literatura
àquilo que se apresenta como igual, pois a 1W. B. Yeats: He wishes for the cloths of heaven in de fantasia, freqüentemente chamados con- para crianças no Brasil, teve em relação
própria repetição num vir a ser inaugural The Collected Poems. Nova York, Macmillan, 1956.
tos de fadas, em geral passados na Idade aos contos de fadas, basicamente, três
ganha novos sentidos. Não serão as lem- 2 Alain Bosquet: Quatre testaments et autres poèmes.
Média européia. atitudes estéticas em seus livros: a crítica
branças das histórias que nos permitem Paris, Gallimard.
Autores importantes na nossa cultura aos contos embolorados da Carochinha
uma leitura singular de nosso mundo?
leram esses contos com visões diferentes ou ao que Emília classificava como boba-
As palavras de todos os dias quando reu- Andréa Bastos Tigre e Rossely Peres são que podem contribuir para que nossa leitu- gens do folclore; a admiração à produção
nidas numa bela história adquirem o poder psicanalistas da Escola Letra Freudiana - RJ. ra se enriqueça na concordância ou amplia- literária a partir deles feita pelos irmãos
ção de suas opiniões. Grimm, Perrault, Andersen; e a incorpora-
Freud entendia o conto de fadas como ção das princesas ao seu próprio universo
uma forma atenuada dos mitos e esses ficcional.
como deformações das fantasias de desejo Vladimir Propp definiu como conto
das nações, da espécie humana como um maravilhoso ou de magia toda narrativa
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todo. O conto estaria ligado à socialização, que, partindo de uma carência ou dano e
à aquisição pela criança das normas morais, passando por um desenvolvimento interme-
representadas pelo superego. diário, termina com casamento, recompen-
Para os freudianos, Bettelheim inclusive, sa, obtenção do objeto procurado, repara-
as pulsões criam os contos populares por ção ou salvamento de uma perseguição
transformações análogas às do trabalho do (Propp: 85).
sonho. Propp está mais voltado para entender
Para Jung e os junguianos, os contos de como se estruturam os contos de fadas do
fadas representam, além do material que para interpretá-los. Em Morfologia do
inconsciente recalcado que mantém rela- conto maravilhoso, descreve como, no decor-
ções com os sonhos e as fantasias, fenôme- rer da narrativa, o herói torna-se o possui-
nos arquetípicos e sugerem simbolicamente dor de um objeto ou auxiliar mágico “que o
a necessidade de uma renovação interior utiliza ou que se serve dele.” A magia em si
pela integração do inconsciente pessoal e pode estar no auxiliar ou no objeto mágico
do inconsciente coletivo à personalidade do que é doado ao herói; nas características do
indivíduo. próprio; no antagonista-agressor que pode
De acordo com esse ponto de vista, os ser um dragão, um bruxo, um ogre ou
arquétipos são dinamismos inconscientes outras criaturas fantásticas na função de
16 17
ligados a imagens primordiais ou símbolos “antagonista”.
11. Aplicando os conceitos de Propp, consi- histórias que defendem a moral e os bons Propp enumera os papéis distribuídos e. Percurso do herói até sua desti-
dero que um personagem é sempre um per- costumes, histórias nas quais o mal é puni- entre as personagens concretas dos con- nação, vitória do herói. Aqui pode
sonagem, mas os papéis variam segundo a do e o bem triunfa, histórias, enfim, que tos maravilhosos como: o herói, o antago- ocorrer um desdobramento que pro-
interação do personagem com a trama. Uma enganariam seus pequenos leitores levan- nista (ou agressor), o doador, o auxiliar, a longue a narrativa: perseguição ao
princesa pode ser afilhada de fadas, como do-os a acreditar em um mundo irreal. princesa ou seu pai, o mandante e o falso herói, aparecimento do falso herói,
em A Bela Adormecida ou Pele de Asno. O Contos de fadas são contos épicos, con- herói. retorno do herói;
papel a ser desempenhado dependerá de tos que tratam da jornada do herói, na qual Os contos poderiam ser chamados tam- f. A seqüência f, é lógico, depende
como o enredo se articula. este repara a perda ou dano ocorrido no bém de “contos dos sete personagens”, ape- do prolongamento da narrativa. O
No conto A Bela Adormecida, a princesa início da narrativa. Esta reparação é que sar de nem todos aparecerem em todos os herói chega incógnito, encontra as
se limita a furar o dedo – inadvertidamente, distingue o conto de fadas da tragédia, na contos, claro. Porque existem contos mais pretensões infundadas do falso herói,
estimulada por uma fada rancorosa – numa qual o herói é levado, por suas próprias simples, como o da Menina da Capinha é submetido a uma tarefa difícil para
roca. Em seguida, ela dorme – graças à características, a cometer uma falha irreme- Vermelha, e mais extensos, como o Veado ser distinguido do falso herói, realiza a
intervenção de uma fada boa – junto com diável que o faz ultrapassar a medida e ser encantado. tarefa, é reconhecido e desmascara o
todo o reino, até que um príncipe a salve. arrastado para uma situação sem saída. A trama dos contos de fadas, de uma outro, que é castigado. O herói casa ou
Em Pele de Asno, a princesa é desejada No conto de fadas, o final é feliz porque maneira geral, é enxuta, utilizando o míni- é entronizado.
