Este documento descreve a experiência de um psicólogo clínico trabalhando com pacientes infectados com HIV em um hospital em Lisboa. O documento discute as representações e fantasias associadas à infecção por HIV/AIDS, incluindo medo de morte e contaminação. Ele também descreve os mecanismos de defesa utilizados por esses pacientes e a abordagem clínica focada em reconstruir a perda e lidar com as pulsões de vida e morte despertadas pela doença.
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Intervenção em Infecciologia
1. Psicologia Clínica e Saúde
Intervenção em Infecciologia
Gabinete de Adesão à Terapêutica Anti-Retrovírica (GATA)
Álvaro Ferreira / HEM 2010
2. Resumo
A infecção por HIV e/ou a Sida surgem, no espaço
mental do indivíduo, como um acontecimento
desorganizador e desencadeador de angústias várias. O
tipo de mecanismos de defesa que irá mobilizar irá
permitir lidar com essa nova realidade, de forma mais ou
menos estruturante e integradora. Em última análise
coloca-se em jogo a possibilidade de evitar (ou não) a
“morte mental”, reconstruindo novos sentidos.
3. Resumo
A intervenção da psicologia clínica em setting hospitalar,
criando laços estreitos entre modelos da psicoterapia
com martiz teórica psicanalítica e modelos da psicologia
da saúde, torna-se fundamental como mediadora dessa
(re)constução da mentalização do sujeito. Angústias de
morte, de transformação corporal, mecanismos de
defesa, mais ou menos operativos, e dimensões
humanas como a culpa, o sacrifício, a sexualidade, o
medo, a cólera, medem forças neste anfiteatro da
mente.
4. Resumo
Este relatório dá conta da experiência da intervenção de
um psicólogo clínico com pacientes infectados com VIH
da Unidade de Doenças Infecciosas e Parasitárias do
Hospital Egas Moniz em Lisboa.
Esta apresentação, hoje e a aqui, necessariamente com
formalismo mínimo exigido, procurará ser um espaço de
re-reflexão.
5. Conteúdo deste Relatório Crítico
a minha actividade clínica hospitalar com
pessoas com seropositividade e/ou sida
6. Seropositividade / Sida
A seropositividade e a SIDA surgem
ainda, massivamente, acompanhadas de
imagens de morte. No “senso comum”,
muitas das vezes de forma errónea, mais
do que qualquer outra patologia orgânica.
Ligam-se ainda a outros simbólicos de
morte – degradação corporal,
contaminação, culpa.
7.
8. Seropositividade / Sida
A infecção por VIH e/ou a SIDA surgem
para o sujeito, como uma notícia
desestruturante, pré-anúncio de
transformação maléfica e castigadora.
Expressões de vivência de angústia de
morte, de transformação corporal, de
culpa, de profundo medo e desesperança,
recorrem na clínica.
9. Seropositividade / Sida
“(….) difícil seria encontrar doença menos apropriada a
discursos ou práticas que se exilassem em laboratórios
ou enfermarias, declarando fora de portas a cultura. A
qual, invisível, se interpõe entre nós e a „realidade‟…,
construindo outra, a „verdadeira‟! Este talento sinistro
para se derramar pela sociedade e, em parte, por ela
ser construída, torna a Sida um locus anthropologicus
de eleição. Não por acaso sede das mais díspares
metáforas civilizacionais e obrigatório muro das
lamentações da Medicina Ocidental, que pensara
decretar vencidas, à força de vacinas e de antibióticos,
doenças que hoje se reerguem dos escombros de tal
soberba.(…)
10. Seropositividade / Sida
A Sida, essa, acumula metáforas: representa o Outro
ameaçador, a doença alheia por definição mas que
também nos pode matar, a punição divina ou da
Natureza, a consequência do declínio civilizacional,
enfim…, dir-se-ia, não doença, mas gigantesco ecrã!
Júlio Machado Vaz
11. Seropositividade / Sida
Weiss mostra-nos que o cancro era visto
como um caranguejo que nos roía as
entranhas e a Sida como um invasor que
ataca a partir de fora e estilhaça um corpo
cujos limites se “dissolveram”, à boa
maneira pós-moderna. (…)
12.
