6. 6
Ana das Carrancas · 15Texto Institucional · 6
Luciana Azevedo
Manuel Eudócio · 23Patrimônio Vivo em Contexto · 9
Maria Acselrad
Nuca · 31Cartograma de Mestres e Grupos · 12
Maracatu Leão Coroado · 39Referências · 112
Zé do Carmo · 43
Lia de Itamaracá · 51
Manuel Salustiano · 59
Homem da Meia-Noite · 67
Zezinho de Tracunhaém · 75
Teatro Experimental de Arte · 87
Caboclinho Sete Flexas · 91
Maestro Nunes · 99
Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu · 107
Camarão · 19
J. Borges · 27
Canhoto da Paraíba · 35
Banda Musical Curica · 47
Dila · 55
Índia Morena · 63
José Costa Leite · 71
Confraria do Rosário · 79
Fernando Spencer · 83
Selma do Coco · 95
Clube Indígena Canindé · 103
7. 7
Documentar, através deste livro, a trajetória dos
“Patrimônios Vivos de Pernambuco” e, consequentemente,
seus múltiplos saberes, histórias e memórias, representa
para nós, da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
de Pernambuco – Fundarpe –, um momento oportuno de
reconhecer, salvaguardar e difundir parte da diversidade
cultural que constitui Pernambuco. Mais do que isso, reforça
o nosso compromisso em promover e proteger o patrimônio
cultural imaterial, contido nas tradições, no folclore, nos
saberes, nas línguas, nas festas e em diversas outras
manifestações, fortalecendo as “referências culturais” dos
grupos sociais em sua heterogeneidade e complexidade.
Cientes da importância dessa categoria do patrimônio,
temos, nos últimos anos, nos esforçado para criar e
consolidar instrumentos e mecanismos, de maneira coletiva
e compartilhada, que visam garantir o seu reconhecimento,
defesa e, acima de tudo, viabilidade. Assim, no ano de
2002, o Governo do Estado de Pernambuco lançou,
de maneira pioneira no Brasil, a “Lei do Registro do
Patrimônio Vivo”, possibilitando o reconhecimento e o
apoio aos mestres e grupos da cultura popular e tradicional,
avançando para uma concepção do patrimônio entendido
como “o conjunto dos bens culturais, referente às
identidades e memórias coletivas”. Nesse contexto, formas
de expressão, saberes, ofícios e modos de fazer ganharam
um novo espaço, quanto à apreensão dos seus sentidos e
significados.
Hoje, nosso desafio é asseverar a inserção dos nossos
patrimônios vivos na Política Cultural do Estado, o que
temos feito através da realização de oficinas de transmissão
de saberes, exposições, apresentações culturais, palestras,
entre outras ações, que para nós significa a apropriação
simbólica e o uso sustentável dos recursos patrimoniais
direcionados à preservação e ao desenvolvimento
econômico, social e cultural do Estado. Nessa trajetória,
articulamos diversas ações institucionais que possibilitaram
investir em atividades como pesquisa, documentação,
proteção e promoção desses patrimônios vivos.
Portanto, ao dar corpo a testemunhos de pernambucanos
e pernambucanas, este trabalho ousa servir como um
memorial, um “pergaminho identitário” fundamental para a
construção do futuro. Um futuro que começa na percepção
do que fomos e de quem somos, possibilitados pela
“consciência patrimonial”.
Sem dúvida, esta valiosa e inédita publicação é mais um
fruto desses desafios! Queremos compartilhar com vocês,
leitores – e por que não “patrimônios vivos”? –, um pouco
das nossas descobertas e redescobertas. Saibam, desde já,
que o livro em mãos é resultado de um trabalho de pesquisa
e registro, de um olhar atento e sensível, e incompleto,
por essência, pois a cada ano serão incorporados novos
patrimônios vivos. Mais do que registrar, portanto, estas
linhas e imagens que seguem nos possibilitam mergulhar
num mosaico de experiências que marcaram e marcam
as vidas de grandes mestres e grupos da cultura popular
e tradicional, verdadeiros tesouros vivos, guardiões e
sacerdotes de memórias e saberes. Em seus testemunhos,
são revelados o simbólico, o imaginário e o real, numa
dinâmica objetiva e subjetiva que articula um saber fazer,
conhecimentos e empreendimentos sociais desafiadores à
nossa maneira de pensar e agir. Um rico universo em que
as pessoas se expressam e se relacionam com o mundo;
que comunica vida, fatos, pensamentos, sonhos, ideias e
sentimentos. Boa leitura!
Luciana Azevedo
Diretora-presidente da Fundação do Patrimônio
Histórico e Artístico de Pernambuco.
10. 10
O Patrimônio Vivo em Contexto
Maria Acselrad1
Um dos instrumentos mais relevantes das políticas públicas
voltadas para o reconhecimento das culturas populares
desenvolvidas no Brasil, nas últimas décadas, tem sido as
patrimonializações de bens culturais imateriais. É inegável que para
o enriquecimento desse processo a circulação de documentos,
como a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e
Tradicional, de 1989, e, mais tarde, a Convenção para Salvaguarda
do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, ambas promulgadas
pela UNESCO, e das quais o Brasil é signatário, foram decisivas
para a reverberação de um debate público sobre o assunto.
A resposta a esse movimento, por parte dos órgãos gestores
de cultura, deu-se através da criação de instrumentos jurídicos
apropriados que procuravam atender à demanda que se impunha
em relação à lacuna gerada pelas políticas patrimoniais até aquele
momento, no que diz respeito à dimensão imaterial do patrimônio
cultural brasileiro.
A repercussão dessa discussão, no cenário brasileiro, ganha
destaque com a criação do Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000,
ápice de um longo processo de debates políticos e intelectuais, que
institui o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial e cria
o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, abrindo um espaço
para o reconhecimento, por parte do Estado, de bens de caráter
processual e dinâmico como patrimônio cultural do Brasil, tendo
“como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância
nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade
brasileira”. 2
1 Antropóloga e professora do Depto. de Teoria da Arte e Expressão
Artística da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE.
2 Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 in: Patrimônio imaterial no
Brasil – legislação e políticas estaduais.VIVEIROS DE CASTRO e FONSECA,
Maria Laura e Maria Cecília Londres. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.
Vale ressaltar, de acordo com Barbosa e Couceiro (2008), que
algumas experiências, consideradas exemplares, de programas
nacionais de salvaguarda – realizadas por países como Japão,
Tailândia, Filipinas e Romênia, conhecidas como Tesouros
Humanos Vivos – em prática desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, contribuíram de forma significativa para a ampliação
das agendas políticas patrimoniais no mundo, inserindo o tema
da salvaguarda através da transmissão de saberes e apoio direto
a mestres e grupos, na pauta de diversos debates públicos de
âmbito nacional. Num mundo cada vez mais globalizado, em
constante e acelerado processo de transformação, a preocupação
com as especificidades culturais alçava a um novo patamar a
discussão sobre o patrimônio cultural.
Nesse contexto, as políticas de patrimonialização de pessoas
ou grupos da cultura popular e tradicional, amparadas por
leis de registro estaduais, surgem no rastro de uma série de
discussões acerca da salvaguarda do patrimônio imaterial que
encontram repercussão no âmbito local. Em Pernambuco, a
Lei do Patrimônio Vivo3 surge como uma tentativa pioneira,
no contexto brasileiro, de instituir no âmbito da administração
pública estadual, o instrumento do registro, procurando
fomentar diretamente as atividades de pessoas e grupos culturais
representantes da cultura popular e tradicional, contribuindo
para a perpetuação de suas atividades. O registro prevê a
implantação de ações de formação, difusão, documentação e
acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos premiados.
Nesse conjunto de ações, o processo de transmissão de saberes
assume papel de destaque na salvaguarda das expressões,
celebrações e ofícios aos quais os mestres e grupos encontram-se
vinculados, através do repasse de seus conhecimentos às novas
gerações de alunos e aprendizes, em sua comunidade ou fora
dela.
3 LEI nº 12.196 de 02 de maio de 2002. Idem.
11. 11
saúde debilitado, para continuar efetivamente trabalhando, já têm
em seus filhos um caminho que aponta para o futuro da tradição.
O universo dos mestres e grupos contemplados abrange
expressões das diversas linguagens artísticas, dos ofícios artesanais,
da religiosidade popular, entre outras manifestações culturais.
Dentre os grupos registrados até o momento, podemos encontrar
de forma predominante manifestações culturais ligadas ao
Carnaval: um clube de frevo, dois maracatus de baque virado
e dois caboclinhos. Também foram registrados: uma banda de
música, um grupo de teatro e uma irmandade religiosa. Entre
os mestres, encontramos uma diversidade de tradições culturais,
através do registro de representantes da ciranda, do coco, da
xilogravura, da cerâmica, do forró, do cordel, do circo, da pintura,
do cinema, entre outras.
Segundo Gonçalves (2003), se relativizarmos a noção moderna de
patrimônio – criada no século XVIII, com o surgimento dos estados
nacionais –, podemos encontrar correspondência na experiência
universal do “colecionamento”, prática comum entre muitos povos
e comunidades, ao longo da história da humanidade. A atribuição
de valor, onipresente nos processos de identificação e registro do
patrimônio, faz com que essa tendência ao “colecionamento”
venha a oferecer um panorama daquilo que de mais representativo
e singular compõe o patrimônio cultural de um povo. São histórias
de vida, processos de aprendizado, dinâmicas de trabalho, escolhas
estéticas, processos criativos e de transmissão de saberes de nossos
patrimônios vivos, compartilhados com a pesquisadora Maria
Alice Amorim e com o fotógrafo Luca Barreto que, através desta
publicação, temos o imenso prazer de apresentar.
Sendo assim, é com muita alegria que oferecemos aos nossos
patrimônios vivos este trabalho, em retribuição a toda uma vida
dedicada à cultura.
Recife, novembro de 2009.
Nos últimos anos, o Governo de Pernambuco, através da Fundação
do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe –,
vem realizando oficinas, palestras, aulas-espetáculo, apresentações
culturais, homenagens, exposições, numa experiência inédita de
inserção dos patrimônios vivos na política de cultura do estado.
Essas ações, cujos formatos diferem de acordo com a expressão
cultural, idade e disponibilidade do mestre, revelam algumas
questões importantes para a reflexão sobre a transmissão de
saberes populares e tradicionais, quando fomentada pelas
políticas públicas de cultura, por exemplo: 1) o reconhecimento da
importância de serem preservadas as singularidades das tradições
culturais representadas pelos mestres e grupos contemplados;
2) a valorização da diversidade de técnicas, conteúdos e formas
de repasse praticadas pelos mestres, características de processos
pedagógicos identificados com os princípios da educação não
formal; e 3) o entendimento de que o processo de aprendizado
do mestre é fator relevante para compreensão do seu processo
de transmissão de saberes, entre outros aspectos. Todos esses
fatores implicam na concepção de que ações de salvaguarda não
devem prescindir dos atores sociais que se encontram em foco e
que isso vem a ser decisivo para que a própria produção de sentido
das tradições por eles representadas se atualize e se perpetue no
tempo e no espaço.
Em Pernambuco, entre 2005 e 2010, foram registrados 24
patrimônios vivos. Dentre eles, 16 mestres e oito grupos, através
da publicação de cinco editais. O lançamento do primeiro edital
rendeu excepcionalmente a premiação de 12 mestres4
. Nos anos
subsequentes, três patrimônios vivos foram eleitos a cada edital
publicado, através de um processo de inscrições que já soma mais
de 250 candidaturas ao registro. Em 2008, Pernambuco perdeu
três mestres – Ana das Carrancas, Canhoto da Paraíba e Manoel
Salustiano –, e hoje conta com 21 patrimônios vivos, a maioria em
atividade; e mesmo aqueles que se encontram com o estado de
4 A publicação tardia do Decreto nº 27.503, de 27 de dezembro de
2004, que traz a regulamentação da Lei, gerou este acúmulo.
14. 14
Legenda Nome Artístico Tradição cultural Data de nascimento Cidade
Ano da
titulação
1 Ana das Carrancas Artesanato em cerâmica 18.02.1928 Petrolina 2005
2 Banda Musical Curica Banda filarmônica 09.08.1848 Goiana 2005
3 Caboclinho Sete Flexas Caboclinho Fundado em 1973 Recife 2008
4 Camarão Forró 23.06.1940 Recife 2005
5 Canhoto da Paraíba Choro 17.03.1931 Recife 2005
6 Clube Indígena Canindé Caboclinho 05.05.1897 Recife 2009
7 Confraria do Rosário Irmandade religiosa Fundada provavelmente em 1777 Floresta 2007
8 Dila Xilogravura e Cordel 23.09.1937 Caruaru 2005
9 Fernando Spencer Cinema 17.01.1927 Recife 2007
10 Homem da Meia-Noite Clube de frevo 01.01.1960 Olinda 2006
11 Índia Morena Circo 13.07.1943 Jaboatão dos Guararapes 2006
12 J.Borges Xilogravura e Cordel 20.12.1935 Bezerros 2005
13 José Costa Leite Xilogravura e Cordel 27.07.1927 Condado 2006
14 Lia de Itamaracá Ciranda 12.01.1944 Ilha de Itamaracá 2005
15 Maestro Nunes Frevo 22.06.1931 Recife 2009
16 Manuel Eudócio Artesanato em cerâmica 28.01.1931 Caruaru 2005
17 Manuel Salustiano
Rabeca, cavalo-marinho
e maracatu
12.11.1945 Olinda 2005
18 Maracatu Estrela Brilhante Maracatu de baque virado Fundado provavelmente em 1824 Igarassu 2009
19 Maracatu Leão Coroado Maracatu de baque virado 08.12.1863 Olinda 2005
20 Nuca Artesanato em Cerâmica 05.08.1937 Tracunhaém 2005
21 Selma do Coco Coco de roda 10.12.1929 Olinda 2008
22 Teatro Experimental de Arte Teatro Fundado em 1969 Caruaru 2008
23 Zé do Carmo Pintura e escultura 19.11.1933 Goiana 2005
24 Zezinho de Tracunhaém Artesanato em cerâmica 05.07.1939 Tracunhaém 2007
17. 17
Do extremo oeste pernambucano, espiando as terras do
Piauí, saiu a louceira Ana Leopoldina Santos à procura de
sobrevivência, e o que conseguiu cavar foi bem mais que isso:
inspiração, talento, fama. Nascida em 18 de fevereiro de 1923,
no distrito de Santa Filomena, povoação encravada na Serra do
Inácio, à época pertencente ao município de Ouricuri, foram
as verdes águas do Velho Chico que mais tarde viram nascer a
artista. Serviu de mote criador a paisagem exuberante povoada
de nego d’água, maus espíritos, vapor, paquete, remeiros. De um
lado, Pernambuco. Do outro, a Bahia. No meio, o jorro inspirador.
Nas margens, a lama sagrada. Era corriqueiro apreciar esculturas
zoomorfas e antropomorfas na proa das embarcações, imagens
que se repetiam nos barcos, há mais de um século, e no artesanato
do Vale do São Francisco. Delas, um ícone se chamava Guarany,
outro atende por Ana, a filha de Joaquim Inácio de Lima e Maria
Leopoldina dos Santos.
Ainda criança, tinha sete anos e já sabia fazer e vender louça
utilitária – pote, moringa, panela, cuscuzeiro, jarro –, uma das
tradições ouricurienses, que se mantém com as ceramistas da
comunidade do Pradicó. Vendia “panelinha de guisado, boi zebu,
cavalinho com vaqueiro amontado, santinho de lapinha”. Ou seja,
moldava as peças de louça e mais uns tantos brinquedinhos para
ganhar uns trocados e ajudar a mãe louceira, com quem teve os
18. 18
Maria da Cruz dá continuidade ao estilo da mãe,
Ana das Carrancas, com quem aprendeu o ofício primeiros ensinamentos na modelagem do barro. Aos 22 anos
casou-se, teve duas filhas – Ana Maria e Maria da Cruz – e em
seguida ficou viúva. Um ano depois de enviuvar, Ana se casou com
o piauiense José Vicente de Barros. Moravam, então, em Picos.
A vida não era fácil naquelas terras do sertão do Araripe, em que
alternavam bom inverno e longos períodos de estiagem. Por esse
motivo, incluiu-se no rol de migrantes que corriam para Petrolina
em busca de um oásis.
Era 1954. Chegou à cidade e começou vendendo aribé, panela,
pote, presépio, burrinho, pato, boi, cabra. Depois da inspiração
saída das águas do Velho Chico, nunca mais foi a mesma. As
emblemáticas carrancas começaram a ganhar força e, a partir de
1970, tornaram-se disputadíssimas, graças, inclusive, ao trabalho
de pesquisa sobre o artesanato pernambucano que os técnicos
em turismo Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo
estavam realizando pelo sertão, a serviço da Fundarpe. Ambos
ficaram impressionados com as carrancas da ceramista. A trajetória
artística de Ana Leopoldina ficou marcada, daí por diante – e para
sempre – pela mitopoética ribeirinha, a ponto de adotar o nome
artístico que correu mundo: Ana das Carrancas.
19. 19
A carranca mais antiga, da própria produção, data de 1963, quando
ainda era conhecida por Ana Louceira ou Ana do Cego. Sobre a
primeira peça, a carranca cangula, ela mesma contou: estava na
beira do rio e pensou que poderia fazer um barco, colocar um
velho, vendedor de jerimum, com um menino ajudante, umas
bolinhas para fingir que era o jerimum, uma cobertura de palha e,
claro, a carranca na proa do barco. Segundo Ana, essa invenção
“deu sorte”. E assim, de tão bem-sucedida, a cangula ganha
réplicas ainda hoje. Outras peças, igualmente difundidas, também
trouxeram sorte: carranca-cinzeiro, com três caras, jardineira,
totem. Aliás, não se pode falar em Ana sem associá-la às figuras
totêmicas modeladas no barro, em forma de animal e de gente,
alvo de chacota dos feirantes, quando circularam a primeira vez na
feira livre de Petrolina. Ana não se intimidou. Ao contrário, valeu-se
do imaginário da comunidade ribeirinha para moldar na cerâmica
um dos ícones da cultura local. Um casamento bem-sucedido
entre temática e talento. Nesse mesmo ano, 1963, inaugura-se
a Biblioteca Municipal e as carrancas de Ana fazem sucesso,
distribuídas a título de suvenir.
Após levar o nome de Petrolina para feiras de artesanato nacionais
e internacionais, figurar em galerias de arte e museus, alternar
fama e ostracismo, o grande sonho da mulher oleira tornou-se vivo
e palpável em setembro de 2000, mesmo ano em que conquistou
o título de cidadã petrolinense. É inaugurado o Centro de Arte
e Cultura Ana das Carrancas, com loja, ateliê e exposição de
antigas carrancas, inclusive a de 1963. Tudo no ambiente ressalta a
trajetória da ceramista. O olho vazado homenageia o marido, cego
de nascença, Zé Vicente, o amassador do barro. As filhas Ângela
Aparecida de Lima – adotiva – e Maria da Cruz Santos modelam
esculturas, tal qual a mãe. A filha Ana Maria é casada com o
escultor de carrancas em madeira, Domingos Lopes, ou Lopes de
Petrolina, um dos seguidores do estilo de Guarany. Mesmo tendo
falecido em 1º de outubro de 2008, na cidade de Petrolina, a família
vive imersa no rico imaginário da ceramista, que sempre afirmava,
orgulhosa: “meu sangue é negro, mas minha alma é de barro”.
21. 21
Quando Antonio Ferreira da Silva e Josefa Alves Freire viram
nascer o filho, não imaginavam que ali começava a trajetória
de um grande sanfoneiro do agreste. Na verdade, o início de
tudo tem a influência do pai, exímio tocador de oito baixos, a
quem o filho, desde criança, passou a acompanhar nas andanças
musicais. Na labuta cotidiana, enquanto o sanfoneiro ia para a
roça, o filho de sete anos matreiramente ia experimentando os
sons da sanfoninha pé-de-bode, até o dia em que o pai descobriu
as artes da criança engenhosa, emocionou-se e passou a cultivar
o talento do herdeiro, levando-o para as festas, onde o garoto
prestava atenção nos músicos e depois, em casa, tirava os mesmos
sons no instrumento. O menino conquistou definitivamente o
pai executando, de ouvido, os acordes de Maria Bonita, um dos
maiores sucessos àquela época. E o mestre Camarão, ou Reginaldo
Alves Ferreira, tem consciência de que foram decisivos esses
primeiros momentos da infância dedicados à música. Natural de
Brejo da Madre de Deus, é também emblemático o próprio dia do
nascimento: 23 de junho de 1940, véspera de São João.
Foi em Caruaru – a mais importante cidade do Agreste
pernambucano, protagonista de uma das mais tradicionais festas
Camarão ministra aula de acordes
22. 22
juninas do Estado e contemplada, ainda na década de 1970, com
o título de Capital do Forró – que Camarão construiu as bases
da carreira artística. Começou a trabalhar, aos 20 anos, na Rádio
Difusora daquela cidade, por onde passaram importantes nomes
da música brasileira, como Sivuca e Hermeto Pascoal. Foi na mesma
rádio que ganhou o apelido, dado por Jacinto Silva. Luiz Gonzaga
o conheceu na difusora, tocando como profissional. Tinha 18 anos.
Graças à amizade surgida entre ambos, o rei do baião produziu
dois discos de Camarão, pela RCA Victor, em 1969 e 1970.
Gonzaga foi, na verdade, o seu grande mestre, embora nunca
esqueça a importância dos ensinamentos paternos. Na discografia,
o artista contabiliza, ao lado dessa feliz parceria com Luiz Gonzaga,
28 discos, entre long plays, compactos, 78 rotações e CDs, a
maioria fora de catálogo. É de 1998 o CD Camarão Plays forró,
produzido na Inglaterra e com circulação exclusiva na Europa.
Inventivo desde o princípio, foi o mestre quem criou, em 1968, a
primeira banda de forró no país, a Bandinha do Camarão; quem
introduziu sopros (tuba, clarinete, trombone e piston) em banda
de forró; quem criou a Orquestra Sanfônica de Caruaru, em que
diversas sanfonas executam não só variados ritmos juninos, mas
também frevo e maracatu. Norteando-se pela música desde
a primeira infância, o mestre chegou a acompanhar o rei do
baião, após conhecê-lo num programa da Difusora de Caruaru,
mesma rádio por onde passaram músicos renomados e onde
surgiu o seu primeiro conjunto musical, ou seja, o primeiro trio
de Camarão, o Trio Nortista, liderado por ele, um dos maiores
sanfoneiros nordestinos, tocador de forró nas latadas das fazendas
e arraiais juninos, experiente forrozeiro de animados grupos
pés-de-serra. O trio era formado com os músicos Jacinto Silva e
Ivanildo Leite. Afinadíssimo na sanfona, acompanhou grandes
23. 23
nomes da música nordestina, a exemplo de Sivuca, Dominguinhos,
Santanna, Marinês, Jackson do Pandeiro, Arlindo dos Oito Baixos.
O repertório de Camarão é, como manda a tradição da sanfona
nordestina, generoso nos ritmos regionais – xote, xaxado, forró,
baião e arrasta-pé.
O nome do Maestro Camarão corre mundo. Em 1961, foi
a sanfona dele que representou Pernambuco no primeiro
aniversário de Brasília, a convite do presidente Jânio Quadros. Viaja
acompanhado do Trio Nortista, que toca, então, em vários eventos
comemorativos. Tem participado de encontros de acordeonistas
pelo país, graças ao talento e maestria com que empunha a
sanfona. Em 2004, participa do projeto O Brasil da Sanfona, de
Myriam Taubkin, que produziu dois CDs, um livro de fotografias
e um DVD. Fixado no Recife há quase 30 anos, mantém a Escola
Acordeon de Ouro, fundada há uma década no bairro de Areias,
onde já formou diversos músicos nas artes dessa invenção vienense
de 1829, que, no Brasil, ganhou um sotaque bem nordestino e
fez fama. Para facilitar a transmissão de conhecimentos, elaborou
uma cartilha, em que registra importantes informações acerca
dos instrumentos de fole, do manejo do fole, como escolher e
manusear o acordeom, além de noções elementares de música.
Marcelo de Feira Nova, Julinho do Acordeom, Ellan Ricard, Gleyson
Alves, Juquinha, Deivison, Diego Reis e Cezinha do Acordeom são
alguns dos reconhecidos sanfoneiros que passaram pela escola do
mestre. Em parceria com Salatiel d’Camarão, desenvolve o projeto
De pai para filho, com a realização de shows musicais, e, ainda,
Sanfona nas escolas, voltado para oficinas em escolas públicas.
Certamente inspirado na atitude do próprio pai, Camarão estimula
e oferece contribuição decisiva à carreira de iniciantes e, inclusive,
à do próprio filho, parceiro e continuador mais que legítimo da
obra do mestre.
25. 25
Com voz pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que o
primeiro galante do reisado vai debulhando os grãos de uma
vida dedicada à arte e à agricultura. É pelas mãos e pela oralidade
que saem as imagens trazidas da memória de um tempo em
que conviviam os amigos Vitalino, Zé Caboclo e Manuel Eudócio
Rodrigues. Sentado num banco de madeira, tem sempre diante
de si uma mesa, barro molhado e ferramentas para fazer as
esculturas, que, começadas no início do dia, por volta das cinco
da manhã, precisam ser concluídos ao final da mesma jornada.
As mãos não param, enquanto as lembranças emergem. Quase
aos 80 anos, o narrador, mestre Eudócio, exibe o vigor mental e
as habilidades manuais invejáveis de quem teve sempre uma vida
regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo, à catarse da
atividade artística iniciada ainda na infância, com a avó louceira
Tereza Maria da Conceição. De 28 de janeiro de 1931, nascido e
criado no Alto do Moura, Caruaru, o filho de Eudocio Rodrigues
de Oliveira e Maria Tereza da Conceição desde criança trabalha na
agricultura e ocupa as mãos esculpindo o barro.
Frequentou apenas seis meses de escola e é com o auxílio
das mãos e das experiências que vai descrevendo o que tem
vivido esses anos todos no Alto do Moura. São sete décadas de
26. 26
aprimoramento, de adaptação ao gosto da freguesia e de convívio
com fregueses alemães, franceses, portugueses, americanos. De
viagens ao Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Portugal. Lembra
que as primeiras peças foram pintadas a dedo e, onde o dedo não
cabia, pintadas com auxílio de uma varinha. Mais adiante, resolveu
deixar peças ao natural, depois voltou a pintá-las. Gosta de fazer
bonecos grandes, coloridos, embora menos vendáveis. A queima
das esculturas sempre foi num forno do quintal, quinzenalmente,
exceto quando há encomenda urgente. De preferência, o forno
deve estar cheio, pois do contrário fica muito dispendioso.
O que não admite, sob hipótese alguma, é a utilização de fôrma
para moldar as esculturas. As experiências cotidianas sempre
serviram de fio condutor nas criações inspiradas: batizado,
enterro, casamento matuto, casamento forçado, casal andando
em boi manso, violeiro, sanfoneiro, banda de pífano, cangaceiros,
padre Cícero. Mergulhado no universo da cultura tradicional,
uma das inspirações recorrentes é o reisado, com os respectivos
personagens do folguedo natalino do qual participou: dona
Joana, diabo, doutor, padre, mascarado. Em 1948, quando
começou a fazer os bonecos, resolveu fazer um reisado. Fez vários
personagens e conseguiu vender a uma pessoa do Rio de Janeiro. Ateliê no Alto do Moura, em Caruaru
27. 27
Depois, com a dificuldade de comercializar o conjunto, foi fazendo
as figuras individuais. O reisado já não sai no Alto do Moura, o
mestre sente saudade e tenta recuperar, no barro, as práticas
culturais da infância e juventude.
Eudócio sabe que é um criador, um perfeccionista. Jamais
desperdiçou os anos de convivência com Vitalino e Zé Caboclo.
Quando Vitalino saiu do Sítio Campos para o Alto, em 1948,
Eudócio tinha 17 anos. Conheceu os trabalhos do mestre na rua:
naquela época ninguém vendia escultura em casa, o local de
exposição era o buliçoso espaço da feira. Do professor, Vitalino,
lembra-se de muitas coisas: por exemplo, que passou dois anos,
com o cunhado Caboclo, trabalhando para o afamado ceramista
e nem sequer assinavam as próprias peças. Lembra, ainda, que
em 1957 já fazia questão de dizer aos compradores que aqueles
bonecos chamados de “Vitalino” também eram criação de
outros artistas. Com o desaparecimento do mestre, Eudócio não
acreditava na continuidade do ofício. Mostra-se impressionado
com a permanência da atividade e o aumento quantitativo de
artesãos.
A família, uma das pioneiras no ramo, tem na nova geração os
continuadores. Os irmãos Eudócio, Celestina e Josué herdaram o
ofício da avó e da mãe, e se veem sucedidos pelos filhos. Dos nove
filhos de Eudócio, Carlos e José Ademildo, e as respectivas esposas,
vivem do barro. Do casal Celestina Rodrigues e Zé Caboclo, as
filhas Marliete, Socorro, Carmélia e Helena “puxaram ao pai, que
era um artista de mão cheia”, segundo o tio Eudócio. Lembra,
inclusive, das miniaturas que fazia, quando jovem, e guardava
numa caixa de fósforos, esculturas em tamanho minúsculo que são
uma das especialidades das irmãs Rodrigues. A linha de sucessão
também se repete na família Vitalino, na família Rodrigues, na
família Galdino.
29. 29
Prensa alemã, utilizada na
impressão dos cordéis
Artesão de cestinhas de cipó e brinquedos de madeira,
oleiro, pedreiro, carpinteiro, pintor de parede, marceneiro,
trabalhador da palha da cana, passador de jogo de bicho. Esses
foram alguns dos ofícios que Jota Borges experimentou, antes
de se decidir pela venda de cordel nas feiras de Pernambuco,
Paraíba, Ceará e, principalmente, na Praça do Mercado de São
José, no Recife, o que aconteceu a partir de 1956. Matuto
esperto e comunicativo, logo descobriu ser exímio talhador
de madeira e criador de histórias em versos. E o tempo de
permanência na escola foi de apenas 10 meses. Da experiência
com as artes manuais, sobretudo marcenaria e miniatura de
móveis, desenvolveu habilidades que não seriam de jeito nenhum
desperdiçadas mais adiante, conforme atestam as publicações
impressas, as gravuras inconfundíveis, as inúmeras capas de livros
e discos, exposições, oficinas.
O primeiro folheto é de 1964, com capa do poeta e xilógrafo
Dila: O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina. A partir
de 1965, incentivado pelo amigo cordelista Olegário Fernandes,
resolve fazer a capa dos próprios folhetos, e então escreve e faz a
capa de O verdadeiro aviso de Frei Damião. Nascido no Sítio Piroca,
Bezerros, agreste pernambucano, a 20 de dezembro de 1935,
30. 30
Familiares de J. Borges auxiliam na impressão das gravuras
José Francisco Borges nem avaliava o significado dessas decisões
profissionais, apenas se deixava levar pela intuição criadora. Em
1976, faz uma das gravuras mais famosas: A chegada da prostituta
no céu. A vida do sertanejo, o imaginário nordestino, as fabulações
dos contos populares, o cenário rural e as narrativas de cordel
declamadas pela boca do pai, tudo foi misturado na cabeça e nas
memórias afetivas do artista, e o resultado é a plena vitalidade
conferida à famosa e premiada obra, que tem sido traduzida em
outras línguas e linguagens artísticas, a exemplo de peça de teatro,
telenovela, filme, coleção de roupa.
Se o nome dos pais – Joaquim Francisco Borges e Maria Francisca
da Conceição – está inscrito irremediavelmente na vida de J.
Borges, também não podem ser desprezados os nomes do
artista plástico Ivan Marchetti, do escritor Ariano Suassuna e
do pesquisador Roberto Benjamin, que fizeram as primeiras
encomendas de gravuras maiores, escreveram sobre o artista e
deram-lhe ampla divulgação. Suíça, Estados Unidos, Venezuela,
França, Alemanha, Portugal, Cuba foram países para onde
viajou, além dos lugares aonde tem ido a obra do artista: Itália,
Espanha, Holanda, Bélgica, México, Argentina. Para Caracas, foi
em 1995. Visitou Cuba em 1997, num avião russo dos anos 1950,
onde permaneceu 12 dias, ministrando oficina num festival de
cultura caribenha. Na década de 1970, uma exposição de Borges
percorreu 20 países. Em 1964, ilustrou a novela Roque Santeiro,
da TV Globo, e fez a primeira viagem de avião.
Daí por diante não mais parou de percorrer o mundo. Há décadas
tem viajado quase que ininterruptamente dentro e fora do país.
Em 2005, comemorou os 400 anos do D. Quixote, de Miguel
de Cervantes, com uma versão em cordel da referida novela de
cavalaria. E foi para a França participar da exposição itinerante
O universo da literatura de cordel, na condição de principal
homenageado. Graças ao talento e à amizade que cultiva há
anos com importantes galeristas, artistas plásticos, jornalistas e
pesquisadores, Borges tem obras no acervo da Biblioteca Nacional
de Washington e no Museu de Arte Popular do Novo México
(em Santa Fé, EUA); é divulgado no New York Times, participou
31. 31
da revista suíça Xilon em número especial (1980) dedicado aos
xilógrafos nordestinos, ilustrou o livro As palavras andantes, do
uruguaio Eduardo Galeano (1993), figurou no calendário da ONU
de 2002 com a gravura A vida na floresta, tem participado de
exposições na Galeria Stahli, Suíça, entre outras notáveis aparições
internacionais no circuito artístico mundial.
É importante mencionar, ainda, a atuação da Gráfica J. Borges,
em plena atividade, que, durante quatro décadas, utilizou tipos
móveis e prensa manual na produção de cordéis e xilogravuras,
e vem construindo desde então parte da história da literatura de
cordel. Borges à frente, claro, contando com a participação dos
filhos J. Miguel, Ivan, Manassés, Cícero, Pádua, Jerônimo (falecido);
irmãos, cunhada, sobrinhos, como Amaro Francisco (falecido),
Severino Borges, Nena, Joel, Lourenço, Givanildo; dos três mais
novos, os filhos Pablo e Baccaro e o neto Williams. O filho George
vive de serigrafia e Ariano é gráfico. Ao todo, foram gerados 18
filhos. E um grande projeto de vida e arte, de que é testemunha o
Memorial J. Borges, em Bezerros, onde o visitante pode apreciar as
obras gráficas, plásticas, poéticas do mestre e, ainda, desfrutar de
um dedo de prosa com o artista bom de papo.
33. 33
Nuca é apelido de infância: Nuca de Tracunhaém ou Nuca dos
Leões. Tracunhaém – topônimo indígena, que quer dizer
panela de formiga – é a cidade de adoção do artista, desde os
três anos. Leão é o signo de Nuca, ou Manoel Borges da Silva,
que nasceu em 5 de agosto de 1937, no engenho Pedra Furada,
Nazaré, Mata Norte pernambucana, filho dos agricultores Francisco
Costa Mariano e Josefa Borges da Silva. O pai, da roça, criou-
se nos engenhos de cana-de-açúcar. Vivendo a infância num
ambiente de ceramistas descobre-se um admirador do ofício e,
desde os 10 anos, um continuador da tradição, modelando em
barro elementos do cotidiano. O ano em que foi morar na cidade é
o mesmo da estréia de Zé do Carmo na cerâmica. Quando estreou,
havia em Tracunhaém o povo de Lídia, fazendo santo. Antônia
Leão era referência da geração mais antiga, Maria Amélia já se
destacava pela santaria. Zezinho chegou depois, de Vitória. Nilson,
de Goiana. Nuca passou a conviver com diversos ceramistas em
feiras e salões de arte popular, entre eles, Ana das Carrancas e
alguns netos de Vitalino. Foi ao Rio de Janeiro participar de uma
exposição e lá conheceu o mestre Vitalino.
34. 34
Embora desde a década de 1940 já vendesse esculturinhas
de cerâmica nas feiras, principalmente na vizinha Carpina, é
sobretudo a partir de 1968, quando esculpe o primeiro leão,
que se reconhece artista, consagra-se com o efeito visual da juba
leonina e se entrosa com ceramistas renomados. O motivo da
consagração veio da ideia de esculpir leões e floristas. A mulher,
Maria Gomes da Silva, ou Maria de Nuca, inventou de botar os
cabelos cacheados, também no leão. A moda da juba encaracolada
se difundiu tanto, que artesãos aderiram à onda, substituindo pena
de galinha pelos cachos. Além destes, que consistem nuns rolinhos
de barro aplicados um a um, há o leão de listra, o escamado e o
de tranças. Finas ou grossas, as escamas também são colocadas
individualmente, em leões e girafas. Sobre a escolha da temática
dos leões, cogita-se que pode estar vinculada à memória recente
da estatuária de louça portuguesa decorativa dos sobrados ou,
ainda, à memória ancestral daquele que é considerado o rei
dos animais. Entretanto, não podemos deixar de lembrar que o
símbolo de Pernambuco é o leão, tampouco menosprezar a força
do imaginário de ascendentes negros africanos presente na Zona
da Mata, nem esquecer que a antiga denominação de Carpina era
Floresta dos Leões.
Se a família de Nuca era de agricultores, e não de louceiros, o
mesmo aconteceu com a família de Maria, que também era da
roça, não tinha ninguém no barro. Pode-se dizer que a obra de
Nuca é quase obra de dois artistas, originalidade a quatro mãos.