pelo pai enlouquecido, resiste ao incestuoso aquela ou aquele que está envolvido na mo de idas e vindas, ao contrário de narra- É interessante notar que o estudo de
pedido de casamento e, com o auxílio da reparação da perda (a princesa, em muitos tivas como a Odisséia. Propp se refere ao herói como aquele que
fada madrinha, foge para uma trajetória de exemplos) se submete, temporariamente, às Os enredos dos contos, ainda segundo repara o dano. Nos exemplos citados por
agruras até conquistar o coração de um intempéries. Em Os três cães, ela, por medo Propp, não fogem muito da seguinte dispo- ele, o herói é um rapaz de origem simples
príncipe. de morrer, aceita dizer ao rei, seu pai, que sição dos acontecimentos: ou príncipe, e a princesa é, quase sempre,
No primeiro, o protagonista é o príncipe foi o cocheiro desonesto que a salvou do a. Situação inicial, que define espa- prêmio. Quando a figura feminina ocupa
e, no segundo, a princesa é herói, e o prín- dragão. Aceita ser prometida em casamento ço, tempo, personagens principais um papel mais ativo, ela costuma não ser da
cipe, prêmio. ao impostor. O que ela faz é estabelecer (fora o antagonista), seus atributos e realeza ou é da realeza, mas está disfarçada.
No conto maravilhoso, nem sempre apa- uma resistência passiva, pela tristeza, para antecedentes; É filha de mercador, em A Bela e a Fera,
rece o elemento mágico, mesmo quando adiar o casamento durante três anos. b. Parte preparatória, onde aparece órfã pobre em O Veado Encantado, de ori-
estão articulados princesa, prêmio e recom- Tempo suficiente para o verdadeiro salva- algum tipo de proibição e a transgres- gem desconhecida e beleza estonteante em
pensas variadas. É o caso de A princesa e o dor voltar, com seus cães mágicos, para des- são da proibição, o dano ou carência e A Moura Torta ou uma princesa em trajes
grão de ervilha, no qual não existe magia e, mascarar o falso pretendente. E casar com a o antagonista com seus embustes. Em pobres, como em A princesa e o grão de ervilha.
sim, reconhecimento da princesa como princesa, claro. Rapunzel fica muito claro este par de Apesar das críticas da boneca Emília,
herói de si mesma, porque ela, apesar dos Pelo parentesco com a epopéia e não elementos: proibição e transgressão. nos contos folclóricos narrados por Tia
farrapos, é uma princesa real cuja pele se por moralismo ou irrealidade, o conto Em A Moura Torta, o dano ou carência Nastácia, aparecem várias princesas em
ressente de um grão de ervilha sob 12 col- maravilhoso termina na reparação da perda, está no feitiço colocado pela usurpa- papel de herói ou auxiliar de herói. É o
chões. culmina no triunfo do herói. Odisséia, de dora. caso do Bicho Manjaléu. Aparecem também
A articulação entre os papéis de herói e Homero, é a matriz ocidental (ou o mais c. O nó da intriga: uma personagem princesas no papel de adversário, como no
prêmio está presente nos contos de fadas abrangente exemplo da cultura ocidental) se revela como herói ao reagir à ação conto A Princesa Ladrona.
em que a princesa faz parte do conjunto de desse triunfo. Na Odisséia, a princesa (rainha) do antagonista que provocou o dano. A princesa como adversário do herói
personagens que assumem o papel de está no papel de prêmio. Penélope faz a d. Aparece(m) o(s) auxiliar(es) do também aparece em A Pequena Sereia, de
representar o Bem. Vale a pena pensar um mesma coisa que a princesa sem nome do herói, com todas as particularidades Andersen, conto no qual a princesa é a
pouco sobre o significado de “Bem”, por- conto Os três cães. Protela a escolha de um dele(s) e do(s) objeto(s) mágico(s), usurpadora, inventa que salvou o príncipe
que, às vezes, acontece dos contos de fadas pretendente usurpador até o retorno de incluindo aí as provas necessárias ao para casar com ele e derrota, assim, a
serem lidos como histórias de final feliz, Ulisses. herói; pequena sereia.
