Sob suspeita há décadas, mamadeira ganha novos opositores, sobretudo nas comunidades científicas.
A polêmica em torno do objeto não é nova. Recentemente, livro publicado por uma designer reacendeu a discussão e diversos estudos comprovam que o uso de bicos de borracha pode trazer prejuízos que se arrastam até a fase adulta. Entenda o debate e saiba quais são as alternativas.
Entrevista do Prof. Marcus Renato de Carvalho para Gláucia Chaves - Revista do Correio Brasiliense, Brasília, DF
1. Polêmica
Sobsuspeita
hádécadas,a
mamadeira
ganhanovos
opositores,
sobretudo
nasredes
sociais.
Entendao
debate
Brasília, domingo,
16 de março de 2014
CORREIO
BRAZILIENSE
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Obicoda
discórdia
Respondarápido:oquevemàsuamentequandooassun-
to é bebê? Se você falou mamadeira, acaba de comprovar a
tesedequeelaéumacompanheiraquaseinseparáveldain-
fância. Quase. A polêmica em torno do objeto não é nova.
Recentemente,livropublicadoporumadesignerreacendeu
adiscussão.Diversosestudoscomprovamqueousodebicos
deborrachapodetrazerinúmerosprejuízosàsaúde.Emal-
gunscasos,osefeitosnegativossearrastamatéafaseadulta.
O primeiro grande problema da mamadeira é que ela
pode levar à disfunção motora oral, ou à chamada confu-
sãodebicos.“O bebê que usa mamadeirafica com pregui-
ça de pegar o peito, o que é uma das principais causas do
desmame precoce”, explica o pediatra e puericultor Mar-
cus Renato, professor do Departamento de Pediatria da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e editor do site militante Aleitamento.com.
PORGLÁUCIA CHAVES
Janine Moraes/CB/D.A Press
LuízaDienercomos
filhos,Benjamine
Constança:sem
radicalismo,ablogueira
diznãoaobico
2. Seisargumentos
contráriosàmamadeira
GCrianças acostumadas a bicos artificiais
tendem a desmamar mais cedo.
GA musculatura da bochecha pode ficar
mais flácida, prejudicando a fala, a
deglutição e a mastigação.
GO desenvolvimento incorreto da
mandíbula pode dificultar a respiração.
GCrianças que mamam na mamadeira têm
mais chances de desenvolver otite
(infecção no ouvido).
GMamadeiras são difíceis de higienizar.
GAlgumas pesquisas indicam que o
bisfenol-a, substância que faz parte do
plástico e que é liberada quando o
material é aquecido, pode causar
diminuição da testosterona, aumento dos
testículos, diabetes, predisposição ao
câncer e hiperatividade.
FFoonnttee:: Natasha Slhessarenko, pediatra
do Laboratório Exame.
Se o bebê não mama, a mãe para de produzir
leite. Sem amamentação, explica o médico, a
criança corre mais risco de ter infecções, aler-
gias, desnutrição ou obesidade, caso ela passe a
ser alimentada com leite em pó, normalmente,
muito mais calórico que o materno.“Geralmen-
te, a mamadeira é preenchida com leite em pó
infantil, e o bebê acaba tomando muitas vezes”,
detalha. “A introdução do uso do copo, da co-
lher, da papa de legumes fica atrasada porque a
criança vicia na mamadeira.”
Dopontodevistahigiênico,amamadeiratam-
bém é imperfeita.“É uma fonte de infecção, coli-
formes fecais e fungos. A criança pode ter sapi-
nho,porexemplo”,alertaMarcusRenato.Emuito
jásediscutiusobreainfluênciadobiconaforma-
çãodapersonalidade.Ousointensodoobjetona
infância resultaria em um adulto com a fase oral
do desenvolvimento não resolvida, mais propen-
soafumar,bebereroerasunhas.
