Abelardo da Hora - Especial do Jornal do Commercio em homenagem aos 90 anos.
1. k
Recife I 30 de julho de 2014 I quarta-feira
“
k Mimo divulga as
atrações. Mautner
toca em Olinda k 8
Divulgação
k Fernando
Duarte expõe
no Maison do
Bomfim k 8
Editores:
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Mateus Araújo
Eugênia Bezerra
Abelardo Germano da Hora está
no menino que sorri na praça;
na mãe que chora pelo filho
doente. Está na curva robusta da mu-lher
que requebra pela praia; nas cores
vibrantes do Carnaval. Abelardo da Ho-ra
é o Recife que se esconde e se mostra
num cimento bem mais digno e bonito
do que este sob o qual se resolveu er-guer
uma cidade cujas grandezas estão
em altos prédios e viadutos. Abelardo re-descobriu
a nossa grande beleza na for-ma
humana e expressionista de uma ar-te
feita com amor, comunismo e paixão.
Um dos criadores do Movimento de
Cultura Popular (MCP), mestre de
grandes nomes das nossas artes plásti-cas,
como José Cláudio, Francisco
Brennand, Maria Carmem e Gilvan Sa-mico,
Abelardo da Hora comemora
amanhã 90 anos de idade. Lúcido e ati-vo
na vida e na arte, o artista é homena-geado
por reportagens especiais que o
JC publica hoje e amanhã. Uma manei-ra
de celebrar este que é um dos maio-res
nomes das artes brasileiras.
A semana de aniversário do artista co-meçou
com trabalho e homenagens –
que devem continuar com a realização
de outros projetos em 2014. Junto com
o ator e diretor teatral Carlos Varella (in
memoriam), Abelardo é homenageado
no Congresso Internacional Sesc e
UFPE de Arte-Educação, que este ano
segue o tema Ecos de Resistências na
América Latina. Ele foi convidado para
ministrar, na segunda-feira passada, a
palestra Artes no MCP.
Hoje, como parte do mesmo evento,
ocorre a abertura da exposição Abelar-do
da Hora – Da indignação à esperan-ça,
às 18h, no Centro de Artes e Comu-nicação
da Universidade Federal de
Pernambuco (CAC/UFPE). Amanhã,
é inaugurada a escultura O artilheiro,
na Arena Pernambuco. Também será
lançado o novo material promocional
do Recife Convention & Visitors Bu-reau,
ilustrado com gravuras e fotos
que divulgarão o Estado e sua obra pe-lo
Brasil e pelo mundo.
k Continua nas páginas 4 e 5
ccaaddeerrnnoo CC
O artista
de todas as horas
Das dores, alegrias e
belezas, Abelardo da
Hora é um artista múltiplo
com olhar singular sobre
o Recife. Para celebrar
seus 90 anos, o Caderno
C publica dois dias de
reportagens
Hélia Scheppa/JC Imagem
Márcio Fonseca/Divulgação
Renato Spencer/JC Imagem
O Brasil ainda tem muita
coisa para resolver. A maior
miséria é a falta de
educação. Isso é uma
tristeza. É a pior miséria
que o País tem. A maior
doença.” Abelardo da Hora,
escultor, pintor, professor e
desenhista
2. 4 jornal do commercio Recife I 30 de julho de 2014 I quarta-feira A arte como
uma missão de vida
FESTA Abelardo da Hora, que uniu produção
estética e política numa só profissão de fé, celebra
amanhã 90 anos de uma vida intensamente criativa
k Continuação da página 1
Mateus Araújo
mateus@jc.com.br
Afachada da casa 307 da Rua
do Sossego, no Centro do Re-cife,
pintada de um amarelo
ameno, esconde um cenário desco-munal
que existe além da porta de
madeira. É trancado em um templo
de arte e amor que um dos homens
mais apaixonados pela vida (e por tu-do
que ela lhe proporciona) resiste a
um tempo em que, segundo ele mes-mo,
“políticos já não fazem mais polí-tica”.
Sobrevive fazendo das suas es-culturas,
pinturas e gravuras “uma
linguagem-brado e como gesto de
trincheira”, como definiu perspicaz-mente
o crítico José Geraldo Vieira,
em junho de 1967, em artigo do jor-nal
Folha de S. Paulo.