18 19
12. São outras as nossas princesas
S
Não conheço, no entanto, nenhuma lei- CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1988.
Sueli de Oliveira Rocha
tura criativa mais audaciosa do papel da
princesa nos contos de fadas do que a COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São
Paulo: Ática. Série Princípios. 1987.
empreendida pelo autor inglês Neil Gaiman,
FRANZ, Marie Louise von. A interpretação dos
no seu conto Neve. Neste, Branca de Neve
contos de fadas. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
deixa de ser herói de si mesma, de ser prê-
FREUD, Sigmund. Delírios e sonho na Gradiva de
mio do príncipe que, ao final, a resgata.
Jensen. Rio de Janeiro: Imago (Coleção Standard, v. ão lindas, geralmente de pele do Atlântico, muitas famílias reais africanas
Não, a princesa é antagonista cruel da mãe, IV), 1968. muito clara e de cabelos loiros. Algumas foram escravizadas e enviadas para outros
do pai e da madrasta.
GAIMAN, Neil. Fumaça e espelhos. São Paulo: ainda crianças, outras mal entradas na ado- lugares do mundo, em especial para as
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Seria possível passar horas e horas ao
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Conrad. 2000. lescência. Têm uma vida tranqüila e feliz, Américas. No mapa da diáspora africana1,
redor da fogueira, dias e dias numa biblio- JUNG, Carl G. et alli. O homem e seus símbolos. Rio até que, em determinado momento, passam o Brasil figura no primeiro lugar do mundo.
teca, muito tempo frente a um computador de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. por provas e provações, mas são salvas por Nosso país tem a maior população de ori-
ouvindo, lendo, pensando e recriando a LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: jovens príncipes, belos, educados e ricos, gem africana fora da África, ou seja, tem
partir das princesas dos contos de fadas. Brasiliense, s/d. Histórias de Tia Nastácia.
que por elas arriscam a própria vida e com 85.783.143 afrodescendentes. Esse número
Porque a princesa é a jovem mulher PROPP Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso.
, os quais elas se casam, sendo, então, “feli- representa 44,7%2 da nossa população. Ou
convivendo com o mundo, com o inevitável, Trad. Jasna Paravich Sarhan. Org. Boris Schnaider-
zes para sempre”. Pertencem aos contos de seja, quase metade da população brasileira
com o transcendente. Lidando, portanto, man. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
fadas, são européias e suas histórias aconte- é formada por descendentes dos negros
com a vida e com todos nós.
ceram há muito e muitos anos. africanos que para cá vieram e trabalharam
Sonia Rodrigues, doutora em literatura e Mas nem todas as princesas são as dos sob péssimas condições, formando a mão-
Bibliografia: autora da Coleção Reconstruir, Formato Edito- contos de fadas da Europa, a bela, gloriosa de-obra escrava nos engenhos de açúcar e
BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de rial. Para mais informações sobre a autora, e deslumbrante irmã. A África, por exemplo, nas minas de ouro, durante o período que
fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. consulte: www.autoria.com.br deu ao mundo princesas famosas, como foi de 1530 a 1888. É aqui, portanto, em
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Nefertiti, célebre por sua beleza, e Cleópa- nosso país, que está a maioria dos descen-
tra, imortalizada nas telas do cinema por dentes das famílias africanas (da realeza ou
Elizabeth Taylor, dona de lindos e famosos não) trazidas como escravas na época do
olhos de cor azul-violeta. Brasil Colônia. Seus filhos - juntamente
Na África de nosso imaginário, fundem- com indígenas, europeus e asiáticos - com-
se dois mundos. De um lado, a África da põem a população brasileira e fazem parte
ciência, do nascimento da geometria às de diversas estatísticas.
margens do Nilo, da biblioteca de Alexan- As crianças e adolescentes com ascen-
dria, da opulência dos tesouros dos faraós, dência africana - príncipes e princesas ou
da imponência das pirâmides e do exotismo não - aparecem no Censo Escolar, uma pes-
dos safáris. De outro lado, a África da misé- quisa que abrange as diferentes etapas e
ria, do fornecimento de mão-de-obra escra- modalidades da Educação Básica no Brasil.