O leão e as bonecas foram criação dele e da mulher. O talento de
ambos para as esculturas cerâmicas desabrochou no convívio com
artistas e artesãos de Tracunhaém, terra das figuras em cerâmica
e das panelas de barro. Depois de brinquedos, bonecas e anjos,
os leões vieram para imortalizá-los. As esculturas são sempre ao
natural, nunca pintadas, exceto sob encomenda. O forno, feito
por ele próprio, fica no quintal de casa e testemunha o fato de
que é indispensável ter ciência para saber construí-lo e usá-lo.
35. 35
E Nuca foi exímio nisso: na hora de queimar, sabia precisar a
caldeação, a fim de não rachar a escultura, nem cair o cabelo.
Outro importante segredo é o da aplicação dos detalhes: como
fazer para não ressecar, enquanto vai modelando e colocando
simetricamente um a um.
Após afastar-se do ofício, por problemas de saúde, dois dos
seis filhos dão continuidade às artes dos pais, Nuca e Maria: o
primogênito Marcos Borges da Silva, ou Marcos de Nuca, faz os
leões e José Guilherme Borges da Silva, o filho mais novo, faz
as bonecas. Apesar de não terem sido muitas as viagens – Lima,
Peru (1980), São Paulo, Rio, Brasília, Bahia –, Nuca dos Leões
criou os filhos com a arte saída das próprias mãos, festejou a
alegria de viver fazendo sempre o que gosta e também ofereceu
todas as condições necessárias ao aprendizado e exercício
artístico dos filhos seguidores. A obra do artista pode ser
apreciada em antiquários, galerias de arte, e enfeitando praças
do Recife, como a do 1º Jardim de Boa Viagem e a Tiradentes,
no Cais do Apolo. Variando de 30 centímetros a um metro, nas
esculturas assina “Nuca de Tracunhaém”, desenhando um nome
de artista que enche de beleza o mundo.
37. 37
Oavô tocava clarinete. O pai, violão. O filho, Francisco Soares
de Araújo, tinha a certeza de que adorava música, e isto era
o que não faltava em casa, reduto dos principais instrumentistas
da cidade. Ainda criança, já sabia apreciar um bom repertório,
habituado aos saraus e serenatas na própria residência. Com o
pai, Antônio Soares de Lima, aprendeu, aos 12 anos, a tocar a
tabuinha, que era como apelidava o violão. O avô, o clarinetista
Joaquim Soares, também exerceu grande influência sobre ele. Com
o maestro Joaquim Leandro, regente da banda local, conheceu as
primeiras notas musicais. Mas, outros instrumentistas da infância,
a exemplo dos violonistas Zé Micas e Luiz Dantas, do saxofonista
Manoel Marra e do acordeonista Zé Costa, foram decisivos, pois,
por causa deles, manteve os primeiros contatos com um repertório
de choros e valsas que o marcaram para sempre. Alguns chorinhos
fizeram-no cultuado por músicos do porte de Radamés Gnatali,
Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Paulinho da Viola.
Nascido em 17 de março de 1931, em Princesa Isabel, alto
sertão paraibano, o filho de Quitéria Lopes de Araújo, lá mesmo,
foi o tocador do sino da igreja, fez iniciação musical e partiu
amadurecido à procura de outras cidades em que pudesse
expandir os dotes artísticos. Ainda adolescente veio ao Recife
apresentar-se na Rádio Clube, mas somente aos 25 anos é
que conseguiu realmente sair de Princesa Isabel. Foi para João
Pessoa, em 1952, onde morou alguns anos e brilhou na Rádio
Tabajara. Em seguida, 1958, transfere-se definitivamente para
Pernambuco e é imortalizado como Canhoto da Paraíba, um dos
mais importantes compositores de choro. O diferencial no uso
da tabuinha aconteceu assim: por necessidade de compartilhar
com os irmãos destros o mesmo instrumento, desenvolveu uma
técnica especial de dedilhar o violão, tocando os acordes com a
mão direita e usando a esquerda para o dedilhado das cordas, sem
invertê-las. Ou seja, um violão “tocado pelo avesso”, como diz o
título de um dos seus discos gravados.
Reprodução de ilustração e antigas imagens de Canhoto da Paraíba,
fotografadas na residência do artista, em Maranguape
38. 38
Não só a forma de tocar o instrumento, sobretudo o vigor das
composições de Canhoto é que o fizeram chegar ao panteão
dos grandes instrumentistas brasileiros. O repertório passa pelos
ritmos regionais – xote, xaxado, baião, frevo – e pela bossa nova,
predominando o choro e a valsa. Para a grandiosidade com que
compunha e tocava o violão, poucos foram os discos gravados por
Canhoto: Único Amor, de 1968, é gravado pela Fábrica Rozemblit,
no Recife. Um dos músicos, escolhido à época por Canhoto, foi
o jovem Henrique Annes, hoje violonista consagrado. O produtor
do disco foi o maestro Nelson Ferreira. Em 1974, também pela
Rozemblit, sai Um violão direito nas mãos do Canhoto. Em
1977, é a vez do álbum Com mais de mil, selo Marcus Pereira,
produzido por Paulinho da Viola e festejado pela crítica musical
do país. No repertório, as músicas Pisando em brasa e Com mais
de mil. Além de produzir o primeiro disco de Canhoto, Paulino da
Viola viajou com o violonista pelo país, no Projeto Pixinguinha, e
gravou, no seu primeiro trabalho, de 1971, o choro Abraçando
Chico Soares, seguindo o estilo de composição do paraibano. Em
1990, Geraldino Magalhães e Lula Queiroga produzem o disco
independente Fantasia nordestina: Violão brasileiro tocado pelo
avesso. E, pela Caju Music, lança, em 1993, o último trabalho solo,
Pisando em brasa, com participação especial de Raphael Rabello
39. 39
e Paulinho da Viola. Ainda em 1993, pelo Tom Brasil, sai o CD
Instrumental no CCBB: Canhoto da Paraíba e Zimbo Trio. Em
1999, Canhoto é ladeado por Annes, Rafael Rabello, Baden
Powell na coletânea Os bambas do violão, lançada pela Kuarup.
Radicado durante meio século em Pernambuco, Canhoto foi
agraciado, em 1984, com o título de cidadão pernambucano.
Reverenciado por Baden e outros grandes nomes da música
popular brasileira, apresentou-se com Luperce Miranda,
João Bosco, Sivuca, César Camargo Mariano, para citar
apenas alguns. Em 2004, recebeu uma homenagem do
presidente Lula, em Brasília. Na Paraíba, foi homenageado
com a publicação da Lei Canhoto da Paraíba, que, a partir
de 2005, concede a artistas o título de Mestres das Artes (Lei
7694/2004, Registro de Mestres das Artes – Rema) e ele foi um
dos primeiros agraciados. Após sofrer isquemia cerebral em
1998, interrompe-se a carreira do artista, que passa os últimos
anos de vida em Maranguape, Pernambuco, com uma filha,
falecendo em 24 de abril de 2008.
A importância musical desse requintado artista inspirou o Trio
de Câmara Brasileiro a produzir, em 2009, o disco Saudade de
Princesa – Sobre a obra de Canhoto da Paraíba, do selo Crioula
Records. O recifense Caio Cezar assina a direção musical do
CD e está organizando um livro com as partituras musicais de
Canhoto. A genialidade do mestre, de viva memória, perpetua-
se com ações desse porte, e, ainda, ao ser constantemente
revisitada nas gravações originais do instrumentista e em
regravações ou releituras de outros virtuoses.
41. 41
Década de 1950 do século 20. O respeitado oluô (sacerdote
máximo) Luís de França recebe a incumbência de dirigir uma
brincadeira de carnaval, que havia sido fundada pelo pai, um
africano ex-escravo. O brinquedo era o Maracatu Leão Coroado.
Morto um dos coordenadores, corria-se o risco de não haver quem
o substituísse. Herança de família e de tradição religiosa, o baque
virado daquela nação nagô precisava continuar. Desafio aceito, a
vigorosa liderança de seu Luís proporcionou aos brincantes manter
a atividade ininterrupta desde 8 de dezembro de 1863, data
considerada como a de fundação, apesar de a memória oral indicar
a possibilidade de o Leão já existir desde 1852. Mesmo mantendo-
se a dúvida quanto ao marco fundador, o contexto político e
social no qual nasce o grupo é marcado pelo debate em torno da
abolição da escravatura e os maracatus eram folguedos de negros
escravos. Ressalte-se, ainda, que, no Recife, o dia 8 de dezembro é
dedicado a Iemanjá e a Nossa Senhora da Conceição, esta última,
a representação católica, no sincretismo religioso, daquele orixá do
culto nagô e padroeira da grande festa do morro, que acontece
anualmente na mesma data, em Casa Amarela.
Luís de França dos Santos é de 1º de agosto de 1901. Nasceu na
rua da Guia, bairro do Recife, filho de Laureano Manoel dos Santos
e Philadelpha da Hora. Segundo contava, durante a juventude
vendeu jornais ao longo da via férrea, até Palmares, o que o levou
a conhecer senhores de engenho e chefes políticos da região.
Ganhou muito dinheiro revendendo produtos importados, trazidos
nos navios, quando trabalhava de estivador, profissão exercida até
aposentar-se. Cresceu no bairro de São José, espécie de gueto de
escravos libertos, local onde aconteciam cultos africanos. Guardava
na memória a participação intensa em terreiro de candomblé, o
Sítio do Pai Adão, em Água Fria, embora a sua iniciação religiosa
não tenha acontecido lá. Os pais de santo de Luís de França foram
Eustachio Gomes de Almeida e Maria Júlia do Nascimento, a Dona
Santa do Maracatu Nação Elefante.
Apresentação na cidade de Goiana, 2003 Bairro de Águas Compridas, visto a partir do terreiro do maracatu
42. 42
O líder começou a participar do maracatu quando a sede ficava no
bairro da Boa Vista, numa rua que hoje se chama Leão Coroado.
Foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São
Gonçalo da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens
Pretos de Santo Antônio. Um dirigente desta última, José Luís, foi
quem passou ao afilhado Luís de França a direção do folguedo.
Daí em diante, o decidido líder passou a cuidar da organização
do grupo, das obrigações religiosas e da direção da batucada,
cujo baque secular aprendera com o pai e com os avós. Passado
por Luís de França, continua mantido o mesmo baque tradicional,
conforme garante o babalorixá Afonso Aguiar, que integra o
grupo a partir de 1996 e conduz a agremiação desde a morte de
França, em 1997.
Na função de rei e rainha, o Leão Coroado teve Estanislau, João
Baiano, José Nunes da Costa, José Luís, Gertrudes Boca-de-Sola,
Martinha Maria da Conceição e Dona Santa. Esta última, uma das
mais imponentes rainhas de maracatu, filha e neta de africanos,
marcou presença, sobretudo no Maracatu Nação Elefante. As
calungas são pretas, de madeira, e existem desde a fundação do
grupo: uma delas representa Oxum, é Dona Clara; a outra, que
representa Iansã, chama-se Dona Isabel. Durante mais de quatro
décadas – provavelmente de 1954 até a morte, em 3 de maio de
1997 – o mestre Luís de França guiou o grupo com dedicação
extremada, a ponto de provocar elogios da pesquisadora norte-
americana, antropóloga Katarina Real, que, no início dos anos
1960, realizou pesquisa sobre o folclore no carnaval do Recife.
À época, Katarina considerava o Leão Coroado a única legítima
nação de maracatu ainda existente. São desse período diversos
troféus conquistados pela agremiação.
Em outubro de 1996, França convida Afonso Gomes de Aguiar
Filho para sucedê-lo na liderança do grupo. Após amargar uns
anos de isolamento e consequente retração do maracatu, o filho
de Xangô acerta em adotar a sugestão do presidente da Comissão
Pernambucana de Folclore, pesquisador Roberto Benjamin, quanto
à indicação de Afonso Aguiar, que, desde então, tem conseguido
realizar importantes viagens e apresentações em São Paulo, Rio de
Janeiro, Bahia, Paraná, Santa Catarina, França, Holanda, Bélgica,
Suíça, Espanha, Itália, Timor Leste, Ilhas Canárias. A comemoração
dos 140 anos, em 2003, foi marcada pela gravação de CD, ao vivo,
com as toadas tradicionais do grupo. Voltando, ainda, a 1997,
o mesmo ano da morte de Luís de França, em 22 de dezembro
é instituído o Dia Estadual do Maracatu: pela Lei 11.506, fica
escolhido o 1º de agosto, em homenagem à data de nascimento
daquele mestre.Mestre Afonso e o centenário bombo-mestre
43. 43
Nascido na Campina do Barreto, Recife, em 15 de março de
1948, o mestre Afonso comanda há mais de 20 anos um terreiro
em Águas Compridas, Olinda, para onde transferiu a sede do
maracatu e todo o acervo do grupo. Ao longo do ano, desenvolve
dinâmica de ensaios, aulas de percussão e toque de candomblé,
oficinas de feitura e manutenção dos instrumentos musicais, de
confecção do vestuário do maracatu, além de outras atividades
educativas, como a preparação de um corpo de baile de danças
afro. Todas as ações, tanto as preparatórias ao Carnaval quanto
as pedagógicas envolvem continuamente a comunidade, sob
a coordenação geral de Afonso Aguiar, que, inclusive, tem
comandado oficinas de percussão e de confecção de instrumentos
no Brasil e no exterior, a exemplo do Festival do Caribe, em
2009, na cidade de Santiago de Cuba. Seguidor fiel do mestre
Luís de França, empolgado com a repercussão do primeiro CD e
preocupado com a manutenção do grupo, o dedicado Afonso
anuncia que o master do segundo disco está pronto e que as
comemorações do sesquicentenário já estão sendo planejadas.
Na primeira edição do Prêmio Cultura Viva (2005/2006), do
Ministério da Cultura, o maracatu foi uma das iniciativas
contempladas, na categoria manifestação tradicional. A partir
de maio de 2008, o grupo é transformado em Ponto de Cultura.
Instalado no mesmo endereço da sede do maracatu, lá funciona
um telecentro, com cursos básicos de informática e acesso 24
horas à internet, para atendimento de demandas da comunidade,
em todas as faixas etárias. Com firmeza, o mestre mantém rotina
semanal de ensaios e de trabalho. A triagem de novos integrantes
obedece a exigentes normas de conduta social. Provavelmente, o
sucessor das tradições do terreiro e do maracatu será Afonsinho,
o neto nascido em 1997, que toca nas obrigações da seita e
tem comandado, quando necessário, a batucada do maracatu.
Entretanto, como frisa o mestre Afonso, o Leão Coroado é mais
religião do que carnaval. Com as bênçãos todas de Olorum, eguns
e orixás.
Pele de Bode curtindo para posterior montagem das alfaias
45. 45
Passeando pelos labirintos da memória do artista e pelos objetos
mais recônditos do ateliê de José do Carmo Souza, conhecido
internacionalmente pelas estátuas de anjos cangaceiros, descobre-
se uma encantadora obra poética, uma narrativa visual do barro
massapê, que não se sabe exatamente quando e com quem
começa em Goiana, mas registra, com certeza, a importância
do legado materno de Joana Izabel de Assunção e dos filhos
talentosos. A mãe – oleira, artesã, costureira – fazia figuras de
barro e de pano, mané-gostoso e rói-rói. O pai, padeiro, fazia
máscaras em papel machê para vender aos foliões, o molde era
em barro e a modelagem em papel e grude. Manuel de Souza
dos Santos e Joana Izabel de Assunção chegam a Goiana no ano
de 1930, vindos de Igarassu, onde nasceram. Casados a partir de
1932, é um ano depois, em 19 de dezembro de 1933, que nasce o
primogênito, Zé do Carmo.
Conhecido desde 1947 no circuito artístico, autor de respeitável
conjunto de esculturas cerâmicas tão originais quanto às da mãe,
Escultura de anjo cangaceiro seria presenteada
ao Papa e a Igreja Católica se recusou a receber
46. 46
foi com apenas sete anos, em 1940, que Zé do Carmo começa a
fazer figurinhas de barro, pintar com tinta d’água, como faziam
os pais artistas, e vender nas feiras de Goiana. Os dois irmãos,
João Antônio de Souza e Manuel Miguel de Souza, também
aprenderam o ofício dos pais. Das peças mais antigas de Zé,
destacam-se figuras de mendigo, agricultor, carregador de açúcar,
Preto Velho, anjo cangaceiro, apanhador de papel, apanhador
de água, vendedor de couro, jornaleiro, Lampião, Maria Bonita,
carregador de água, tocador de bandolim, Padre Cícero, Nossa
Senhora Artesã, São Pedro Pescador (o padroeiro de Goiana). No
acervo pessoal, conta com peças autorais feitas há cerca de 40 e
50 anos. Há uma rendeira que criou entre 1949 e 1950, quando,
segundo confessa, ainda copiava as figuras da mãe. A iniciação,
obviamente, foi com ela e o pai, mas o aluno atento, que cursou
apenas o Ensino Fundamental, sempre se valeu da observação e do
autodidatismo para aperfeiçoar a técnica e dar vazão às invenções
artísticas.
Depois que a mãe morreu, em 1972, Zé do Carmo inaugura uma
nova fase criativa, a que chama de “transfiguração humana”,
pois transforma anjos em cangaceiros, a despeito da vontade da
própria mãe, que não queria que o artista modelasse anjos com as
vestimentas do cangaço. Daí por diante, ganham asas, espingarda
e ares nada angelicais os beatos de movimentos messiânicos, os
cangaceiros Lampião e Maria Bonita, entre outros personagens da
cultura regional – o que resultou em polêmicas, sobretudo quando
Zé do Carmo ofereceu ao papa um monumental anjo cangaceiro
e o presente foi recusado. Medindo cerca de dois metros, a
escultura é mantida no ateliê, além de uma outra, em menor
proporção, também rejeitada pela Igreja, e mais um Papai Noel
nordestino, de gibão, alpercatas e chapéu de couro. Em 1982,
criou o Vovô Natalino, um velho simpático de aspecto messiânico
medindo 1,80 m, que faz Gilberto Freyre escrever artigo no Diario
de Pernambuco, de 2 de janeiro de 1983, louvando “bom e bravo
repúdio ao Papanoelismo que vem descaracterizando os bons
Natais castiçamente brasileiros...”.
Sobre a engenharia das peças gigantescas, o artista explica:
constrói um bloco até a cintura e espera secar. Depois que
está enxuto, torna oco esse bloco e levanta o restante. Em
seguida, modela os detalhes do corpo e do rosto. As peças ficam
alicerçadas numa base de barro e pousam sobre um suporte de
47. 47
madeira com rodízios. Para ele, os primeiros trabalhos eram populares
demais. Depois disso, acredita que conseguiu modelar figuras de proporções
acadêmicas, como o Padre Cícero que mantém no acervo exposto no ateliê.
Tem, ainda, um busto de São Pedro jovem, que fez seguindo o padrão de
escultura neoclássica: proporção seguida à risca, com detalhes do rosto
bem-delineados. Durante muitos anos, foi professor de modelagem em
barro e de proporção. Escultor também em pedra, prova isso com um
busto exposto em meio às peças mais antigas. É inegável que, além da
observação do artista, o talento sobressai, garantindo a qualidade e a
adesão de discípulos. E não foram poucos os ceramistas que passaram pelo
ateliê de Zé do Carmo, na condição de aluno: Irene, Mário Pintor, Severino,
George, Tog, Luiz Carlos, Luiz Gonzaga, Précio Lira, Dica, Andréa Klimit
e Tiner Cunha. O único filho que possui não é discípulo, mas, segundo o
próprio pai, tem talento para a arte. Dedicado desde 1980 à pintura, o tema
preferido nas telas é o mesmo das esculturas: anjo cangaceiro.
49. 49
Curica, do tupi ku’rika, é pássaro de canto estridente, da família
de papagaios e araras, que canta pelas matas e mangues.
Talvez por isso o nome da centenária sociedade musical goianense,
numa alusão ao papagaio trombeteiro. Melhor explicando,
existem, de fato, duas versões que apontam tal escolha para o
nome da banda, fundada em 1848. Segundo uma delas, a senhora
chamada dona Iria perguntou ao mestre João José, que passava
pela rua da Conceição: “Seu João, por que é que a música grita
tanto, que até parece uma curica?” A outra versão, variante da
primeira, conta que dona Iria era irmã do padre José Joaquim
Camelo de Andrade, e morava à rua Direita, em companhia das
próprias escravas. Estando, certa vez, na porta de casa, o maestro
José Conrado executava uma polca do musicista Francisco Tenório,
e ela teria dito, em voz alta, a uma de suas escravas: “Ô Rosa,
aquela música só parece dizer cu-ri-ca-cá”. A outra respondeu com
uma gargalhada, e assim ficou o apelido que, supõe-se, era usado
em tom depreciativo.
A Sociedade Musical Curica oferece, justamente por ser antiga, um
repertório de tradições, de histórias contadas pelos mais velhos,
dentre eles os nonagenários Antônio Secondino de Santana,
Meia Noite, e João José da Silva, Calixto, dois dos mais antigos
participantes da banda – falecidos após a banda conquistar o título
estadual de patrimônio vivo, concedido em 2005. Uma dessas
histórias diz respeito a uma tocata para o Imperador. Conforme
consta nos anais de Goiana, a Curica, sob a regência do mestre
Ricardinho, participou das festas em homenagem a D. Pedro
II, durante visita à cidade, em 6 de dezembro de 1859. Quatro
dias depois, ou seja, 10 de dezembro, o Diario de Pernambuco
noticiava a visita da autoridade máxima do país e dizia que a
Guarda Nacional “esteve reunida com mais de 700 praças e boa
música”. A Curica, naquele período, era a banda do batalhão.
Com um repertório musical cheio de sofisticação e variedade, o
grupo também marcou presença nas comemorações da Abolição
da Escravatura, da Proclamação da República, ajudou em
campanhas políticas do Partido Conservador e, então militarizada,
fez parte da Guarda Nacional. Criada com o objetivo de realizar
tocatas em festas religiosas, a banda foi fundada em 1848,
por José Conrado de Souza Nunes, primeiro regente do grupo
musical. Do Rio Grande do Norte, era conhecido como o filho do
marinheiro, Boca de Cravo. Segundo o historiador Álvaro Alvim
da Anunciação Guerra, cujo pseudônimo era Mário Santiago –
conforme pesquisado e publicado, na ocasião do centenário, em
1948, no livro Elementos para a história da Sociedade Musical
Curica – tudo começou com um grupo de 12 a 15 músicos que
se reuniu no consistório da igreja de Nossa Senhora do Amparo
dos Homens Pardos e resolveu criar uma orquestra sacra,
apresentando-se pela primeira vez numa tocata, no Amparo,
durante as comemorações da natividade de Nossa Senhora, ou
seja, no dia 8 de setembro de 1848. À época da fundação, era
chamada de corporação musical. Assim começa a história da
Panorâmica da rua da sede da banda
50. 50
Curica, a mais antiga banda de música, em atividade ininterrupta,
do Brasil e da América Latina.
O abolicionista e senador do Império João Alfredo Corrêa de
Oliveira dá notícia, na biografia que escreveu sobre o 2º Barão de
Goiana – Bernardo José da Gama –, que “cada partido tinha a
sua banda de música a estafar-se em ajuntamentos e passeatas”.
Deduz-se que a outra banda era a rival Saboeira, de 1855, ainda
hoje em atividade, fundada com o objetivo de acompanhar o
Partido Liberal, oposicionista do Partido Conservador, ao qual
pertencia a Curica. As histórias da inimizade figadal entre as duas
bandas foram escritas com sangue. Entre pontapés e lances de
capoeira, gritava-se: “Viva a Curica! Morra a Saboeira!” E vice-
versa. Em 1928, visitou a capital da Paraíba, o que teve enorme
repercussão na imprensa local. Entre os sócios honorários, constam
os nomes do então presidente Getúlio Vargas e de Flores da
Cunha, interventor no Rio Grande do Sul. Durante a 2ª Guerra
Mundial, participou de passeata antinazista em agosto de 1942.
Vista aérea de Goiana (autor desconhecido)
51. 51
No dia 1º de dezembro de 1944 recebe a visita do famoso
musicólogo uruguaio, professor Francisco Curt Lange, que,
demonstrando grande interesse pelos arquivos de composições
musicais, obteve uma relação das peças escritas no século 19, mais
uma fotografia da corporação. A banda executou, em homenagem
ao visitante, a Sonata Patética, de Beethoven; a valsa Obstinação,
de Nelson Ferreira, e o dobrado Conselheiro João Alfredo. Na data
do centenário, em 1948, Antonio Correia presenteou a Curica com
uma sede própria, a mesma onde o grupo desenvolve as atividades
até hoje, à rua do Rosário. Naquele ano, a banda também decidiu
criar estatuto próprio, ainda em vigor, em que se estabelecia a
fundação de uma escolinha de música, a fim de gratuitamente
serem transmitidos os conhecimentos musicais, pelos mais antigos,
para as novas gerações. De meados de 1960 a 1970, a banda
manteve uma formação denominada Curica Jazz, que é retomada
no início de 2009. São 29 componentes, escolhidos entre os mais
talentosos alunos da escolinha e integrantes da banda. Em meio às
novas realizações, a diretoria está organizando o primeiro registro
fonográfico, tanto da banda, quanto da jazz, para a gravação de
dois CDs a serem lançados ainda em 2010.
A Curica é um dos grandes patrimônios culturais de Goiana
e sempre marca presença em solenidades cívicas e religiosas,
inclusive nas viagens pelo Brasil. No Carnaval, subdivide-se em
duas orquestras de frevo, para tocar no centro, nos distritos e
vizinhança. Em variados eventos e inaugurações, apresenta-se
sob a forma de orquestras menores. O acervo musical conta com
mais de 800 títulos, de todos os gêneros, entre clássicos, barrocos,
dobrados, marchas de procissão, músicas religiosas, MPB, para
execução por cerca de 60 a 70 músicos. A catalogação do arquivo
histórico e musical foi realizada pelos estudantes da escolinha, em
regime de voluntariado. Resultante de um trabalho filantrópico
de maestros, diretores e instrumentistas, a banda é responsável
pela contínua preparação de novos artistas, pela renovação dos
próprios integrantes e traz no histórico a passagem de nomes
consagrados, como o famoso capitão Zuzinha, ou José Lourenço
da Silva, e os maestros Duda e Guedes Peixoto. É inegável que
a Curica tem colaborado com o despertar de talentos, com a
formação de músicos. E mais: toca a sensibilidade dos goianenses,
que a veem passar pelas ruas, despertando-lhes o amor à música e
às vivas tradições da cidade.
Edson Júnior, músico
e presidente da banda
53. 53
Soberana, feito uma deusa surgida das águas do mar ou uma
rainha plena de realeza, é assim que Lia sempre aparece,
levando-nos ao prazer de ouvir e dançar uma ciranda. Sim,
porque ninguém fica imune ao ritmo da ciranda, muito menos
aos encantos da filha de Iemanjá, que se habituou a cantar desde
criança, na praia de Jaguaribe, localidade da Ilha de Itamaracá
onde nasceu em 12 de janeiro de 1944 e vive até hoje. Cheia
de familiaridade com a música e a dança, Maria Madalena
Correia do Nascimento começou a carreira artística muito jovem,
cantando ciranda desde os 12 anos. A filha de Severino Correia do
Nascimento e Matildes Maria da Conceição é a mesma Maria, ou
Lia, da música que se transformou num hino: Essa ciranda / quem
me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá.
A história dessa deusa de ébano, de um metro e oitenta, não é
só feita de glamour. Após permanecer quase duas décadas no
ostracismo, lança em 2000 o CD Eu sou Lia, que recebe selo de
world music, graças à mescla de instrumentos de percussão e
sopro aos ritmos populares, e, por isso, chega a ser comercializado
nos Estados Unidos e na Europa. Nessa nova etapa de divulgação
do trabalho, Lia passa a viajar constantemente pelo Brasil e pelo
continente europeu, e, ainda assim, não é difícil vê-la nas rodas
de ciranda do Recife e Olinda, ou em Jaguaribe, onde funciona, à
beira-mar, o Espaço Cultural Estrela de Lia, sob o efeito mágico da
envolvente paisagem marinha, com direito a lua, pancada do mar,
cheiro de maresia e brisa balançando os coqueiros.
Nesse ambiente, Lia tem recebido, aos sábados – e desde
novembro de 2004 –, diversos artistas, como Cátia de França,
Célia coquista, a Ciranda de Baracho (das filhas do mestre, Dulce
e Severina Baracho), Antúlio Madureira. Mas, diferentemente
do bem-sucedido ressurgimento, antes a artista havia produzido
apenas um LP, A rainha da ciranda, gravado pela Rozemblit
em 1977, do qual lembra não ter recebido nada. Quando foi
cozinheira de um restaurante na ilha, também cantava no local.
Frequentava outras rodas de ciranda, esporadicamente, sem
Espaço cultural é dedicado a Iemanjá
O neto Misael
54. 54
nenhuma projeção fora do restrito circuito de aficcionados da
cultura popular. A partir dos anos 1980 passa a ser merendeira
da Escola Estadual de Jaguaribe, profissão que seguiu exercendo,
paralelamente à carreira artística.
A volta triunfal ao mundo da música se deu graças à atuação do
produtor Beto Hees, que a levou, em 1998, a participar do festival
recifense Abril pro Rock, no qual foi aplaudida por 12 mil pessoas.
Daí em diante, sobretudo a partir de 2000, passou a fazer turnês
pelo Brasil e exterior, com os shows do primeiro CD, gravado
pela Ciranda Records, que contém composições dela própria,
de cirandeiros do Recife, de compositores renomados e algumas
de domínio público. Cinco músicas foram gravadas ao vivo em
1998, no Rio de Janeiro, durante participação no projeto Vozes do
Mundo, do Centro Cultural Banco do Brasil. Quase uma década
depois desse lançamento, sai em 2008 o segundo CD, Ciranda
de ritmos, com direção musical de Carlos Zens, e destaque para
Bezerra do Sax, as filhas de Baracho e uma composição de Capiba.
Conforme indica o título, o disco contempla outros ritmos
pernambucanos para além da ciranda: frevo, coco, maracatu.
Mas, claro, quem permanece reinando é a majestosa cirandeira.
Habituada, há mais de 50 anos, ao convívio com mestres da
ciranda, Lia sempre faz questão de lembrar que Baracho era um
grande amigo. É dele a ciranda: Morena vem ver / que noite tão
linda / a lua vem surgindo / cor de prata. // Faz-me lembrar / da
minha Maria / quando pra ela / eu fazia serenata. No embalo da
ciranda e das afinidades eletivas, Baracho e Lia compartilhavam
três importantes aspectos: boa voz, presença marcante na hora de
puxar a roda e habilidade no tratamento dos temas, como o do
amor.
O convívio artístico, entretanto, não se resumiu aos experientes
cirandeiros. Teca Calazans, Edu Lobo, Clara Nunes, Geraldo de
Almeida, Ney Matogrosso e Paulinho da Viola, entre outros, são
alguns dos grandes nomes da música brasileira que já cantaram Lia
em versos próprios, em composições da cirandeira ou de outros.
Essa ciranda quem me deu foi Lia é a mais antiga, de 1960 para
1961, e foi gravada por Teca Calazans. Paulinho da Viola também
ofereceu versos bonitos para a negra mais elegante dentre todos
os ilhéus: Eu sou Lia da beira do mar / morena queimada do sal e
do sol / da Ilha de Itamaracá (...), música incluída no primeiro CD.
O convívio artístico também levou a dama da ciranda por outras
veredas, como a de estrela do curta-metragem Recife frio, de
2009, dirigido e realizado por Kleber Mendonça Filho.
Com o porte e a realeza da soberana Iemanjá, a artista comanda
as atividades do Centro Cultural Estrela de Lia, transformado
desde 2008 em Ponto de Cultura, onde são oferecidas oficinas
55. 55
de arte, cerâmica, percussão, fotografia, malabares, rabeca,
teatro, cavalo-marinho. Permanecem, ainda, as temporadas de
apresentação artística: recitais poéticos, bandas alternativas,
duplas de violeiros, filhas de Baracho, e, claro, a tradicional
ciranda de Lia. Toda a programação cultural é gratuita e
sempre conta com o envolvimento da comunidade local, ou
seja, os habitantes da Ilha de Itamaracá e, especificamente, os
da praia de Jaguaribe. Em franca ebulição, o Ponto de Cultura
foi contemplado, no início de 2009, com o prêmio Interações
Estéticas e Residências Artísticas, numa parceira da Fundação
Nacional das Artes (Funarte) com o Ministério da Cultura (Minc).
Quem mais se beneficiou foram os habitantes da localidade, com
as oficinas promovidas pelo mestre rabequeiro Luiz Paixão e pela
atriz Cinthia Mendonça.
Por onde viaja, Lia de Itamaracá vai somando os elogios que
tem recebido também na própria terra. É chamada de deusa,
rainha. Na França, um jornal comparou-a à cabo-verdiana Cesária
Évora. No Brasil, é constantemente relacionada a Clementina
de Jesus, sobretudo no sul e Sudeste. No mesmo local em que
nasceu, frequentou a escola primária e assistiu a muito coco
de roda, ciranda, pastoril e bumba meu boi. Não teve iniciação
musical com ninguém, foi aprendendo sozinha, inspirando-se
na paisagem iluminada da ilha, nos jangadeiros que saem para o
alto-mar e vêm trazendo peixes, nas ondas salgadas que quebram
na praia, na brisa marinha que tem lhe soprado aos ouvidos umas
rimas, sussurrando-lhe quantas estrelas tem o céu e quantos
peixes tem o mar. Versos e balanço encadeados pela percussão e
sopro realçam a voz rascante de Lia, “uma diva da música negra”,
conforme noticiou o New York Times. A deusa da ciranda sabe
envolver-nos todos, plena de generosidade e magnetismo, até
quando empresta a voz ao genial Capiba: “minha ciranda não é
minha só, é de todos nós, é de todos nós”.
As filhas de Baracho cantam ciranda com Lia
57. 57
Cangaço e peripécias diabólicas são os temas predominantes
no universo do mestre em fabulações, gravador de capas
de folheto e álbuns em policromia, autor de rótulos de bebida
e remédios, ilustrador de livros e publicações variadas. O nome
de batismo do marechal do cordel do cangaço, conforme se
autodenomina, é José Soares da Silva, ou Dila, nome emblemático
no mundo da gravura popular. Nascido em 23 de setembro de
1937, em Bom Jardim, e estabelecido em Caruaru, o filho de
Domingos Soares da Silva e Josefa Maria da Silva testemunha que,
dos anos 1950 em diante, mergulha no mundo do cordel e da
xilogravura, quando passa a comercializar folheto nas feiras de
Pernambuco, Alagoas, da Paraíba e do Ceará.
Municiado de generosa fabulação, Dila compartilha com amigos
e visitantes a riqueza do seu mundo imaginário, as invenções e
reminiscências de mais de cinco dezenas de anos dedicados às
artes gráficas, à poesia de cordel e à xilogravura. No limiar entre
realidade e imaginação, tão bem-cultivadas pelo poeta, rememora
a chegada em Caruaru, em 1952, e as primeiras xilogravuras, que
58. 58
foram para folhetos dele mesmo, de Francisco Sales Arêda e de
outros poetas de meio de feira, tais como Vicente Vitorino, Chico
Sales, Jota Borges, Antônio Ferreira de Morais e João José da Silva.
E, finalmente, a facilidade para com os desenhos credita ao pai
que, segundo ele, foi caricaturista. Em 1974, em plena atividade
de poeta, gravador, impressor, aparece no documentário de Tânia
Quaresma, Nordeste: cordel, repente, canção, em que figura a
profissão registrada em letras garrafais pintadas na fachada do
mesmo endereço onde ainda hoje reside, em Caruaru: Art Folheto
São José. Romances e folhetos. Do autor e editor: Dila é aqui.
A partir da experiência na fabricação de carimbos, substitui
as matrizes de madeira pela borracha, obtendo um resultado
de impressão que o pesquisador Roberto Benjamin batizou de
folk-off-set. Utiliza cores diversas numa mesma matriz, ou faz
inúmeras combinações de gravura a partir de detalhes elaborados
em matrizes diferentes. As figuras são preparadas separadamente
para permitir isso. Irrepreensível no desenho e na invenção, a
gravura limpa, bem-talhada, complexa exibe narrativa imagética
absolutamente original, sob ângulos inusitados, sem contato
sistemático com os cânones do desenho clássico. A partir dos anos
1970, inova em publicações coloridas e no formato cordel. Em
1973, edita o álbum de gravuras em policromia Rasto das histórias,
utilizando-se de azul, vermelho e amarelo sobre fundo branco.
Em 1974, publica A bagagem do Nordeste, com a capa em preto,
vermelho e amarelo sobre fundo branco. Viver do cangaceiro sai
em 1975, pela Art folheto São José. O álbum Réstias do cangaceiro
é editado em 1981.
O fabricante de rótulos de bebida instala na própria casa máquinas
de tipos móveis e prelo, a fim de publicar folhetos e imprimir
gravuras. Além disso, as ferramentas manuseadas para cavar
a matriz são faca, peixeira, canivete, lâmina de barbear, que
cortam a borracha, ou neolite, para fazer capas de cordel, rótulos
e carimbos. Abre letreiros e desenhos do cordel numa mesma
matriz, em borracha ou ainda na madeira, reinventando o tipo
59. 59
fixo, conforme lembra Roberto Benjamin, no texto Aparatos dos
livros populares – Dila editor popular. E o registro da própria
editora é tão mutante quanto o caudaloso fluxo narrativo do
poeta. A Art folheto São José virou Gráfica São José, ou Gráfica
Sabaó, ou Preéllo Santa Bárbara, ou Fhòlhéteria Càra d’Dillas.
Nesse registro, o nome da folheteria aparece na contracapa do
cordel, com um autorretrato de Dila vestido de cangaceiro.
E, mais, o registro de autoria do texto e da xilogravura é sempre
tão variável quanto o do editor. Dila: o marechal do cordel do
cangaço. Dila Soares da Silva. Dila Ferreira da Silva. Dyyllas Sabóia.
Dila Sabaó Sabóia. José Cavalcanti e Ferreira, José Soares da
Silva, Dila ou Dillas. Recorrentes num universo poético expresso
em ininterrupto fluxo criador, e também na atual invenção da
“literatura de cordel em contos”, da “literatura de cordel em
prosas” que vem engendrando e editando, os motivos passam
por ciganos e cangaceiros, Chico Heráclio, Lampião, Padre
Cícero, o Pai Eterno, Pessoa e Dantas, Ariano Suassuna, “xylgra
e cordel”, Dyylas Sabóia. Se, em vez de cordel e xilogravura,
produzisse um filme de cangaço, deliberou, de antemão: seria o
protagonista, o cangaceiro Relâmpago. Assim, em meio a fantasias
e criação poética, Dila vai recebendo visitas diárias de estudantes,
pesquisadores, turistas, todos ávidos em conhecer o mundo
maravilhoso do artista que está sempre a exibir, com o maior
prazer, as mais recentes invenções de poesia e xilogravura.
61. 61
Ainda menino, sete anos, brincava cavalo-marinho pelos
engenhos de Aliança. Foi arriliquim, dama, galante, cantador
de toada, nove anos de Mateus, depois foi ser mestre. O pai era um
tocador de rabeca, aprendeu com ele. Os folguedos e brincadeiras
eram vistos e experimentados desde criança: maracatu, ciranda,
coco, forró, mamulengo, improviso de viola. Estudou até a 4ª série
primária. Trabalhou em casa de família, vendeu sorvete, picolé, foi
ambulante. Conforme declarações próprias, considerava-se o maior
dançador de cavalo-marinho e, nos versos de maracatu, inspirava-se
no mestre Antônio Baracho. Manoel Salustiano Soares, ou mestre
Salustiano, artista múltiplo e produtor de espetáculos e folguedos
tradicionais organizados e mantidos em família, nasceu a 12 de
novembro de 1945, em Aliança, e foi lá, na Zona da Mata Norte,
que se iniciou no universo cultural de que é um dos mais afamados
representantes. O filho de Maria Tertunila da Conceição aprendeu
a ler, escrever e sempre teve inteligência suficiente para tirar o
máximo proveito dos dotes artísticos.
Começou a morar em Olinda em 1965, mesmo ano em que
começou a tocar rabeca profissionalmente, aprendida pelas mãos
do pai e professor, João Salustiano, que ensinou o filho a fazer e
a usar o instrumento. Passou a ser mais conhecido na década de
1970 e em 1977 participa de um comercial de TV. Foi entrevistado
em 1989 no programa televisivo Som Brasil e, nessa época,
segundo ele mesmo, só conhecia a Mata Norte, nem sequer outras
regiões de Pernambuco. Em 1997, integrou comitiva de artistas
locais que foi a Cuba. Durante mais de 10 anos organizou o festival
da rabeca e coordenou a Casa da Rabeca do Brasil. Por quase
20 anos participou, na condição de fundador, da Associação de
Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. Recebeu o título de
reconhecido saber em 1990, concedido pelo Conselho Estadual de
Cultura, e o título de doutor honoris causa, na UFPE. Foi agraciado
com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, em
2001, pela Presidência da República. Percorreu todos os estados
brasileiros e outros países, como Bolívia, Cuba, França, Estados
Unidos.Maciel Salu e Barachinha
62. 62
Com a casa repleta de filhos, o mestre Salustiano sempre manteve
a liderança da família e conseguia envolver todos nos projetos
culturais que constantemente articulava no entorno da própria
residência, no bairro olindense de Cidade Tabajara, reunindo
a comunidade, os vizinhos, turistas e pesquisadores de cultura
popular. Inicialmente, era no espaço Ilumiara Zumbi que as
apresentações aconteciam. Depois, as festas foram transferidas
para a Casa da Rabeca do Brasil, espaço inaugurado pela família
para oficinas, danças, encontros de maracatu rural e de cavalo-
marinho, shows de música regional. No Natal, vários grupos de
cavalo-marinho se reúnem e brincam a noite toda. Tem também
pastoril, ciranda, o cavalo-marinho Boi Matuto, fundado pelo
mestre em 1968, e o Mamulengo Alegre, outro brinquedo da
família, cujos bonecos eram feitos por Salu mesmo. Dublê de
artista e artesão, esculpia no mulungu os bichos do bumba
meu boi, cavalo, boi, burra. Fazia em couro de boi e de bode as
máscaras do cavalo-marinho. No domingo de carnaval, chegam
ao terreiro da família troças, ursos, caboclinhos, boi, burra, além
do grande acontecimento da tarde: a trincheira do maracatu rural
Piaba de Ouro, que fundou em 1977, e hoje é estruturado com
mais de 300 componentes. Na segunda de carnaval, acontece o
encontro de todos os maracatus rurais de Pernambuco.
63. 63
Graças à sensibilidade artística e às invenções de homem
inteligente, Salustiano cultivava a memória da infância, povoada
de cavalo-marinho, maracatu, mamulengo, pastoril, ciranda,
forró de oito baixos, reisado, marujada, fandango, poesia
improvisada, ao mesmo tempo em que gerenciava os próprios
folguedos e temática casa de espetáculos. Depois de tentar a
vida como ambulante e empregado doméstico, foi funcionário
da prefeitura de Olinda e professor de arte popular. Por fim,
conseguiu certa dignidade financeira com o terreiro enorme para
apresentações, serviço de bar, salão para dança e uma loja, onde
são comercializados produtos de confecção própria, como rabeca,
alfaia, mineiro, bagem de taboca, pandeiro, mamulengo e os
discos. Foram quatro CDs gravados, movidos pelas sonoridades
de ciranda, maracatu, mamulengo, coco, forró, frevo: O sonho
da rabeca, As três gerações, Cavalo-marinho, Mestre Salu e a sua
rabeca encantada. Dos 15 filhos, dois fabricam rabeca: Wellington
e Cleiton Salu. O bailarino Pedro Salustiano montou o espetáculo
Samba no canavial. O músico, compositor, poeta improvisador
e MC Maciel Salu lançou o CD A pisada é assim, entre outras
importantes gravações, e é um dos integrantes da Orquestra
Contemporânea de Olinda.
Salustiano faleceu no Recife, em 31 de agosto de 2008.
Entretanto, confortável é saber que o legado se perpetua nas
produções culturais e criações artísticas dos filhos, legítimos
herdeiros e continuadores da obra do Mestre Salu.
Filhos Maciel, Cleiton e Manuelzinho
65. 65
Contorcionista, trapezista voadora, acrobata, cantora, ginasta,
atriz circense. Eis aí alguns dos atributos da grande dama do
circo pernambucano: Margarida Pereira de Alcântara. Ou, Índia
Morena, nome artístico deliberadamente escolhido por serem
índios o pai e a avó paterna. Destacada pela dedicação profissional
exclusiva à vida circense, Margarida convive desde os 10 anos
com o magnetismo do mundo dos mágicos, palhaços, humoristas,
rola-rola, malabaristas, equilibristas. Na verdade, a estreia na vida
artística foi inaugurada, a partir de 1952, em shows de calouros,
nas matinês infantis promovidas pelo Circo Democratas, que
aconteciam na Vila de São Miguel, bairro de Afogados, Recife,
onde àquela época o circo estava montado. Aos 12 anos, a
cantora mirim já interpretava, com alma, canções de Vicente
Celestino, Ângela Maria, Núbia Lafayete.
Filha de Eloy Pereira de Alcântara e Maria das Dores de Alcântara,
Margarida nasceu no Recife, em 13 de julho de 1943. Órfã de pai
aos nove anos, interrompeu os estudos no terceiro ano primário
e não havia grande expectativa de desenvolvimento profissional,
sequer de realização artística, para essa criança nascida e criada
dentro da maré, pescando crustáceos nos mangues de Afogados
para ajudar na sobrevivência da família. Adotada por Severino
Ramos de Lisboa – o palhaço Gameloso – e afilhada de crisma de
Maria Tenório Cavalcanti – a dona do antigo circo Itaquatiara Real,
no qual Índia se engajou a partir de 1º de julho de 1953, contra a
vontade materna –, essas confluências resultaram, claro, do talento
evidente da jovem circense e contribuíram para o florescimento
de singular trajetória artística. E mais: vieram acrescentar novos
elementos à história dos circos populares do Brasil.
Além de realizar viagens pelos Estados Unidos, Argentina,
Paraguai, Uruguai, Bolívia, trabalhando em diversos circos – dentre
os quais o Gran Bartolo, o Garcia, o Itaquatiara, o Edson, o Águia
de Prata, o Coliseu Mirim, o New American Circus –, Índia Morena
organizou, com a participação de Albemar Araújo, a coletânea
Dramas Circenses, em que foram transcritos seis tradicionais
66. 66
dramas encenados nos circos populares, tais como A louca do
jardim e Lágrimas de mãe. As peças teatrais, cedidas por Índia,
fazem parte do acervo da Associação dos Proprietários e Artistas
Circenses do Estado de Pernambuco (Apacepe), organização
fundada em 1993 por Índia Morena e pelo marido, Maviael Ribeiro
de Barros. O livro, contendo 161 páginas, foi publicado em 2006,
pela Fundação de Cultura Cidade do Recife.
Índia Morena considera o circo “o palácio onde vive com alegria”
desde os 13 anos, quando decidiu largar totalmente a mãe e
entregar-se de vez ao picadeiro: passou no teste de caloura e foi
contratada para trabalhar no Itaquatiara. “Ali, eu vi o mundo”:
foi assim que nasceu para a vida artística, ao mergulhar desde
a primeira vez na lona de um circo e depois sagrar-se como
trapezista voadora e melhor contorcionista pernambucana. Depois
do Itaquatiara, trabalhou como ginasta e cantora num circo de
Olinda, o Circo do Palhaço Violino. Atuou no Circo Águia de
Prata, de propriedade de Euclides Águia de Prata que, depois,
passou a ser o Circo Edson. Ainda participou do Coliseu Mirim,
pertencente a um funcionário da prefeitura do Recife, conhecido
Apresentadora do próprio circo,
Índia Morena inicia mais um espetáculo,
dessa vez no subúrbio de Jaboatão
67. 67
por Benigno. Em meio ao talento e à dedicação integral à carreira,
ia consolidando-se um contínuo processo de aprendizagem no
próprio meio circense, a partir do convívio com grandes nomes
do circo e da ousadia de cada nova experiência. Entretanto, em
meio aos prazeres e conquistas da biografia artística, um grande
desgosto na vida de Índia Morena quase a leva à bancarrota:
a traição do ex-marido com uma menina de circo resultou em
doença e lesão pulmonar, com prolongado internamento no
hospital Otávio de Freitas. Foi aí onde conheceu o atual marido,
que nada sabia de circo e, entretanto, aceitou abraçar o ofício,
acompanhando-a ainda hoje.
Desde 1977 possui, com Maviael, o Gran Londres Circo, pois o
antigo proprietário do Circo Edson, falido, e para quem Índia
Morena trabalhava, doou parte do negócio a título de pagamento
pelos serviços prestados por ela à companhia circense. Índia nele
injetou experiência e recursos próprios e é no Gran Londres que,
desde essa época, vai exibindo as múltiplas habilidades aprendidas
em todo o percurso artístico, cantando e apresentando os
espetáculos. Em meio a uma trupe com mais de 20 integrantes,
contracena com um palhaço cantor e compositor de músicas
irreverentes, com equilibristas, contorcionistas, transformistas,
engolidores de faca, malabaristas, pernas-de-pau, escada giratória
e mais quatro palhaços. A temporada em cada local é variável,
conforme a aceitação do público. Os espetáculos são geralmente
noturnos, mas há também matinês nos finais de semana e
feriados. A folga é sempre na segunda-feira.
O Gran Londres, itinerante como deve ser todo circo de
tradição, circula, sobretudo, pelos arredores do Recife e Região
Metropolitana, a exemplo de Jaboatão, Paulista, Abreu e Lima.