Apesar de tudo, os bicos ainda são conside-
ras meios de acalmar o bebê. Luíza Diener, 29
anos, não gosta da ideia de dar mamadeira ou
chupeta para os filhos, mas não julga quem
opta pelo recurso. Ela mesma, quando seu
primeiro filho nasceu, precisou da ajuda do
bico artificial algumas vezes. Antes de Benja-
min, 3 anos, nascer, ela conta que era radical-
mente contra. A prática, contudo, a fez repen-
sar: o menino só conseguia dormir se fosse
com a chupeta na boca. “Quando ele acorda-
va, eu tirava. Foi inexperiência de mãe de pri-
meira viagem”, pondera. Menino e chupeta vi-
veram uma parceria que durou um ano e nove
meses, mas a mamadeira nunca chegou a fa-
zer parte da vida dele.
Há oito meses, Luíza teve sua segunda filha,
Constança. Desta vez, nada de mamadeira ou
chupeta. Hoje, a mãe sabe que há outras ma-
neiras de acalmar os filhos. Entender o motivo
do choro foi o primeiro passo. “O choro é a
única forma de comunicação de um bebê. Se
você dá a chupeta, você está tirando a única
forma de expressão que ele tem e não atende a
necessidade dele”, justifica. Em seu blog, Po-
tencial Gestante, Luíza dá dicas e compartilha
experiências com outras mulheres. Ela tem
mais de 33 mil seguidores e, por isso, emite
opiniões com responsabilidade. Desaconselha
o bico, mas sem radicalismo. ±
3. Brasília, domingo,
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CORREIO
BRAZILIENSE
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Polêmica
Novas
críticas
da ciência
Substituir o seio pela mamadeira
pode atrapalhar o desenvolvimento
de movimentos essenciais, como de-
glutição, mastigação e fala.Victor Nu-
delman, pediatra do Hospital Israelita
Albert Einstein, explica a diferença.
“No primeiro caso, o bebê precisa es-
premer, com movimentos da língua,
para comprimir a mama contra o céu
da boca e fazer o leite sair. Na mama-
deira,omovimentoédesucção,coma
musculatura ao redor do lábio, crian-
doumvácuoparapuxaroleite.”
Nudelman explica ainda que o be-
bê acostumado a mamadeira pode fi-
car com os músculos da bochecha flá-
cidos.Apesardetudo,paraomédico,a
mamadeira é uma opção em casos de
necessidade extrema.“A flacidez pode
ser revertida. Os danos da mamadeira
estãorelacionadosaousoprolongado,
especialmenteatéosdoisanosdeida-
de”, completa. Andréia Stankiewicz,
cirurgiã-dentista especialista em
odontopediatria e ortopedia funcio-
nal dos maxilares, explica que a in-
fluência negativa no desenvolvimento
oral e facial decorre do estímulo fora
do padrão. “Quando se introduz a
chupeta, modificam-se os circuitos
neuromusculares que influenciam no
crescimentodosossosenoposiciona-
mentodosdentes”,reforça.
Ainda que os pais não percebam os
efeitos imediatos, a médica explica
que as modificações não tardam.
“Quando há essa alteração na muscu-
latura,mudaacavidadeoral”,comple-
ta Stankiewicz. O posicionamento dos
ossos e o crescimento da mandíbula
também se alteram resultando em
uma“boca estreita”, com o queixo pa-
ra trás e uma língua sem força para
realizar movimentos básicos, como
mastigação,respiraçãoedeglutição.
Antônio Fagnani Filho é cirurgião-
dentista ortopedista funcional dos
maxilares e homeopata. Ele reforça:
qualquer bico de borracha provoca
alterações no desenvolvimento da
boca. E não serão só os dentes os pre-
judicados.“Falamos mais dos dentes
porque são mais visíveis, mas os ma-
lefícios serão para todo o aspecto fun-
cional.” Além da influência negativa
na fala da criança, os bicos alteram
até mesmo na postura do indivíduo.