va, da fome e desnutrição das crianças de Realizado anualmente pelo Instituto Nacio-
Biafra, a África da diáspora, a África, irmã nal de Estudos e Pesquisas Educacionais
pobre. Anísio Teixeira (Inep/MEC), o Censo Esco-
Cleópatra e Nefertiti estão longe no lar pesquisa escolas públicas e privadas de
tempo. Na história mais recente, para onde todo o país, trazendo à tona alguns dados
foram e onde estão as princesas africanas? interessantes, merecedores de uma leitura
20 21
No período em que durou o tráfico negreiro mais atenta.
13. Desde 2005, o Censo Escolar vem incluin- e, para que fossem impedidos de fugir, No Brasil: 10.661.197 = 51,2% Notas:
do em seu questionário o quesito cor/raça3. eram acorrentados. Nas reminiscências Na Educação Infantil: 1.900.436 = 49,6% 1 Publicado em 1990, de autoria de Joseph Harris,
Em 2007, na modalidade ensino regular, o dessas humilhações pode estar embutido No Ensino Fundamental: 6.108.266 = 50,9% um historiador norte-americano.
Censo Escolar revelou os seguintes núme- o desconforto do adolescente do Ensino No Ensino Médio: 1.278.241 = 47,6% 2 Esse número aumenta quando os critérios são as
ros de alunos, para esse quesito: Médio, que prefere não declarar a própria Ou seja, no total do ensino regular da pesquisas genéticas, segundo as quais 86% dos brasilei-
ros têm algum grau de ascendência africana. De acordo
Educação Básica Brasileira, a distribuição
com esses estudos, os genes africanos variam de 10 a
NÚMERO DE ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL, POR RAÇA/COR EM 30/5/2007 cor/raça está equilibrada entre a branca, 100% de ancestralidade no brasileiro, que pode ou não
com 46,9%, e a negra/parda, com 51,2%. apresentar traços de fisionomia negra, devido ao alto
ENSINO REGULAR A maioria dos alunos brasileiros é de des- grau de miscigenação ocorrida em nosso país.
Total da Educação Total do Ensino Total do Ensino cendência africana e se declara de cor/raça 3 As variáveis branca, preta, parda, amarela e indíge-
Total do Brasil
Infantil Fundamental Médio negra ou parda. Nesse contingente estão as na, para aferir o quesito cor/raça, foram definidas pelo
52.179.530 6.417.502 31.733.198 8.264.816
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Total de matrículas princesas afrodescendentes que, do Infantil
As respostas ao questionário para aferição desse item
ao Ensino Médio, recebem uma educação
8.264.816 2.549.841 19.801.732 5.583.355
Não declarada
são obtidas por documento comprobatório, por auto-
15,8% 39,7% 62.4% 67,5% baseada em pressupostos europocêntricos declaração do aluno quando maior de 18 anos, ou por
20.773.976 3.867.661 11.971.466 2.681.461
Declarada
que reproduzem relações sociais marcadas declaração do responsável.
84,2% 60,3% 37,6% 32,5% por uma suposta superioridade branca.
9.761.190 1.913.831 5.602.236 1.360.620
Branca Entretanto, mesmo com a tradição
46,9% 49,4% 46,7% 50,7%
represada, a influência africana no Brasil se Sueli de Oliveira Rocha é coordenadora, na
1.244.319 200.247 688.129 153.031
Preta
Raça/cor
5,9% 5,7% 5,7% 5,7%
faz presente na música (o ritmo), na dança Baixada Santista, do Programa de Leitura da
9.416.878 1.700.189 5.420.137 1.125.210
(os movimentos assimétricos), na culinária Petrobras-RPBC pela Leia Brasil, ONG de pro-
Parda
45,3% 43,9% 45,2% 41,9% (o vatapá), na medicina popular (as ervas, moção da leitura. Foi também membro da equi-
179.082 31.801 105.125 25.195
Amarela
as simpatias, as benzeduras), na religião pe pedagógica do Gruhbas Projetos Educacio-
0,8% 0,8% 0,8% 0,9%
(umbanda e candomblé), na língua (angu, nais e Culturais e do conselho editorial dos jor-
172.507 21.593 115.839 17.405
Indígena
0,8% 0,5% 0,9% 0,6%
batuque, cachaça, fubá, miçanga, quitute, nais “Bolando Aula”, “Bolando Aula de Histó-
samba), na formação de população, apenas ria” e “Subsídio”.