Abelardo da Hora, amanhã um no-nagenário,
é um menino eterno, de
sorriso amplo e sonhos infinitos. Nas
terras da Usina Tiúma, em São Lou-renço
da Mata, onde seu pai trabalha-va
como homem de confiança do pro-prietário,
foi descobrindo a beleza da
natureza e se encantando com o ver-de
e a amplitude do horizonte.
No Recife, para onde se mudou em
1932, viu a felicidade dos meninos po-bres
que brincavam nas ruas do bair-ro
da Iputinga serem a extensão da-quilo
que ele tinha como liberdade, e
guarda até hoje como exemplo claro
e concreto da alegria. Aquela felicida-de
que João Guimarães Rosa já disse
se achar em horinhas de descuido.
No corredor estreito desta casa de
fachada miúda, mas longilínea, onde
Abelardo esculpe sua família – a da
arte e a da vida – empilham-se escul-turas
e quadros que revelam o olhar
dele sobre os seres humanos, a misé-ria,
a cólera e os contentamentos de
um povo pernambucano, também re-flexo
amplo de um Brasil desconfor-me.
Homem engajado artística e poli-ticamente,
está sempre antenado ao
que acontece fora da sua residência-ateliê.
Lê três jornais locais e um na-cional
todos os dias.
Filho de uma família de sete filhos
(Abelardo é o segundo e um deles é
o cantor Claudionor Germano), o es-cultor,
pintor, gravador e desenhista
Abelardo começou a moldar suas pri-meiras
obras nas aulas da Escola de
Belas Artes do Recife, antes de in-gressar
no curso de direito da Facul-dade
de Olinda. Foi amparado e apa-drinhado
pelo industrial Ricardo
Brennand – ex-chefe do seu pai, Ca-zuza
– que Abelardo deu seus primei-ros
grandes voos nas artes plásticas.
No ateliê, dentro das monumentais
terras da rica família, o jovem de 17
anos foi trabalhando suas obras na
cerâmica.
Neste momento, Abelardo deu au-las
a Francisco Brennand (“ele desis-tiu
do curso de Direito para estudar
arte comigo”), e acabou se apaixonan-do
pela bonita Conchita Brennand. E
foi por causa dela que deixou a casa
– após fazer uma obra, A torre dos
meus sonhos, em que abraçado com
as pernas de uma moça havia um ho-mem
cujo rosto era dele mesmo.
“Seu Ricardo ficou em silêncio. Vi
que passei dos limites e resolvi ir em-bora
no dia seguinte, mas mantive-mos
nossa amizade”, lembra.
Mas a vida lhe foi generosa no cam-po
dos afetos. Em abril de 1948, quan-do
fazia sua primeira exposição de es-cultura,
Abelardo da Hora conheceu
Alexandre Severo/JC Imagem
seu grande amor, Margarida Lucena.
Além da beleza, era dona de um dom
invejável à maioria dos apaixonados:
lidava com os ciúmes de maneira
tranquila. Passava quase cega diante
das inúmeras obras femininas que o
artista adora fazer. “Ela achava linda
a minha maneira de esculpir as mu-lheres”.
De uma paixão meteórica – “da
exposição, saímos caminhando pe-lo
Bairro do Recife; quando cheguei
em casa com Margarida, minha
mãe foi logo dizendo ‘meu filho, es-ta
sim era que você devia namorar e
casar’” – nasceu o casamento. Abe-lardo
deixou a antiga noiva e, seis
meses depois, já morava com Mar-garida,
com quem teve sete filhos e
de quem ficou viúvo há quatro
anos. O amor, entretanto, continua
presente em todos os cantos, além
de ter sido imortalizado no busto
feito por ele para a amada.
q Mais na web
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caderno C
AMOR À PRIMEIRA VISTA
Margarida e o escultor se
conheceram numa exposição em
1948. Seis meses depois, eles
estavam casados. Ele recriou a
face da esposa em concreto polido
Veja galeria de fotos no JC Online:
www.jc.com.br/cultura
3. Recife I 30 de julho de 2014 I quarta-feira jornal do commercio 5
caderno C
Por trás deste senhor doce, guardado hoje den-tro
de sua casa, entre suas obras, há um artista
politicamente combativo e fortemente defen-sor
do povo, que despertou para o comunismo no Rio
de Janeiro, em 1946. Quando saiu do Recife, logo após
deixar a casa dos Brennand, Abelardo da Hora partiu
para a então Capital Federal e lá criou a escultura A fa-mília,
peça que entraria no acervo do Salão de Belas Ar-tes
carioca, não fosse a decisão do presidente Eurico
Gaspar Dutra por suspendê-lo, naquele mesmo ano.
