O documento trata de uma ação civil pública movida contra o Município de Biguaçu para exigir a implementação de 500 vagas no ensino pré-escolar. A sentença condenou o Município a criar gradualmente as 500 vagas em até 3 anos. O Município recorreu alegando já ter implementado as vagas antes do prazo por meio de convênio, mas o recurso foi negado e a sentença mantida.
O OCIDENTAL E O ABSOLUTISMO OS INDIGENAS E OS DEUSES DA POLINESIA E DA FILIPI...
Apelação Cível - 2012.080501-2
1. Apelação Cível n.º 2012.080501-2, de Biguaçu
Relator: Desembargador Ricardo Roesler
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
IMPLEMENTAÇÃO DE VAGAS NA PRÉ-ESCOLA. DIREITO
FUNDAMENTAL AO ENSINO. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO
INTEGRAL (ART. 1.º DA LEI N.º 8.069/90 E ARTS. 6.º E 227 DA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). SENTENÇA QUE IMPÕE A
CRIAÇÃO DE 500 (QUINHENTAS) VAGAS. PARTICULARIDADE
DO CASO. DEDUÇÃO, PELO MUNICÍPIO, DE
IMPLEMENTAÇÃO DAS VAGAS POR FORÇA DE CONVÊNIO
FIRMADO COMO O GOVERNO FEDERAL. ALEGAÇÃO, EM
RECURSO, UNICAMENTE DA AUSÊNCIA DE
NECESSIDADE/UTILIDADE DA MEDIDA, E SOBRETUDO DA
TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA, DIANTE DO
CUMPRIMENTO DA DETERMINAÇÃO, EM TESE, ANTES DO
PRAZO FIXADO NA DECISÃO. IMPROPRIEDADE.
CIRCUNSTÂNCIA QUE EVIDENCIA A PONTUALIDADE E
ADEQUAÇÃO DO COMANDO JUDICIAL. SENTENÇA
MANTIDA, INCLUSIVE NO QUE SE REFERE À CONCESSÃO
DA TUTELA ANTECIPADA. RECURSO DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.º
2012.080501-2, da comarca de Biguaçu (2ª Vara Cível), em que é apelante Município
de Biguaçu, e apelado Ministério Público do Estado de Santa Catarina:
A Quarta Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime, negar
provimento ao recurso e, em sede de remessa, manter a sentença. Custas legais.
Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs.
Desembargadores Rodrigo Cunha (Presidente com voto) e Júlio César Knoll.
2. Florianópolis, 27 de novembro de 2014.
Ricardo Roesler
RELATOR
Gabinete Des. Ricardo Roesler
3. RELATÓRIO
O Ministério Público de Santa Catarina propôs ação civil pública em face
do Município de Biguaçu, para exigir a implementação de 500 vagas pré-escolares
(de 0 a 6 anos), bem como a manutenção das atividades dos estabelecimentos
inclusive nos períodos de férias escolares. Aduziu que a educação infantil, direito
fundamental, estaria a cargo da Administração Municipal, deduzindo para tanto o
princípio da proteção integral, com fundamento no art. 1.º da Lei n.º 8.069/90 e arts.
6.º e 227 da CR.
Requereu o deferimento de tutela antecipada, de sorte que fosse
determinado ao Município o oferecimento das vagas no período de 120 dias, ou o
pagamento das vagas em estabelecimentos particulares. Postulou, ao final, a
manutenção da tutela e o provimento de seus pedidos.
Indeferiu-se a tutela (fls. 96-98); adiante, por força de agravo, a
pretensão foi deferida, em parte (fls. 259-265).
O Município ofereceu contestação, na qual alegou investir regularmente
mais do que determina a CR na educação infantil, mantendo então aproximadamente
1.600 vagas. Disse também que não poderia fazer mais em virtude da limitação
orçamentária, embora viesse, dentro do possível, buscando expandir a prestação do
serviço (fls. 103-108).
Realizou-se instrução (fls. 177-184). Após as alegações finais, sobreveio
sentença, com acolhimento parcial dos pedidos, nos seguintes termos:
JULGO PROCEDENTE EM PARTE a presente ação civil pública e condeno o
réu Município de Biguaçu, nos termos da fundamentação supra, para:
a) obrigá-lo a implementar o acesso à educação infantil, em creches e
pré escolas (art. 208, IV, da CF – crianças de 0 a 05 anos), através da criação de
500 (quinhentas vagas), as quais, diante das necessidades e provisões
orçamentárias inerentes ao Poder Público, se dará parceladamente, na proporção de
1/3 das vagas (um terço) a cada ano, iniciando-se do ano corrente e observado o
limite de 03 (três) anos para conclusão da obrigação constitucionalmente
estabelecida.
b) indefiro o pedido supletivo do item "b" da petição inicial pelos
fundamentos constantes do corpo da decisão.
c) determino que o autor e o Município providenciem a divulgação desta
sentença aos meios de comunicação locais, a fim de que chegue ao conhecimento
da população.
d) fixar multa diária para a hipótese de descumprimento das
determinações nos prazos contidos supra, em R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia,
a ser suportada pessoalmente pelo Prefeito Municipal.
Isento o réu do pagamento das custas processuais diante do art. 18 da
Lei 7347/85 e Regimento de Custas do Estado.
Deixo de condenar o réu no pagamento de honorários advocatícios,
“tendo em vista que a propositura da ação civil pública constitui função
institucionalizada, uma das razões porque dispensa patrocínio por advogado, não
cabe o ônus do pagamento de honorários” (JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO
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4. FILHO, Ação civil pública. Freitas Bastos, 1995. p. 368). (fl. 248-249)
Rejeitados os embargos de declaração opostos pelo Município (fls.
253-255 e 267), houve interposição de apelação. O Município, em suma, asseverou
ausência de razões para manter a condenação ou mesmo a tutela concedida
antecipadamente, tendo em vista a implementação das vagas, antes do período
estabelecido, em face de convênio firmado com o Governo Federal (fls. 272-276).
Houve contrarrazões (fls. 302-307).
Nesta instância, o Ministério Público opinou pelo conhecimento e
provimento do pedido (fls. 312-317). Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de
Justiça o Exmo. Sr. Dr. Paulo Cezar Ramos de Oliveira.
É o relatório.
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5. VOTO
Trato de recurso contra sentença que impôs ao Município Biguaçu a
implementação de 500 vagas no ensino pré-escolar, considerada a sua carência.
A insurgência (o recurso) não questiona propriamente o dever do
Município de assegurar o ensino; ele combate, na verdade, a suposta ausência de
justificativa para a manutenção da sentença, em face da construção de centros
educacionais – razão pela qual, inclusive, a tutela antecipada perderia sua função.
Em outras palavras, observar-se-ia a perda de objeto superveniente.
É fácil notar que, cada vez mais, há a necessidade de intervenção
judicial para a solução de políticas públicas. Daí tanto se questionar, de um lado, o
que se procura ordinariamente tarifar como certo ativismo judiciário indevido, e de
outro a eventual limitação do Poder Público de fazer frente àquelas exigências por
vezes mais elementares.
Tenho que o poder judiciário está legitimado para controlar, determinar e
formular as atividades desenvolvidas pelo Estado. O princípio da separação dos
poderes, corretamente interpretado no Estado Democrático de Direito (que incide
sobre a realidade social, para modificá-la), significa que o Estado, único, atribui
constitucionalmente o exercício de suas funções a determinados órgãos, que as
exercem primariamente, sem interferência dos outros em suas atividades; mas, sobre
essas atividades, paira o controle dos atos dos demais "poderes" pelo Judiciário. Por
outro lado, admite-se hoje até mesmo o eventual controle do Judiciário sobre o mérito
do ato administrativo. Não há mais atos discricionários que escapem à fiscalização.
E quais são essas circunstâncias- Em tema de políticas públicas, o
Poder Judiciário pode interferir para implementá-la, na omissão do poder público, ou
para corrigi-las, se não se adequarem aos objetivos constitucionais. Trata-se, em
última análise, de controle de constitucionalidade. O sistema brasileiro herdou a
tendência – hoje realidade – de judicialização da política diretamente da judicial
review norte-americana, introduzida em 1891 pela decisão do juiz Marshall no caso de
Malbury x Madison (1803, quando a Suprema Corte dos EUA instituiu o controle
judicial de constitucionalidade das leis – controle de constitucionalidade difuso –
marca do constitucionalismo ocidental). É oportuno lembrar que o modelo
constitucional brasileiro, desde a Constituição Republicana, inspira-se no sistema
norte-americano.
Mas há limites nessa intervenção judicial. O Supremo Tribunal Federal
tem fixado as seguintes balizas: 1 – o mínimo existencial (núcleo duro dos direitos
sociais, essencial à dignidade humana), também pressuposto de sua imediata
judicialização.; 2 – a razoabilidade do pedido (individual ou coletivo) em contraposição
à irrazoabilidade da atuação do poder público; 3 – a reserva do possível (existência
de verba orçamentária). O Supremo Tribunal também tem afirmado que, tratando-se
do mínimo existencial, ele deve ser imediatamente satisfeito, independentemente da
existência da reserva do possível. Assim deverá ser com a educação.