Fonte. http://inep.gov.br. Censo Escolar 2007, tabelas 1.2; 1.7; 1.19; e 1.31.
Observação: Para efeito deste texto, apenas o ensino regular foi considerado. Ficaram, pois, fora dele a Educação de
para lembrar alguns exemplos.
Jovens e Adultos, a Educação Especial e a Educação Profissionalizante. Um caminho para mudar essa escola
que desconsidera a presença africana em
Entre as várias ponderações que podem cor/raça no questionário do censo Escolar, nossa cultura é dotar os conteúdos por ela
ser desenvolvidas a partir da análise das evitando qualquer possibilidade de discri- oferecidos de referenciais africanos positi-
informações produzidas pelo Censo Esco- minação. vos; é trabalhar com os alunos a valorização
lar, alguns dados chamam a atenção. Um Outra constatação é que, no Ensino de protagonistas negros, buscando produzir
deles é que, à medida que a escolaridade Médio, enquanto a população branca um efeito positivo na construção da identi-
avança, aumenta o número dos que não aumenta (50,7%), diminui a presença dade desses príncipes e princesas brasilei-
desejam declarar sua cor/raça. É preciso negra/parda (47,6%). A pergunta que não ros afrodescendentes. Esse é um caminho
lembrar que durante o período da escravi- cala é: quantos conseguirão chegar ao Ensi- para podermos contar outras histórias,
dão, os negros escravizados trabalhavam no Superior? essas também com final feliz. E delas um
de sol a sol, recebendo uma alimentação Outro fato importante é que, somando dia se poderá dizer:
de péssima qualidade, não podiam prati- os resultados referentes à raça/cor preta e São lindas, geralmente de pele negra.
car a própria religião nem a própria lín- parda, indicativa da afrodescendência, Algumas ainda crianças, outras mal entradas
gua; suas festas e rituais eram proibidos; encontramos: na adolescência...
22 23
14. Que fada é essa?
A
Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque
costumados à imagem européia de sua raça e capaz de sentimentos menos
das fadas que ilustram os contos desde o nobres, fosse uma espécie de traição a uma
início da literatura infantil, fica difícil nos concepção há muito enraizada em nosso
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descolarmos da figura da fada sempre tão imaginário.
loura, tão esguia e tão doce que nos foi No entanto, as histórias clássicas, os
imposta, e conseguirmos contextualizá-la mitos gregos, as lendas dos mais variados
nos contos das diferentes culturas. países nos falam o tempo todo das altera-
Nas diferentes cidades em que dou ofici- ções físicas e de humor dessa figura atem-
nas de contadores de histórias, costumo poral que habita nossa imaginação.
contar uma história escrita por Gail Harley, Não podemos nos esquecer que, no clás-
chamada O Baú das Histórias. Trata-se de sico A Bela Adormecida, foi uma fada, e não
uma antiga história da cultura yorubá, que uma bruxa, que lançou sobre uma recém-
nos conta como Ananse, o homem aranha, nascida uma sentença de morte por não ter
conseguiu comprar de Nyame, o Deus do sido convidada para o banquete de seu
Céu, histórias que ficavam encerradas den- batizado; que na história As fadas, recolhida
tro de um baú, para espalhá-las pelo mundo. por Perrault, a mesma fada que deu a uma
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Para tanto, o Deus lhe impõs três tarefas, menina o dom de, ao falar, verter pela boca
entre elas, que ele lhe trouxesse Moatia, “a rosas e pérolas, condenou outra a cuspir
fada que nenhum homem viu”. sapos, escorpiões e toda sorte de animais
Após contá-la, costumo passar o vídeo da peçonhentos a cada vez que pronunciasse
história. A reação invariavelmente é a mesma: uma palavra. Melusina, que se transformava
como, uma fada negra? “Como, uma fada em serpente a cada sábado, Morgana, ora
tão diferente?...uma fada que se irrita?... jovem, ora velha, as Moiras, implacáveis
que ameaça bater numa boneca de piche?” donas do destino temidas até por Zeus, são
Embora eu enfatize a procedência afri- apenas alguns exemplos das oscilações de
cana da história enquanto a narro, embora humor e das transformações das quais essas
a narrativa esteja pontuada por palavras criaturas mágicas são capazes.
estranhas e conserve as onomatopéias Antero de Quental, em seu poema As
características dos contos yorubá, a apari- fadas, nos fala sobre elas e nos adverte:
ção de Moatia - trajada com uma saia de
palha, com um turbante na cabeça e desa- (...) Quem as ofende...cautela!
fiando uma boneca de piche que não res- A mais risonha, a mais bela,
ponde suas perguntas - sempre causa estra- Torna-se logo tão má,
nhamento. É como que se a imagem de Tão cruel, tão vingativa!