Não teve evento, mas nascia ali, da revolta pela inúme-ras
pressões de um governo e pela monstruosa desi-gualdade
que gritava pelo Brasil, um homem disposto
a lutar através da arte e das armas – rompeu com o Par-tido
Comunista Brasileiro quando este se recusou a fa-zer
uma revolução bélica depois do golpe de 1964.
Na escultura, na qual mãe e filhos agonizam na misé-ria
e um braço erguido representa o desejo de mudan-ça,
Abelardo fez-se umas das vozes da geração que que-ria
ver liberta a nação. Desejo que trouxe para o Esta-do
natal e o fez erguer, com outros artistas, as bases do
Movimento de Cultura Popular (MCP): ação política,
cultural e educacional, de inserção do “povo” na socie-dade,
no período de 13 de maio de 1960 a 31 de março
de 1964, dentro do governo municipal de Miguel Ar-raes.
Com o sonho de transformar o Recife numa gran-de
galeria de arte, Abelardo da Hora passou a dar aulas
gratuitas de pintura, desenho e escultura no Recife. Ao
mesmo tempo, foi usando seu trabalho para denunciar
as misérias que o Brasil vivia. A seguir, confira depoi-mentos
de Abelardo sobre cultura e política.
AS BASES
“Fiz uma grande exposição na escola de engenharia.
Artes plásticas, desenho, pintura, gravura, escultura.
Levei o Coral Bach, dirigido por Geraldo Menutti, e
uma esquete de Luiz Mendonça. No meio das autorida-des,
estava Miguel Arraes, secretário da Fazenda, do
prefeito Pelópidas Silveira. Naquele tempo, eu já esta-va
querendo fazer uma casa das artes, com artes plásti-cas,
música e teatro.”
MCP
“Numa reunião, em abril de 1960, Arraes passou a pa-lavra
para mim. Eu li a estrutura do trabalho que vinha
dirigindo desde 1950. Quando eu terminei de falar, Ar-raes
passou a palavra ao professor Germano Coelho,
que disse que o projeto lembrava um movimento fran-cês,
visto por ele em Paris. Segundo ele, lá, se você que-ria
desenhar e pintar, ia para artes plásticas; se queria
cantar ou tocar, ia para música, etc. Esse movimento
era conhecido como Povo e Cultura. Então, Arraes ba-teu
com a aquela mãozona de matuto na mesa e disse:
‘Aqui a gente vai chamar de Movimento de Cultura Po-pular’.
Aí todo mundo ficou de pé e bateu palma. E fi-cou
criado o MCP. Depois disso, fui nomeado Diretor
de Sítio e Jardim da prefeitura, para colocar em prática
meu projeto, que propus no governo de Pelópidas da Sil-veira,
de transformar o Sítio Trindade em um Parque
de Cultura. Restaurei o local, fiz um teatro e transfor-mei
o sítio na sede do MCP. Eu fiz parte do conselho de
direção, junto com Geraldo Menutti e Luiz Mendonça.
Representávamos a parte de cultura do Movimento de
Cultura Popular; e o grupo católico, que cuidava da edu-cação,
era liderado por Paulo Freire. Nesta mesma épo-ca,
fiz 22 desenhos sobre a situação de miséria da cida-de.
Era Meninos do Recife. Sobre a fome e a pobreza que
esse meninos viviam.”
VIVA O POVO
“Quando você pega um trabalho, seja desenho, seja
escultura, e manifesta nele a situação de vida da popu-lação,
você está educando politicamente. É um protes-to
que você faz. Quando eu faço essa exaltação da cria-tividade
popular, fazendo por exemplo Danças brasi-leiras
de Carnaval, mostrando a maravilha da criativi-dade
popular, transformando em desenho algo que é
passageiro como o Carnaval e deixando gravado em
desenhos, ou alguns quadros, como eu fiz a série é Ho-ra
de brincar, tudo isto é uma maneira de mostrar co-mo
foi a vida, é uma maneira de
educar sobre a atividade de brin-quedo.
É uma aula.”
GOLPE MILITAR
“O Golpe Militar, quando veio,
levou tudo. Entraram no Sítio
Trindade com um tanque, pega-ram
metade das cartilhas e do ál-bum
Meninos do Recife, levaram
para a Praça da Independência e
tocaram fogo. Eu senti a revolta e
repulsa de tudo que o golpe fez.
Foi um golpe estúpido. Eram ban-didos
envolvidos dentro do Exér-cito,
da Marinha e da Aeronáutica
que promoveram isso, servindo
aos americanos. Inclusive tinha
frota americana aqui. Esse governo imperialista dos
americanos vem infelicitando o mundo até hoje. Esse
Obama que tá aí é o melhorzinho de todos eles, mas
ainda não é flor que se cheire.”
SETENTA PRISÕES
“Eu fui preso 70 vezes. Somente lutando pelas inter-dições
das armas nucleares, fui preso umas 30 vezes.
Mas também briguei pelo monopólio estatal do petró-leo.
É por isso que a Petrobras está aí montada, é por is-so
que os donos do petróleo do mundo saíram daqui e
a Petrobrás está enriquecendo o País. O Brasil não é
mais aquele de 20, 30 anos atrás. É completamente di-ferente.
E Luiz Inácio Lula da Silva é melhor presiden-te
que já passou por aqui. Por que foi operário, dirigen-te
de sindicato e para mim é doutor honoris causa em
política, porque dirigir um sindicato e mandar uma ci-dade
com São Paulo parar – e para –, precisa ter muita
liderança. Ele é um líder político espetacular. O País es-tá
conhecido e respeitado no mundo, atualmente, por
causa de Lula. Sou comunista, fui da diretoria estadual
do Partido Comunista e digo, com toda satisfação, que
ele foi o maior presidente que o País teve desde que
me entendo por gente.”
MISÉRIA
“O Brasil ainda tem muita coisa para se resolver. A
maior miséria é a falta de educação. Você vê que fábri-cas
maravilhosas estão sendo implantadas aqui, mas fi-cam
sem puder funcionar direito, por falta de mão de
obra. Ninguém tem curso técnico suficiente para to-mar
conta de várias áreas em fábricas que estão che-gando.
Isso é uma tristeza. A falta de educação é a
pior miséria que o País tem. A maior doença. E a falta
de saúde se resolve também com educação. Um povo
bem educado deixa de fazer uma porção de doidice
que gera doença.”
Fotos: Hélia Scheppa/JC Imagem
www.jconline.com.br/cultura
Atuação política o levou
70 vezes para a detenção
vida
Reprodução/Michele Souza/JC Imagem
4. 4 jornal do commercio Recife I 31 de julho de 2014 I quinta-feira Arte que se confunde
com o Recife
Eugênia Bezerra
ebezerra@jc.com.br
ORecife verte caudaloso na
obra de Abelardo da Hora.
Cenas e personagens que po-dem
ser vistos na cidade também po-dem
ser encontrados nas obras do ar-tista
que, ainda na época da Escola de
Belas Artes de Pernambuco, fez o con-vite:
“Vamos desenhar e pintar lá fo-ra!”.
Desde muito jovem, o homem
que celebra hoje seu aniversário de
90 anos tem eternizado o que vê à sua
volta em esculturas, desenhos, gravu-ras,
painéis, peças em cerâmica e tape-çaria.
Da mesma maneira, a obra de
Abelardo Germano da Hora, filho de
camponeses e nascido no Engenho
Tiúma, de São Lourenço da Mata, faz
parte da paisagem da capital pernam-bucana,
é presença marcante em mui-tos
espaços públicos da cidade. Quan-tas
crianças já brincaram entre as figu-ras
d’Os Cantadores no Parque 13 de
Maio, por exemplo?.