13. Seropositividade / Sida / História
A História, mesmo jovem, de que falava à vinte
anos? De praga e de cancro gay. Ou de GRID
(Gay Related Immune Disorder), expressão
teoricamente mais neutra. Mudámos tão pouco
ao longo dos séculos! Apressados, gulosos,
construímos de imediato um mundo dividido
entre “nós” e “eles”, bons e maus, não
admirando que os discursos morais brotassem
como cogumelos: ora invocando a fúria da
Natureza (…), ora a de Deus(…). Weiss
14. Seropositividade / Sida / “Grupos de Risco”
A mesma lógica binária gerou os famigerados grupos de
risco. Esquecendo a perigosa democraticidade dos
comportamentos, inventámos categorias de pessoas
que permitiam às ditas “normais” sentirem-se ainda
protegidas, bastava não ser como “as outras”. E se os
homossexuais continuaram debaixo de fogo, admitamos
que os toxicodependentes lhes passaram a disputar os
holofotes. A sua segregação pudibunda permitia ignorar
como se constituem em extraordinária metáfora de uma
sociedade que a todos incita aos mais diversos
consumos e dependências, mas reserva determinados
rótulos para os que funcionam do lado errado da Lei
(também ela culturalmente variável, recordemos os
interditos do Islão sobre o álcool). Júlio Machado Vaz
15. Seropositividade / Sida / “Grupos de Risco”
Mas porque a doença insistia em não respeitar
indivíduos alheios aos “pecados” que outros
acarretavam, inventaram-se grupos de risco socialmente
aceitáveis, elaborando um discurso insidioso que
declarava vítimas inocentes certos seropositivos. Mas a
inocência pressupõe a outra face da moeda, ao
descrever uns como alvos da má sorte estamos
implicitamente a assacar culpas aos outros, quase (?) os
declarando merecedores do que lhes acontece.
Júlio Machado Vaz
16. Seropositividade / Sida / Morte Social e Biológica
“a Sida pôs a nu o que em Antropologia se descreve
como a não coincidência entre morte social e biológica,
com a primeira a anteceder a segunda. E se
habitualmente falamos de morte vudu ou ritos funerários
de outras sociedades, aqui trata-se da solidão
provocada pelo afastamento de quem rodeia portadores
e doentes, promovidos a leprosos dos tempos
modernos. Estes verdadeiros „cadáveres sociais
ambulantes‟ fazem tristemente lembrar muitos dos
nossos velhos, cujos fins de vida já a não abrigam, não
passam de corpos que suspiram por se juntar aos
espíritos que partiram.
Júlio Machado Vaz
17. Seropositividade / Sida / Morte Social e Biológica
Este pensamento de Júlio Machado Vaz
coloca o “dedo na ferida” resultante de
muitos dos “fantasmas que povoam o
universo” de pacientes infectados com
VIH, da população em geral e mesmo de
profissionais de saúde. Ainda hoje! Esta é
a experiência que tenho tido na minha
intervenção clínica.
18. Seropositividade / Sida / “fantasmas” associados
Noções como “culpa”, “castigo”,
“invulnerabilidade”, “normalidade e
patologia”, “grupos de risco”, mantêm-se
recorrentemente presentes nas
representações e mesmo nos discursos.
19. Seropositividade / Sida / Clínica
O fio condutor na minha intervenção clínica, é
(procura) prevenir a morte psíquica, em vida.
Reconhecer esta possibilidade torna-se
fundamental para na clínica poder impedir-se
esse movimento “ destrutivo da mente”. Do que
a morte biológica representa para o sujeito,
nada se poderá saber. Mas, tal como refere
Pontalis quando fala da psicanálise, pretende-se
aceder à “morte que se insinua na vida”.
A doença Sida continua a surgir, nos nossos
tempos, ligada à própria morte. Reconheço-o na
clínica.
20. Seropositividade / Sida / Clínica
Tal, dever-se-á não só ao carácter de incurabilidade que
ainda a acompanha, mas também ao facto de a ela se
associarem muitos “fantasmas”, conferindo-lhe um
carácter “maléfico”. Acompanha-se de fantasmas
inconscientes muito vivos, tanto no que diz respeito às
representações individuais bem como às colectivas.
Existe uma panóplia de fantasias inconscientes que se
mantêm face a esta infecção/doença. Estando
moralmente conotada de forma negativa, liga-se
directamente a noções de sexualidade perversa,
transgressão, homossexualidade.
21. Seropositividade / Sida / Clínica
Existe a necessidade de desconstruir
sentidos, que se encontram ao nível do
inconsciente imbricados ao tema do
sangue, do sangue contaminado, do
sangue e da morte, do sangue e do
esperma.
22. Seropositividade / Sida / Clínica
A ligação do paciente com Sida ao mundo
externo torna-se muito difícil. Para Revidi, esses
pacientes personificam a morte. A
representação da morte não existe em termos
de imagens da mente humana. Para ele, a única
aproximação possível à noção de morte, passa
pelo cadáver. Opera-se sobre o corpo humano
um trabalho de degradação de esvaziamento,
que o imaginário colectivo identificou como
processos de “cadaverização”.
23. Seropositividade / Sida / Clínica
(Doente com Sida) = Pré-cadáver
Sida = Morte
Doente com Sida = Cadáver = Imagem de
Morte
O afastamento face ao paciente com Sida,
permite isolar, circunscrever e afastar a
morte.
Revidi
24. Seropositividade / Sida / Clínica
Muitos dos pacientes que sigo relatam
este afastamento (sendo que muitas
vezes eles afastam-se, com medo de
“fazer mal” aos outros).
25. Angústia de Morte Contagiosa
(…) “as pessoas sabiam que Santiago Nasar ia
morrer e não se atreviam a tocar nele como se a
morte pudesse contaminar-se. De resto, Cristo
Bedoya que o acompanhava estava por isso
mesmo também incluído no círculo criado em
volta de Nasar, como se tivesse sido
contaminado pela morte. Bedoya diz que as
pessoas o olhavam como se estivessem
marcados de um modo estranho e aterrador. O
que não se pode compreender é aterrador”(…)
Crónica de Uma Morte Anunciada, Gabriel Garcia Marquez
26. Angústia de Morte
Para Revidi, o diagnóstico da doença surge como factor
de agressão em alguém que não pensa na sua própria
morte. O sujeito com saúde no seu dia a dia utiliza
mecanismos de defesa dos quais se destacam o
evitamento e a negação da própria morte. Face ao
diagnóstico tudo se desmorona irrompendo, segundo
este autor, angústias múltiplas como a “angústia de
morte”. Esta, tem a sua origem no real, o que a distingue
de uma angústia neurótica. Nesse momento essa
angústia é tão destruturante que se pode comparar a um
“estado vertiginoso” (dando-se uma sideração das
defesas, uma obnibulação provocada pela ideia da sua
doença).
27. Angústia Morte / Clínica
Uma abordagem dinâmica, realizada pelo
psicólogo no trabalho com estes pacientes (e na
qual eu me revejo), visará reconhecer, segundo
Revidi, “os fluxos de angústia e desespero”
contrabalançados com os “fluxos de energia
para a vida”. Essa abordagem resulta do
estudo, necessariamente frágil, entre dois eixos:
o das agressões vividas pelo sujeito com a
doença e o dos mecanismos de defesa
psicológicos que utiliza para combater e/ou se
adaptar face a essas agressões.
28. Mecanismos Defesa Mais Operativos
Regressão;
Negação da realidade;
Racionalização;
Sublimação;
Isolamento;
Idealização;
Obsessionalização e Evitamento Fóbico.
29. Mecanismos de Defesa mais
“patológicos”
• “Sideração do Funcionamento Mental”;
“Depressão Essencial” (Marty);
Anestesia Afectiva”;
Desrealização
30. Clínica
O trabalho terapêutico com os pacientes
infectados com VIH e/ou com Sida, pressupõe
a reconstrução da perda. A doença/ morte
coloca em conflito pulsões de vida e pulsões de
morte. Terá que existir um novo compromisso
entre elas que permita a adaptação à situação
disruptiva. A doença representa uma perda, que
como refere Klein, é sempre uma “perda de algo
interno”. Terá que se realizar sempre um
trabalho de luto, em que se aceita a perda do
objecto de amor.
31. Clínica
Superar a negação da perda (evitando o
luto patológico), é ir no caminho da vida
psicológica (que se traduz por uma
sucessão de várias mortes).
32. Clínica de “Mãos Nuas”
É uma “clínica de mãos nuas”, que tem norteado a
minha intervenção clínica, surgindo como contraponto a
uma clínica instrumental, directiva, que tem por
instrumentos questionários e quantificações, procurando
as comparações e as elaborações estatísticas,
acedendo apenas a alguns aspectos mais superficiais
dos fenómenos.
Tenho procurado na minha actividade clínica aceder à
compreensão e ao que é verdadeiramente único em
cada sujeito, conjugando a minha formação base em
Psicologia Clínica, com a formação em Psicoterapia.
33. Clínica de “Mãos Nuas”
Sublinho a ideia de que conhecer não equivale
a determinar o que é verdadeiro. Retomo
frequentemente o pensamento de Chiland pelo
qual se valoriza o papel de uma “clínica de
mãos nuas”, em que o psicólogo é instrumento
de si próprio e onde o papel da observação é
fundamental. O psicólogo para se usar a si
mesmo como instrumento necessita de realizar
um trabalho dinâmico de autoconhecimento,
“um trabalho sobre si” de forma a não imiscuir a
relação terapêutica de problemática própria.
34. Clínica de “Mãos Nuas”
O que o clínico põe ao serviço do outro
“não são somente os seus
conhecimentos, mas o seu (…) aparelho
psíquico, o seu psiquismo, o seu
funcionamento mental, a sua capacidade
de sentir, de compreender e de elaborar; é
um saber, é um saber vivo, encarnado,
que engloba a sua própria pessoa”.
35. O Quase Último
não é o medo da morte
é o de não estar todo em mim
perder naquele momento a reminiscência do quadro
sentir que a tua mão
que antes vogava aqui por dentro
já partiu
e que o corpo não é
aquela inerte oração
não conseguir ver jamais as tuas tranças
daquela fotografia
não resvalar pela ladeira como fazem
as crianças na analgia (alegria)
da sua brincadeira
A.S. (25/08/2009)