24 25
uma fada humanizada, com características É inimiga agressiva,
15. A donzela, o sapo e o filho do chefe
H
É serpente que ali está! Nesta revista, temos uma excelente opor-
Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque
E têm vinganças terríveis! tunidade de refletir não só sobre a natureza
Semeiam coisas horríveis, das fadas, mas também sobre o que faz com
Que nascem logo do chão... que essas histórias se espalhem, quase que
Línguas de fogo que estalam! por magia, por todos os cantos do mundo,
Sapos com asas, que falam! ganhando em cada canto um novo colorido,
Um anão preto! Um dragão! uma nova roupagem, um novo cenário, mas
avia uma vez um chefe africano pegou água no poço, nem lenha na floresta.
falando sempre, embora com os sotaques
que tinha duas mulheres e com cada uma Então ela voltou para fazer esses traba-
Ou deitam sortes na gente... mais variados, das necessidades e sentimen-
delas tinha uma filha. lhos e o sapo passou o dia inteiro esperan-
LEITURASCOMPARTILHADAS | ANO 9 | FASCÍCULO 19
O nariz faz-se serpente, tos mais básicos do ser humano.
Aconteceu que, um dia, a primeira do por ela.
A dar pulos, a crescer...
mulher morreu, e sua filha teve de ir morar Ao entardecer, assim que acabou todo o
É-se morcego ou veado... Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque é
com a segunda mulher, que não gostava serviço, ela correu para o poço e lá estava o
E anda-se assim encantado, psicóloga, especialista em Literatura Infanto-
nem um pouquinho dela e logo passou a velho sapo, que foi logo dizendo:
Enquanto a fada quiser! (...) juvenil (UFF) e Leitura (PUC-Rio) e contadora
maltratá-la de todas as maneiras. – Tsc, tsc. Esperei por você desde de
de histórias do Confabulando.
Era ela quem cuidava dos animais, tirava manhã e você não veio.
água do poço, cortava lenha, e como se – Velho amigo – respondeu a menina -
tudo isso não bastasse, ainda tinha de moer eu sou uma escrava. Minha mãe morreu e
o tuwo1 e o fura2, e dar de comer a toda a eu me mudei para a cabana da outra mulher
família. O pior, é que depois de todo o tra- de meu pai. Ela me faz trabalhar sem parar
balho feito, a madrasta só permitia que ela e só me dá restos de comida para comer.
comesse as raspas queimadas que sobravam O sapo, então, disse:
no fundo da panela. – Menina, dê-me sua mão.
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Sem nada poder fazer, a menina sentava- Ela estendeu-lhe a mão e pularam jun-
se perto de um poço e comia o que conse- tos para dentro d’água.
guia. O resto, jogava para os sapos que Aí, ele a levantou, engoliu-a e depois a
moravam dentro d’água. vomitou.
E assim aconteceu dia após dia, até que – Boa gente – disse ele para os outros
ao lugar chegaram mensageiros de uma sapos - Olhem e digam-me. Ela está reta ou
aldeia vizinha, anunciando que haveria uma torta?
grande festa no dia do Festival da Colheita. Os sapos se entreolharam e responde-
Nesta tarde, quando ela foi para o poço ram: “Ela está torta para a esquerda”.
comer as raspas que a madrasta lhe dera, Então ele novamente a levantou, engo-
ela encontrou um enorme sapo, que foi liu-a, vomitou-a e novamente perguntou
logo dizendo: aos outros sapos:
– Donzela, amanhã é o dia do Festival. – Boa gente. Olhem e digam-me. Ela
Venha até aqui assim que o sol raiar e nós a está reta ou torta?
ajudaremos. – Ela está bem reta agora – coaxaram os
Na manhã seguinte, porém, quando ela sapos.
estava indo para o poço, a meia irmã lhe disse: Então ele vomitou roupas, pulseiras,
– Volte aqui, sua menina inútil! Você anéis e um par de sapatos, um de prata e
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não mexeu o tuwo, nem moeu o fura, nem outro de ouro, e disse: