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ÍNDIOS
Das origens ao descobrimento, culinárias, canibalismo, guerra, vida sexual
Quase tudo o que os livros didáticos de dez anos atrás e muitos ainda hoje
falam sobre a origem do homem americano está errado e as pesquisas atuais
feitas no Brasil viraram foco mundial de interesse porque mudam os rumos da
própria história do homem americano, tal como também era ensinada nos
Estados Unidos e na Europa. Até pouco tempo atrás as teorias mais aceitas
diziam que o homem americano teria vindo da Ásia, por terra, pois sabe-se
que entre 35 mil e 12 mil anos atrás uma glaciação teria feito o nível do mar
descer 50 metros e durante muitos intervalos de milênios expôs caminhos
terrestres entre a Ásia e a América do Norte, na região do Estreito de Bering.
O mais provável era que essas populações caucasianas teriam chegado em
levas entre 14 mil e 12 mil anos atrás, antes que o oceano voltasse a engolir os
caminhos terrestres.
Outra teoria muito aceita era a de que os índios que povoaram a Amazônia
seriam culturalmente inferiores aos das grandes civilizações andinas, como os
incas, que deixaram templos e casas de pedra, além de quantidade muito maior
de artefatos materiais. Segundo uma tese aceita no passado, os índios
amazônicos seriam descendentes empobrecidos de sobreviventes de
catástrofes por que passaram essas grandes civilizações andinas, como secas
provocadas pelo fenômeno que hoje conhecemos como El Niño, e que aquece
superficialmente as águas do Oceano Pacífico durante alguns períodos,
alterando a distribuição das chuvas no mundo.
Nos anos 1940 e 1950 o aventureiro e etnólogo norueguês Thor Heyerdahl
(1914- ) chamou a atenção do mundo para a possibilidade de as Américas
terem sido povoadas por polinésios (viajou ele mesmo com uma equipe do
Peru até Raroia na Polinésia, numa jangada primitiva em forma de balsa em
1947) e até egípcios (em 1970, em segunda tentativa, ele e sua equipe
navegaram num barco egípcio feito de papiro de Safi, no Marrocos, até
Barbados, na América Central, demonstrando a possibilidade de que as
culturas pré-colombianas da América tenham sido influenciadas até pela
egípcia da Antiguidade).
Desprezadas pelos cientistas, por falta de evidências arqueológicas, as teorias
difusionistas de Heyerdahl, que eram apenas intuição de um aventureiro,
conforme se dizia na época, acabaram revalorizadas com base científica no
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final dos anos 1980. Hoje em dia se sabe que a presença de egípcios ou
fenícios no Brasil não passa de lenda, mas existem mais elementos para supor
que o homem americano teria vindo em diferentes levas, de vários lugares do
mundo, como o Ásia, as ilhas do Pacífico e até Austrália. Mais recentemente,
durante a Idade Média, teria havido algumas incursões de vikings ao
continente, que teriam deixado vestígios arqueológicos no litoral norte-
americano – o que derruba outra certeza, a da primazia da descoberta da
América por Colombo em 1492. Referências arqueológicas são citadas pelo
escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu livro Literaturas Germânicas
Medievais.
Em meados da década de 80 a antropóloga Niéde Guidon fez datações de
sítios arqueológicos no Piauí e chegou a datas que beiram os 50 mil anos para
restos humanos na região de Pedra Furada, por exemplo (1986). Em outros
sítios arqueológicos próximos, como o de São Raimundo Nonato, a datação de
vestígios humanos regrediu há mais de 60 mil anos atrás.
Em 1989, uma análise morfológica de crânios pré-históricos da Bolívia e do
Brasil feita por outros cientistas mostrou sua afinidade com grupos do sul do
Pacífico que teriam chegado aqui antes do estabelecimento da morfologia
mongolóide típica nas populações asiáticas.
Em 1990, análises das mitocôndrias do DNA de populações indígenas atuais
mostraram uma variabilidade que se estende até 40 mil anos atrás, quando
teriam ocorrido as migrações. São várias diferentes evidências indicando que
o homem americano certamente teve várias origens e chegou ao continente
bem antes de 14 mil anos atrás, como se pensava. Outra evidência da origem
difusa do homem americano está na recomposição do aspecto facial de um
esqueleto fóssil de mulher encontrado no Nordeste e chamado de Luzia: seus
traços são negróides e diferem dos traços mongolóides de outras populações
indígenas.
“Quando da elaboração da velha teoria sobre o povoamento da América os
conhecimentos disponíveis sobre os homens pré-históricos eram mais
limitados e sofriam o preconceito de que o homem de Cro-Magnon, o
primeiro da nossa espécie, teria aparecido há apenas 35 mil ou 40 mil anos, e
que seria um ser meio macaco, meio homem”, diz Niéde Guidon em História
dos Índios no Brasil, livro de que é co-autora. Segundo a autora, na década de
1950 ainda se consideravam as capacidades intelectuais e tecnológicas do
homem de Cro-Magnon muito reduzidas. “Hoje o avanço da paleontologia
humana recuou de muito a data da aparição do primeiro Homo sapiens e as
técnicas de moldagem do endocrânio permitem afirmar que a estrutura
cerebral era a mesma. Ninguém mais acredita no mito do Cro-Magnon peludo
e meio curvado, com uma face de gorila deslumbrado por estar conseguindo
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se manter de pé. Sabe-se que o homem é o único animal terrestre que
conseguiu se dispersar por todo mundo. Sua presença é antiga em todos os
continentes, até na Austrália. O exemplo desse país é edificante. Até os anos
70 não se admitia que o homem aí tivesse penetrado antes de 7 mil anos, pois
esse continente, durante todo o Pleistoceno e o Holoceno, nunca foi ligado à
Ásia. Mesmo em épocas de nível baixo do mar, mesmo na cota mais baixa
atingida pelos oceanos, existem braços de mar que separam a Austrália da
Ásia. Com o progresso das pesquisas foram descobertos sítios que
demonstraram que o homem já estava na Austrália há pelo menos 50 mil anos,
o que nos obriga a admitir que o homem pré-histórico dominava a técnica da
navegação.”
Niéde Guidon propõe que “os primeiros grupos chegaram até o continente
americano há pelos menos 70 mil anos” e lembra de datações ainda mais
antigas: “Na região de Central, na Bahia, Maria C. M. C. Beltrão indica a
existência de ossos fossilizados de animais da megafauna que teriam marcas
feitas pelo homem e que forneceram datações da ordem de 300 mil anos AP”,
embora a própria Niéde Guidon ache resultado exagerado e considere
prudente “aguardar novos achados”.
(VER MAPA DAS MIGRAÇÕES DE CHEGADA DOS PRIMEIROS
AMERICANOS NO LIVRO OS INDIOS DO BRASIL, DE HERNÂNI
DONATO, PAGINA 9)
UM VERME DERRUBA
A TEORIA DA MIGRAÇÃO TERRESTRE
As doenças do homem pré-histórico também ajudam a desvendar as rotas de
suas migrações. Importantes descobertas foram divulgadas em 1988, na onda
de revisão da antropologia que caracterizou a década. Concluiu-se, por
exemplo, que a sífilis, uma doença venérea causada por bactérias, é de origem
americana e existia no continente antes da descoberta pelos europeus. Já a
tuberculose inexistia entre nossos índios antes de 1492 e foi introduzida pelos
europeus. Segundo o autor de um levantamento sobre a incidência de
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tuberculose entre os nossos índios, “há alta probabilidade de que os dois mais
famosos padres catequistas do Brasil, Manuel da Nóbrega e José de Anchieta,
fossem tuberculosos. Teriam sido eles responsáveis, portanto, por muitas
mortes devidas a essa doença entre os indígenas com os quais mantiveram
contato” (Francisco M. Salzano, referindo-se ao trabalho de J. A N. Miranda,
1985, “O Velho e o Novo”, in História dos Índios no Brasil).
Niéde Guidon cita a descoberta, no Piauí, em 1988, de um parasita intestinal,
o Ancilostoma duodenalis, como mais uma prova de que a teoria do estreito de
Bering não é suficiente para explicar a origem do homem americano. Esse
verme é originário de regiões tropicais e suas larvas precisam ficar no solo em
condições de alta temperatura para poderem infestar as pessoas e sua presença
no Piauí foi datada de 7.750 anos. “Uma população vinda por Bering não teria
podido trazer o parasita até a América porque o mesmo teria desaparecido
durante a passagem pela Beringia e o Alasca. A existência do parasita no Piauí
há mais de 7 mil anos demonstra que um povo vindo de um país quente, por
rotas de clima quente, portanto vias marítimas, chegou até aí nessa data.
Calculando a distância que separa São Raimundo Nonato, o local do achado,
do mar, podemos propor que esses grupos navegavam até a América entre 9
mil-10 mil anos, no mínimo.” (Niede Guidon, História dos Índios do Brasil)
CACIQUES DIVIDEM O CONTINENTE
As novas descobertas da arqueologia e da paleontologia mudaram não só a
história do continente americano, que agora recua muitos milênios atrás do
que se pensava, mas a própria geografia, pois datações de fósseis de ossos de
megatério (preguiça-gigante) divulgadas em 2002 na Amazônia indicam que
esses animais lá viveram há cerca de 12 mil anos. Como eles não são animais
de floresta densa, mas de savana, fica claro também que a própria paisagem
amazônica era muito diferente há pouco mais de 10 mil anos: campos abertos
de clima mais seco onde povos nômades se deslocavam para coleta de
vegetais e caça.
O mito de considerar os índios brasileiros como provenientes de civilizações
inferiores às andinas e do México e da América Central, que construíram
pirâmides e complexas cidades, também caiu por terra quando se comprovou
que o Brasil foi quase inteiramente povoado por grandes Estados índios de
população nômade no começo do primeiro milênio antes de Cristo, quando
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Salomão reinava sobre os judeus no Oriente Médio, os egípcios viviam o
apogeu dos faraós e a Grécia e Roma ainda estavam em seus primórdios.
Esses cacicatos eram formados por tribos nômades de cerca de uma dezena de
grandes troncos lingüísticos e centenas de pequenos grupos lingüísticos
isolados, cuja convivência, ao longo dos milênios estabeleceu uma regra
comum entre os povos: as guerras, o canibalismo e as migrações.
Quando os europeus chegaram ao Brasil, nos anos 1500, a presença do
homem já era antiga no continente e a população da América do Sul para a
época é estimada entre 1 milhão e 5 milhões de pessoas, segundo diferentes
antropólogos e historiadores.
Seis principais troncos lingüísticos se misturavam no continente: tupi, numa
faixa central que parte da foz do Amazonas e se curva para leste na altura de
São Paulo e Santa Catarina; macro-jê, no centro e em trechos de São Paulo e
Nordeste; aruaque, a oeste e a norte, acima da Ilha de Marajó, caribe, centro
da Colômbia e norte de Amazonas e Pará, além de área isolada em Mato
Grosso; pano e ianoama, no oeste do Brasil e região andina próxima ao Acre;
e tucano e nhambiquara, em trechos dos atuais Amazonas, Venezuela e
Colômbia, além de pontos isolados no Peru e na Bolívia e no interior do Brasil
(Mato Grosso). (VER MAPA NO LIVRO INDIOS DO BRASIL, DE JULIO
CEZAR MELATTI, PÁGINAS 34 E 34A
.)
Segundo o falecido historiador norte-americano Warren Dean, em seu livro
A Ferro e Fogo - A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, as
duas grandes florestas brasileiras, a Amazônica e a Mata Atlântica,
começaram a se recompor da última era glacial e tomar as feições mais atuais
a partir de 12 mil anos atrás, quando já havia assentamentos humanos tanto na
Amazônia como no interior e no litoral do Brasil. Há 4 mil anos, o homem
passou a queimar áreas de mata densa, principalmente as de Mata Atlântica,
com o surgimento da agricultura de coivara, que consiste na queima de uma
área e em seu posterior plantio e abandono em troca de uma área adjacente, o
que estabeleceu complexas rotas de migração.
Na Amazônia, as rotas foram se estabelecendo ao longo dos rios, onde se
formaram complexas civilizações, antes mesmo dos incas. É o caso das
culturas de Santarém e Marajó e dezenas de outras, que elaboraram uma
complexa e requintadíssima cerâmica. Curiosamente, nem os cacicatos
amazônicos nem as grandes tribos pulverizadas como os tupis construíram
templos ou cidades permanentes. Na Amazônia, grandes áreas foram
terraplenadas e ocupadas por grupos de milhares de pessoas, mas tanto no
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norte como no centro e no sul do continente não foram criadas obras
perduráveis, como os monumentos incas, maias e astecas.
Os índios amazônicos, assim como os outros índios brasileiros, optaram
pelas construções de madeira e, no caso da Amazônia, pelo cultivo de raízes
como mandioca no começo do primeiro milênio antes de Cristo até substituí-la
pelo cultivo de milho, no começo da era Cristã, sempre em culturas
itinerantes, complementadas por caça e pesca. Curiosamente, depois do
contato com os europeus, a agricultura indígena retrocedeu para o cultivo de
mandioca, com relativo abandono do milho.
A pequena quantidade de monumentos arqueológicos e vestígios materiais
criou o mito de que os índios brasileiros teriam constituído civilizações
inferiores, crença desmentida pelas descobertas da arqueologia, que mostra
complexas civilizações ao longo dos rios Amazônicos que teriam estabelecido
grandes rotas inclusive de comércio com os Andes antes mesmo do
surgimento da sucessão de impérios andinos, como o dos incas, que já
estavam decadentes quando os europeus chegaram. O fato de terem existido
civilizações complexas no Brasil que não deixaram muitos vestígios materiais
levou antropólogos como o francês Pierre Clastres a propor que os índios das
terras baixas do continente sul-americano teriam criado formas de sociedade
com mecanismos que intencionalmente as impediam de criar Estados
centralizados.
Segundo Clastres, o mito tupi-guarani da terra sem mal, uma espécie de
messianismo que fazia surgir profetas a guiar migrações que dividiam as
grandes aldeias, teria um sentido preciso: a busca de uma terra sem mal, onde
tudo é proporcionado para o homem pela natureza sem nenhum esforço seria
uma recusa anarquista ao surgimento de um poder central e se basearia
basicamente na recusa ao trabalho, capaz de criar as relações sociais de quem
manda e de quem obedece.
Especulações à parte, sabe-se que essa pulverização em pequenas tribos que
guerreavam entre si e praticavam canibalismo ritual, devorando os guerreiros
derrotados de outras tribos foi uma regra de jogo importante para a
acomodação milenar dos povos de diversas origens migratórias que se
espalharam pelo Brasil.
Em geral havia chefes de aldeia, caciques, que no caso da Amazônia se
subordinavam a espécies de imperadores, cujo poder foi rapidamente
desestruturado com a chegada dos europeus, guias religiosos, os pajés, e
aldeias constituídas por famílias comandadas pelos pais, em geral, e, mais
raramente pelas mães (cacicatos matrilineares da Amazônia que teriam criado
entre os europeus o mito das mulheres guerreiras).
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A DESTRUIÇÃO DA MATA ATLANTICA
“Calcula-se que, de 4 mil anos para cá, quando os primeiros habitantes da
América do Sul começaram a agricultura de coivara, isto é, de queimadas, a
cada milênio, pelo menos 50% da Mata Atlântica que dominava o Brasil
tenham sido queimados e depois abandonados para renascerem como mato”,
diz Warren Dean, a respeito da imensa floresta que cobria boa parte do Brasil
quando os europeus chegaram. Os tupis teriam chegado à Mata Atlântica por
volta do ano mil “e intensificaram a agricultura, possivelmente tendo
queimado toda a floresta a cada 55 anos. Mas ela sempre renascia e assim foi
encontrada pelos primeiros portugueses. Aliás, um dos primeiros atos dos
descobridores, a 22 de abril de 1500, data da descoberta do Brasil pela frota
de Pedro Álvares Cabral, foi justamente derrubar uma árvore para fazer a cruz
da primeira missa.” Segundo Warren Dean, o europeu pareceu ser de início
menos prejudicial que os índios, pois, enquanto os desestruturava, deixou a
Mata Atlântica de lado por algum tempo, restringindo-se a coletar pau-brasil
no litoral e substituir a floresta por lavouras de açúcar no litoral até o século
18, quando avançou pelo interior por causa do ciclo do ouro, e os séculos 19 e
20, quando as ferrovias e a industrialização promoveram a destruição sem
precedentes da Mata Atlântica, hoje restrita a 5% de sua área original.
Warren Dean conta que a primeira conseqüência da chegada dos portugueses
foi o corte do pau-brasil, árvore da qual se extrai um corante usado em tecidos.
“Só em 1588 passaram 4.700 toneladas dessas árvores na Alfândega de
Lisboa, fora o volume contrabandeado tanto por portugueses como por outros
europeus. Em 1550 havia de uma vez só 100 mil troncos estocados na colônia
francesa do Rio de Janeiro. Durante o primeiro século devem ter sido cortados
dois milhões de troncos de pau-brasil, afetando 6 mil
quilômetros quadrados da Mata Atlântica.”
O brazilianista norte-americano também se refere aos desfalques entre os
animais da Mata Atlântica: “Apenas um navio, o Bretoa, levava em 1511 um
total de 23 periquitos, 16 felinos, 19 macacos, 15 papagaios; outro navio, o
Pélérine, em 1532, carregou 3 mil peles de ‘leopardos etc.’, 300 macacos e
600 papagaios. A partir de 1534 a mata passou a ser queimada e substituída
por lavouras de cana-de-açúcar e por pastagens para o gado trazido da
Europa.”
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TUPI: A LINGUA GERAL DO BRASIL
Segundo o historiador Hernâni Donato a primeira classificação dos índios
brasileiros foi feita pelos jesuítas, para quem os tapuias habitavam o interior e
os tupis o litoral do País. Uma classificação mais científica foi criada em 1884
por Karl von Steinen e perdura até hoje, dividindo os índios brasileiros em
quatro grupos principais tupi-guarani, jê (ou tapuia), maruaque (ou naipure) e
caribe (ou caraíba).
“Tupis e guararanis formavam um complexo de raça e de língua. Há uns 2
mil anos, eles deixaram a Cordilheira Oriental Colombiana, rumando para o
Sul e para o Leste”, diz Donato. “Os futuros guaranis desceram pelos vales
dos Rios Madeira e Guaporé. Os que viriam a ser os tupis, pelas praias do
oceano e os vales dos Rios Araguaia e Tocantins. Mil anos depois, tupis e
guaranis se reencontraram entre os rios Tietê e Paranapanema. Para se
estabelecer, expulsaram ou eliminaram populações pertencentes a culturas das
quais ignoramos praticamente tudo: os paleoíndios.”, explica o historiador.
“Conforme Alfred Metraux, a dispersão final dos tupis e guaranis teria
ocorrido a partir da Bacia do Prata, sentido Sul-Norte. Os tupis tomaram pé na
extensa área entre o Pará e o sul de São Paulo, preferindo o litoral. Pelo
Nordeste vagavam os tupis potiguares, tabajaras, caetés. A atual Bahia
acolheu tupiniquins e tupinambás. Do Espírito Santo ao Norte do Paraná
dominaram os tamoios. No planalto paulista mandaram os guaianases. Pelo
baixo Amazonas, os mundurucus e os parintintins conservaram-se ‘ilhas’ tupi
em meio a outros grupos. Na vastidão do seu domínio, os tupis conviveram,
ora bem, ora mal, com tribos estranhas: coroados, goitacás, puris. Aos
guaranis coube o chão que vai do Paraná ao Rio Grande do Sul, o Mato
Grosso do Sul e terras hoje da Argentina, da Bolívia e do Paraguai. Por aí
suportaram a vizinhança rixenta com os chiriguanos e outros.”
Donato fala também dos tapuias, que constituiriam o grupo jê: “Não sabemos
como eles se autodenominavam, pois a palavra ‘tapuia’ é da língua tupi,
significando ‘não-tupi’, ‘estrangeiro’, ‘bárbaro’. Jês foram os caiapós,
goitacás, cariris, aimorés, botocudos, suiás, bugres, coroados, apinajés.” Outro
grupo importante seria o dos aruaques e caribes ou caraíbas, vindos das
Antilhas e da América Central, que partilharam o vale amazônico e o planalto
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mato-grossense.: “Karib era o nome que se davam, traduzindo o orgulho de
serem considerados valentes, guerreiros e heróis.”
O historiador Julio Cezar Melatti assim explica que a língua tupi acabou
imposta pelos próprios europeus ao Brasil e se tornou uma espécie de língua
geral até ser proibida em xxxxx.(ver a data). No século 18, era uma língua
comum nas ruas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. “Não é raro
encontrar pessoas que acreditam que todos os índios do Brasil falam a língua
tupi. Essa idéia se seve a uma supervalorização da língua e dos índios tupis
diante dos demais indígenas brasileiros. Na verdade muitas outras línguas são
faladas pelos indígenas do Brasil. Mas a crença de que o tupi é a única ou
mais importante língua dos índios brasileiros tem uma explicação. É que os
conquistadores portugueses encontraram todo o litoral brasileiro ocupado por
índios entre os quais predominava uma língua tupi. Esta foi a primeira língua
nativa que os missionários aprenderam, a ela se afeiçoando e adotando uma
atitude de desdém para com as outras línguas, que não compreendiam,
chamando as tribos que as falavam de povos de ‘língua travada’. A língua tupi
foi não somente aprendida, mas também modificada pelos missionários, que
lhe impuseram uma gramática nos moldes do latim, sendo divulgada por eles,
de modo que populações indígenas de outras tradições lingüísticas chegaram a
aprender o tupi. Assim, por exemplo, missionários espanhóis impuseram o
guarani (a variante meridional do tupi) aos índios que habitavam o Paraguai e
que não o falavam, e até hoje o guarani é falado nesse pais ao lado do
espanhol. Dentro mesmo do Brasil,na região do Rio Negro, afluente do
Amazonas, os sertanejos falam a ‘língua geral’, resultado da evolução do
antigo tupi disciplinado pelos missionários. E os índios da região, que falam
diferentes línguas não-tupis, têm sido levados a aprender a ‘língua geral’ para
poderem comunicar-se com os sertanejos civilizados e entre si. (...) Por
incrível que pareça, muitos indígenas vieram a aprender a falar o tupi com os
civilizados.”
DESCOBRIMENTO: O GRANDE CHOQUE DE CULTURAS
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Comparada com a conquista espanhola, recheada de imediato de sangrentas
guerras com os índios, a conquista portuguesa pareceu mais amena, pois
receberam bem e foram bem-recebidos pelos portugueses que chegaram nas
caravelas, sendo carinhosamente elogiados na carta de Pero Vaz de Caminha.
Em pouco tempo, entretanto, a relação dos portugueses com os índios deixou
de ser cordial e os portugueses se aproveitaram das desavenças e do estado de
guerra entre as tribos brasileiras, constituinte de seu próprio equilíbrio, para
fazer alianças com umas tribos contra outras com a finalidade de conseguir
escravos para a agricultura de cana-de-açúcar, que se seguiu à fase de troca de
pau-brasil por quinquilharias européias. Alianças semelhantes foram feitas
com os índios por invasores franceses e holandeses, sempre resultando em
desastrosas matanças. Assim, de uma população estimada em 1 milhão a 5
milhões de habitantes na época do descobrimento, os índios brasileiros
estavam reduzidos a cerca de 200 mil indivíduos nos anos 70, número que
passou a crescer a partir de então, mas que mostra um verdadeiro massacre.
“Durante quase cinco séculos, os índios foram pensados como seres efêmeros,
em transição: transição para a cristandade, a civilização a assimilação, o
desaparecimento. Hoje se sabe que as sociedades indígenas são parte de nosso
futuro e não só de nosso passado. A nossa história comum foi um rosário de
iniqüidades cometidas contra elas. Resta esperar que as relações que com elas
se restabeleçam a partir de agora sejam mais justas: talvez o sexto centenário
do descobrimento da América tenha algo a celebrar”, diz a antropóloga
Manuela Carneiro da Cunha, na apresentação do importante levantamento que
organizou para a obra História dos Índios no Brasil.
Os conflitos entre índios e portugueses foram expressos por um velho índio
tupinambá do Maranhão por volta de 1610, que teria feito o seguinte discurso
aos franceses que ensaiavam estabelecer uma nova colônia e queriam alianças
com os índios, contra os portugueses: “Eu vi a chegada dos peró (portugueses)
em Pernambuco e Potiú; e começaram eles como vós, franceses, fazeis agora.
De início, os peró não faziam senão traficar, sem pretenderem fixar residência.
(...) Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam
construir fortalezas, para se defenderem, e cidades, para morarem conosco.
(...) Mais tarde, afirmaram que nem eles nem os pai (padres) podiam viver
sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. Mas, não satisfeitos
com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos
e acabaram escravizando toda a nação. (...) Assim aconteceu com os franceses.
Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizeste somente para traficar. (...)
Nessa época não faláveis em aqui vos fixar; apenas vos contentáveis com
visitar-nos uma vez por ano. (...) Regressáveis então ao vosso país, levando
nossos gêneros para trocá-los com aquilo de que carecíamos. Agora já nos
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falais em vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-nos
contra nossos inimigos. Para isso, trouxestes um morubixaba e vários pai. Em
verdade, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o mesmo. (...) Como estes,
vós não queríeis escravos, a princípio; agora os pedis e os quereis como eles
no fim.” (Claude Abbeville)
RECEPÇÃO CORDIAL, NA CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA
O historiador Luis da Câmara Cascudo, em sua História da Alimentação no
Brasil, assim nos apresenta os índios segundo a Carta de Pero Vaz de
Caminha:
“O primeiro depoimento sobre a alimentação indígena é a carta de Pero Vaz
de Caminha datada ‘deste Porto Seguro da vossa ilha de Vera Cruz, hoje,
sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.’
“Sabemos a data do primeiro contato dos brasileiros baianos com a comida
européia, sexta-feira, 24 de abril. Dois tupiniquins são levados à nau capitânea
e recebidos com aparato. O capitão (Pedro Álvares Cabral) sentado em
cadeira, bem-vestido, colar de ouro ‘mui grande ao pescoço’, alcatifa por
estrado aos pés. Os comandantes acomodados no chão, Sancho de Tovar,
Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia e o cronista, de pernas
cruzadas como mouros. Tochas acesas. Não fizeram os visitantes sinal de
cortesia ao capitão nem aos demais. Reconheceram um papagaio pardo como
familiar. Não fizeram caso de um carneiro, o primeiro que viam. Quase
tiveram medo de uma galinha ‘não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram
como que espantados’.
“Deram-lhes ali de comer; ´pão e peixe cozido, confeito, fartes, mel e figos
passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; se alguma coisa
provavam, logo a lançavam fora’.
“Primeira prova de vinho de Portugal. ‘Trouxeram-lhes vinho numa taça;
mal lhe puseram a boca, não gostaram nada, nem quiseram mais.’
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Desconfiados com a própria água. ‘Trouxeram-lhes água em uma albarrada.
Não beberam. Mal a tocaram com a boca, que lavavam, e logo a lançaram
fora.’
“Pão de trigo, vinho de uvas, massa d’ovos, taça de vidro, os condimentos do
peixe cozido eram revelações. O mel seria de abelhas. Ou açúcar da Madeira.
“Na tarde de 25 de abril os amerabas de Porto Seguro vêem uma grande rede
de arrasto, tradicional na pesca marítima portuguesa, o chinchorro que varria,
lento os peixes do alto: - ‘E pescaram ali andando marinheiros com um
chinchorro; e mataram pescado miúdo não muito.’
“Vêem os portugueses a primeira piperi, igapeba, batizada depois jangada,
então falsamente chamada almadia. Havia camarão, deparado no domingo da
Pascoela, 26,.’Alguns foram buscar marisco e apenas acharam alguns
camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e
muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho, e também acharam cascas
de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.’
Bartolomeu Dias, descobridor do Cabo da Boa Esperança, o finisterra
africano, matou um tubarão, ‘lhes levou e lançou na praia’.
“O camarão grande o grosso podia ser um pitu (Bithynis acanthurus). O
depósito de ostras partidas anunciava o sambaqui. Possivelmente na foz do
rio. Visitam os portugueses uma maloca, a primeira oca brasiliense, ‘tão
comprida cada uma como esta nau capitânea’ e ‘dentro muitos esteios; e, de
esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo,
para se aquentarem, faziam seus fogos’. Batismo da ini e quisaunas com o
nome lusitano de ‘rede’, cama tropical que se espalharia pelo mundo.
“Primeira informação sobre o cardápio local: ‘Dizem que em cada casa se
recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes
davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e
outras sementes, que na terra há e eles comem’.
“Não cita bebida alguma.
“Na quarta-feira, 29 de abril, Sancho de Tovar trouxe para bordo ‘dois
mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar
e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram’. E dormiram em cama de
lençóis.
“Na sexta-feira, 24, agasalhados pelo almirante, ‘não quiseram comer quase
nada daquilo; e, se alguma coisa provavam, logo a lançavam fora’. Cinco dias
depois, comeram toda a vianda que lhes deram’. Os adubos portugueses
acidulavam o quieto paladar ameraba.
“No outro dia, pela manhã, 30 de abril, os dois tupiniquins sentam-se nas
cadeiras européias e servem-se com toalhas: ‘Poseram-lhes toalhas, e veio-
lhes vianda e de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente o
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lacão cozido frio, arroz; não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que
o não bebiam bem.’
“Mas iam se habituando com o vinho. Era a primeira bebida que a Europa
lhes oferecia em taça de cristal no camarim das caravelas aventureiras,
rumando o Oriente. Caminha, no mesmo dia, escrevia: ‘Comiam conosco do
que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber.
Mas parece-me que, se lhe avezarem, o beberão com boa vontade.’
“Falava como um profeta.
“A economia doméstica é registrada: ‘Eles não lavram, nem criam. Não há
aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer
alimária, que acostumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse
inhame, que aqui há muito, e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores
de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos
nós tanto, com quanto trigo e legume comemos.’
“Não era possível mais notório elogio do regime nutricionista do tupiniquim.
Não assistem a cozinha indígena, a cunhã fazendo comida para os homens da
tribo talqualmente a mulher portuguesa para o homem. Não foram esses vistos
trabalhando, colhendo, plantando, mas dançando, folgando, permutando,
ajudando aguada, imitando cerimonial litúrgico, mastigando a vianda de
Portugal dentro das naus balouçantes.
“Devem comer crustáceos, ostras que são deparadas já fendidas, moluscos,
peixe e carne. Os arcos garantem a caça e os marinheiros notam aves, algumas
maiores que as comuns, em Portugal. Não aludem aos condimentos, sabor
insosso ou salgado, cru, assado ou cozido na alimentação normal dos
tupiniquins acolhedores. Estes, bem ardilosamente, evitam a permanência,
demora e dormida nas suas casas de folhagens, rama verde e palmas
ornamentais, ‘mui grandes, como entre Douro e Minho’.
“Caminha, homem do Porto, observador, letrado, compreensivo, achava-os
bestiais, sinônimo de bestas, de ação espontânea, instintiva, natural em sua
legitimidade mental, e não no plano da ferocidade depois revelada em defesa
indispensável e heróica, ‘... do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por
isso tão esquiva’. Há a louvação ecológica. ‘Porém e com tudo isto andam
muito bem curados e muito limpos E naquilo me parece ainda que são como
aves ou alimária montesas, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que
às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que
não pode mais ser. Isto me faz presumir que não têm casas, nem moradas a
que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais’. Montaigne falaria, sessenta
anos depois, da mesma feição. Por que não reivindicar para Pero Vaz de
Caminha a prioridade exaltativa do ‘homem da natureza?’
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“O tupiniquim de Porto Seguro, numa convivência de sete dias, bebeu vinho
de uvas; comeu lacão, presunto fumado e depois cozido; pão de trigo; passas
de figos; confeito de açúcar, fartes, massa doce envolta em capa folhada, com
farinha de trigo, ovos água, açúcar; fartem, guloseima da Beira e o Almirante
era beirão. ‘Tamanhos como fartens da Beira’, diria Fernão Soropita. O peixe
cozinhado teria um sabor diverso das obras-primas da cunhã, atarefada e
nativa. Revelava um índice de assimilação dietética mais acentuada que o
africano ocidental ou o árabe da orla mediterrânea, defendendo mais
teimosamente o tradicionalismo do paladar. Seria essa obstinação alimentar
semita e negra a razão de sua pouca irradiação na geografia da nutrição. O
africano esteve muito mais espalhado e penetrante no Brasil que o indígena.
Mais fixo, mais contínuo, mais participante da vida brasileira nascente. O
mameluco não conservava predileções do ancestral ameraba e sim do pai
lusitano. O negro escravo, daria entretanto, menor contribuição à dieta
nacional e popular que o furtivo indígena, já em meados do século 18 isolado
em via de dispersão étnica nas regiões de maior densidade demográfica. A
comida indígena permaneceu mais fiel aos modelos quinhentistas. Aos
padrões da própria elaboração das farinhas, assados de carne e peixe, bebidas
e frutas. O brasileiro aprendeu uma altíssima percentagem, mas o indígena,
ainda existente, não se diluiu na irradiação influencial. ‘Não se dissolveu na
aculturação como a ciência negra da culinária, dificilmente legítima,
raramente autêntica.’
“Dessa estada na Ilha de Vera Cruz a informação culinária ameríndia é parca
e fugaz. Caminha vira a piperi, iapeba, futura jangada, que ele entendeu,
inexplicavelmente, dizer ‘almadia’, diversíssima; a ini, quisaua, maquira,
maca, batizada pelo nome que ficaria somente no Brasil, rede, rede de dormir,
na semelhança pelas malhas como a de pesca. Elementos decisivos na
parafernália brasiliense.
“Não teve a curiosidade de perguntar o nome de nenhum objeto local no
idioma tupiniquim. Todas as coisas têm títulos portugueses.
“Verdade é que, bem curiosamente, o tupiniquim comeu muito mais do que
presenteou ou permutou. Exceto o inhame e o palmito, nenhuma outra iguaria
brasileira mereceu registro para os olhos portugueses no derradeiro ano do
século 15.”
(Luis da Camara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, volume 1,
páginas 84 a 88)
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LÍNGUAS INDÍGENAS
Estima-se que as línguas indígenas ainda hoje existentes, umas 150, sejam
metade ou menos da metade das que existiam na época do descobrimento. A
maioria das línguas indígenas que morreram desapareceu sem deixar vestígios
de muitas dezenas de culturas humanas que floresceram nos campos e
florestas do Brasil. Dados da década de 1990 davam conta que pelo menos 16
línguas indígenas eram faladas por menos de 50 pessoas, correndo risco de
desaparecer, enquanto 80 línguas eram faladas por grupos entre 50 e mil
pessoas e apenas 17 tinham mais de mil falantes. Três dessas línguas, o
guarani, o terena e o tukuna eram faladas por cerca de 5 mil pessoas.
Os primeiros estudos das línguas ameríndias foram feitos pelos jesuítas. Já
em 1595 o padre José de Anchieta fez a primeira gramática do tupinambá,
apresentando análise detalhada da língua. Outra gramática surgiria em 1621,
escrita pelo padre Luís Figueira.
Dessa época, relata o filólogo Antonio Houaiss, “o único documento deixado
por um índio são algumas cartas escritas por Felipe Camarão, conservadas na
Holanda e ainda inéditas”. Houaiss também conta que o guarani do século 17
foi documentado pelo padre peruano Antonio Ruiz de Montoya. “No século
18, a documentação é devida principalmente ao jesuíta italiano Paulo
Restivo.”
Houaiss conta que “outas línguas foram ainda registradas no período
colonial, como o kariri, que se conservou em dois dialetos, o kipeá ou kiriri de
Jeru. No princípio do século 19, a documentação das língus ameríndias foi
incrementada pelos naturalistas estrangeiros no Brasil, que procuraram
colecioná-la como faziam com amostras da fauna e da flora. O mais
importante deles foi o botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius,
que, com o zoólogo Johann Baptist von Spix, coletou vocábulos de cerca de
cinqüenta línguas ameríndias, publicados, juntamente com registros de outros
pesquisadores, na obra intitulada em latim: Glossaria Linguarum
Brasiliensium (1867; Glossários das Línguas Brasilienses).” (Enciclopédia
Mirador, subverbete Línguas Ameríndias)
CULINÁRIA INDIGENA
O gourmet e historiador da alimentação Caloca Fernandes, que em seu livro
Viagem Gastronômica através do Brasil conferiu as raízes dos hábitos
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culinários brasileiros em centenas de localidades nos quatro cantos do País,
comprova que a herança indígena da farinha de mandioca, que na carta de
Cabral foi chamada de inhame, permanece até hoje. “Na Amazônia e nas baías
da costa brasileira ecologicamente a ela similares, como a de São Luís, Todos
os Santos, a de Vitória, a da Guanabara, a de Angra dos Reis, a de Cananéia, a
de Paranaguá e as ilhas de Santa Catarina, agrupavam-se grandes contingentes
populacionais, com a alimentação básica suprida pela mandioca, planta
especializada em produzir sete toneladas de amido, por hectare, por ano, em
solos tropicais e sem maiores trabalhos, e pelo peixe de suas piscosas águas, o
que ocorre até hoje. E havia comida para todos, por três anos consecutivos,
garantidos pelos mandiocais um em plantio, outro em crescimento e outro em
produção, determinando uma economia auto-suficiente, que congelou o modo
de vida dessas populações, a uma data equivalente a 5.000 aC.
“A agricultura de mandioca, uma verdadeira horticultura, tem mais ou menos
dez mil anos de especialização e tecnologia de processamento, pois é um
vegetal extremamente venenoso, e durante esse tempo desenvolveram-se
centenas de variedades, cada qual com uma finalidade determinada: as doces,
não-venenosas, as macaxeiras, do Norte, ou aipins, do Rio de Janeiro, comidas
cozidas, como farinha branca e em bolos, e as amargas, bravas, as mandiocas
propriamente ditas, mortais, pois necessitam de preparo, para evaporar o
terrível ácido cianídrico que possuem, embora sejam mais ricas em amido. (...)
“Os diferentes produtos retirados, depois de raladas e espremidas,
originavam os alimentos básicos das primitivas populações brasileiras. Do
líquido venenoso, resultante do prensamento, no tipiti, fermentado ao sol e
fervido longamente, obtinha-se a manicuera ou o tucupi, usados no caxiri, ou
como caldo, com batata-doce, cará-roxo ou branco ou frutas, carnes e peixes,
com ou sem pimenta, e no nosso tacacá.
“Da massa prensada faziam-se os beijus comuns assados no forno de argila,
semelhantes aos pães ázimos, os de mandioca fresca, os de mandioca puba, o
beiju com goma ou tapioca, os beijus cicas bem torradinhos e o pé-de-
moleque. Do amido puro decantado no tucupi, fazia a goma ou polvilho, para
as tapioquinhas e o tacacá, e as farinhas de tapioca, para mingaus. Da massa
com tucupi, o arubé, um molho apetitoso. Da massa torrada e esfarelada, as
farinhas de todas as cores, secas e d’água, finas e grossas, para serem
degustadas e não mastigadas, outrora usada apenas nos tempos de guerra,
como ração fácil de carregar, que misturada com água e piracuí transforma-se
num pirão rápido e alimentício.
“Também quando se mudavam de lugar, pelo cansaço das terras, ou pela
proximidade dos inimigos, todo mandiocal era transformado em farinha, o que
ocorreu maciçamente com a chegada dos portugueses, sendo então o único
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alimento encontrado em quantidade, tornando-se a partir dessa época, um
mantimento comum entre os neobrasileiros e os índios. Essa farinha dos
guerreiros é a matéria-prima, a origem das saborosas farofas, dos gostosos
pirões, dos beijus cicas e dos simplórios xibés, neste último caso misturada a
água pura, com ou sem pedaços de peixe, e daí a jacuúba, quando chegaram os
limões, até os caldos de caridade, para os doentes.” (Caloca Fernandes,
Viagem Gastronômica através do Brasil)
Caloca conta que os costume que os índios tinham de consumir os peixes
moqueados, isto é, assados e defumados numa trempe de madeira, o moquém,
“difundiu-se entre os piratas, em geral franceses, que passaram a chamar o
moquém de bouquen e, pela facilidade, adotaram-no nas praias onde
desembarcaram, sendo então conhecidos por bucaniers ou bucaneiros. Um
pouco mais torrado, o peixe era pilado e transformado em outra ração de
grande durabilidade: o piracuí. Com os peixes ou o piracuí cozidos na pimenta
faziam a quinhapira, alimento comum em cujo caldo eram molhados os beijus
e, se nela acrescentavam folhas de mandioca, as manivas, transformava-se na
maniçoba, hoje um prato totalmente sincretizado. (...) Da carne de caça pilada
com farinha produziam-se as paçocas. Na Amazônia comiam-se ainda
lagartos, cobras, jacarés e todos os tipos de quelônios e seus ovos, preparados
de formas diversas. Outra fonte protéica eram os insetos: cupins amarelos
vivos ou assados, tanajuras cruas com farinha ou sob a forma torrada de
paçoca, besouros e gafanhotos tostados, larvas de cabas e os tapurus dos
troncos podres.”
Os índios não usavam sal, mas temperavam sua comida com muitos tipos de
pimenta, e como substituto do sal, algumas tribos usavam cinzas de aguapé,
uma planta aquática, ricas em sódio. Os índios amazônicos chegaram a
substituir as culturas de mandioca pelas de milho, antes da chegada dos
europeus, mas voltaram ao cultivo da mandioca depois da conquista européia
e foram abandonando o milho. Câmara Cascudo conta que o uso do milho e da
mandioca se estendeu pela África, onde acabou substituindo o inhame
conhecido dos portugueses, uma planta de folhas grandes como os antúrios e
batata redonda, que até o século 16 era a dieta básica de muitos povos
africanos. Se alguns itens da dieta dos índios, como comer macacos e insetos,
pareceu estranha a muitos portugueses, a dieta portuguesa da época também
causaria estranheza nos nossos tempos, com doces feitos de carne de frango
como o manjar-branco, por exemplo.
Em centenas de viagens pelo Brasil, Caloca reuniu receitas que remontam ao
Brasil-Colônia, como os fartes de Sobral, no Ceará, que já são uma adaptação
colonial dos fartes feitos na cozinha das caravelas, que tinham amêndoas,
açúcar, farinha de trigo e pimenta-do-reino cozida. A farinha de trigo foi
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substituída pela de mandioca indígena e o sabor possivelmente melhorou nos
trópicos. Também seguem a mesma linha adaptativa aos paladares europeu e
ameríndio as receitas de farnéis para viagem e de bundinhas de içás fritos, que
Caloca recolheu nas mais remotas cidadezinhas.
RECEITAS PORTUGUESAS DO TEMPO DO DESCOBRIMENTO
Farnel
6 porções
Nas suas entradas pelo sertão, bandeirantes e depois os tropeiros levavam um
farnel que consistia basicamente em farinha, pedaços de frango guisado ou
feijão cozido e ovos cozidos duros, tudo amarrado num guardanapo grande,
como eram os guardanapos de então. Ao abrir o guardanapo, para o repasto,
farinha e demais ingredientes estavam todos revirados, virados, transformados
no que viria a ser, muito possivelmente a origem dos atuais virados ou
cuscuzes paulistas. Em algumas fazendas de tradição, o farnel continua a ser
apreciado como prato histórico que é, apresentado com requintado respeito,
num impecável guardanapo de linho adamascado branco, aberto à mesa na
frente dos convidados. Nesta receita, apresentamos o farnel, como ainda é
servido nos dias de hoje na Fazenda São Francisco, em Morungaba, interior de
São Paulo.
Ingredientes:
1 frango (cerca de 1,8 kg) limpo, sem pele e cortado pelas juntas
2 colheres (sopa) de azeite de oliveira
4 dentes de alho amassados
2 cebolas médias bem picadas
6 tomates sem sementes picados
1 colher (sopa) de extrato de tomate
1 folha de louro
sal e pimenta a gosto
1 colher (chá) de cúrcuma (açafrão da terra) em pó
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1 xícara (chá) de cheiro-verde (salsa e cebolinha) picado
½ xícara de azeitona verde picada
4 ovos cozidos picados
3 pedaços de lingüiça de carne de porco fresca (250 g) fritos e picados
2 xícaras (chá) de farinha de milho em flocos
1. Numa panela aquecida, junte o óleo, ou o azeite, e os pedaços de
frango, mexendo até dourar levemente.
2. Acrescente o tomate, o extrato, o louro, sal e pimenta a gosto, a
cúrcuma e água suficiente para cobrir
3. Leve ao fogo até ferver, tampe a panela e deixe cozinhar até a carne
ficar macia e obter um molho denso. Tire do fogo, elimine os ossos e
separe a carne em pedaços grossos. Junte a carne ao molho. Leve
novamente ao fogo, acrescente o cheiro-verde, as azeitonas, os ovos e a
lingüiça, mexendo até ferver. Adicione a farinha, aos poucos, mexendo
sempre, até ficar espesso e bem úmido (como cuscuz).
4. Ponha no meio de um guardanapo grande de linho engomado, amarre as
quatro pontas, coloque num prato de servir. O guardanapo deverá ser
desamarrado apenas quando todos os convidados estiverem à mesa,
para que todos possam ser surpreendidos pelo aroma extraordinário que,
nessa altura, se desprende dele.
Farofa de içás
4 porções
Ingredientes:
4 xicaras de içás
2 colheres (sopa) de sal
2 colheres (sopa) de banha ou 3 colheres de óleo
2 xícaras de farinha de mandioca
1. Limpam-se as içás tirando as perninhas, as cabeças, as asas se ainda
restarem algumas. Apenas os abdomes, ou melhor, as bundinhas, são
aproveitadas.
2. Ponha as bundinhas das içás numa tigela, cubra com água e sal e dexie
de molho de 30 a 40 minutos.
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3. Escorra bem. Numa panela de fundo reforçado ou de ferro derreta a
banha em fogo forte e acrescente as içás, mexendo sempre até torrarem.
Junte a farinha de mandioca, aos poucos, e continue mexendo bastante
para não queimar. Acompanhe, se quiser, com café forte.
Fartes de Sobral
60 fartes
Massa:
3 xícaras (chá) de farinha de mandioca
2 colheres (sopa) de manteiga
1 pitada de sal
1 e ½ xícara de água morna
Recheio:
½ kg de açúcar
2 xícaras (chá) de água
leite grosso de um coco
½ kg de farinha de mandioca
250 g de castanhas de caju, moídas
1 colher (sopa) de manteiga
gengibre ralado, a gosto
leite de 1 coco grande
manteiga, para untar
farinha de trigo, para enfarinhar
2 gemas batidas, para pincelar
açúcar cristal, para polvilhar
1. Prepare a massa pondo a farinha numa tigela. Junte a manteiga, o sal e
acrescente água, aos poucos, até obter uma massa que se solte das mãos.
Embrulhe em filme plástico e deixe descansar enquanto prepara o
recheio.
2. Numa panela média, ponha o açúcar e a água e leve ao fogo, mexendo
até o açúcar se dissolver. Pare de mexer e deixe ferver até obter uma
calda em ponto de pasta.
3. Tire a panela do fogo, e introduza o leite de coco, a farinha, as
castanhas de caju, a manteiga e o gengibre ralado. Leve de volta a
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panela ao fogo brando, mexendo sempre, até a colher, ao abrir caminho
pelo creme, deixar um rastro no fundo da panela.
4. Prepare as assadeiras: unte-as com manteiga e polvilhe com farinha de
trigo.
5. Numa superfície enfarinhada, abra a massa reservada com um rolo, aos
poucos e recorte círculos com cerca de 10 cm de diâmetro (use um pires
de café). Ponha uma pequena porção do creme já completamente frio
sobre cada círculo, dobre a massa sobre o creme e cole as beiradas da
massa com uma pincelada de gemas. À medida que forem ficando
prontos, distribua os pasteizinhos nas assadeiras preparadas.
6. Leve ao forno preaquecido em temperatura quente (200 ºC) até
dourarem levemente (cerca de 15 minutos). Tire do forno e polvilhe-os
com açúcar cristal. Sirva-os depois de frios
“Além desta receita dos fartes de Sobral”, escreveu Caloca Fernandes, “há
uma outra, listada por Divina Maria de Oliveira Pelles no seu livro Antiga e
Moderna Cozinha Goiana, constando como uma das mais antigas da cidade de
Goiás Velho, cuja massa é preparada com um angu feito de raspa – como os
goianos chamam a mandioca mansa (aipim) ralada -, água e sal. O recheio é
feito de melado de rapadura, farinha de mandioca e pimenta-do-reino, única
especiaria herdada dos fartes desembarcados em 1500. A mandioca e a
rapadura aparecem já adaptando esses doces ibéricos às terras brasileiras cujo
preparo, segundo a autora, nos foi legado pelas escravas cozinheiras.”
Fonte: Caloca Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, paginas
186, 189 e 29.
MANJAR BRANCO DE FRANGO
Luis da Câmara Cascudo, o grande etnógrafo e folclorista potiguar, também
pesquisou as comidas portuguesas trazidas pelos descobridores, que foram
sendo adaptadas às matérias-primas e receitas indígenas locais. Um doce
português comum na época, mas que acabou esquecido na sua forma original
é o manjar-branco, do qual nas receitas atuais só resta o nome. O manjar-
branco original era, segundo Câmara Cascudo, um doce feito à base de carne
de frango. Eis a receita original do manjar-branco, descrita por Câmara
Cascudo, em seu livro A História da Alimentação no Brasil:
“Coze-se uma galinha e, depois de bem cozida, tira-se para um prato onde se
deixa arrefecer. Estando fria, extrai-se-lhe toda a carne do peito, sem a pele, e
esta carne desfia-se à mão o mais completamente possível.
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“Feito isto, em um tacho bem limpo, deita-se um litro de leite e, no leite, a
carne desfeita da galinha. Mexe-se bem para a mistura ficar perfeita e, depois,
reúne-se-lhe um quilo de açúcar refinado, e 320 gramas de farinha de arroz.
“Mexe-se bem, e leva-se ao lume onde se põe a cozer. Enquanto vai
cozendo, deita-se no tacho, pouco a pouco, um litro de leite, onde se dissolveu
meio quilo de açúcar refinado.
“Assim que tudo estiver cozido, o que se conhece quando, metendo no
preparado a ponta da faca, esta despegar lisa, deita-se-lhe uma pouca de água-
flor, dá-se-lhe uma mexedela, e tira-se do fogo, deitando-se o doce em
pequenos pires, ou em uma travessa grande, para, depois de frio, se cortar em
pedaços.
“Nos dias de jejum os frades substituíam o peito de galinha por qualquer
peixe cozido, cuja massa, depois de bem triturada, se passava pela peneira
para ir isenta de peles e espinhas.
“Esta é a verdadeira receita do manjar-branco. No Porto usavam em lugar da
galinha deitar-lhe amêndoa, e neste caso será bastante 150 gramas.”
Fonte: Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou – Doçaria Portuguesa,
História, Decoração, Receituário, Imprensa da Universidade de Coimbra,
1928, citado por Luis da Câmara Cascudo, História da Alimentação no
Brasil, volume 1, página 346
CAUIM, BEBIDA ALCOÓLICA FEITA DE MANDIOCA
“As raízes de aipim e mandioca, que servem de principal alimento aos
selvagens, são também utilizadas no preparo de sua bebida usual. Depois de as
cortarem em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres as
fervem em grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-
nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito isso, acocoram-se em torno das
vasilhas e mastigam as rodelas, jogando-as depois em outra vasilha, em vez de
as engolir, para uma nova fervura, mexendo-as com um pau até que esteja
tudo muito bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar
em vãos de barro de capacidade igual a uma meia pipa de vinho de Borgonha.
Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para
o uso. (...) Os selvagens chamam a essa bebida cauim, é turva e espessa como
borra e tem como que o gosto do leite azedo. Há cauim branco e tinto, tal qual
o vinho.” A mastigação da mandioca pelas mulheres é o segredo desta bebida
fermentada, pois fornece os microrganismos que dão à bebida o seu teor
alcoólico e sabor de leite azedo.
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(Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, 1556-1558)
CANIBALISMO: UM CHOQUE
PARA OS EUROPEUS
Embora tenham sido amigáveis com os portugueses das caravelas de Pedro
Álvares Cabral, os tupinambás e a maioria das outras tribos que habitavam o
Brasil tinham costumes completamente diferentes dos europeus: além da
crença em outros deuses e principalmente espíritos da natureza, os índios
tinham vida sexual livre e intensa e praticavam constantemente a guerra e o
canibalismo. Os índios não tinham ideais humanistas, de respeito aos direitos
humanos, como hoje os concebemos, mas os europeus da época também não
os tinham, pois estavam divididos entre ideais cristãos de catequizar os índios
e o interesse de aprisioná-los como escravos, o que acabou acontecendo.
Jesuítas como Nóbrega e Anchieta deploraram os costumes sexuais dos índios
em diversas cartas.
As índias em geral não casavam virgens, porque a virgindade não era
valorizada nesses povos. O próprio pai ou a mãe as ofereciam a filha a amigos
para que lhes tirassem a virgindade quando chegava a adolescência. Em geral
o homossexualismo era tolerado tanto entre homens como entre mulheres.
Para poder casar, um índio tupinambá, do tronco tupi, precisava ter matado
pelo menos um inimigo, que teria de ser comido ritualmente por sua tribo.
Esse sistema de valores que imperava na América na época da chegada dos
europeus acabou sofrendo uma brusca interrupção. A condenação européia do
canibalismo logo cortou a espinha dorsal das culturas indígenas, baseadas em
pequenos cacicatos com status de Estados que permanentemente guerreavam
entre si e se entredevoravam. Esse estado lúdico de guerra mantinha o controle
populacional e servia para evitar aquilo que Pierre Clastres chamava de “o
fortalecimento dos Estados”.
Festas rituais em que seres humanos eram devorados eram comuns no
continente americano e ocorriam também entre os grandes Estados incas,
maias e astecas. Só pela proibição da antropofagia, os índios que conhecemos
hoje mostram valores muito diferentes dos que existiam no Brasil na época da
chegada dos europeus.
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Como já relatara Hans Staden num livro que fez sucesso na Europa
em ........, os prisioneiros de guerra eram bem-tratados e engordados e podiam
até desposar mulheres da tribo, se quisessem, até que seu ritual de sacrifício
fosse marcado, o que costumava demorar meses. Chegado o dia, a tribo fazia
uma festa, o inimigo era sacrificado em meio a um ritual de que participava
solenemente, em seguida esquartejado e sua carne servida assada em moquém
(defumada sobre estrado de madeira). Segundo os próprios índios, o
canibalismo era o cumprimento de uma vingança contra os espíritos dos
antepassados inimigos (que consta nos mitos tupis-guaranis) ou um ato de
reverência aos antepassados (como está nos mitos jês).
O sociólogo Florestan Fernandes descreve detalhadamente o ritual de
canibalismo dos tupinambás (tronco tupi):
“Antes de iniciarem os últimos ritos preparatórios do sacrifício, o matador
(aquele que aprisionou o inimigo) retirava-se, acompanhado de 13 ou 14
guerreiros para sua maloca. Pintava-se então com tinturas extraídas de certas
raízes, ficando de cor plúmbea. Ornamentava-se o mais ricamente que podia e
quando a provisão de projéteis do prisioneiro se esgotava, saía imponente da
maloca, ‘ricamente enfeitado com lindas plumas, barrete e outros adornos; e
armado de um enorme tacape’. Na cabeça ostentava uma carapuça de penas
amarelas e um diadema; nos braços e nas pernas, usava manilhas do mesmo
tipo de penas. Sobraçava grandes ramais de contas brancas, tendo ainda um
‘rabo de penas de ema nas ancas’. O tacape também era ricamente
ornamentado. Saía de uma maloca acompanhado de um cortejo, constituído
por um grupo de parentes e amigos. Estes o acompanhavam, com cantos e
músicas comemorativas. O matador tornava-se a pessoa central dos
acontecimentos atingindo com isso a honra ‘maior que pode ser’ – ‘pois já
chegou a ganhar tamanha honra, como é vingar a morte de seus antepassados e
de seus irmãos e parentes’. Quando chegava ao local do sacrifício, já
encontrava o prisioneiro completamente preparado e recebia o tacape das
mãos de um ancião. Este personagem é descrito por Cardim como sendo o
‘honrado padrinho do novo cavaleiro’. O ‘padrinho’ tomava-lhe o ibirapema,
passando-lhe a arma ‘muitas vezes por entre as pernas, metendo-a ora por uma
parte, ora por outra da própria maneira que os cachorrinhos dos sanfoneiros,
passando-lhe por entre as pernas, e depois tomando-a pelo meio com ambas as
mãos aponta com uma estocada aos olhos do morto, e isto feito lhe vira a
cabeça para cima da maneira que dela hão de usar, e a mete nas mãos do
matador. Nesta fase do ritual, tanto o matador quanto a arma estavam
completamente preparados para o sacrifício. Então, o matador volteava diante
do prisioneiro, ameaçando-o com o tacape e travando com ele um rápido
diálogo. Dizia-lhe o matador que ali se encontrava para o matar. O prisioneiro
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respondia no mesmo tom ‘com mil roncarias’. Segundo Lery, o diálogo
travava-se da seguinte forma:
“Matador – ‘Não és tu da nação dos maracajás, que é nossa inimiga? Não
tens morto aos nossos pais e amigos?’
“Prisioneiro – ‘Sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos.’ O
prisioneiro levava as mãos à cabeça e exclamava: ‘Eu não estou fingindo, fui
mesmo valente e assaltei e venci os vossos pais e comi.’
“Matador – ‘Agora estás em nosso poder e serás morto por mim e moqueado
e devorado por todos.’
“Prisioneiro – ‘Meus parentes me vingarão.’
“O prisioneiro observava atentamente os movimentos do matador e dos dois
homens que seguravam as pontas da corda por meio da qual estava amarrado.
(...) Graças ao auxílio dos guerreiros que seguravam as pontas da corda,
imobilizando de certa forma o prisioneiro, o matador podia em certo momento
aplicar o golpe fatal. Com uma ou duas marretadas atrás da orelha e um golpe
brusco na caixa craniana, fazia saltar os miolos da vítima.”
Florestan Fernandes explica que até a maneira como o morto caía era
analisada pela tribo. “Se caía de costas, o prognóstico tornava-se desfavorável
para o matador, que logo haveria de morrer. Se tombava de bruços, encaravam
os indícios como favoráveis ao matador.”
Antes e durante a cerimônia, os índios embriagam-se de cauim, bebida feita
de mandioca fermentada que é mastigada pelas mulheres da aldeia. O matador
do índio inimigo não come a sua carne. Limita-se a matá-lo, cumprir o ritual
que lhe permite mudar de nome, e aí volta para sua maloca. A cada homem
que matar o índio vai mudando de nome, mas as festas não são tão solenes
como a primeira, que também o prepara para o casamento
. O sociólogo explica que, “quando um tupinambá sacrificava um inimigo, as
cerimônias comemorativas prolongavam-se ‘por espaço de dois a três anos’.
Consumada a execução, o matador tirava a capa de penas e largava o
ibirapema, encaminhando-se para a sua maloca. O que servira de ‘padrinho’
aguardava-o à entrada da maloca, com seu arco aplicado verticalmente sobre a
porta, de modo que uma das pontas do arco repousava na soleira e a outra
batia no batente. Distendia a corda na forma habitual de tiro, deixando
portanto um espaço livre, suficientemente largo para ser atravessado por um
homem. O matador passa por dentro tão sutilmente que não toca em nada’.
Quando ele passava, ‘o outro alarga a corda com um sinal de pesar, porque
errou o a que atirava’. O objetivo da cerimônia, naturalmente, era de caráter
mágico. Consistia em fazer o matador ligeiro e torná-lo alvo difícil quando
dos combates com os inimigos.”
(Florestan Fernandes, Organização Social dos Tupinambá, páginas 231 a 234)
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Como se tivesse sido dividido em múltiplos tabuleiros de xadrez, o território
brasileiro era dividido entre tribos que se espalhavam por grandes áreas, como
os tupis, que ocupavam uma faixa que descia da ilha de Marajó, na Amazônia,
para o Brasil Central e terminava quase no litoral de São Paulo, englobando
Paraná, Paraguai e trechos da Argentina. As tribos vizinhas de outros troncos
lingüísticos (mais de 300 no Brasil todo, segundo se supõe) e algumas facções
da própria tribo tupi eram tradicionalmente consideradas inimigas e viviam
guerreando entre si. O canibalismo era uma forma mágica de vingar a morte
de antepassados e assimilar a força do inimigo que fazia parte do coração da
cultura indígena: ele estabelecia o equilíbrio populacional das terras baixas
com base em guerras rituais, permitindo a existência de grandes territórios
periodicamente ocupados por populações nômades. Era um mundo de
cacicatos, com alguns chefes indígenas assumindo o comando de várias
aldeias de uma mesma tribo ou até de tribos diferentes em tempos de guerra, e
de vendettas tribais, que ainda hoje existem em populações da África, por
exemplo, mas que deixaram de ter razão de ser, pois a ocupação do território
pelos europeus bloqueou os caminhos desse grande jogo de xadrez nômade
baseado em queimadas e uso itinerante do solo e dos recursos naturais.
Eram populações migrantes, acostumadas a se estabelecer em certos lugares
a certos intervalos de alguns anos, como o faziam as cortes dos senhores
medievais europeus da época das cruzadas, que se mudavam constantemente
para os locais conquistados e também voltavam para as antigas moradias.
Florestan Fernandes conta que, enquanto Nóbrega e Anchieta conseguiram
apenas captar a simpatia dos tupinambás de Iperoig, na costa de São Paulo, a
maioria dos outros tupinambás do litoral ofereceu resistência quando os
portugueses deixaram de apenas trocar pau-brasil por quinquilharias e
passaram a tomar posse das terras. Assim, os tupinambás do Rio de Janeiro,
por exemplo, no começo ficaram amigos dos portugueses, com os quais se
aliaram contra seus inimigos e aos quais protegiam. Em 1531, chegaram a
fornecer farinha e paçoca para alimentação da tripulação das caravelas
comandadas por Pero Lopes de Souza. As caravelas ficaram três meses. E a
comida dada pelos índios foi suficiente para alimentar 400 homens durante um
ano. Mas as relações com os portugueses não se mantiveram amigáveis por
muito tempo, porque houve desavenças e também invasões de holandeses e
franceses, no Nordeste e no Rio de Janeiro. Para se estabelecer, os
estrangeiros também souberam usar as alianças com os índios, o que gerou um
verdadeiro genocídio nas guerras de reconquista promovidas pelos
portugueses.
No Rio de Janeiro, por exemplo, os tupinambás se revoltaram contra os
portugueses, que passaram a exigir que lhes fornecessem escravos capturados
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das tribos inimigas, e se aliaram aos piratas franceses, que lhes ofereceram
proteção e fortificações. O padre José de Anchieta diz que a ruptura foi culpa
dos portugueses: “Sendo dantes muito amigos dos portugueses, os índios se
levantaram contra eles por grandes agravos e injustiças que lhes fizeram, e
receberam os franceses, dos quais nenhum agravo receberam.” (José de
Anchieta, Cartas, págs. 310-311, in Florestan Fernandes, Organização Social
dos Tupinambá, pág. 26)
“Em conseqüência da guerra com os portugueses, os tupinambás do Rio de
Janeiro foram em parte exterminados. Outros emigraram e alguns se
submeteram aos brancos. Em quinze anos, de 1560 a 1575, os portugueses
conseguiram conquistar a terra, expulsar os franceses da região e impor seu
domínio aos aborígines”, conta Florestan. Em 1550 os tupinambás chegaram a
destruir um forte construído por Tomé de Souza em Bertioga, no litoral do que
hoje é o Estado de São Paulo. No Rio de Janeiro, com a destruição por uma
expedição militar portuguesa em 1560 do Forte de Coligny e conseqüente
extermínio dos franceses, os cacicatos tupinambás se dividiam-se entre apoiar
os portugueses ou promover uma feroz guerra contra eles.
O cacique Pindobuçu ou Cunhambebe, por exemplo, salvou a vida do padre
José de Anchieta várias vezes durante cerco de índios inimigos porque todos
ouviam sua voz. Cunhambebe “aceitava a aliança com os portugueses,
dizendo aos seus ‘Não quero que ninguém bula em minha aldeia; os cristãos
fazem pazes comigo que estou fronteiro, e os meus não me vêm a defender,
não querem estes meus parentes senão cabeças de fora dos cristãos, não hei de
consentir.” (Padre José de Anchieta, Cartas, pág. 222, in Florestan Fernandes,
Organização Social dos Tupinambá)
“Entre 1564 e 1568, os portugueses conseguiram submeter completamente os
tupinambás do Rio de Janeiro. Em 1567 existiam áreas no Rio de Janeiro em
que os portugueses ‘não ousavam ainda estender, com medo dos inimigos’.
Mas novos auxílios chegados da Bahia tornaram possível o êxito final dos
portugueses. Atacaram então em primeiro lugar a aldeia mais forte, do cacique
Uruçu-Mirim. Neste grupo local ‘não ficou um tupinambá com vida’. Depois
atacaram o grupo local de Paranapucuí. Morreram muitos tupinambás, mas
alguns conseguiram fugir ou se submeteram.”, conta Florestan Fernandes. Ele
explica que o último reduto tupinambá no Rio de Janeiro foi Cabo Frio,
conquistado pelos portugueses em 1574, depois de sangrentas batalhas.
Segundo Gabriel Soares, os tupinambás foram entrados, mortos infinitos, e
cativos oito ou dez mil almas.’. A maioria dos sobreviventes emigrou para o
sertão; ‘com espanto do que tinham visto, se afastaram de toda aquela costa’.
Cardim e Laet informam que alguns dos sobreviventes que fugiram para o
sertão, constituíram um novo grupo tribal, com o nome de Ararapes. Alguns
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entretanto, submeteram-se e tornaram-se cristãos. (Florestan Fernandes, A
Organização Social dos Tupinambá, pág. 30)
Em 1584, duas aldeias da Companhia de Jesus sediadas no Rio de Janeiro
(São Barnabé e São Lourenço) reuniam cerca de 3 mil tupinambás. No interior
do Rio de Janeiro, Florestan Fernandes cita batalhas em que os portugueses
exterminaram cerca de 10 mil tupinambás “todos os velhos e mulheres e
particularmente os que eram réus dos assassinatos dos meus companheiros. Os
vinte mil restantes foram repartidos como escravos” (Antônio Knivet, citado
por Florestan Fernandes, A Organização Social dos Tupinambá, pág, 31)
A DEFESA DE MONTAIGNE
“Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no dizem daqueles povos; e na
verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é
natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo
exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a
religião é sempre melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito.
As qualidades e propriedades dos chamados selvagens, os frutos que natureza
produz sem a intervenção do homem, são vivas vigorosas, autênticas, úteis e
naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as
adaptar a nosso gosto corrompido. (...)
“Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens
somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência
do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade
primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pelas imisção dos nossos,
regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não os
tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de
apreciá-los. Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido falar deles.”
(Os Canibais, em Ensaios, de Michel de Montaigne)
Com o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592), começou toda uma
onda de valorização do bom selvagem que teve seu apogeu em Jean-Jacques
Rousseau, autor da teoria do bom selvagem, isto é, de que o homem seria puro
e bom por natureza e estaria sendo pervertido pelas deformações da sociedade.
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SEXO LIVRE: COSTUMES ESCANDALOSOS
“Aos olhos dos jesuítas, sempre queixosos das dificuldades da catequese, do
clima e da falta de recursos, o frenesi sexual campeava, antes de tudo, entre os
índios: sempre nus, polígamos, incestuosos”, diz Ronaldo Vainfas, em
Moralidades Brasílicas, ensaio do primeiro volume de Historia da Vida
Privada no Brasil. Os índios em geral eram patriarcais e tinham várias
mulheres, havendo raras tribos amazônicas matriarcais, talvez herança da pré-
história. Eles só não casavam mãe com filho, filha com pai e irmão com irmã,
mas permitiam os outros matrimônios próximos, o que escandalizava os
jesuítas.
O padre Manuel da Nóbrega, por exemplo, dizia que “Quase todos os
portugueses, não satisfeitos em fazer suas escravas de mancebas, lançavam-se
às mulheres livres, pedindo-as aos índios por mulheres. E se os padres
ousassem admoestá-los para que se casassem com uma só índia, como Deus
mandava, eram ofendidos, ameaçados e até perseguidos pelos escandalosos
colonos.” Nóbrega carregava nas tintas especialmente contra João Ramalho,
tido como o exemplo-mor do que faziam os portugueses no Brasil. “Sua vida”,
vituperava Nóbrega, “corria solta à moda dos índios, rodeado de mulheres e da
filharada que estas lhes davam; e os meninos de Ramalho, mal atingiam a
puberdade, não hesitavam em seguir o exemplo do pai, unindo-se a várias
mulheres, sem cuidar se eram irmãs ou parentas. A esta terra não vieram senão
desterrados da mais vil e perversa gente do Reino”, desabafos do padre
Manuel da Nóbrega, citados por Ronaldo Vainfas na História da Vida
Privada no Brasil. O padre José de Anchieta também reclamava da moral
volúvel das indígenas, que se ofereciam aos portugueses colonizadores,
“preferindo os portugueses aos próprios índios de suas tribos”.
Nem inferiores aos europeus, como acreditava Pero Vaz de Caminha, nem
superiores, como pensaram os filósofos franceses Michel de Montaigne e
Jean-Jacques Rousseau, os índios brasileiros são tão seres humanos como os
europeus e suas complexas culturas têm qualidades e defeitos, assim como a
européia. Se os sertanistas como os irmãos Villas Boas, elogiam o fato de os
índios não terem cadeias ou polícia porque as idéias compartilhadas orientam
toda a sociedade (ideologia) e além disso serem mais felizes do que nós
porque vivem em harmonia com a natureza, nós, os civilizados,
provavelmente não conseguiríamos nos adaptar a um mundo regido pelas
almas dos antepassados e pelos espíritos das plantas e dos animais em que
temos de casar com determinada prima cruzada, embora possamos ter mais
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mulheres. Se fosse no tempo do descobrimento, então, seria pior: para poder
casar, teríamos de ter matado um inimigo e servi-lo esquartejado e assado ao
resto da tribo.
Muitos sertanistas e antropólogos também idealizam os índios, tendo alguns
afirmado que as sociedades indígenas seriam tão “equilibradas” ou
“saudáveis” que não teriam casos de homossexualidade, nesse contexto vista
como uma anomalia social. Bobagens desse tipo foram ditas, por exemplo,
pelo discípulo de Sigmund Freud, Wilhelm Reich, que escreve textualmente
não haver casos de homossexualidade entre os índios, pelo fato de suas
sociedades serem mais livres e sadias que a ocidental.
Esse mito foi derrubado por outros etnólogos e antropólogos. Pierre Clastres
fez um ensaio sobre um caso de homossexualismo entre os guaiaquis, falando
de um homossexual que era respeitado pela tribo enquanto vivia entre as
mulheres e se entregava aos homens que quisesse, mas passou a ser
hostilizado e acabou morto quando decidiu também participar da rotina dos
homens e sair com eles para a caça. Levy Strauss também fala de
homossexualismo entre índios brasileiros. Mas o mais impressionante relato
da liberdade sexual entre os tupinambás é dado por Florestan Fernandes:
“Parece-me que as práticas sodomíticas dos tupinambás devem ser encaradas
em termos dessas dificuldades na obtenção de parceiras sexuais. Segundo
Gabriel Soares, os tupinambás eram ‘muito afeiçoados aos pecados nefandos’.
É provável que chegaram a dar um aspecto formal a tais relações, pois alguns
pederastas passivos possuíam cabanas próprias, onde mantinham seus
colóquios amorosos. ‘E nas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda
pública a quantos os querem como mulheres públicas. A sodomia recebia o
beneplácito social; as relações desta espécie ‘não se têm por afronta’.
Contudo, parece que havia uma avaliação diferente das mesmas, de acordo
com a posição ocupada no coito anal por um dos parceiros. Gabriel Soares
informa que os pederastas ativos se orgulhavam daquelas relações,
considerando-as uma manifestação de valor e valentia. Entre os tupina,
observou o seguinte ‘Os que servem de machos se prezam disso e o tratam
quando dizem os seus louvores’. Doutro lado, Lery apresenta a sodomia como
uma mancha degradante entre os tupinambás. Quando se insultavam,
utilizavam a palavra ‘tivira’ para designar o pederasta passivo. Lévy Strauss
verificou, por exemplo, que entre os nhambiquaras contemporâneos a
dificuldade em conseguir mulheres desenvolveu a prática de relações
homossexuais regulares, entre primos cruzados.”
O professor Florestan Fernandes descreve também casos de
homossexualidade feminina entre os índios brasileiros, mostrando que eles
não são diferentes das outras sociedades do mundo no que se refere à
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complexidade dos sentimentos e paixões humanas. “A canalização dos
sentimentos amorosos e eróticos em direção a indivíduos do mesmo sexo
ocorria também entre as mulheres. Pero Correia escrevia ‘Há cá muitas
mulheres que assim nas armas como em todas as outras coisas seguem o ofício
dos homens e têm outras mulheres com quem são casadas. A maior injúria que
lhes podem fazer é chamá-las de mulheres. Segundo Gandavo, as mulheres
tríbades assumiam atitudes culturalmente definidas como masculinas.
Conviviam exclusivamente com os homens, agiam como eles, empenhando-se
em suas tarefas e indo com eles à guerra. Do mesmo modo, rejeitavam os
cônjuges masculinos. Adotavam a forma masculina de penteado e contraíam
núpcias como os homens: ‘Cada uma tem mulher que a serve, com quem diz
que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher.”
O sociólogo conta que por problemas de distribuição de faixas etárias nas
tribos, homens jovens geralmente casavam com mulheres velhas e mulheres
jovens com homens velhos, o que transformava o casamento numa forma de
pedagogia. Havia muitos casos de jovens que casavam com mulheres velhas
estéreis, que depois se somavam a outras, mais jovens, que ele ia conseguindo.
As mulheres velhas, sem parceiro, também se entregavam aos adolescentes:
“Como tinham pouca probabilidade de atrair homens adultos, as velhas
procuravam os meninos púberes e os rapazes viris. ‘E ensinam-lhes a fazer o
que eles não sabem, e não os deixam nem de dia nem de noite’. Por isso,
sendo de pouca idade, têm conta com mulheres, e bem mulheres”. Essas
aventuras transformavam-se, depois, em meios de adestramento sexual,
suavizando parcialmente as necessidades sexuais dos jovens.” (Florestan
Fernandes, A Organização Social dos Tupinambá, págs 136 a 139)
VALORES HUMANOS
Fora o costume disseminado de guerrear entre si em vendettas tribais e a
prática da antropofagia, outros aspectos da vida dos indígenas brasileiros
fascinaram antropólogos e filósofos ao longo dos séculos. Um deles era a
liberdade com que se podia viver em contato direto com a natureza. Quando
os portugueses chegaram, a maioria das tribos já constituía formas de Estados
nômades, as nações indígenas, formadas por cacicatos de mesmo parentesco
lingüístico. A produção atendia à sobrevivência imediata, não existindo a
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situação de abundância que permitisse aos indivíduos não trabalhar, mas em
compensação sobrava muito tempo para o lazer e para o contato humano. A
terra era considerada uma propriedade de todos e a troca de produtos entre as
tribos não visava ao lucro.
Nesses Estados intencionalmente reducionistas, constituídos por grupos de
famílias que formavam as aldeias aliadas ou inimigas, não havia
especialização de funções, de forma que a divisão de trabalho se dava e ainda
se dá por faixas etárias e por sexo. Dessa forma, cada homem sabe fazer tudo
o que os demais homens da aldeia fazem e cada mulher aprende desde
pequena a fazer tudo o que as outras fazem. As mulheres ficavam com a
culinária, a educação das crianças, o plantio e a colheita, enquanto os homens
ficavam com a caça, a pesca, a derrubada e queimada das matas para
agricultura itinerante, a chefia da aldeia e a guerra.
Apesar da relativa liberdade sexual dos índios brasileiros, sua observância
generalizada do tabu do incesto, que impedia casamentos entre pais e filhas,
mães e filhos e irmãos, faz supor uma reação preventiva contra a endogamia e
suas doenças recessivas e o fechamento da sociedade, impedindo o
desenvolvimento de laços econômicos mais amplos entre os membros da
aldeia. Tornou-se clássica a resposta que um índio dos Mares do Sul deu à
antropóloga Margareth Mead, quando ela lhe perguntou por que ele não se
casava com sua própria irmã: “O quê? (...) Será que não compreendes que, se
casares com a irmã de outro homem e outro homem com a tua irmã, tu terais
dois cunhados, ao passo que, se te casares com tua irmã, não terás nenhum?
Com quem irias caçar, quem te ajudaria a cultivar tua horta e a quem irias
visitar.”
“O índio em sua tribo tem um lugar estável e tranqüilo”, diz o sertanista
Orlando Villas Boas. “O índio é totalmente livre, sem precisar dar satisfações
de seus atos a quem quer que seja. (...) Que diferença enorme entre as duas
humanidades: uma tranqüila, onde o homem é dono de todos os seus atos;
outra, uma sociedade em explosão, onde é preciso um aparato, um sistema
repressivo, para poder manter a ordem e a paz dentro da sociedade. Se um
indivíduo der um grito no centro de São Paulo, uma rádio-patrulha poderá
leva-lo preso. Se um índio der um tremendo berro no meio da aldeia, ninguém
olhará para ele, nem irá perguntar por que ele gritou. O índio é um homem
livre.”
Esse índio elogiado por Orlando Villas Boas já sofreu uma mudança na
visão de mundo e nas regras de conduta ao ser pacificado pelos brancos, que
os convenceram a abandonar as vendettas e o canibalismo, para viverem
vizinhos dentro de parques. Convencidos pelos brancos, missionários,
sertanistas e antropólogos, os próprios índios que se aproximaram dos
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portugueses abandonaram rapidamente o canibalismo. Que aconteceria com os
índios brasileiros se eles não tivessem tido contato com os brancos europeus?
Provavelmente também abandonariam o canibalismo e os sacrifícios humanos,
como o fizeram os gregos arcaicos e os judeus, com o progresso da
racionalização das sociedades, que passam a se reger por leis definidas por
especialistas,tanto líderes religiosos como lideranças mais velhas, com
experiência, alianças e poder.
TRAGÉDIA AMERICANA: O
MASSACRE DAS MISSÕES, A REPÚBLICA
COMUNISTA CRISTÃ DOS GUARANIS
Um conjunto de Estados índios, que constituía uma verdadeira federação no
Sul do País chegou a ter um padrão de vida superior à média da Colônia e até
da Europa. Sociedade singular, foi constituída intermitentemente durante dois
séculos, os anos 1600 até o final dos anos 1700, por jesuítas e índios
guerreiros no Sul do Brasil, englobando áreas dos atuais Estados do Rio
Grande do Sul e Paraná e de países como Uruguai, Paraguai e Argentina.
Estimando por baixo, chegaram a constituir mais de 30 cidades-Estados
jesuítico-guaranis, com uma média de 3 mil pessoas cada, num conjunto de
cerca de 100 mil índios, a maioria guaranis, mas incluindo muitos outros
povos, que no modelo jesuítico das reduções viu uma saída para o estado de
guerra permanente entre as tribos e os interesses portugueses e espanhóis de
aprisionar os índios como escravos.
Os jesuítas, ao contrário, propunham a união de índios dispersos, reunidos
sob a fé cristã que astuciosamente sobrepuseram à religião guarani, afirmando
que se seu deus supremo, tupã, corresponderia ao deus-pai da santíssima
trindade. Os jesuítas também reuniram tribos dispersas e ameaçadas nos
conturbados tempos da conquista e as subordinaram a uma mesma língua, uma
espécie de esperanto feito com a língua guarani submetida à gramática do
latim.
Tudo isso ocorreu numa espécie e terra de ninguém, disputada entre
portugueses e espanhóis, pois, pelo Tratado de Tordesilhas (.....) a região hoje
ocupada pelo Sul do Brasil pertenceria à Espanha, ficando os portugueses com
uma faixa litorânea. Os reis católicos da Espanha se aproveitaram da situação
e apoiaram os jesuítas, que com subvenção da Coroa, trouxeram centenas de
cabeças de gado e as distribuíram pelas missões dos pampas gaúchos e das
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planícies do Uruguai, do Paraguai e da Argentina. Também fizeram da erva-
mate nativa da região um comércio rentável.
Durante dois séculos, os jesuítas promoveram dois ciclos de colonização, um
de 1626 a 1637 e outro de 1682 a 1767, na região das Missões, construindo
cidades de pedra com casas para casais, alojamentos para solteiros e viúvos,
casas para os frades, oficinas, escolas de arte e áreas de trabalho comum, além
de monumentais igrejas de pedra, cujas ruínas até hoje nos impressionam. No
Brasil, destacaram-se os chamados Sete Povos das Missões, no oeste do Rio
Grande do Sul: São Francisco de Borja (fundado em 1682), São Nicolau, São
Luiz Gonzaga , São Miguel Arcanjo (os três de 1687), São Lourenço Mártir
(1690), São João Batista (1697) e Santo Ângelo Custódio (1706). Os índios
aprenderam ofícios dos europeus, que lhes ensinaram desde a cortar pedras
para fazer igrejas até a cultivar cereais, pastorear o gado e fazer esculturas ou
compor músicas religiosas. Desse encontro resultou uma sociedade que ainda
hoje nos impressiona por sua arquitetura e por suas belíssimas obras de arte,
em que os estilos europeus ganham toques indígenas.
“No conjunto dos Povos das Missões floresceu e vingou uma sociedade sui-
generis nos então indecifráveis limites do Brasil, Paraguai, Argentina e
Uruguai”, diz o historiador Mario Simon, em Os Sete Povos das Missões,
Trágica Experiência, pág. 15): “Uma experiência de civilização independente
sem igual em todas as relações que houve em todos os tempos entre índio e
colonizador. Tão importante que despertou a atenção e a admiração de
intelectuais europeus como Voltaire, Montesquieu e até Hegel. De qualquer
modo, a experiência missioneira continua despertando a atenção dos
estudiosos, alguns atraídos pelo grande sonho de um socialismo utópico,
outros pelos mitos de igualdade fraterna que a história missioneira suscita
após mais de 300 anos.”
Mas toda essa sociedade sincrética de índios e cristãos foi tragicamente
destruída em meados do século 18. De todas as outrora prósperas cidades de
pedra só restaram ruínas, como alguns muros e as paredes da Igreja São
Miguel, em Santo Ângelo, extremo oeste do Rio Grande do Sul. Na vizinha
Argentina também restam ruínas ainda mais monumentais, que ainda hoje são
atração turística, como os restos de San Ignácio Mini, com imponentes
construções de pedra e muitos objetos do tempo colonial. Também nos
deparamos com ruínas jesuíticas nas estradas do Paraguai e do Uruguai, o que
mostra a extensão dessa federação jesuítico-indígena, governada por
comissões mistas de religiosos e indígenas.
Estudando as missões jesuíticas, o socialista francês C. Lugon concluiu, nos
anos 40, que nelas o ideal socialista havia se realizado melhor do que nos
chamados países socialistas, como a União Soviética de então.”A República
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Guarani foi sem dúvida comunista demais para os burgueses da época e cristã
demais para os comunistas da época burguesa. (...) Ela aparece na história
como a mais importante e a mais original das sociedades comunistas que se
tornaram realidade até o advento da União Soviética.”
O conjunto de regras que fazia a sociedade guarani funcionar a toques de
sinos, com grande espaço de tempo para lazer e criatividade (os índios tinham
as tardes livres, por exemplo) é elogiado por C. Lugon: “A República
Comunista Cristã dos Guaranis foi a primeira realização concreta na direção
de uma sociedade fraterna sem classes e sem privilégios, hierarquizada de
acordo com as capacidades e os serviços pessoais. Essa sociedade cujo
desenvolvimento foi interrompido por forças externas, e não internas, traz em
si um ingrediente que foi esquecido pelas sociedades comunistas mais
evoluídas e mais complexas, que degeneraram por não ter conseguido aplicar
de forma tão perfeita e integral os princípios fundamentais de toda sociedade
humana.”
C. Lugon, La Republique Communiste Chrétienne des Guaranis (1610-1768)
– A República Comunista Cristã dos Guaranis (1160-1768)
O singular surgimento de padres guerreiros com armas de fogo e exércitos
de índios no sul do Brasil se deu por circunstâncias históricas. Os guaranis
atraídos para as reduções jesuíticas já estavam em guerra com tribos vizinhas,
como os guenoas. O historiador Mario Simon, em Os Sete Povos das Missões
– Trágica Experiência, conta que “por ocasião da Fundação de São Borja, em
1682, vieram, de São Tomé, 1952 índios. Em 1690, havia uma população de
2.396 pessoas, isto possível porque, em 1687, São Borja recebe um
contingente de quase mil índios, como intuito de reforçar a povoação. São
Borja atingiu, em 1732, quase 4 mil habitantes.”
O jesuítas adestravam militarmente os índios e, a partir de 1639, passaram a
receber armas de fogo como arcabuzes e canhões do próprio rei da Espanha
para sua própria defesa e defesa dos territórios espanhóis. Essa corrida
armamentista se deu depois das derrotas que encerraram o primeiro ciclo
missioneiro, que chegou a ter 18 povos e terminou em 1637, quando os índios
e jesuítas tiveram de mudar para o outro lado do Rio Uruguai, “acossados que
eram pelos bandeirantes preadores de índios. Presume-se que desde o início
das preações os bandeirantes aprisionaram e levaram das Missões Jesuíticas
(Paraguai, Argentina e Brasil) 200 mil índios. Destes, 60 mil da região dos
Povos das Missões do Rio Grande do Sul” (Mario Simon, Os Sete Povos das
Missões – Trágica Experiência).
Houve muitas guerras e guerrilhas sangrentas entre índios selvagens, índios
aculturados pelos jesuítas, portugueses e espanhóis pela posse dos territórios
do Sul, inclusive a batalha de M’Bororé, em 1641, no leito do Rio Uruguai,
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onde o exército guarani, liderado pelo cacique Nicolau Nenguiru derrotou os
bandeirantes. Uma nova derrota em 1651 teria massacrado os bandeirantes,
impondo-lhes medo e permitindo que as missões jesuíticas fossem retomando
antigos territórios, como os Sete Povos das Missões no Rio Grande do Sul. O
problema é que, para resolver os conflitos de terra, os reinados de Portugal e
Espanha tomaram uma decisão benéfica aos portugueses, mas que foi trágica
para as missões guaranis: o Tratado de Madri de 1750, que permuta os Sete
Povos das Missões pela Colônia de Sacramento. Índios e jesuítas são
intimados a deixar todas as terras e casas das margens do Rio Uruguai. Os
índios e algumas lideranças jesuítas não aceitam as ordens do governo e
declaram guerra. Eis uma carta escrita pelos caciques de Santo Ângelo para o
governador de Buenos Aires, que os intimara a abandonar a cidade:
“Não sabes tu porventura que, quando veio por governador dom Miguel
Salcedo no ano de 1736, nos trouxe e deu a nós uma boa nova, dizendo-nos
então que o Rei Nosso Senhor Felipe V havia mandado, e que tinha vindo por
amor de Deus, por amor dos santos padres, e por amor de nós, que éramos
desvalidos índios? Disse-nos também então fazendo-nos saber boa nova:
“Cuidai da terra onde viveis; essa terra a vós só Deus a deu, logo que sentirdes
algum dano, avisai-me logo. Por que agora tu (nos ameaças com canhões e
artilharia) e dás sete formosos povos em paga da colônia que é um pobre
povo? O seu valor não é suficiente paga nem de um só povo nosso”, dizem os
caciques, que se sentem traídos pelo rei da Espanha. E continuam, desta vez
em tom de ameaça:
“Portanto, não temeremos do mal que nos queres fazer: ainda que tragas os
teus canhões, não temeremos. Deus nosso senhor somente, sendo nós uns
pobres índios, nos ajudará muito, e o Santo Anjo tam´bem será ajudador e
protetor. Quiçá Deus nosso senhor te porá em nossas mãos. Nós não temos
cuidado pelos espanhóis: não erramos nem fizemos mal aos de Montevidéu,
nem aos de Buenos Aires, nem de Santafé, nem aos de Corrientes, nem
Paraguai; quanto mais nem aos portugueses. Não erramos em coisa alguma,
nem desejamos, nem cuidamos de espanhol algum; estamos sós em nosso
povo, onde estamos bem. Por isso, se vierdes teremos guerra. Isto queremos
nós se tu vierdes, e nós só nos animaremos e nos mandaremos contra ti até
vencer-te.” (Carta dos Caciques de Santo Ângelo ao Governador Andonaegui,
de Buenos Aires, segundo Aurélio Porto, História das Missões Orientais do
Uruguai, citado por Mário Simon, em Os Sete Povos das Missões – Trágica
Experiência, págs. 137-138)
Como resultado, tanto tropas espanholas como tropas portuguesas
guerrearam contra as missões jesuíticas. Os jesuítas, expulsos do Brasil pelo
Marquês de Pombal em 1757, foram também expulsos dos domínios
36
36
espanhóis em 1767. Tanto o rei de Portugal como o da Espanha temiam o
surgimento de Estados eclesiásticos independentes, como parecia estar
acontecendo nas missões.
Em 1753, “o padre Lope Luis Altamirano, comissário encarregado pelo
Geral da Companhia de Jesus de convencer os índios a cumprirem o Tratado
de Madri, tem que fugir, escoltado, ante a fúria e revolta dos guaranis. Gomes
Freire de Andrade inicia a demarcação dos limites traçados pelo tratado. Sepé
Tiaraju, o alferes real do povo de São Miguel, nas proximidades de Santa
Tecla, intima o general Gomes Freire a cessar a demarcação, alertando-o que
de Santa Tecla para diante não passariam sem guerra. O exército retirou-se
para a colônia de Sacramento.
Mas em 1756, na trágica batalha de Caiboaté, uniram-se mais de 3.700
soldados dos exércitos português e espanhol no Campo das Mercês para dar
combate aos cerca de 2.100 índios revoltosos das Missões. Os brancos tinham
canhões e boas armas; dos índios, “só uns poucos estavam armados com fuzil,
mais dois canhões de ferro e outros de taquarassu, recobertos de couro e
imprestáveis depois do primeiro tiro. A história narra que, além das armas, os
ingênuos índios contavam com a proteção dos santos, que eram carregados
junto com as tropas. Foi uma devastação, com a derrota do exército
missioneiro. Morreram 1.500 índios e apenas um soldado português e três
espanhóis.” Mário Simon, Os Sete Povos das Missões – Trágica Experiência,
págs 163, 164 (Cronologia) e 145 (Guerra Guaranítica – o Fim dos Sete
Povos).
Ainda em 1756, no dia 7 de fevereiro, o cacique Sepé Tiaraju havia sido
morto em combate. Pouco mais de quatro meses depois, no dia 17 de maio,
Gomes Freire, vitorioso na Batalha de Caiboaté, ocupa São Miguel e ordena
que se rendam Santo Ângelo e São João.
Por causa do abandono, as cidades missioneiras saqueadas acabaram virando
ruínas. Segundo o historiador Mario Simon, “em 1835, existiam, em todo o
território dos Missões dos Sete Povos, apenas 136 homens aptos para o
trabalho, 38 inválidos, 32 menores, 113 mulheres ‘sem grandes defeitos’, 32
inválidas e 23 menores. Total da população missioneira: 374 pessoas.”
EXPULSÃO DOS JESUÍTAS MARCA
TAMBÉM O FIM DAS MISSÕES ESPANHOLAS
37
37
“As sociedades indígenas do litoral, as primeiras a entrar em contato com os
europeus, são também as primeiras a desaparecer: bem no começo do século
18 já não subsiste uma única tribo tupi em toda a faixa costeira”, diz a
antropóloga Helene Clastres, que estudou as missões jesuíticas do Paraguai e
da Argentina, que não passaram pela guerra ocorrida no Brasil, mas também
foram desarticuladas pela expulsão dos jesuítas nos territórios espanhóis, que
passou para a administração civil o comando efetivo das reduções.
“O destino dos guaranis já é diferente. A penetração européia na sua região
começa no primeiro terço do século 16, muito local e incerta durante as
primeiras décadas. Assunção, fundada em 1537, é apenas um pequeno fortim.
Os primeiros jesuítas chegam a Assunção em 1558 e visitam a província do
Guayrá: nessa época, a evangelização está reduzida à sua mais simples
expressão. Os missionários não se preocupam em residir entre os índios:
bastava-lhes atravessar as aldeias, batizando às pressas milhares de pessoas. É
somente no começo do século 17 que as missões começam a implantar-se. Em
1609, o rei de Espanha, a pedido de Hernanderías de Saavedra, então
governador do Paraguai, concede à Companhia de Jesus o direito de
empreender a conquista espiritual dos 150 mil guaranis do Guayrá. No ano
seguinte, dois jesuítas, padres José Cataldino e Simon Maceta, conseguem
reunir algumas centenas de selvagens na primeira redução. O pardre Antonio
Ruiz de Montoya, o mais ilustre evangelista dos guaranis, fundará onze
reduções entre 1622 e 1629.
Foi assim que se inaugurou uma realização surpreendente: o que vivria ser
chamado de ‘o reino de Deus na Terra’, a ‘república comunista católica’ ou,
mais simplesmente, ‘o Estado jesuítico do Paraguai’.
“Durante mais de um século e meio (até 1768, data da expulsão dos jesuítas
dos territórios espanhóis), as trinta cidades desse Estado próspero e
praticamente autônomo (somente o papa e o rei de Espanha tinham autoridade
sobre ele) iriam isolar os guaranis – mais de 200 mil índios – do mundo
colonial espanhol. Com a partida dos jesuítas, a direção das missões foi
confiada aos franciscanos, controlados por administradores: as antigas
reduções slogo foram invadidas pelos colonos e não tardou para o que sistema
econômico coletivista estabelecido pelos jesuítas se transformasse num
impiedoso sistema de exploração.
“Aos milhares, os guaranis abandonaram as missões, indo o mais das vezes
instalar-se nas aldeias espanholas. Trinta anos após a expulsão, menos da
metade dos índios vivia ainda nas reduções. Mas tarde, várias guerras
acabaram de arruinar o que restava das cidades. Os guaranis que escaparam de
tais massacres se estabeleceram em pequenas aldeias, no Guayrá, não longo
do sítio das antigas reduções. Mas, em 1848, o ditador Carlos Antônio López
38
38
obrigou esses índios (cerca de 6 mil) a abandonar as suas aldeias para irem
viver nas dos paraguaios.
“Foi esta, resumida em suas linhas-gerais, a história pós-colombiana dos
guaranis: protegidos durante mais de 150 anos da dominação dos colonos,
posteriormente eles se fundiram, pouco a pouco, na população paraguaia.”
(Helene Clastres, Terra Sem Mal – o Profetismo Tupi-Guarani, págs. 9 e 10)
UM MUNDO DE PADRES
GUERREIROS E INDIOS ARMADOS
DE ARCABUZES
“As primeiras reduções duraram pouco mais de 20 anos. Acossadas pelos
bandeirantes paulistas, em 1631 foram abandonadas. Nesta ocasião, registra-se
um fato, épico pelo incrível denodo dos jesuítas e índios. Trata-se do êxodo da
província de Guayrá, só comparável à Retirada dos Dez Mil de Xenofonte, da
história grega, ou então com o Êxodo do povo israelita, comandado por
Moisés através do mar e do deserto. Só que o êxodo do Guayrá foi mil vezes
mais trágico. Os padres, sob o comando do grande jesuíta Antônio Ruiz de
Montoya, reunindo às pressas 12 mil índios reduzidos, desceram o Rio Paraná
amontoados em 900 canoas. Na altura das Sete Quedas, hoje desaparecidas, e
diante da iminência dos bandeirantes comandados pelo não menos famoso
Raposo Tavares, deixaram que parte das embarcações caísse nas violentas
águas do Paraná, com a esperança de apanhá-las rio abaixo. No entanto, as
águas despedaçaram todas as barcaças e não restou à multidão senão o
caminho tenebroso das selvas paranaenses, a pé. Iniciou-se então uma marcha
desesperada, na qual, além de dois padres, desapareceram 8 mil índios, mortos
pela fome, pelos animais selvagens, doenças e fugas. Não era para menos, pois
que tinham que enfrentar quase duas centenas de quilômetros mato adentro,
em direção à Foz do Rio Iguaçu, onde apenas 4 mil lograram chegar para
iniciar novas Reduções em terras da atual província Argentina de Missiones”
(Mário Simon, Os Sete Povos das Missões – Trágica Experiência, págs. 13 e
14)
39
39
QUEM ESTOUDOU OS INDIOS BRASILEIROS?
Embora tenham valor antropológico, as descrições dos ameríndios feitas
pelos jesuítas em geral só dão valor à cultura indígena na medida em que a
podem apagar e substituir pela cultura européia, pois para os jesuítas, “os
deuses dos gentios são demônios”. Assim, lendas e cerimônias indígenas
foram desde muito cedo adaptadas para o cristianismo. Tupã, deus do trovão
na cultura animista e politeísta dos índios tupis, passou a ser a primeira pessoa
da Santíssima Trindade, e Sumé, o herói civilizador, passou a ser São Tomé, o
que gerou uma lenda entre os jesuítas de que o apóstolo teria vindo pregar o
evangelho nas Américas. Uma visão científica dos índios brasileiros só tomou
corpo no começo do século 20. Antes, acumulara-se toda uma literatura de
religiosos e viajantes estrangeiros, principalmente sobre os povos tupis-
guaranis do litoral, com escasso material sobre os índios do interior, como os
do grupo lingüístico jê. O primeiro cientista viajante a colher informações
lingüísticas sobre os índios brasileiros foi o botânico alemão Karl Friedrich
Philipp von Martius, conhecido como Von Martius (1794-1868), no começo
do século 19. Depois já com perspectiva da antropologia moderna surgem, na
virada para o século 20, Karl von Steinen, Paul Ehrenreich, Theodor Koch-
Grunberg, Paul Rivet, Herbert Huntington Smith, Curt Nimuendaju, e Joseph
Alden Mason, que se preocuparam em estudar as línguas e o pensamento dos
indígenas brasileiros. A ênfase no detalhe que caracteriza esses pioneiros
seria substituída, num movimento que vem até a atualidade, pela procura de
grandes sínteses, por lingüistas posteriores, como Maurício Swadesh e Joseph
H. Greenberg, os pesquisadores do Summer Institute of Linguistics, dos EUA,
e a equipe do lingüista brasileiro Aryon Dall’Igna Rodrigues, no
Departamento de Antropologia do Museu Nacional.
Foi com os primeiros lingüistas que surgiram os sertanistas, como Curt
Nimuendaju, que deu origem de toda uma tradição de humanistas
pacificadores de índios, como os irmãos Villas-Bôas, gente que viveu entre os
índios e os defendeu, ao mesmo tempo produzindo conhecimento sobre eles.
As teses de Nimuendaju preenchem todos os requisitos acadêmicos sobre
trabalhos científicos, mais na linha da corrente dos antropólogos ou etnólogos,
que corre paralela à dos sertanistas e também se dedica a estudar os índios
americanos, participando ou não, em vários graus, de sua vida e de seus
problemas e produzindo relatos sobre sua cultura e sociedade como é o caso
dos pesquisadores modernos, desde Von Steinen e Theodor Koch-Grunberg a
Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro.
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Origens dos Índios Americanos

  • 1. ÍNDIOS Das origens ao descobrimento, culinárias, canibalismo, guerra, vida sexual Quase tudo o que os livros didáticos de dez anos atrás e muitos ainda hoje falam sobre a origem do homem americano está errado e as pesquisas atuais feitas no Brasil viraram foco mundial de interesse porque mudam os rumos da própria história do homem americano, tal como também era ensinada nos Estados Unidos e na Europa. Até pouco tempo atrás as teorias mais aceitas diziam que o homem americano teria vindo da Ásia, por terra, pois sabe-se que entre 35 mil e 12 mil anos atrás uma glaciação teria feito o nível do mar descer 50 metros e durante muitos intervalos de milênios expôs caminhos terrestres entre a Ásia e a América do Norte, na região do Estreito de Bering. O mais provável era que essas populações caucasianas teriam chegado em levas entre 14 mil e 12 mil anos atrás, antes que o oceano voltasse a engolir os caminhos terrestres. Outra teoria muito aceita era a de que os índios que povoaram a Amazônia seriam culturalmente inferiores aos das grandes civilizações andinas, como os incas, que deixaram templos e casas de pedra, além de quantidade muito maior de artefatos materiais. Segundo uma tese aceita no passado, os índios amazônicos seriam descendentes empobrecidos de sobreviventes de catástrofes por que passaram essas grandes civilizações andinas, como secas provocadas pelo fenômeno que hoje conhecemos como El Niño, e que aquece superficialmente as águas do Oceano Pacífico durante alguns períodos, alterando a distribuição das chuvas no mundo. Nos anos 1940 e 1950 o aventureiro e etnólogo norueguês Thor Heyerdahl (1914- ) chamou a atenção do mundo para a possibilidade de as Américas terem sido povoadas por polinésios (viajou ele mesmo com uma equipe do Peru até Raroia na Polinésia, numa jangada primitiva em forma de balsa em 1947) e até egípcios (em 1970, em segunda tentativa, ele e sua equipe navegaram num barco egípcio feito de papiro de Safi, no Marrocos, até Barbados, na América Central, demonstrando a possibilidade de que as culturas pré-colombianas da América tenham sido influenciadas até pela egípcia da Antiguidade). Desprezadas pelos cientistas, por falta de evidências arqueológicas, as teorias difusionistas de Heyerdahl, que eram apenas intuição de um aventureiro, conforme se dizia na época, acabaram revalorizadas com base científica no 1 1
  • 2. final dos anos 1980. Hoje em dia se sabe que a presença de egípcios ou fenícios no Brasil não passa de lenda, mas existem mais elementos para supor que o homem americano teria vindo em diferentes levas, de vários lugares do mundo, como o Ásia, as ilhas do Pacífico e até Austrália. Mais recentemente, durante a Idade Média, teria havido algumas incursões de vikings ao continente, que teriam deixado vestígios arqueológicos no litoral norte- americano – o que derruba outra certeza, a da primazia da descoberta da América por Colombo em 1492. Referências arqueológicas são citadas pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu livro Literaturas Germânicas Medievais. Em meados da década de 80 a antropóloga Niéde Guidon fez datações de sítios arqueológicos no Piauí e chegou a datas que beiram os 50 mil anos para restos humanos na região de Pedra Furada, por exemplo (1986). Em outros sítios arqueológicos próximos, como o de São Raimundo Nonato, a datação de vestígios humanos regrediu há mais de 60 mil anos atrás. Em 1989, uma análise morfológica de crânios pré-históricos da Bolívia e do Brasil feita por outros cientistas mostrou sua afinidade com grupos do sul do Pacífico que teriam chegado aqui antes do estabelecimento da morfologia mongolóide típica nas populações asiáticas. Em 1990, análises das mitocôndrias do DNA de populações indígenas atuais mostraram uma variabilidade que se estende até 40 mil anos atrás, quando teriam ocorrido as migrações. São várias diferentes evidências indicando que o homem americano certamente teve várias origens e chegou ao continente bem antes de 14 mil anos atrás, como se pensava. Outra evidência da origem difusa do homem americano está na recomposição do aspecto facial de um esqueleto fóssil de mulher encontrado no Nordeste e chamado de Luzia: seus traços são negróides e diferem dos traços mongolóides de outras populações indígenas. “Quando da elaboração da velha teoria sobre o povoamento da América os conhecimentos disponíveis sobre os homens pré-históricos eram mais limitados e sofriam o preconceito de que o homem de Cro-Magnon, o primeiro da nossa espécie, teria aparecido há apenas 35 mil ou 40 mil anos, e que seria um ser meio macaco, meio homem”, diz Niéde Guidon em História dos Índios no Brasil, livro de que é co-autora. Segundo a autora, na década de 1950 ainda se consideravam as capacidades intelectuais e tecnológicas do homem de Cro-Magnon muito reduzidas. “Hoje o avanço da paleontologia humana recuou de muito a data da aparição do primeiro Homo sapiens e as técnicas de moldagem do endocrânio permitem afirmar que a estrutura cerebral era a mesma. Ninguém mais acredita no mito do Cro-Magnon peludo e meio curvado, com uma face de gorila deslumbrado por estar conseguindo 2 2
  • 3. se manter de pé. Sabe-se que o homem é o único animal terrestre que conseguiu se dispersar por todo mundo. Sua presença é antiga em todos os continentes, até na Austrália. O exemplo desse país é edificante. Até os anos 70 não se admitia que o homem aí tivesse penetrado antes de 7 mil anos, pois esse continente, durante todo o Pleistoceno e o Holoceno, nunca foi ligado à Ásia. Mesmo em épocas de nível baixo do mar, mesmo na cota mais baixa atingida pelos oceanos, existem braços de mar que separam a Austrália da Ásia. Com o progresso das pesquisas foram descobertos sítios que demonstraram que o homem já estava na Austrália há pelo menos 50 mil anos, o que nos obriga a admitir que o homem pré-histórico dominava a técnica da navegação.” Niéde Guidon propõe que “os primeiros grupos chegaram até o continente americano há pelos menos 70 mil anos” e lembra de datações ainda mais antigas: “Na região de Central, na Bahia, Maria C. M. C. Beltrão indica a existência de ossos fossilizados de animais da megafauna que teriam marcas feitas pelo homem e que forneceram datações da ordem de 300 mil anos AP”, embora a própria Niéde Guidon ache resultado exagerado e considere prudente “aguardar novos achados”. (VER MAPA DAS MIGRAÇÕES DE CHEGADA DOS PRIMEIROS AMERICANOS NO LIVRO OS INDIOS DO BRASIL, DE HERNÂNI DONATO, PAGINA 9) UM VERME DERRUBA A TEORIA DA MIGRAÇÃO TERRESTRE As doenças do homem pré-histórico também ajudam a desvendar as rotas de suas migrações. Importantes descobertas foram divulgadas em 1988, na onda de revisão da antropologia que caracterizou a década. Concluiu-se, por exemplo, que a sífilis, uma doença venérea causada por bactérias, é de origem americana e existia no continente antes da descoberta pelos europeus. Já a tuberculose inexistia entre nossos índios antes de 1492 e foi introduzida pelos europeus. Segundo o autor de um levantamento sobre a incidência de 3 3
  • 4. tuberculose entre os nossos índios, “há alta probabilidade de que os dois mais famosos padres catequistas do Brasil, Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, fossem tuberculosos. Teriam sido eles responsáveis, portanto, por muitas mortes devidas a essa doença entre os indígenas com os quais mantiveram contato” (Francisco M. Salzano, referindo-se ao trabalho de J. A N. Miranda, 1985, “O Velho e o Novo”, in História dos Índios no Brasil). Niéde Guidon cita a descoberta, no Piauí, em 1988, de um parasita intestinal, o Ancilostoma duodenalis, como mais uma prova de que a teoria do estreito de Bering não é suficiente para explicar a origem do homem americano. Esse verme é originário de regiões tropicais e suas larvas precisam ficar no solo em condições de alta temperatura para poderem infestar as pessoas e sua presença no Piauí foi datada de 7.750 anos. “Uma população vinda por Bering não teria podido trazer o parasita até a América porque o mesmo teria desaparecido durante a passagem pela Beringia e o Alasca. A existência do parasita no Piauí há mais de 7 mil anos demonstra que um povo vindo de um país quente, por rotas de clima quente, portanto vias marítimas, chegou até aí nessa data. Calculando a distância que separa São Raimundo Nonato, o local do achado, do mar, podemos propor que esses grupos navegavam até a América entre 9 mil-10 mil anos, no mínimo.” (Niede Guidon, História dos Índios do Brasil) CACIQUES DIVIDEM O CONTINENTE As novas descobertas da arqueologia e da paleontologia mudaram não só a história do continente americano, que agora recua muitos milênios atrás do que se pensava, mas a própria geografia, pois datações de fósseis de ossos de megatério (preguiça-gigante) divulgadas em 2002 na Amazônia indicam que esses animais lá viveram há cerca de 12 mil anos. Como eles não são animais de floresta densa, mas de savana, fica claro também que a própria paisagem amazônica era muito diferente há pouco mais de 10 mil anos: campos abertos de clima mais seco onde povos nômades se deslocavam para coleta de vegetais e caça. O mito de considerar os índios brasileiros como provenientes de civilizações inferiores às andinas e do México e da América Central, que construíram pirâmides e complexas cidades, também caiu por terra quando se comprovou que o Brasil foi quase inteiramente povoado por grandes Estados índios de população nômade no começo do primeiro milênio antes de Cristo, quando 4 4
  • 5. Salomão reinava sobre os judeus no Oriente Médio, os egípcios viviam o apogeu dos faraós e a Grécia e Roma ainda estavam em seus primórdios. Esses cacicatos eram formados por tribos nômades de cerca de uma dezena de grandes troncos lingüísticos e centenas de pequenos grupos lingüísticos isolados, cuja convivência, ao longo dos milênios estabeleceu uma regra comum entre os povos: as guerras, o canibalismo e as migrações. Quando os europeus chegaram ao Brasil, nos anos 1500, a presença do homem já era antiga no continente e a população da América do Sul para a época é estimada entre 1 milhão e 5 milhões de pessoas, segundo diferentes antropólogos e historiadores. Seis principais troncos lingüísticos se misturavam no continente: tupi, numa faixa central que parte da foz do Amazonas e se curva para leste na altura de São Paulo e Santa Catarina; macro-jê, no centro e em trechos de São Paulo e Nordeste; aruaque, a oeste e a norte, acima da Ilha de Marajó, caribe, centro da Colômbia e norte de Amazonas e Pará, além de área isolada em Mato Grosso; pano e ianoama, no oeste do Brasil e região andina próxima ao Acre; e tucano e nhambiquara, em trechos dos atuais Amazonas, Venezuela e Colômbia, além de pontos isolados no Peru e na Bolívia e no interior do Brasil (Mato Grosso). (VER MAPA NO LIVRO INDIOS DO BRASIL, DE JULIO CEZAR MELATTI, PÁGINAS 34 E 34A .) Segundo o falecido historiador norte-americano Warren Dean, em seu livro A Ferro e Fogo - A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, as duas grandes florestas brasileiras, a Amazônica e a Mata Atlântica, começaram a se recompor da última era glacial e tomar as feições mais atuais a partir de 12 mil anos atrás, quando já havia assentamentos humanos tanto na Amazônia como no interior e no litoral do Brasil. Há 4 mil anos, o homem passou a queimar áreas de mata densa, principalmente as de Mata Atlântica, com o surgimento da agricultura de coivara, que consiste na queima de uma área e em seu posterior plantio e abandono em troca de uma área adjacente, o que estabeleceu complexas rotas de migração. Na Amazônia, as rotas foram se estabelecendo ao longo dos rios, onde se formaram complexas civilizações, antes mesmo dos incas. É o caso das culturas de Santarém e Marajó e dezenas de outras, que elaboraram uma complexa e requintadíssima cerâmica. Curiosamente, nem os cacicatos amazônicos nem as grandes tribos pulverizadas como os tupis construíram templos ou cidades permanentes. Na Amazônia, grandes áreas foram terraplenadas e ocupadas por grupos de milhares de pessoas, mas tanto no 5 5
  • 6. norte como no centro e no sul do continente não foram criadas obras perduráveis, como os monumentos incas, maias e astecas. Os índios amazônicos, assim como os outros índios brasileiros, optaram pelas construções de madeira e, no caso da Amazônia, pelo cultivo de raízes como mandioca no começo do primeiro milênio antes de Cristo até substituí-la pelo cultivo de milho, no começo da era Cristã, sempre em culturas itinerantes, complementadas por caça e pesca. Curiosamente, depois do contato com os europeus, a agricultura indígena retrocedeu para o cultivo de mandioca, com relativo abandono do milho. A pequena quantidade de monumentos arqueológicos e vestígios materiais criou o mito de que os índios brasileiros teriam constituído civilizações inferiores, crença desmentida pelas descobertas da arqueologia, que mostra complexas civilizações ao longo dos rios Amazônicos que teriam estabelecido grandes rotas inclusive de comércio com os Andes antes mesmo do surgimento da sucessão de impérios andinos, como o dos incas, que já estavam decadentes quando os europeus chegaram. O fato de terem existido civilizações complexas no Brasil que não deixaram muitos vestígios materiais levou antropólogos como o francês Pierre Clastres a propor que os índios das terras baixas do continente sul-americano teriam criado formas de sociedade com mecanismos que intencionalmente as impediam de criar Estados centralizados. Segundo Clastres, o mito tupi-guarani da terra sem mal, uma espécie de messianismo que fazia surgir profetas a guiar migrações que dividiam as grandes aldeias, teria um sentido preciso: a busca de uma terra sem mal, onde tudo é proporcionado para o homem pela natureza sem nenhum esforço seria uma recusa anarquista ao surgimento de um poder central e se basearia basicamente na recusa ao trabalho, capaz de criar as relações sociais de quem manda e de quem obedece. Especulações à parte, sabe-se que essa pulverização em pequenas tribos que guerreavam entre si e praticavam canibalismo ritual, devorando os guerreiros derrotados de outras tribos foi uma regra de jogo importante para a acomodação milenar dos povos de diversas origens migratórias que se espalharam pelo Brasil. Em geral havia chefes de aldeia, caciques, que no caso da Amazônia se subordinavam a espécies de imperadores, cujo poder foi rapidamente desestruturado com a chegada dos europeus, guias religiosos, os pajés, e aldeias constituídas por famílias comandadas pelos pais, em geral, e, mais raramente pelas mães (cacicatos matrilineares da Amazônia que teriam criado entre os europeus o mito das mulheres guerreiras). 6 6
  • 7. A DESTRUIÇÃO DA MATA ATLANTICA “Calcula-se que, de 4 mil anos para cá, quando os primeiros habitantes da América do Sul começaram a agricultura de coivara, isto é, de queimadas, a cada milênio, pelo menos 50% da Mata Atlântica que dominava o Brasil tenham sido queimados e depois abandonados para renascerem como mato”, diz Warren Dean, a respeito da imensa floresta que cobria boa parte do Brasil quando os europeus chegaram. Os tupis teriam chegado à Mata Atlântica por volta do ano mil “e intensificaram a agricultura, possivelmente tendo queimado toda a floresta a cada 55 anos. Mas ela sempre renascia e assim foi encontrada pelos primeiros portugueses. Aliás, um dos primeiros atos dos descobridores, a 22 de abril de 1500, data da descoberta do Brasil pela frota de Pedro Álvares Cabral, foi justamente derrubar uma árvore para fazer a cruz da primeira missa.” Segundo Warren Dean, o europeu pareceu ser de início menos prejudicial que os índios, pois, enquanto os desestruturava, deixou a Mata Atlântica de lado por algum tempo, restringindo-se a coletar pau-brasil no litoral e substituir a floresta por lavouras de açúcar no litoral até o século 18, quando avançou pelo interior por causa do ciclo do ouro, e os séculos 19 e 20, quando as ferrovias e a industrialização promoveram a destruição sem precedentes da Mata Atlântica, hoje restrita a 5% de sua área original. Warren Dean conta que a primeira conseqüência da chegada dos portugueses foi o corte do pau-brasil, árvore da qual se extrai um corante usado em tecidos. “Só em 1588 passaram 4.700 toneladas dessas árvores na Alfândega de Lisboa, fora o volume contrabandeado tanto por portugueses como por outros europeus. Em 1550 havia de uma vez só 100 mil troncos estocados na colônia francesa do Rio de Janeiro. Durante o primeiro século devem ter sido cortados dois milhões de troncos de pau-brasil, afetando 6 mil quilômetros quadrados da Mata Atlântica.” O brazilianista norte-americano também se refere aos desfalques entre os animais da Mata Atlântica: “Apenas um navio, o Bretoa, levava em 1511 um total de 23 periquitos, 16 felinos, 19 macacos, 15 papagaios; outro navio, o Pélérine, em 1532, carregou 3 mil peles de ‘leopardos etc.’, 300 macacos e 600 papagaios. A partir de 1534 a mata passou a ser queimada e substituída por lavouras de cana-de-açúcar e por pastagens para o gado trazido da Europa.” 7 7
  • 8. TUPI: A LINGUA GERAL DO BRASIL Segundo o historiador Hernâni Donato a primeira classificação dos índios brasileiros foi feita pelos jesuítas, para quem os tapuias habitavam o interior e os tupis o litoral do País. Uma classificação mais científica foi criada em 1884 por Karl von Steinen e perdura até hoje, dividindo os índios brasileiros em quatro grupos principais tupi-guarani, jê (ou tapuia), maruaque (ou naipure) e caribe (ou caraíba). “Tupis e guararanis formavam um complexo de raça e de língua. Há uns 2 mil anos, eles deixaram a Cordilheira Oriental Colombiana, rumando para o Sul e para o Leste”, diz Donato. “Os futuros guaranis desceram pelos vales dos Rios Madeira e Guaporé. Os que viriam a ser os tupis, pelas praias do oceano e os vales dos Rios Araguaia e Tocantins. Mil anos depois, tupis e guaranis se reencontraram entre os rios Tietê e Paranapanema. Para se estabelecer, expulsaram ou eliminaram populações pertencentes a culturas das quais ignoramos praticamente tudo: os paleoíndios.”, explica o historiador. “Conforme Alfred Metraux, a dispersão final dos tupis e guaranis teria ocorrido a partir da Bacia do Prata, sentido Sul-Norte. Os tupis tomaram pé na extensa área entre o Pará e o sul de São Paulo, preferindo o litoral. Pelo Nordeste vagavam os tupis potiguares, tabajaras, caetés. A atual Bahia acolheu tupiniquins e tupinambás. Do Espírito Santo ao Norte do Paraná dominaram os tamoios. No planalto paulista mandaram os guaianases. Pelo baixo Amazonas, os mundurucus e os parintintins conservaram-se ‘ilhas’ tupi em meio a outros grupos. Na vastidão do seu domínio, os tupis conviveram, ora bem, ora mal, com tribos estranhas: coroados, goitacás, puris. Aos guaranis coube o chão que vai do Paraná ao Rio Grande do Sul, o Mato Grosso do Sul e terras hoje da Argentina, da Bolívia e do Paraguai. Por aí suportaram a vizinhança rixenta com os chiriguanos e outros.” Donato fala também dos tapuias, que constituiriam o grupo jê: “Não sabemos como eles se autodenominavam, pois a palavra ‘tapuia’ é da língua tupi, significando ‘não-tupi’, ‘estrangeiro’, ‘bárbaro’. Jês foram os caiapós, goitacás, cariris, aimorés, botocudos, suiás, bugres, coroados, apinajés.” Outro grupo importante seria o dos aruaques e caribes ou caraíbas, vindos das Antilhas e da América Central, que partilharam o vale amazônico e o planalto 8 8
  • 9. mato-grossense.: “Karib era o nome que se davam, traduzindo o orgulho de serem considerados valentes, guerreiros e heróis.” O historiador Julio Cezar Melatti assim explica que a língua tupi acabou imposta pelos próprios europeus ao Brasil e se tornou uma espécie de língua geral até ser proibida em xxxxx.(ver a data). No século 18, era uma língua comum nas ruas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. “Não é raro encontrar pessoas que acreditam que todos os índios do Brasil falam a língua tupi. Essa idéia se seve a uma supervalorização da língua e dos índios tupis diante dos demais indígenas brasileiros. Na verdade muitas outras línguas são faladas pelos indígenas do Brasil. Mas a crença de que o tupi é a única ou mais importante língua dos índios brasileiros tem uma explicação. É que os conquistadores portugueses encontraram todo o litoral brasileiro ocupado por índios entre os quais predominava uma língua tupi. Esta foi a primeira língua nativa que os missionários aprenderam, a ela se afeiçoando e adotando uma atitude de desdém para com as outras línguas, que não compreendiam, chamando as tribos que as falavam de povos de ‘língua travada’. A língua tupi foi não somente aprendida, mas também modificada pelos missionários, que lhe impuseram uma gramática nos moldes do latim, sendo divulgada por eles, de modo que populações indígenas de outras tradições lingüísticas chegaram a aprender o tupi. Assim, por exemplo, missionários espanhóis impuseram o guarani (a variante meridional do tupi) aos índios que habitavam o Paraguai e que não o falavam, e até hoje o guarani é falado nesse pais ao lado do espanhol. Dentro mesmo do Brasil,na região do Rio Negro, afluente do Amazonas, os sertanejos falam a ‘língua geral’, resultado da evolução do antigo tupi disciplinado pelos missionários. E os índios da região, que falam diferentes línguas não-tupis, têm sido levados a aprender a ‘língua geral’ para poderem comunicar-se com os sertanejos civilizados e entre si. (...) Por incrível que pareça, muitos indígenas vieram a aprender a falar o tupi com os civilizados.” DESCOBRIMENTO: O GRANDE CHOQUE DE CULTURAS 9 9
  • 10. Comparada com a conquista espanhola, recheada de imediato de sangrentas guerras com os índios, a conquista portuguesa pareceu mais amena, pois receberam bem e foram bem-recebidos pelos portugueses que chegaram nas caravelas, sendo carinhosamente elogiados na carta de Pero Vaz de Caminha. Em pouco tempo, entretanto, a relação dos portugueses com os índios deixou de ser cordial e os portugueses se aproveitaram das desavenças e do estado de guerra entre as tribos brasileiras, constituinte de seu próprio equilíbrio, para fazer alianças com umas tribos contra outras com a finalidade de conseguir escravos para a agricultura de cana-de-açúcar, que se seguiu à fase de troca de pau-brasil por quinquilharias européias. Alianças semelhantes foram feitas com os índios por invasores franceses e holandeses, sempre resultando em desastrosas matanças. Assim, de uma população estimada em 1 milhão a 5 milhões de habitantes na época do descobrimento, os índios brasileiros estavam reduzidos a cerca de 200 mil indivíduos nos anos 70, número que passou a crescer a partir de então, mas que mostra um verdadeiro massacre. “Durante quase cinco séculos, os índios foram pensados como seres efêmeros, em transição: transição para a cristandade, a civilização a assimilação, o desaparecimento. Hoje se sabe que as sociedades indígenas são parte de nosso futuro e não só de nosso passado. A nossa história comum foi um rosário de iniqüidades cometidas contra elas. Resta esperar que as relações que com elas se restabeleçam a partir de agora sejam mais justas: talvez o sexto centenário do descobrimento da América tenha algo a celebrar”, diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, na apresentação do importante levantamento que organizou para a obra História dos Índios no Brasil. Os conflitos entre índios e portugueses foram expressos por um velho índio tupinambá do Maranhão por volta de 1610, que teria feito o seguinte discurso aos franceses que ensaiavam estabelecer uma nova colônia e queriam alianças com os índios, contra os portugueses: “Eu vi a chegada dos peró (portugueses) em Pernambuco e Potiú; e começaram eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão traficar, sem pretenderem fixar residência. (...) Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e cidades, para morarem conosco. (...) Mais tarde, afirmaram que nem eles nem os pai (padres) podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. Mas, não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação. (...) Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizeste somente para traficar. (...) Nessa época não faláveis em aqui vos fixar; apenas vos contentáveis com visitar-nos uma vez por ano. (...) Regressáveis então ao vosso país, levando nossos gêneros para trocá-los com aquilo de que carecíamos. Agora já nos 10 10
  • 11. falais em vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-nos contra nossos inimigos. Para isso, trouxestes um morubixaba e vários pai. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o mesmo. (...) Como estes, vós não queríeis escravos, a princípio; agora os pedis e os quereis como eles no fim.” (Claude Abbeville) RECEPÇÃO CORDIAL, NA CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA O historiador Luis da Câmara Cascudo, em sua História da Alimentação no Brasil, assim nos apresenta os índios segundo a Carta de Pero Vaz de Caminha: “O primeiro depoimento sobre a alimentação indígena é a carta de Pero Vaz de Caminha datada ‘deste Porto Seguro da vossa ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.’ “Sabemos a data do primeiro contato dos brasileiros baianos com a comida européia, sexta-feira, 24 de abril. Dois tupiniquins são levados à nau capitânea e recebidos com aparato. O capitão (Pedro Álvares Cabral) sentado em cadeira, bem-vestido, colar de ouro ‘mui grande ao pescoço’, alcatifa por estrado aos pés. Os comandantes acomodados no chão, Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia e o cronista, de pernas cruzadas como mouros. Tochas acesas. Não fizeram os visitantes sinal de cortesia ao capitão nem aos demais. Reconheceram um papagaio pardo como familiar. Não fizeram caso de um carneiro, o primeiro que viam. Quase tiveram medo de uma galinha ‘não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados’. “Deram-lhes ali de comer; ´pão e peixe cozido, confeito, fartes, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; se alguma coisa provavam, logo a lançavam fora’. “Primeira prova de vinho de Portugal. ‘Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca, não gostaram nada, nem quiseram mais.’ 11 11
  • 12. Desconfiados com a própria água. ‘Trouxeram-lhes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tocaram com a boca, que lavavam, e logo a lançaram fora.’ “Pão de trigo, vinho de uvas, massa d’ovos, taça de vidro, os condimentos do peixe cozido eram revelações. O mel seria de abelhas. Ou açúcar da Madeira. “Na tarde de 25 de abril os amerabas de Porto Seguro vêem uma grande rede de arrasto, tradicional na pesca marítima portuguesa, o chinchorro que varria, lento os peixes do alto: - ‘E pescaram ali andando marinheiros com um chinchorro; e mataram pescado miúdo não muito.’ “Vêem os portugueses a primeira piperi, igapeba, batizada depois jangada, então falsamente chamada almadia. Havia camarão, deparado no domingo da Pascoela, 26,.’Alguns foram buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho, e também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.’ Bartolomeu Dias, descobridor do Cabo da Boa Esperança, o finisterra africano, matou um tubarão, ‘lhes levou e lançou na praia’. “O camarão grande o grosso podia ser um pitu (Bithynis acanthurus). O depósito de ostras partidas anunciava o sambaqui. Possivelmente na foz do rio. Visitam os portugueses uma maloca, a primeira oca brasiliense, ‘tão comprida cada uma como esta nau capitânea’ e ‘dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos’. Batismo da ini e quisaunas com o nome lusitano de ‘rede’, cama tropical que se espalharia pelo mundo. “Primeira informação sobre o cardápio local: ‘Dizem que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem’. “Não cita bebida alguma. “Na quarta-feira, 29 de abril, Sancho de Tovar trouxe para bordo ‘dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram’. E dormiram em cama de lençóis. “Na sexta-feira, 24, agasalhados pelo almirante, ‘não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provavam, logo a lançavam fora’. Cinco dias depois, comeram toda a vianda que lhes deram’. Os adubos portugueses acidulavam o quieto paladar ameraba. “No outro dia, pela manhã, 30 de abril, os dois tupiniquins sentam-se nas cadeiras européias e servem-se com toalhas: ‘Poseram-lhes toalhas, e veio- lhes vianda e de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente o 12 12
  • 13. lacão cozido frio, arroz; não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.’ “Mas iam se habituando com o vinho. Era a primeira bebida que a Europa lhes oferecia em taça de cristal no camarim das caravelas aventureiras, rumando o Oriente. Caminha, no mesmo dia, escrevia: ‘Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me que, se lhe avezarem, o beberão com boa vontade.’ “Falava como um profeta. “A economia doméstica é registrada: ‘Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer alimária, que acostumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legume comemos.’ “Não era possível mais notório elogio do regime nutricionista do tupiniquim. Não assistem a cozinha indígena, a cunhã fazendo comida para os homens da tribo talqualmente a mulher portuguesa para o homem. Não foram esses vistos trabalhando, colhendo, plantando, mas dançando, folgando, permutando, ajudando aguada, imitando cerimonial litúrgico, mastigando a vianda de Portugal dentro das naus balouçantes. “Devem comer crustáceos, ostras que são deparadas já fendidas, moluscos, peixe e carne. Os arcos garantem a caça e os marinheiros notam aves, algumas maiores que as comuns, em Portugal. Não aludem aos condimentos, sabor insosso ou salgado, cru, assado ou cozido na alimentação normal dos tupiniquins acolhedores. Estes, bem ardilosamente, evitam a permanência, demora e dormida nas suas casas de folhagens, rama verde e palmas ornamentais, ‘mui grandes, como entre Douro e Minho’. “Caminha, homem do Porto, observador, letrado, compreensivo, achava-os bestiais, sinônimo de bestas, de ação espontânea, instintiva, natural em sua legitimidade mental, e não no plano da ferocidade depois revelada em defesa indispensável e heróica, ‘... do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva’. Há a louvação ecológica. ‘Porém e com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos E naquilo me parece ainda que são como aves ou alimária montesas, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser. Isto me faz presumir que não têm casas, nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais’. Montaigne falaria, sessenta anos depois, da mesma feição. Por que não reivindicar para Pero Vaz de Caminha a prioridade exaltativa do ‘homem da natureza?’ 13 13
  • 14. “O tupiniquim de Porto Seguro, numa convivência de sete dias, bebeu vinho de uvas; comeu lacão, presunto fumado e depois cozido; pão de trigo; passas de figos; confeito de açúcar, fartes, massa doce envolta em capa folhada, com farinha de trigo, ovos água, açúcar; fartem, guloseima da Beira e o Almirante era beirão. ‘Tamanhos como fartens da Beira’, diria Fernão Soropita. O peixe cozinhado teria um sabor diverso das obras-primas da cunhã, atarefada e nativa. Revelava um índice de assimilação dietética mais acentuada que o africano ocidental ou o árabe da orla mediterrânea, defendendo mais teimosamente o tradicionalismo do paladar. Seria essa obstinação alimentar semita e negra a razão de sua pouca irradiação na geografia da nutrição. O africano esteve muito mais espalhado e penetrante no Brasil que o indígena. Mais fixo, mais contínuo, mais participante da vida brasileira nascente. O mameluco não conservava predileções do ancestral ameraba e sim do pai lusitano. O negro escravo, daria entretanto, menor contribuição à dieta nacional e popular que o furtivo indígena, já em meados do século 18 isolado em via de dispersão étnica nas regiões de maior densidade demográfica. A comida indígena permaneceu mais fiel aos modelos quinhentistas. Aos padrões da própria elaboração das farinhas, assados de carne e peixe, bebidas e frutas. O brasileiro aprendeu uma altíssima percentagem, mas o indígena, ainda existente, não se diluiu na irradiação influencial. ‘Não se dissolveu na aculturação como a ciência negra da culinária, dificilmente legítima, raramente autêntica.’ “Dessa estada na Ilha de Vera Cruz a informação culinária ameríndia é parca e fugaz. Caminha vira a piperi, iapeba, futura jangada, que ele entendeu, inexplicavelmente, dizer ‘almadia’, diversíssima; a ini, quisaua, maquira, maca, batizada pelo nome que ficaria somente no Brasil, rede, rede de dormir, na semelhança pelas malhas como a de pesca. Elementos decisivos na parafernália brasiliense. “Não teve a curiosidade de perguntar o nome de nenhum objeto local no idioma tupiniquim. Todas as coisas têm títulos portugueses. “Verdade é que, bem curiosamente, o tupiniquim comeu muito mais do que presenteou ou permutou. Exceto o inhame e o palmito, nenhuma outra iguaria brasileira mereceu registro para os olhos portugueses no derradeiro ano do século 15.” (Luis da Camara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, volume 1, páginas 84 a 88) 14 14
  • 15. LÍNGUAS INDÍGENAS Estima-se que as línguas indígenas ainda hoje existentes, umas 150, sejam metade ou menos da metade das que existiam na época do descobrimento. A maioria das línguas indígenas que morreram desapareceu sem deixar vestígios de muitas dezenas de culturas humanas que floresceram nos campos e florestas do Brasil. Dados da década de 1990 davam conta que pelo menos 16 línguas indígenas eram faladas por menos de 50 pessoas, correndo risco de desaparecer, enquanto 80 línguas eram faladas por grupos entre 50 e mil pessoas e apenas 17 tinham mais de mil falantes. Três dessas línguas, o guarani, o terena e o tukuna eram faladas por cerca de 5 mil pessoas. Os primeiros estudos das línguas ameríndias foram feitos pelos jesuítas. Já em 1595 o padre José de Anchieta fez a primeira gramática do tupinambá, apresentando análise detalhada da língua. Outra gramática surgiria em 1621, escrita pelo padre Luís Figueira. Dessa época, relata o filólogo Antonio Houaiss, “o único documento deixado por um índio são algumas cartas escritas por Felipe Camarão, conservadas na Holanda e ainda inéditas”. Houaiss também conta que o guarani do século 17 foi documentado pelo padre peruano Antonio Ruiz de Montoya. “No século 18, a documentação é devida principalmente ao jesuíta italiano Paulo Restivo.” Houaiss conta que “outas línguas foram ainda registradas no período colonial, como o kariri, que se conservou em dois dialetos, o kipeá ou kiriri de Jeru. No princípio do século 19, a documentação das língus ameríndias foi incrementada pelos naturalistas estrangeiros no Brasil, que procuraram colecioná-la como faziam com amostras da fauna e da flora. O mais importante deles foi o botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius, que, com o zoólogo Johann Baptist von Spix, coletou vocábulos de cerca de cinqüenta línguas ameríndias, publicados, juntamente com registros de outros pesquisadores, na obra intitulada em latim: Glossaria Linguarum Brasiliensium (1867; Glossários das Línguas Brasilienses).” (Enciclopédia Mirador, subverbete Línguas Ameríndias) CULINÁRIA INDIGENA O gourmet e historiador da alimentação Caloca Fernandes, que em seu livro Viagem Gastronômica através do Brasil conferiu as raízes dos hábitos 15 15
  • 16. culinários brasileiros em centenas de localidades nos quatro cantos do País, comprova que a herança indígena da farinha de mandioca, que na carta de Cabral foi chamada de inhame, permanece até hoje. “Na Amazônia e nas baías da costa brasileira ecologicamente a ela similares, como a de São Luís, Todos os Santos, a de Vitória, a da Guanabara, a de Angra dos Reis, a de Cananéia, a de Paranaguá e as ilhas de Santa Catarina, agrupavam-se grandes contingentes populacionais, com a alimentação básica suprida pela mandioca, planta especializada em produzir sete toneladas de amido, por hectare, por ano, em solos tropicais e sem maiores trabalhos, e pelo peixe de suas piscosas águas, o que ocorre até hoje. E havia comida para todos, por três anos consecutivos, garantidos pelos mandiocais um em plantio, outro em crescimento e outro em produção, determinando uma economia auto-suficiente, que congelou o modo de vida dessas populações, a uma data equivalente a 5.000 aC. “A agricultura de mandioca, uma verdadeira horticultura, tem mais ou menos dez mil anos de especialização e tecnologia de processamento, pois é um vegetal extremamente venenoso, e durante esse tempo desenvolveram-se centenas de variedades, cada qual com uma finalidade determinada: as doces, não-venenosas, as macaxeiras, do Norte, ou aipins, do Rio de Janeiro, comidas cozidas, como farinha branca e em bolos, e as amargas, bravas, as mandiocas propriamente ditas, mortais, pois necessitam de preparo, para evaporar o terrível ácido cianídrico que possuem, embora sejam mais ricas em amido. (...) “Os diferentes produtos retirados, depois de raladas e espremidas, originavam os alimentos básicos das primitivas populações brasileiras. Do líquido venenoso, resultante do prensamento, no tipiti, fermentado ao sol e fervido longamente, obtinha-se a manicuera ou o tucupi, usados no caxiri, ou como caldo, com batata-doce, cará-roxo ou branco ou frutas, carnes e peixes, com ou sem pimenta, e no nosso tacacá. “Da massa prensada faziam-se os beijus comuns assados no forno de argila, semelhantes aos pães ázimos, os de mandioca fresca, os de mandioca puba, o beiju com goma ou tapioca, os beijus cicas bem torradinhos e o pé-de- moleque. Do amido puro decantado no tucupi, fazia a goma ou polvilho, para as tapioquinhas e o tacacá, e as farinhas de tapioca, para mingaus. Da massa com tucupi, o arubé, um molho apetitoso. Da massa torrada e esfarelada, as farinhas de todas as cores, secas e d’água, finas e grossas, para serem degustadas e não mastigadas, outrora usada apenas nos tempos de guerra, como ração fácil de carregar, que misturada com água e piracuí transforma-se num pirão rápido e alimentício. “Também quando se mudavam de lugar, pelo cansaço das terras, ou pela proximidade dos inimigos, todo mandiocal era transformado em farinha, o que ocorreu maciçamente com a chegada dos portugueses, sendo então o único 16 16
  • 17. alimento encontrado em quantidade, tornando-se a partir dessa época, um mantimento comum entre os neobrasileiros e os índios. Essa farinha dos guerreiros é a matéria-prima, a origem das saborosas farofas, dos gostosos pirões, dos beijus cicas e dos simplórios xibés, neste último caso misturada a água pura, com ou sem pedaços de peixe, e daí a jacuúba, quando chegaram os limões, até os caldos de caridade, para os doentes.” (Caloca Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil) Caloca conta que os costume que os índios tinham de consumir os peixes moqueados, isto é, assados e defumados numa trempe de madeira, o moquém, “difundiu-se entre os piratas, em geral franceses, que passaram a chamar o moquém de bouquen e, pela facilidade, adotaram-no nas praias onde desembarcaram, sendo então conhecidos por bucaniers ou bucaneiros. Um pouco mais torrado, o peixe era pilado e transformado em outra ração de grande durabilidade: o piracuí. Com os peixes ou o piracuí cozidos na pimenta faziam a quinhapira, alimento comum em cujo caldo eram molhados os beijus e, se nela acrescentavam folhas de mandioca, as manivas, transformava-se na maniçoba, hoje um prato totalmente sincretizado. (...) Da carne de caça pilada com farinha produziam-se as paçocas. Na Amazônia comiam-se ainda lagartos, cobras, jacarés e todos os tipos de quelônios e seus ovos, preparados de formas diversas. Outra fonte protéica eram os insetos: cupins amarelos vivos ou assados, tanajuras cruas com farinha ou sob a forma torrada de paçoca, besouros e gafanhotos tostados, larvas de cabas e os tapurus dos troncos podres.” Os índios não usavam sal, mas temperavam sua comida com muitos tipos de pimenta, e como substituto do sal, algumas tribos usavam cinzas de aguapé, uma planta aquática, ricas em sódio. Os índios amazônicos chegaram a substituir as culturas de mandioca pelas de milho, antes da chegada dos europeus, mas voltaram ao cultivo da mandioca depois da conquista européia e foram abandonando o milho. Câmara Cascudo conta que o uso do milho e da mandioca se estendeu pela África, onde acabou substituindo o inhame conhecido dos portugueses, uma planta de folhas grandes como os antúrios e batata redonda, que até o século 16 era a dieta básica de muitos povos africanos. Se alguns itens da dieta dos índios, como comer macacos e insetos, pareceu estranha a muitos portugueses, a dieta portuguesa da época também causaria estranheza nos nossos tempos, com doces feitos de carne de frango como o manjar-branco, por exemplo. Em centenas de viagens pelo Brasil, Caloca reuniu receitas que remontam ao Brasil-Colônia, como os fartes de Sobral, no Ceará, que já são uma adaptação colonial dos fartes feitos na cozinha das caravelas, que tinham amêndoas, açúcar, farinha de trigo e pimenta-do-reino cozida. A farinha de trigo foi 17 17
  • 18. substituída pela de mandioca indígena e o sabor possivelmente melhorou nos trópicos. Também seguem a mesma linha adaptativa aos paladares europeu e ameríndio as receitas de farnéis para viagem e de bundinhas de içás fritos, que Caloca recolheu nas mais remotas cidadezinhas. RECEITAS PORTUGUESAS DO TEMPO DO DESCOBRIMENTO Farnel 6 porções Nas suas entradas pelo sertão, bandeirantes e depois os tropeiros levavam um farnel que consistia basicamente em farinha, pedaços de frango guisado ou feijão cozido e ovos cozidos duros, tudo amarrado num guardanapo grande, como eram os guardanapos de então. Ao abrir o guardanapo, para o repasto, farinha e demais ingredientes estavam todos revirados, virados, transformados no que viria a ser, muito possivelmente a origem dos atuais virados ou cuscuzes paulistas. Em algumas fazendas de tradição, o farnel continua a ser apreciado como prato histórico que é, apresentado com requintado respeito, num impecável guardanapo de linho adamascado branco, aberto à mesa na frente dos convidados. Nesta receita, apresentamos o farnel, como ainda é servido nos dias de hoje na Fazenda São Francisco, em Morungaba, interior de São Paulo. Ingredientes: 1 frango (cerca de 1,8 kg) limpo, sem pele e cortado pelas juntas 2 colheres (sopa) de azeite de oliveira 4 dentes de alho amassados 2 cebolas médias bem picadas 6 tomates sem sementes picados 1 colher (sopa) de extrato de tomate 1 folha de louro sal e pimenta a gosto 1 colher (chá) de cúrcuma (açafrão da terra) em pó 18 18
  • 19. 1 xícara (chá) de cheiro-verde (salsa e cebolinha) picado ½ xícara de azeitona verde picada 4 ovos cozidos picados 3 pedaços de lingüiça de carne de porco fresca (250 g) fritos e picados 2 xícaras (chá) de farinha de milho em flocos 1. Numa panela aquecida, junte o óleo, ou o azeite, e os pedaços de frango, mexendo até dourar levemente. 2. Acrescente o tomate, o extrato, o louro, sal e pimenta a gosto, a cúrcuma e água suficiente para cobrir 3. Leve ao fogo até ferver, tampe a panela e deixe cozinhar até a carne ficar macia e obter um molho denso. Tire do fogo, elimine os ossos e separe a carne em pedaços grossos. Junte a carne ao molho. Leve novamente ao fogo, acrescente o cheiro-verde, as azeitonas, os ovos e a lingüiça, mexendo até ferver. Adicione a farinha, aos poucos, mexendo sempre, até ficar espesso e bem úmido (como cuscuz). 4. Ponha no meio de um guardanapo grande de linho engomado, amarre as quatro pontas, coloque num prato de servir. O guardanapo deverá ser desamarrado apenas quando todos os convidados estiverem à mesa, para que todos possam ser surpreendidos pelo aroma extraordinário que, nessa altura, se desprende dele. Farofa de içás 4 porções Ingredientes: 4 xicaras de içás 2 colheres (sopa) de sal 2 colheres (sopa) de banha ou 3 colheres de óleo 2 xícaras de farinha de mandioca 1. Limpam-se as içás tirando as perninhas, as cabeças, as asas se ainda restarem algumas. Apenas os abdomes, ou melhor, as bundinhas, são aproveitadas. 2. Ponha as bundinhas das içás numa tigela, cubra com água e sal e dexie de molho de 30 a 40 minutos. 19 19
  • 20. 3. Escorra bem. Numa panela de fundo reforçado ou de ferro derreta a banha em fogo forte e acrescente as içás, mexendo sempre até torrarem. Junte a farinha de mandioca, aos poucos, e continue mexendo bastante para não queimar. Acompanhe, se quiser, com café forte. Fartes de Sobral 60 fartes Massa: 3 xícaras (chá) de farinha de mandioca 2 colheres (sopa) de manteiga 1 pitada de sal 1 e ½ xícara de água morna Recheio: ½ kg de açúcar 2 xícaras (chá) de água leite grosso de um coco ½ kg de farinha de mandioca 250 g de castanhas de caju, moídas 1 colher (sopa) de manteiga gengibre ralado, a gosto leite de 1 coco grande manteiga, para untar farinha de trigo, para enfarinhar 2 gemas batidas, para pincelar açúcar cristal, para polvilhar 1. Prepare a massa pondo a farinha numa tigela. Junte a manteiga, o sal e acrescente água, aos poucos, até obter uma massa que se solte das mãos. Embrulhe em filme plástico e deixe descansar enquanto prepara o recheio. 2. Numa panela média, ponha o açúcar e a água e leve ao fogo, mexendo até o açúcar se dissolver. Pare de mexer e deixe ferver até obter uma calda em ponto de pasta. 3. Tire a panela do fogo, e introduza o leite de coco, a farinha, as castanhas de caju, a manteiga e o gengibre ralado. Leve de volta a 20 20
  • 21. panela ao fogo brando, mexendo sempre, até a colher, ao abrir caminho pelo creme, deixar um rastro no fundo da panela. 4. Prepare as assadeiras: unte-as com manteiga e polvilhe com farinha de trigo. 5. Numa superfície enfarinhada, abra a massa reservada com um rolo, aos poucos e recorte círculos com cerca de 10 cm de diâmetro (use um pires de café). Ponha uma pequena porção do creme já completamente frio sobre cada círculo, dobre a massa sobre o creme e cole as beiradas da massa com uma pincelada de gemas. À medida que forem ficando prontos, distribua os pasteizinhos nas assadeiras preparadas. 6. Leve ao forno preaquecido em temperatura quente (200 ºC) até dourarem levemente (cerca de 15 minutos). Tire do forno e polvilhe-os com açúcar cristal. Sirva-os depois de frios “Além desta receita dos fartes de Sobral”, escreveu Caloca Fernandes, “há uma outra, listada por Divina Maria de Oliveira Pelles no seu livro Antiga e Moderna Cozinha Goiana, constando como uma das mais antigas da cidade de Goiás Velho, cuja massa é preparada com um angu feito de raspa – como os goianos chamam a mandioca mansa (aipim) ralada -, água e sal. O recheio é feito de melado de rapadura, farinha de mandioca e pimenta-do-reino, única especiaria herdada dos fartes desembarcados em 1500. A mandioca e a rapadura aparecem já adaptando esses doces ibéricos às terras brasileiras cujo preparo, segundo a autora, nos foi legado pelas escravas cozinheiras.” Fonte: Caloca Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, paginas 186, 189 e 29. MANJAR BRANCO DE FRANGO Luis da Câmara Cascudo, o grande etnógrafo e folclorista potiguar, também pesquisou as comidas portuguesas trazidas pelos descobridores, que foram sendo adaptadas às matérias-primas e receitas indígenas locais. Um doce português comum na época, mas que acabou esquecido na sua forma original é o manjar-branco, do qual nas receitas atuais só resta o nome. O manjar- branco original era, segundo Câmara Cascudo, um doce feito à base de carne de frango. Eis a receita original do manjar-branco, descrita por Câmara Cascudo, em seu livro A História da Alimentação no Brasil: “Coze-se uma galinha e, depois de bem cozida, tira-se para um prato onde se deixa arrefecer. Estando fria, extrai-se-lhe toda a carne do peito, sem a pele, e esta carne desfia-se à mão o mais completamente possível. 21 21
  • 22. “Feito isto, em um tacho bem limpo, deita-se um litro de leite e, no leite, a carne desfeita da galinha. Mexe-se bem para a mistura ficar perfeita e, depois, reúne-se-lhe um quilo de açúcar refinado, e 320 gramas de farinha de arroz. “Mexe-se bem, e leva-se ao lume onde se põe a cozer. Enquanto vai cozendo, deita-se no tacho, pouco a pouco, um litro de leite, onde se dissolveu meio quilo de açúcar refinado. “Assim que tudo estiver cozido, o que se conhece quando, metendo no preparado a ponta da faca, esta despegar lisa, deita-se-lhe uma pouca de água- flor, dá-se-lhe uma mexedela, e tira-se do fogo, deitando-se o doce em pequenos pires, ou em uma travessa grande, para, depois de frio, se cortar em pedaços. “Nos dias de jejum os frades substituíam o peito de galinha por qualquer peixe cozido, cuja massa, depois de bem triturada, se passava pela peneira para ir isenta de peles e espinhas. “Esta é a verdadeira receita do manjar-branco. No Porto usavam em lugar da galinha deitar-lhe amêndoa, e neste caso será bastante 150 gramas.” Fonte: Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou – Doçaria Portuguesa, História, Decoração, Receituário, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1928, citado por Luis da Câmara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, volume 1, página 346 CAUIM, BEBIDA ALCOÓLICA FEITA DE MANDIOCA “As raízes de aipim e mandioca, que servem de principal alimento aos selvagens, são também utilizadas no preparo de sua bebida usual. Depois de as cortarem em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres as fervem em grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram- nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito isso, acocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas, jogando-as depois em outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura, mexendo-as com um pau até que esteja tudo muito bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar em vãos de barro de capacidade igual a uma meia pipa de vinho de Borgonha. Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para o uso. (...) Os selvagens chamam a essa bebida cauim, é turva e espessa como borra e tem como que o gosto do leite azedo. Há cauim branco e tinto, tal qual o vinho.” A mastigação da mandioca pelas mulheres é o segredo desta bebida fermentada, pois fornece os microrganismos que dão à bebida o seu teor alcoólico e sabor de leite azedo. 22 22
  • 23. (Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, 1556-1558) CANIBALISMO: UM CHOQUE PARA OS EUROPEUS Embora tenham sido amigáveis com os portugueses das caravelas de Pedro Álvares Cabral, os tupinambás e a maioria das outras tribos que habitavam o Brasil tinham costumes completamente diferentes dos europeus: além da crença em outros deuses e principalmente espíritos da natureza, os índios tinham vida sexual livre e intensa e praticavam constantemente a guerra e o canibalismo. Os índios não tinham ideais humanistas, de respeito aos direitos humanos, como hoje os concebemos, mas os europeus da época também não os tinham, pois estavam divididos entre ideais cristãos de catequizar os índios e o interesse de aprisioná-los como escravos, o que acabou acontecendo. Jesuítas como Nóbrega e Anchieta deploraram os costumes sexuais dos índios em diversas cartas. As índias em geral não casavam virgens, porque a virgindade não era valorizada nesses povos. O próprio pai ou a mãe as ofereciam a filha a amigos para que lhes tirassem a virgindade quando chegava a adolescência. Em geral o homossexualismo era tolerado tanto entre homens como entre mulheres. Para poder casar, um índio tupinambá, do tronco tupi, precisava ter matado pelo menos um inimigo, que teria de ser comido ritualmente por sua tribo. Esse sistema de valores que imperava na América na época da chegada dos europeus acabou sofrendo uma brusca interrupção. A condenação européia do canibalismo logo cortou a espinha dorsal das culturas indígenas, baseadas em pequenos cacicatos com status de Estados que permanentemente guerreavam entre si e se entredevoravam. Esse estado lúdico de guerra mantinha o controle populacional e servia para evitar aquilo que Pierre Clastres chamava de “o fortalecimento dos Estados”. Festas rituais em que seres humanos eram devorados eram comuns no continente americano e ocorriam também entre os grandes Estados incas, maias e astecas. Só pela proibição da antropofagia, os índios que conhecemos hoje mostram valores muito diferentes dos que existiam no Brasil na época da chegada dos europeus. 23 23