Maurice Merleau-Ponty, em preciosa monografia sobre o exercício
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6. dialético, lembra que o discurso político, não raras vezes, orienta-se por meio de
alguma filosofia naturalista, bastante adequada, em face de sua generalidade, para
conter elementos morais (As aventuras da dialética, Martins Fontes, 2006, p. 91 e
segs.). Na prática, anota o autor, há alguma tentativa de propor uma retórica subjetiva
para permitir a isenção de determinados deveres e a indulgência gratuita do cidadão,
sem efetiva demonstração de que há direcionamento da atividade pública aos fins
próprios ao alcance do bem comum.
De qualquer sorte, dever-se-á ir além, se assim for necessário, para
assegurar o direito fundamental. A propósito, tem afirmado o STF:
"RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE -
ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL -
DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART.
208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À
EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER
PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO
IMPROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional
indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu
desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o
atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa
prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da alta
significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional
de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das
'crianças de zero a seis anos de idade' (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e
atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se
inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o
integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o
próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como
direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de
concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública,
nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios -
que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art.
211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente
vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da
República, e que representa fator de limitação da discricionariedade
político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do
atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de
modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera
oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida,
primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e
executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário,
determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de
políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas
pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento
dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório -
mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e
culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à 'reserva do
possível'. Doutrina" (RE 410.715-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello,
Gabinete Des. Ricardo Roesler
7. publicado em 03.02.06).
Mas o caso é sensivelmente mais arrojado; o que se postula não é a
implementação de uma ou outra vaga, mas sim de 500 – algo equivalente a 1/3 das
vagas então existentes ao tempo da propositura da ação (2007). Nesses casos, nada
obstante o direito fundamental que se discute, penso que a imposição deva ser
medida sempre com muita cautela, pois se exige alguma logística e, sobretudo, algum
incremento orçamentário, nem sempre mensurável na abstração do pedido, e mesmo
na corriqueira generalidade da defesa. Assim, mesmo que medidas mínimas de
investimentos sejam cumpridas, a avaliação de casos dessa ordem deverão sugerir
uma abordagem mais apurada.
Lembro, no entanto, que, conquanto o Município tenha deduzido
limitações inicialmente, procura agora discutir a desnecessidade de manutenção da
sentença porque, em tese, quase todas as vagas se veriam implementadas antes do
decurso de prazo inicialmente estabelecido.
O que remanesce, então, é avaliar o acerto da condenação, sobretudo
no que se refere à tutela, uma vez que os entraves habituais (ausência de
planejamento ou de dotação orçamentária) não parecem prováveis.
Quanto ao ponto, pouco há a ser dito. Reconheceu-se a necessidade de
suprimir a carências de vagas à época existente. O fato de se haver, adiante,
estabelecido convênio para implementação do número aproximado de vagas
reivindicadas significa, antes, prova do acerto da decisão. Afinal, a carência vinha
provada pelas diversas relações juntadas (fls. 19-35 e 197-217), tanto quanto pelo
depoimento daqueles ouvidos em juízo (fls. 181, 182 e 183). Aliás, é da própria
Secretaria Municipal de Educação a declaração formal de que 599 (quinhentos e
noventa e nove) crianças aguardavam, em março de 2010, a abertura de vagas (fl.
41).
Diante desse cenário, o deferimento da tutela antecipada é por si
bastante emblemática, sintoma da necessidade. Afinal, o panorama era suficiente
para revelar a urgência na implementação de vagas pré-escolares, o que por fim é
coroado com a realização de convênio para a criação de educandários.
Tanto a necessidade quanto à urgência se viam desde então presentes,
e por isso justificaram o deferimento da antecipação da tutela que, a despeito de
alguma movimentação do Município, mantém-se atual – tanto quanto a sentença
que a confirmou, em primeiro grau.
No mais, observo que se determinou o prazo de três anos para
implementação das 500 vagas postuladas, à razão de 1/3 por ano. O termo, suponho,
é bastante razoável, considerando que a decisão data de agosto de 2012 (fls.
249-250), e notadamente o fato, noticiado pelo próprio Município, que firmara, ainda
em maio daquele ano, termo de compromisso com a União, relacionado ao
"Programa Proinfância" (PAC 2), do que sobreviria a construção de duas creches,
para um total de 480 vagas, a ser cumprido em 270 (duzentos e setenta) dias –
prazo muito inferior, portanto, ao determinado na sentença para o seu cumprimento.
Isso posto, nego provimento ao recurso e, em sede de remessa,
confirmo a sentença.
Gabinete Des. Ricardo Roesler