Além disto, outra face do trabalho
de Abelardo da Hora também deixou
marcas no cenário cultural da cidade.
Entre outras contribuições, ele se en-volveu
na política, participou do Movi-mento
de Cultura Popular (MCP) e
foi preso várias vezes durante o regi-me
militar; fez obras que chamam a
atenção para a fome e injustiças so-ciais;
fundou, com Hélio Feijó
(1913-1991), a Sociedade de Arte Mo-derna
do Recife (SAMR) e foi profes-sor
de vários artistas.
Tudo isto está bem vivo para quem
atravessa a porta branca da casa e
ateliê de Abelardo, na Boa Vista.
Berço de novos trabalhos, o lu-gar
guarda peças que for-mam
uma espécie
de mosaico. Cada
uma representa ca-pítulos
destas vidas
em permanente movi-mento
– a do artista e a da
cidade. Elas dividem espaço
pelos corredores, paredes e
sobre os móveis. Estão perto
de seus protótipos, livros e ob-jetos.
Com voz calma e um discur-so
firme e claro, como a me-mória
de seu dono, Abelardo
conta cada história com aten-ção.
Revela detalhes das criações, a
técnica utilizada, um ângulo que res-salta
a beleza da escultura e a trajetó-ria
de uma obra, como a gravura em
gesso Enterro do camponês (1953). Ela
fez parte de uma mostra do Clube da
Gravura de Porto Alegre e, naquele
ano, viajou pelo mundo.
Anos mais tarde, em 2011, outra
mostra itinerante entraria na trajetó-ria
de Abelardo, celebrando seus 60
anos de criação artística. Amor e soli-dariedade
foi a Brasília, Rio, São Pau-lo,
João Pessoa e chegou ao Recife na
inauguração do Parque Dona Lindu.
Sua primeira exposição data de 1948.
“O amor eu dedico às mulheres,
porque sem a mulher não existiria na-da.
E a solidariedade eu dedico ao po-vo.
Ora exaltando a criatividade popu-lar,
como nas Danças brasileiras de
Carnaval (1962), ora lutando de bra-ços
dados com o povo contra as injus-tiças
sociais. Mostrando as injustiças
sociais, como na série Meninos do Re-cife
(1962) para retratar onde vivem
as crianças do Recife, completamente
desassistidas, abandonadas, em palafi-tas
dentro da maré, na lama”, resgata
o artista ao falar sobre os termos que
batizaram a retrospectiva.
Da exposição, faziam parte algu-mas
esculturas de mulheres sensuais,
representantes de uma das faces mais
conhecidas do trabalho do artista.
Com materiais como cimento polido,
bronze e gesso grafitado, ele criou vá-rios
destes seres voluptuosos de per-nas
longas. Figuras que parecem ter
seus cabelos agitados pelo vento ou re-pousam
lânguidas na rede. Esta arte
sensual também se traduz em casais
abraçados ou aos beijos, a exemplo de
Relevo para o amor de Abelardo e Mar-garida
(1998) e Amor (2005), ambas
em cimento polido, ou de Cópula
(1949) e Beijo (1958), criadas em bron-ze
e com formas mais arredondadas.
A expressão das injustiças sociais é
igualmente forte e reconhecida na tra-jetória
de Abelardo. Dela fazem parte
obras como a escultura em bronze A
fome e o brado (1947). Outras linhas
definem estes corpos. Mais retas, tra-çam
rostos marcados pela fome, pela
dor. Seres expressivos, eles parecem
falar. Não há como permanecer indife-rente
ao grito da Mãe com filho doente
(1979), feita em cimento com banho
de ácido – mesmo material de Hiroshi-ma
(1956), Estela para mulheres e
crianças abandonadas (1978) e Desam-parados
(1981), para citar apenas algu-mas
deste grupo.
Da mesma maneira, é impossível
não pensar nas inúmeras crianças
que vivem, hoje, em condições seme-lhantes
(ou iguais) à dos retratados
por Abelardo na série de desenhos a
bico de pena de 1962. O conhecido ál-bum
Meninos do Recife, no qual tam-bém
há um poema escrito pelo artis-ta,
representa estes seres humanos
dormindo na rua, em moradias precá-rias,
catando comida na lama em
meio a urubus.