“O queixo é a parte móvel do sistema
crânio-facial. Se ele está mais para
trás ou para a frente, o equilíbrio pos-
tural da cabeça com relação à coluna
se altera”, detalha. “A coluna tem um
ponto de equilíbrio. Quando ele é al-
terado, parte da cervical vai para um
lado, a lombar, para outro, e isso vai
contraindo vários músculos da ma-
neira errada.” A falta de equilíbrio faz
com que alguns grupos musculares
trabalhem mais do que outros, oca-
sionando dores persistentes.
A servidora públicaThelma Kai, 37
anos, abomina as mamadeiras. Quan-
doteveoprimeirofilho,Yuri,hojecom
15 anos, ela não tinha restrições ao bi-
co.Alicença-maternidade,àépoca,era
deapenasquatromeses.Thelmapreci-
souvoltaraotrabalhoeobebêpassava
o dia com a avó materna.“Minha mãe
achava ele magrinho demais e dava
mamadeira com leite em pó”, conta. A
primeira consequência foi queYuri fi-
cou preguiçoso para mamar. Mais tar-
de, vieram as cáries, com apenas 4
anos.Osdentesdeleitecaírameosno-
vos nasceram completamente tortos.
“A dentição era para frente, com o for-
matodobicodamamadeira.”
Após a experiência com o primogê-
nito,Thelmafeztudodiferentecomafi-
lhaYara,de4anos.Dopeito,amenina
passoudiretoparaocopinho.Atéhoje,
Yaranãosabeoqueétercárie.Osden-
tesdagarota,aliás,nasceramperfeitos.
“Darsóoleitedopeitoébemmaisba-
ratoquecomprarleitedelataenãopre-
cisohigienizarmamadeira”,compara.
AntesdeCaetano,2anos,nascer,Ca-
rolina Coeli, 27 anos, pesquisou tudo
quepôdesobrebebês,inclusiveosperi-
gosdamamadeira.“Sempretivevonta-
dedeamamentar,então,essaspesqui-
sas só me ajudaram mais a ter certeza
disso”,completa.Omeninoestácom2
anose8meseseparoudemamarmês
passado.Desdeosseismeses,contudo,
ele já toma água, mas na colher, com
muitapaciênciaporpartedamãe.
Como qualquer outra coisa na vida,
porém, amamentar também tem seu
lado negativo.“É muito cansativo e dá
muito trabalho. O Caetano, especifica-
mente, acorda muitas vezes durante a
noite para mamar”, reconhece Caroli-
na. Mas vale a pena, ela garante, até
porqueacriançaficamuitomaisinde-
pendente.“Meu filho já segurava um
copo sozinho quando ainda nem an-
dava”,descreveamãe. I
Zuleika de Souza/CB/D.A Press
CarolinaCoeliseorgulhadeo
filho,Caetano,terpassado
diretodopeitoparaocopo
4. Entrevista//CristineNogueiraNunes
Objeto mal projetado
A designer Cristine Nogueira Nunes
engrossou o caldo dos críticos do bico com seu
livro Amamentação e o desdesign da
mamadeira — Por uma avaliação da produção
industrial (Editora Reflexão). Na entrevista
abaixo,ela detalha sua pesquisa.
Vocêédesigner,nãotrabalhadiretamentecom
saúde.Comosurgiuoseuinteressepelotema?
Eu estava fazendo doutorado em design e
queria pesquisar o porquê do design estar ca-
da vez mais hibridizado com o marketing e
comapublicidade.Quandosefalaemdesign,
logo se pensa em algo chique, mas não é isso.
Porcontadeoutrostrabalhosquefiz,ligadosa
hospitaiseUTIsneonatais,descobriqueama-
madeiranãoéumprodutobom.Eu,comode-
signer,mepreocupei.Comomeuinteresseera
estudar o design a serviço desse consumo de-
senfreado, acabei identificando a mamadeira
comoobjetosímbolodoqueeuqueriacriticar.
Quaissãoosprincipaisproblemas
damamadeira?
Primeiro:amamadeiraéumprodutocom-
posto por várias partes, que se conectam por
roscaseobicoéfeitodematerialaderente,ge-
ralmentelátexousilicone.Segundo:noleite,as
bactériasseproliferamcercade1h30a2hde-
poisdolíquidoexpostoàtemperaturaambien-
te.Oterceiroproblemaéqueaáguaéumpro-
blema mundial. Somando essas três coisas, a
gentetemoimpactoformaldamamadeira.Es-
sasroscassãooambienteperfeitoparaaproli-
feraçãodasbactérias.Seagentelavarperfeita-
menteeesterilizar,podeserquenãohajapro-
blema.Masarealidadeéqueexisteacorreria—
ospaislevamamamadeiraconsigoenãoper-
cebemquejásepassaramduashorasqueolí-
quidoestáládentro.Asmamadeiraseosleites
artificiaisrespondemporumaimensaparcela
damortalidadeinfantildesdeosanos1980,se-
gundoaOrganizaçãoMundialdaSaúde(OMS).
Issoésabido,masaforçadaindústriaimpede
queaspessoassaibam.
Easconsequênciasanatômicas?
Existem,sim,impactosfisiológicos,comoo
desenvolvimento prejudicado da arcada den-
tária.Seobebêseacostumaanãofecharabo-
ca, ele tende a respirar pela boca e o ar entra
sujo nos pulmões. Muitos casos de pneumo-
nia, problemas respiratórios e até de postura
nainfância,naadolescênciaenavidaadultase
devem à mamadeira. A OMS já admitiu que
pediatrasusavamtabelasdecrescimentopara
saber se a criança estava se desenvolvendo
“normalmente”. A curva dessa tabela havia si-
do estabelecida a partir de crianças que ti-
nham se alimentado com leite artificial. Essas
crianças eram mais gordas, porque o leite em
pó é, inclusive, motivo de obesidade. Os pais
iam ao médico, pesavam o bebê e ele tendia a
estaraquémdopesoesperado.Aí,davamleite
artificialcomocomplemento.
Porquemuitasmãesaindasãoresistentes
àideiadeabandonaroobjeto?
Existeumativistadaamamentaçãochama-
doAndrewRadfordquefazumaanalogiamui-
to boa: ele diz que os aparelhos de diálise são
capazesdesubstituirosrinsemcasodeneces-
sidade,masnãoháninguémquedefendaque
nãoseusemaisrinsparausaraparelhosdediá-
lise.Asmamadeirastambémdevemserusadas
só em caso de necessidade. Para as mães, ter
quededicarmuitotempoparaalimentarosfi-
lhos é complicado. Desde a era pré-cristã, há
registrosdeutensíliosparaisso.Aprimeirama-
madeiraproduzidaemescalasurgiunaIngla-
terraduranteaRevoluçãoIndustrial.Erauma
garrafinhadevidrotapadaporumarolhaatra-
vessadaporumcanudodemetal.Eraimpossí-
veldelimpar.Decada10crianças,sóduasso-
breviviamepassavamde2anosdeidade.Hoje,
amamadeiraéumacultura—elaécomprada
antesmesmodonascimentodofilho
Quaisseriamasalternativasàmamadeira?
A OMS orienta que a amamentação deve
ser a alimentação exclusiva pelos primeiros 6
meses de vida, só depois é que os pais devem
introduziroutrosalimentos.Essacoisadeficar
dandoágua,suco,nãofazsentido,porquetem
tudo no leite. As pessoas precisam saber mais
sobreoleitematerno,queéumacoisamágica.
Senãotemleite,podepegarodeoutramulher.
A alternativa é o copo ou a colherzinha, e só.
Com o copo, o bebê faz o mesmo movimento
que faria com o peito, que é chupar o leite do
copo,comosefosseumgatinho.Éprecisotéc-
nica,porquevazamesmo,masospaisecuida-
dorestêmquededicartempoaobebê.
Gustavo Wittich/Divulgação