Aonde o circo vai, agrega as bandas de música locais, fisga o
público com espetáculo tradicional e ainda oferece uma atração
única: um bode pagador de promessa, que sobe uma rampa,
ajoelha-se e beija uma imagem de Nossa Senhora Aparecida,
padroeira do Brasil. “Eu só tenho o terceiro ano primário, mas
quem tem o primeiro ginasial não vai comigo, não, porque eu
aprendi muita coisa em teatro”, vangloria-se a artista, que também
não esquece a dureza da infância mergulhada na lama, catando
caranguejo. Apesar de todas as mazelas, Índia segue cantando
e louvando a magia do circo, com a elegância e o magnetismo
próprios de uma grande dama circense.
69. 69
De fraque, cartola, gravata borboleta, dente de ouro, lá vem o
Homem da Meia- Noite, vem pela rua a passear, enfeitiçando
os céus olindenses e arrancando suspiros de amor. Claro, é o mais
afamado galante, o grande Don Juan do carnaval de Olinda e não
é, de maneira alguma, simplesmente um boneco, é calunga, com
todos os atributos e segredos que essa palavra suscita. A figura
do sorridente cavalheiro, envolta em mistérios e rituais próprios, é
associada ao candomblé, pois foi no dia 2 de fevereiro de 1932,
data dedicada a Iemanjá, que o calunga de madeira desfilou
pela primeira vez na tradicional folia. O Homem da Meia-Noite,
com cerca de quatro metros de altura, é o mais antigo boneco
gigante de Olinda. Nascido na categoria “troça” em 1932, passa
a clube de alegoria e crítica a partir de 1936. É de muitos anos,
portanto, que o galanteador vem arrancando suspiros de moças e
senhoras postadas à janela para ver o amado passar: ele próprio
em figura de gentleman anima as ladeiras do sítio histórico desde
a madrugadora invenção na longínqua década de 1930.
As ruas estreitas, sobretudo a do Amparo, e o Largo do
Bonsucesso testemunham a alegria e irreverência dos foliões
que gastam pelos menos quatro horas para acompanhar um
dos desfiles mais cobiçados da folia olindense. O percurso
é praticamente o mesmo desde o princípio, e o boneco vai
desfilando trajado de verde e branco, com um relógio na lapela
e a chave da cidade nas mãos. A saída acontece pontualmente
à meia-noite do sábado de Zé Pereira, partindo da sede, que
fica em frente à igreja do Rosário dos Homens Pretos, no
Bonsucesso. O local é marcado pela prática de tradições culturais
de negros escravos, desde a construção do templo religioso na
segunda metade do século 17, e, inclusive, foi essa a primeira
igreja em Pernambuco a ter irmandade de homens pretos.
Nenhuma estranheza, portanto, quanto à ligação do calunga
com o candomblé, mesmo que a aura de misticismo se misture à
irreverente balbúrdia momesca, em meio a orações e oferendas
com cachaça na troca de roupas do calunga, nos preparativos do
sábado à tarde.
Saída do Homem da Meia Noite, Estrada do Bonsucesso, Olinda, 1998
70. 70
A existência do grupo carnavalesco se deveu a uma dissidência
de integrantes da Troça Carnavalesca Mista Cariri, fundada em
1921 e que àquela época era quem abria o carnaval, saindo às
quatro da manhã do domingo. O exímio entalhador Benedito
Bernardino da Silva, ou “Benedito Barbaça”, o encadernador
Cosmo José dos Santos, o pintor de paredes Luciano Anacleto
de Queiroz, acompanhados de Sebastião Bernardino da Silva,
Eliodoro Pereira da Silva e do sapateiro Manoel José dos Santos,
apelidado “Neco Monstro”, ao se sentirem excluídos da diretoria
daquela troça decidiram criar uma nova agremiação que “desse
uma rasteira no Cariri”, conforme conta o pesquisador Olimpio
Bonald Neto, no livro Os gigantes foliões em Pernambuco. O autor
refere, aliás, que esse não foi o primeiro gigantone a aparecer no
carnaval pernambucano: o mais antigo registro é creditado a Zé
Pereira e Vitalina, bonecos nativos da cidade sertaneja de Belém
do São Francisco, criados respectivamente em 1919 e 1929.
Quanto ao surgimento do boneco olindense, pelo menos duas
versões explicam a genealogia do fenômeno: uma delas credita
Carnaval de 2003
71. 71
ao cinéfilo e fundador Luciano Anacleto de Queiroz a inspiração a
partir do filme O ladrão da meia-noite; a outra atribui a Benedito
Bernardino, fundador e autor do hino da agremiação, a construção
do calunga a partir de alegado flagrante de certo namorador, alto,
elegante e sorridente, que andava principalmente na madrugada
do sábado para o domingo, sempre de verde e branco, com
chapéu preto e dente de ouro.
A dissidência do Cariri foi tramada em dezembro de 1931. Para
dar forma ao boneco que ganharia as ruas à meia-noite do sábado
de Momo, os fundadores Benedito Barbaça e Luciano de Queiroz
tomaram todas as providências de marcenaria e pintura, na
modelagem daquele que seria o boneco dos primórdios do grupo.
Originalmente, o calunga pesava mais de 55 quilos, porque, além
da armação em madeira, a cabeça, o busto e as mãos eram feitos
em papel gomado; os braços, recheados com palha de colchão;
nas mãos, areia para dar peso e equilíbrio às evoluções executadas
ao som do frevo. Evidente que o boneco passou por um processo
de reengenharia, a fim de perder peso e, assim, aliviar a carga do
carregador ou “chapeado”. Um dos mais ilustres carregadores foi
Alcides Honório dos Santos, Cidinho, que durante mais de quatro
décadas deu vida e alma ao boneco. Bastos “Botão”, Henrique
Alabamba, Amaro de Biluca, Paulo 19, Pedro Garrido compõem a
galeria dos chapeados do Homem da Meia-Noite.
Esses históricos nomes animam, há décadas, a algazarra de
foliões inveterados, além dos novatos que são acrescidos às
ladeiras estreitas de Olinda, a cada ano. E o mais animador é
saber que a alegria repercute durante todos os meses, com o
projeto social Gigante Cidadão – Ponto de Cultura nacional desde
2005 – que oferece, de segunda a sábado, na sede do clube,
oficinas de música, dança, teatro e vídeo a cerca de 50 crianças da
comunidade. Apreciando de dentro ou de fora do boneco, quem
haveria de resistir a esse fogoso e ao mesmo tempo sóbrio cidadão
olindense, a esse magnético sorriso de manequim, a essas gigantes
pernas de pau dançando na multidão?
Saída do relógio, 1998
Passistas acompanhando a orquestra, 1998
73. 73
Aversatilidade tem marcado a trajetória do cordelista, xilógrafo
e autor de almanaque popular. Nascido a 27 de julho de
1927, em Sapé, na Paraíba, o filho de Paulino Costa Leite e Maria
Rodrigues dos Santos radicou-se em Condado, Pernambuco, a
partir de 1955. José Costa Leite estreou na literatura de cordel
em 1947, vendendo, declamando e escrevendo folheto de feira.
O primeiro almanaque foi feito em 1959, para o ano de 1960,
e chamava-se, àquela época, Calendário brasileiro. As primeiras
xilogravuras são de 1949, para os folhetos, de própria autoria, O
rapaz que virou bode e a Peleja de Costa Leite e a poetisa baiana.
Na infância e adolescência, trabalhou na cana, plantou inhame,
foi cambiteiro, cambista, mascate, camelô de feira. Xilogravador
primeiramente por obra da necessidade, ou seja, a de produzir
a capa dos próprios folhetos, Costa Leite conseguiu aprimorar o
talento para as artes plásticas nessas seis décadas de familiaridade
com a madeira, quicé, goiva e formão. Como acontece a diversos
autores de cordel, o talento extrapola o mundo da escrita. É ele
quem desenha e talha na madeira e depois imprime no papel as
ilustrações de capa dos próprios folhetos. Conforme tradição dos
gravadores populares pernambucanos, que se iniciaram a partir do
diálogo com a poesia, aprendeu sozinho a arte da gravura, vendo
fazer e experimentando.
74. 74
Os primeiros cordéis chamavam-se Eduardo e Alzira – “uma
historinha de amor”, conforme classificação do próprio poeta – e
Discussão de José Costa Leite com Manuel Vicente, cujos temas
eram “se não casar perco a vida” (Costa Leite) e “eu morro e não
caso mais” (Manuel Vicente). Essas primeiras publicações não tinham
ilustração de capa, apenas os letreiros. Voz imortalizada, na década
de 1970, em três LPs gravados no Conservatório Pernambucano de
Música, nos quais deixou registradas grandes histórias de cordel,
Costa Leite já cantou muito na feira da cidade onde vive e na vizinha
Goiana. Atualmente continua indo, sozinho, de madrugadinha
e em transporte coletivo, vender folheto em Itambé, cidade
pernambucana em que o outro lado da avenida principal é Pedras
de Fogo, Paraíba. São duas cidades, dois estados numa mesma
geografia, espécie de síntese da vida do poeta. Assim que se encerra
a feira, por volta do meio-dia, segue para Itabaiana, Paraíba, dorme
lá, e, dia seguinte, passa a manhã cumprindo um ofício que exerce
há mais de seis décadas. Cantava e vendia bem nas feiras. Ainda
dá voz a uma ou outra estrofe. Às vezes, recita e canta trechos de
folheto da própria autoria, como O sanfoneiro que foi tocar no
inferno, e mais alguns versos de outros autores, a exemplo de O
navio brasileiro, clássico de Manoel José dos Santos.
75. 75
Costa escreve diariamente. Aventura, discussão, exemplo
são alguns dos temas preferidos. Criou pelejas fictícias com
importantes personagens do mundo da cantoria de viola, como
Preto Limão, Severino Borges Silva, Patativa do Assaré, Ivanildo
Vila Nova. Publica versos fesceninos sob pseudônimo para,
segundo ele próprio, não manchar a reputação do restante
da obra. Assina H. Renato, João Parafuso, Seu Mané do Talo
Dentro, Nabo Seco nos folhetos de safadeza, cheios de picardia
e duplo sentido, como A mulher da coisa grande, A pulga na
camisola. Frequentador assíduo da capital, semanalmente vem
ao Recife entregar originais ou receber edições produzidas
na Editora Coqueiro. Viajava muito a Olinda, entre os anos
1970 e 1990, quando editava os folhetos na Fundação Casa
das Crianças. Tem, também, folhetos impressos na editora
Tupynanquim (Fortaleza, Ceará), do poeta e artista gráfico
Klévisson Viana.
Entretanto, independentemente de quem imprime, todas as
publicações autorais recebem o selo A voz da poesia nordestina,
de José Costa Leite. E recebem, na capa, xilogravuras do próprio
autor. No campo da astrologia, continua a escrever o Calendário
nordestino, distribuído para todos os estados do Nordeste, Rio
de Janeiro e São Paulo. Sobre os cordéis, não tem a menor ideia
da quantidade de histórias que fez chegar a leitores e ouvintes,
além dos muitos manuscritos inéditos que guarda nas gavetas.
Contudo, para além de todas essas rememorações, há muito
mais: Costa Leite, andarilho das tradições, é testemunho vivo
de mais de 60 anos de peregrinação por feiras e mercados de
Pernambuco, da Paraíba, do Ceará. São mais de oito décadas
com vigor físico e memória suficientes para comercializar os
folhetos que produz e recapitular parte da história das edições
populares brasileiras, da qual é um dos protagonistas.
Acervo pessoal de JCL contém
manuscritos, matrizes, xilogravuras,
estoque de cordéis variados
77. 77
De cambiteiro, cortador de cana e agricultor chegou a pedreiro
e barbeiro, num tempo em que, nos anos 1960, de dia
labutava na construção civil e à noite, na cerâmica. Para aumentar
o orçamento, também se virava nas artes da barbearia. O estalo
que desencadeou toda a carreira artística aconteceu no dia 20 de
abril de 1966, conforme registrado no jornal Gazeta de Nazaré,
em artigo escrito pela jornalista Marliete Pessoa e publicado a 27
de agosto de 1966: “No cortiço do velho prédio do Acadêmico,
nasce mais um artista do povo”. Soldado, boêmio, músico,
valentão, vendedor de milho assado e de amendoim, mendigo de
braço cotó, marceneiro, pedreiro, ferreiro: essas são as primeiras
figuras que reinam na gênese da estatuária do mestre Zezinho.
Os primeiros ensaios de modelagem resultam de inquietações e
descobertas próprias de artista, a partir da observação do trabalho
de Lídia Vieira nas visitas inspiradoras à vizinha Tracunhaém. O
artista lembra, entretanto, que a primeira peça foi um par de
namorados, encostado na porteira de um engenho de açúcar,
com cerca de 20 cm de altura. Nessa época ele vivia em Nazaré,
era trabalhador rural e o barro que esculpia vinha de um engenho
próximo, o Alcaparra.