Um dos desenhos foi escolhi-do
por Josué de Castro pa-ra
ilustrar a edição fran-cesa
do clássico Geogra-fia
da fome. Além da
sensibilidade no te-ma,
destaca-se tam-bém
a maneira como
o artista dá um aspec-to
quase tridimensio-nal
às figuras e paisa-gens.
O lado festivo da
obra de Abelardo pode
ser exemplificado por
séries como Danças
Brasileiras de Carna-val
(1962) ou É hora
de Brincar (2004). So-bre
este conjunto mais
recente, resumiu anos atrás o curador
Renato Magalhães: “São estas mes-mas
crianças brincando ao ar livre, co-mo
ele gostaria que fosse”.
“Fiz menino empinando papagaio,
jogando pião, crianças pulando corda,
meninas brincando com a boneca,
uma menina fazendo bola de sabão.
Estes são aguadas coloridas, eu vou fa-zer
depois um álbum e quero escrever
também um poema de abertura”, pla-neja
Abelardo.
Em Danças Brasileiras de Carnaval
(1962), o artista apresenta passistas,
músicos, um casal de mestre-sala e
porta-bandeira, o maracatu e outras
expressões culturais. Os detalhes das
roupas e as formas desenhadas pelos
corpos que dançam são bem usados
nas composições.
A festa faz parte das lembranças de
juventude de Abelardo, cuja família
mudou-se para a Usina São João da
Várzea em 1928. Depois, o artista fez
seu curso primário em uma escola na
Iputinga. “Aquela Avenida Caxangá
todinha era o nosso reino, meu e do
meu irmão Luciano. Nós brincáva-mos
juntos. Eu fui com meu irmão e
minha irmã muitas vezes a matinês
do Bobos em Folia. Porque minha ir-mã
gostava, já era uma mocinha, e mi-nha
mãe disse: ‘você só vai se for
acompanhada por seus irmãos’. Aí
nós íamos com ela, mas a gente deixa-va
ela solta na buraqueira e caía no pa-ço”,
lembra com um sorriso.
“
www.jconline.com.br/cultura
caderno C
TRAÇADO URBANO
Espalhadas pela cidade,
esculturas de Abelardo
formam um patrimônio
O amor eu dedico às mulheres,
porque sem a mulher não
existiria nada. E a solidariedade
eu dedico ao povo. Ora
exaltando a criatividade
popular, ora lutando de braços
dados com o povo contra as
injustiças sociais.”
Abelardo da Hora
5. Recife I 31 de julho de 2014 I quinta-feira jornal do commercio 5
MEMÓRIAS DO ATELIÊ COLETIVO Bernardo Dimenstein, Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Guita Charifker e Zé Cláudio, em 2002
Concepção gráfica: Eduardo Mafra, Jade Jofilsan e Maryna Moraes/Editoria de artes JC
Uma vida de
militância e
ensinamentos
Depois da infância neste mundo “de camponeses e
trabalhadores”, como o próprio Abelardo da Hora defi-ne,
e do período de estudos no Grupo Escolar Fernan-des
Vieira, na Iputinga, chegava a hora de continuar a
formação. Ao falar sobre o passado, o pernambucano
lembra de uma preocupação da mãe dele, Severina Ma-ria
Germano da Hora, em relação ao futuro dos filhos:
“Fiz meu curso técnico porque a minha mãe dizia: ‘Eu
quero que vocês façam o colégio industrial, porque
vocês já saem com uma profissão. Depois, no curso su-perior,
vocês fazem o que quiserem’. Nós escolhemos
artes decorativas, eu e meu irmão Luciano”.
A partir desta experiência no Colégio Industrial Pro-fessor
Agamenon Magalhães, o ensino da arte conti-nuaria
ligado a momentos importantes na vida de Abe-lardo,
seja no papel de aprendiz ou no de repassar
seus conhecimentos. O artista também concluiu o ba-charelado
na Faculdade de Direito de Olinda, mas não
chegou a exercer esta profissão.
“Tinha um dia da semana em que o professor dava li-berdade
para o aluno fazer qualquer coisa da sua ima-ginação
e, como na minha casa iam muito repentistas,
porque a minha mãe gostava demais e meu tio tam-bém,
comecei a fazer a estatueta de dois repentistas.
Meu professor de pintura, Álvaro Amorim, parou e dis-se:
‘Seu professor de escultura já viu a sua peça?’. Eu
disse: ‘Ainda não’”.
Álvaro chamou o colega para compartilhar o que
via, elogiou o aluno e prometeu que levaria Abelardo
para a Escola de Belas Artes do Recife, quando ele ter-minasse
o curso no Colégio Industrial. Foi o que acon-teceu.
Em 1939, o jovem passou a frequentar a escola
da qual Álvaro foi um dos fundadores. A instituição
funcionava na Rua Benfica, na Madalena. Além de ter
aulas, Abelardo entrou no diretório estudantil da esco-la,
do qual foi eleito presidente em 1940.
Foi nesta época que ele pensou: “Vamos acabar com
esse negócio de ficar desenhando só dentro da escola”.
A ideia acabou colocando-o no caminho do pai daque-le
que seria um de seus aprendizes, Francisco Bren-nand,
outro pernambucano que trilhou um caminho
próprio e muito fértil nas artes visuais, além de criar
obras que também são icônicas na paisagem do Recife
– duas coincidências entre os velhos amigos.
Em uma destas saídas, o industrial Ricardo Bren-nand
viu Abelardo desenhar o retrato de uma colega
em meio ao grupo de jovens na beira do açude. Convi-dou
o rapaz, filho de um dos seus ex-funcionários, Jo-sé
Germano da Hora, a trabalhar com cerâmica artísti-ca
e morar na casa da família. Três anos mais novo que
Abelardo, Francisco contaria ao pai algum tempo de-pois
o caminho que escolheu. “Ele me chamou e disse:
‘Abelardo, você tirou o advogado da família’. Eu res-pondi:
‘De maneira nenhuma, ele é que tem vocação’.
‘Você acha?’. ‘Demais’... ‘Então tome conta dele’, ele fa-lou”,
recorda Abelardo.
Outro encontro artístico se tornava realidade anos
mais tarde. Depois da exposição de estreia, na Associa-ção
dos Empregados do Comércio do Recife, e da cria-ção
da Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR),
lá estava Abelardo participando da fundação do Ate-lier
Coletivo da SAMR, em 1952. “Pensei em fazer um
curso de iniciação às artes, conseguimos uma sala no
Liceu de Artes e Ofícios e eu comecei a dar aulas gra-tuitas
de artes plásticas”, continua o artista.
Quando o grupo alcançou cerca de 20 integrantes,
foi preciso encontrar um novo local. Os artistas foram
para a Rua da Soledade e depois para uma casa na Rua
Velha. “Gilvan Samico, Wellington Virgolino, Wilton
de Souza, Ionaldo Andrade, Bernardo, Adão Pinheiro,
Guita Charifker, Maria de Jesus, Celina Lima Verde,
os irmãos Genilson e Cremilson Soares, Campelo Ne-to,
José Cláudio, essa gente toda. Eles se transforma-ram
em grandes artistas”, comenta Abelardo.
Nesta época do Atelier Coletivo, foram criadas
obras de Abelardo da Hora que ainda apresentam a
cultura e a história de Pernambuco em espaços públi-cos
do Recife. É o caso, por exemplo, d’Os cantadores,
no Parque 13 de Maio, e d’O sertanejo, na Praça Eucli-des
da Cunha (Derby). Uma delas, a Torre Cinética e
de Iluminação, deveria estar na Praça da Torre, onde
foi construída em 1961. A peça, que se movimentava
pela ação do vento, foi destruída.
Mas a atuação de Abelardo da Hora permanece ain-da
em obras de outros artistas. Reflexo de um projeto
de lei sugerido por ele e aprovado na Câmara Munici-pal
do Recife, que determina a colocação de obras de
arte em construções com mais de mil metros quadra-dos.
“Eu queria transformar o Recife em uma espécie
de galeria de arte.” E conseguiu. (E.B.).
caderno C
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q Mais na web
Assista ao vídeo e veja outras obras de Abelardo da
Hora no www.jc.com.br/cultura e no blog Social1