  • 24. Como já relatara Hans Staden num livro que fez sucesso na Europa em ........, os prisioneiros de guerra eram bem-tratados e engordados e podiam até desposar mulheres da tribo, se quisessem, até que seu ritual de sacrifício fosse marcado, o que costumava demorar meses. Chegado o dia, a tribo fazia uma festa, o inimigo era sacrificado em meio a um ritual de que participava solenemente, em seguida esquartejado e sua carne servida assada em moquém (defumada sobre estrado de madeira). Segundo os próprios índios, o canibalismo era o cumprimento de uma vingança contra os espíritos dos antepassados inimigos (que consta nos mitos tupis-guaranis) ou um ato de reverência aos antepassados (como está nos mitos jês). O sociólogo Florestan Fernandes descreve detalhadamente o ritual de canibalismo dos tupinambás (tronco tupi): “Antes de iniciarem os últimos ritos preparatórios do sacrifício, o matador (aquele que aprisionou o inimigo) retirava-se, acompanhado de 13 ou 14 guerreiros para sua maloca. Pintava-se então com tinturas extraídas de certas raízes, ficando de cor plúmbea. Ornamentava-se o mais ricamente que podia e quando a provisão de projéteis do prisioneiro se esgotava, saía imponente da maloca, ‘ricamente enfeitado com lindas plumas, barrete e outros adornos; e armado de um enorme tacape’. Na cabeça ostentava uma carapuça de penas amarelas e um diadema; nos braços e nas pernas, usava manilhas do mesmo tipo de penas. Sobraçava grandes ramais de contas brancas, tendo ainda um ‘rabo de penas de ema nas ancas’. O tacape também era ricamente ornamentado. Saía de uma maloca acompanhado de um cortejo, constituído por um grupo de parentes e amigos. Estes o acompanhavam, com cantos e músicas comemorativas. O matador tornava-se a pessoa central dos acontecimentos atingindo com isso a honra ‘maior que pode ser’ – ‘pois já chegou a ganhar tamanha honra, como é vingar a morte de seus antepassados e de seus irmãos e parentes’. Quando chegava ao local do sacrifício, já encontrava o prisioneiro completamente preparado e recebia o tacape das mãos de um ancião. Este personagem é descrito por Cardim como sendo o ‘honrado padrinho do novo cavaleiro’. O ‘padrinho’ tomava-lhe o ibirapema, passando-lhe a arma ‘muitas vezes por entre as pernas, metendo-a ora por uma parte, ora por outra da própria maneira que os cachorrinhos dos sanfoneiros, passando-lhe por entre as pernas, e depois tomando-a pelo meio com ambas as mãos aponta com uma estocada aos olhos do morto, e isto feito lhe vira a cabeça para cima da maneira que dela hão de usar, e a mete nas mãos do matador. Nesta fase do ritual, tanto o matador quanto a arma estavam completamente preparados para o sacrifício. Então, o matador volteava diante do prisioneiro, ameaçando-o com o tacape e travando com ele um rápido diálogo. Dizia-lhe o matador que ali se encontrava para o matar. O prisioneiro 24 24
  • 25. respondia no mesmo tom ‘com mil roncarias’. Segundo Lery, o diálogo travava-se da seguinte forma: “Matador – ‘Não és tu da nação dos maracajás, que é nossa inimiga? Não tens morto aos nossos pais e amigos?’ “Prisioneiro – ‘Sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos.’ O prisioneiro levava as mãos à cabeça e exclamava: ‘Eu não estou fingindo, fui mesmo valente e assaltei e venci os vossos pais e comi.’ “Matador – ‘Agora estás em nosso poder e serás morto por mim e moqueado e devorado por todos.’ “Prisioneiro – ‘Meus parentes me vingarão.’ “O prisioneiro observava atentamente os movimentos do matador e dos dois homens que seguravam as pontas da corda por meio da qual estava amarrado. (...) Graças ao auxílio dos guerreiros que seguravam as pontas da corda, imobilizando de certa forma o prisioneiro, o matador podia em certo momento aplicar o golpe fatal. Com uma ou duas marretadas atrás da orelha e um golpe brusco na caixa craniana, fazia saltar os miolos da vítima.” Florestan Fernandes explica que até a maneira como o morto caía era analisada pela tribo. “Se caía de costas, o prognóstico tornava-se desfavorável para o matador, que logo haveria de morrer. Se tombava de bruços, encaravam os indícios como favoráveis ao matador.” Antes e durante a cerimônia, os índios embriagam-se de cauim, bebida feita de mandioca fermentada que é mastigada pelas mulheres da aldeia. O matador do índio inimigo não come a sua carne. Limita-se a matá-lo, cumprir o ritual que lhe permite mudar de nome, e aí volta para sua maloca. A cada homem que matar o índio vai mudando de nome, mas as festas não são tão solenes como a primeira, que também o prepara para o casamento . O sociólogo explica que, “quando um tupinambá sacrificava um inimigo, as cerimônias comemorativas prolongavam-se ‘por espaço de dois a três anos’. Consumada a execução, o matador tirava a capa de penas e largava o ibirapema, encaminhando-se para a sua maloca. O que servira de ‘padrinho’ aguardava-o à entrada da maloca, com seu arco aplicado verticalmente sobre a porta, de modo que uma das pontas do arco repousava na soleira e a outra batia no batente. Distendia a corda na forma habitual de tiro, deixando portanto um espaço livre, suficientemente largo para ser atravessado por um homem. O matador passa por dentro tão sutilmente que não toca em nada’. Quando ele passava, ‘o outro alarga a corda com um sinal de pesar, porque errou o a que atirava’. O objetivo da cerimônia, naturalmente, era de caráter mágico. Consistia em fazer o matador ligeiro e torná-lo alvo difícil quando dos combates com os inimigos.” (Florestan Fernandes, Organização Social dos Tupinambá, páginas 231 a 234) 25 25
  • 26. Como se tivesse sido dividido em múltiplos tabuleiros de xadrez, o território brasileiro era dividido entre tribos que se espalhavam por grandes áreas, como os tupis, que ocupavam uma faixa que descia da ilha de Marajó, na Amazônia, para o Brasil Central e terminava quase no litoral de São Paulo, englobando Paraná, Paraguai e trechos da Argentina. As tribos vizinhas de outros troncos lingüísticos (mais de 300 no Brasil todo, segundo se supõe) e algumas facções da própria tribo tupi eram tradicionalmente consideradas inimigas e viviam guerreando entre si. O canibalismo era uma forma mágica de vingar a morte de antepassados e assimilar a força do inimigo que fazia parte do coração da cultura indígena: ele estabelecia o equilíbrio populacional das terras baixas com base em guerras rituais, permitindo a existência de grandes territórios periodicamente ocupados por populações nômades. Era um mundo de cacicatos, com alguns chefes indígenas assumindo o comando de várias aldeias de uma mesma tribo ou até de tribos diferentes em tempos de guerra, e de vendettas tribais, que ainda hoje existem em populações da África, por exemplo, mas que deixaram de ter razão de ser, pois a ocupação do território pelos europeus bloqueou os caminhos desse grande jogo de xadrez nômade baseado em queimadas e uso itinerante do solo e dos recursos naturais. Eram populações migrantes, acostumadas a se estabelecer em certos lugares a certos intervalos de alguns anos, como o faziam as cortes dos senhores medievais europeus da época das cruzadas, que se mudavam constantemente para os locais conquistados e também voltavam para as antigas moradias. Florestan Fernandes conta que, enquanto Nóbrega e Anchieta conseguiram apenas captar a simpatia dos tupinambás de Iperoig, na costa de São Paulo, a maioria dos outros tupinambás do litoral ofereceu resistência quando os portugueses deixaram de apenas trocar pau-brasil por quinquilharias e passaram a tomar posse das terras. Assim, os tupinambás do Rio de Janeiro, por exemplo, no começo ficaram amigos dos portugueses, com os quais se aliaram contra seus inimigos e aos quais protegiam. Em 1531, chegaram a fornecer farinha e paçoca para alimentação da tripulação das caravelas comandadas por Pero Lopes de Souza. As caravelas ficaram três meses. E a comida dada pelos índios foi suficiente para alimentar 400 homens durante um ano. Mas as relações com os portugueses não se mantiveram amigáveis por muito tempo, porque houve desavenças e também invasões de holandeses e franceses, no Nordeste e no Rio de Janeiro. Para se estabelecer, os estrangeiros também souberam usar as alianças com os índios, o que gerou um verdadeiro genocídio nas guerras de reconquista promovidas pelos portugueses. No Rio de Janeiro, por exemplo, os tupinambás se revoltaram contra os portugueses, que passaram a exigir que lhes fornecessem escravos capturados 26 26
  • 27. das tribos inimigas, e se aliaram aos piratas franceses, que lhes ofereceram proteção e fortificações. O padre José de Anchieta diz que a ruptura foi culpa dos portugueses: “Sendo dantes muito amigos dos portugueses, os índios se levantaram contra eles por grandes agravos e injustiças que lhes fizeram, e receberam os franceses, dos quais nenhum agravo receberam.” (José de Anchieta, Cartas, págs. 310-311, in Florestan Fernandes, Organização Social dos Tupinambá, pág. 26) “Em conseqüência da guerra com os portugueses, os tupinambás do Rio de Janeiro foram em parte exterminados. Outros emigraram e alguns se submeteram aos brancos. Em quinze anos, de 1560 a 1575, os portugueses conseguiram conquistar a terra, expulsar os franceses da região e impor seu domínio aos aborígines”, conta Florestan. Em 1550 os tupinambás chegaram a destruir um forte construído por Tomé de Souza em Bertioga, no litoral do que hoje é o Estado de São Paulo. No Rio de Janeiro, com a destruição por uma expedição militar portuguesa em 1560 do Forte de Coligny e conseqüente extermínio dos franceses, os cacicatos tupinambás se dividiam-se entre apoiar os portugueses ou promover uma feroz guerra contra eles. O cacique Pindobuçu ou Cunhambebe, por exemplo, salvou a vida do padre José de Anchieta várias vezes durante cerco de índios inimigos porque todos ouviam sua voz. Cunhambebe “aceitava a aliança com os portugueses, dizendo aos seus ‘Não quero que ninguém bula em minha aldeia; os cristãos fazem pazes comigo que estou fronteiro, e os meus não me vêm a defender, não querem estes meus parentes senão cabeças de fora dos cristãos, não hei de consentir.” (Padre José de Anchieta, Cartas, pág. 222, in Florestan Fernandes, Organização Social dos Tupinambá) “Entre 1564 e 1568, os portugueses conseguiram submeter completamente os tupinambás do Rio de Janeiro. Em 1567 existiam áreas no Rio de Janeiro em que os portugueses ‘não ousavam ainda estender, com medo dos inimigos’. Mas novos auxílios chegados da Bahia tornaram possível o êxito final dos portugueses. Atacaram então em primeiro lugar a aldeia mais forte, do cacique Uruçu-Mirim. Neste grupo local ‘não ficou um tupinambá com vida’. Depois atacaram o grupo local de Paranapucuí. Morreram muitos tupinambás, mas alguns conseguiram fugir ou se submeteram.”, conta Florestan Fernandes. Ele explica que o último reduto tupinambá no Rio de Janeiro foi Cabo Frio, conquistado pelos portugueses em 1574, depois de sangrentas batalhas. Segundo Gabriel Soares, os tupinambás foram entrados, mortos infinitos, e cativos oito ou dez mil almas.’. A maioria dos sobreviventes emigrou para o sertão; ‘com espanto do que tinham visto, se afastaram de toda aquela costa’. Cardim e Laet informam que alguns dos sobreviventes que fugiram para o sertão, constituíram um novo grupo tribal, com o nome de Ararapes. Alguns 27 27
  • 28. entretanto, submeteram-se e tornaram-se cristãos. (Florestan Fernandes, A Organização Social dos Tupinambá, pág. 30) Em 1584, duas aldeias da Companhia de Jesus sediadas no Rio de Janeiro (São Barnabé e São Lourenço) reuniam cerca de 3 mil tupinambás. No interior do Rio de Janeiro, Florestan Fernandes cita batalhas em que os portugueses exterminaram cerca de 10 mil tupinambás “todos os velhos e mulheres e particularmente os que eram réus dos assassinatos dos meus companheiros. Os vinte mil restantes foram repartidos como escravos” (Antônio Knivet, citado por Florestan Fernandes, A Organização Social dos Tupinambá, pág, 31) A DEFESA DE MONTAIGNE “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no dizem daqueles povos; e na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. As qualidades e propriedades dos chamados selvagens, os frutos que natureza produz sem a intervenção do homem, são vivas vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido. (...) “Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. As leis da natureza, não ainda pervertidas pelas imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes não os tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens capazes de apreciá-los. Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido falar deles.” (Os Canibais, em Ensaios, de Michel de Montaigne) Com o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592), começou toda uma onda de valorização do bom selvagem que teve seu apogeu em Jean-Jacques Rousseau, autor da teoria do bom selvagem, isto é, de que o homem seria puro e bom por natureza e estaria sendo pervertido pelas deformações da sociedade. 28 28
  • 29. SEXO LIVRE: COSTUMES ESCANDALOSOS “Aos olhos dos jesuítas, sempre queixosos das dificuldades da catequese, do clima e da falta de recursos, o frenesi sexual campeava, antes de tudo, entre os índios: sempre nus, polígamos, incestuosos”, diz Ronaldo Vainfas, em Moralidades Brasílicas, ensaio do primeiro volume de Historia da Vida Privada no Brasil. Os índios em geral eram patriarcais e tinham várias mulheres, havendo raras tribos amazônicas matriarcais, talvez herança da pré- história. Eles só não casavam mãe com filho, filha com pai e irmão com irmã, mas permitiam os outros matrimônios próximos, o que escandalizava os jesuítas. O padre Manuel da Nóbrega, por exemplo, dizia que “Quase todos os portugueses, não satisfeitos em fazer suas escravas de mancebas, lançavam-se às mulheres livres, pedindo-as aos índios por mulheres. E se os padres ousassem admoestá-los para que se casassem com uma só índia, como Deus mandava, eram ofendidos, ameaçados e até perseguidos pelos escandalosos colonos.” Nóbrega carregava nas tintas especialmente contra João Ramalho, tido como o exemplo-mor do que faziam os portugueses no Brasil. “Sua vida”, vituperava Nóbrega, “corria solta à moda dos índios, rodeado de mulheres e da filharada que estas lhes davam; e os meninos de Ramalho, mal atingiam a puberdade, não hesitavam em seguir o exemplo do pai, unindo-se a várias mulheres, sem cuidar se eram irmãs ou parentas. A esta terra não vieram senão desterrados da mais vil e perversa gente do Reino”, desabafos do padre Manuel da Nóbrega, citados por Ronaldo Vainfas na História da Vida Privada no Brasil. O padre José de Anchieta também reclamava da moral volúvel das indígenas, que se ofereciam aos portugueses colonizadores, “preferindo os portugueses aos próprios índios de suas tribos”. Nem inferiores aos europeus, como acreditava Pero Vaz de Caminha, nem superiores, como pensaram os filósofos franceses Michel de Montaigne e Jean-Jacques Rousseau, os índios brasileiros são tão seres humanos como os europeus e suas complexas culturas têm qualidades e defeitos, assim como a européia. Se os sertanistas como os irmãos Villas Boas, elogiam o fato de os índios não terem cadeias ou polícia porque as idéias compartilhadas orientam toda a sociedade (ideologia) e além disso serem mais felizes do que nós porque vivem em harmonia com a natureza, nós, os civilizados, provavelmente não conseguiríamos nos adaptar a um mundo regido pelas almas dos antepassados e pelos espíritos das plantas e dos animais em que temos de casar com determinada prima cruzada, embora possamos ter mais 29 29
  • 30. mulheres. Se fosse no tempo do descobrimento, então, seria pior: para poder casar, teríamos de ter matado um inimigo e servi-lo esquartejado e assado ao resto da tribo. Muitos sertanistas e antropólogos também idealizam os índios, tendo alguns afirmado que as sociedades indígenas seriam tão “equilibradas” ou “saudáveis” que não teriam casos de homossexualidade, nesse contexto vista como uma anomalia social. Bobagens desse tipo foram ditas, por exemplo, pelo discípulo de Sigmund Freud, Wilhelm Reich, que escreve textualmente não haver casos de homossexualidade entre os índios, pelo fato de suas sociedades serem mais livres e sadias que a ocidental. Esse mito foi derrubado por outros etnólogos e antropólogos. Pierre Clastres fez um ensaio sobre um caso de homossexualismo entre os guaiaquis, falando de um homossexual que era respeitado pela tribo enquanto vivia entre as mulheres e se entregava aos homens que quisesse, mas passou a ser hostilizado e acabou morto quando decidiu também participar da rotina dos homens e sair com eles para a caça. Levy Strauss também fala de homossexualismo entre índios brasileiros. Mas o mais impressionante relato da liberdade sexual entre os tupinambás é dado por Florestan Fernandes: “Parece-me que as práticas sodomíticas dos tupinambás devem ser encaradas em termos dessas dificuldades na obtenção de parceiras sexuais. Segundo Gabriel Soares, os tupinambás eram ‘muito afeiçoados aos pecados nefandos’. É provável que chegaram a dar um aspecto formal a tais relações, pois alguns pederastas passivos possuíam cabanas próprias, onde mantinham seus colóquios amorosos. ‘E nas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas. A sodomia recebia o beneplácito social; as relações desta espécie ‘não se têm por afronta’. Contudo, parece que havia uma avaliação diferente das mesmas, de acordo com a posição ocupada no coito anal por um dos parceiros. Gabriel Soares informa que os pederastas ativos se orgulhavam daquelas relações, considerando-as uma manifestação de valor e valentia. Entre os tupina, observou o seguinte ‘Os que servem de machos se prezam disso e o tratam quando dizem os seus louvores’. Doutro lado, Lery apresenta a sodomia como uma mancha degradante entre os tupinambás. Quando se insultavam, utilizavam a palavra ‘tivira’ para designar o pederasta passivo. Lévy Strauss verificou, por exemplo, que entre os nhambiquaras contemporâneos a dificuldade em conseguir mulheres desenvolveu a prática de relações homossexuais regulares, entre primos cruzados.” O professor Florestan Fernandes descreve também casos de homossexualidade feminina entre os índios brasileiros, mostrando que eles não são diferentes das outras sociedades do mundo no que se refere à 30 30
  • 31. complexidade dos sentimentos e paixões humanas. “A canalização dos sentimentos amorosos e eróticos em direção a indivíduos do mesmo sexo ocorria também entre as mulheres. Pero Correia escrevia ‘Há cá muitas mulheres que assim nas armas como em todas as outras coisas seguem o ofício dos homens e têm outras mulheres com quem são casadas. A maior injúria que lhes podem fazer é chamá-las de mulheres. Segundo Gandavo, as mulheres tríbades assumiam atitudes culturalmente definidas como masculinas. Conviviam exclusivamente com os homens, agiam como eles, empenhando-se em suas tarefas e indo com eles à guerra. Do mesmo modo, rejeitavam os cônjuges masculinos. Adotavam a forma masculina de penteado e contraíam núpcias como os homens: ‘Cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher.” O sociólogo conta que por problemas de distribuição de faixas etárias nas tribos, homens jovens geralmente casavam com mulheres velhas e mulheres jovens com homens velhos, o que transformava o casamento numa forma de pedagogia. Havia muitos casos de jovens que casavam com mulheres velhas estéreis, que depois se somavam a outras, mais jovens, que ele ia conseguindo. As mulheres velhas, sem parceiro, também se entregavam aos adolescentes: “Como tinham pouca probabilidade de atrair homens adultos, as velhas procuravam os meninos púberes e os rapazes viris. ‘E ensinam-lhes a fazer o que eles não sabem, e não os deixam nem de dia nem de noite’. Por isso, sendo de pouca idade, têm conta com mulheres, e bem mulheres”. Essas aventuras transformavam-se, depois, em meios de adestramento sexual, suavizando parcialmente as necessidades sexuais dos jovens.” (Florestan Fernandes, A Organização Social dos Tupinambá, págs 136 a 139) VALORES HUMANOS Fora o costume disseminado de guerrear entre si em vendettas tribais e a prática da antropofagia, outros aspectos da vida dos indígenas brasileiros fascinaram antropólogos e filósofos ao longo dos séculos. Um deles era a liberdade com que se podia viver em contato direto com a natureza. Quando os portugueses chegaram, a maioria das tribos já constituía formas de Estados nômades, as nações indígenas, formadas por cacicatos de mesmo parentesco lingüístico. A produção atendia à sobrevivência imediata, não existindo a 31 31
  • 32. situação de abundância que permitisse aos indivíduos não trabalhar, mas em compensação sobrava muito tempo para o lazer e para o contato humano. A terra era considerada uma propriedade de todos e a troca de produtos entre as tribos não visava ao lucro. Nesses Estados intencionalmente reducionistas, constituídos por grupos de famílias que formavam as aldeias aliadas ou inimigas, não havia especialização de funções, de forma que a divisão de trabalho se dava e ainda se dá por faixas etárias e por sexo. Dessa forma, cada homem sabe fazer tudo o que os demais homens da aldeia fazem e cada mulher aprende desde pequena a fazer tudo o que as outras fazem. As mulheres ficavam com a culinária, a educação das crianças, o plantio e a colheita, enquanto os homens ficavam com a caça, a pesca, a derrubada e queimada das matas para agricultura itinerante, a chefia da aldeia e a guerra. Apesar da relativa liberdade sexual dos índios brasileiros, sua observância generalizada do tabu do incesto, que impedia casamentos entre pais e filhas, mães e filhos e irmãos, faz supor uma reação preventiva contra a endogamia e suas doenças recessivas e o fechamento da sociedade, impedindo o desenvolvimento de laços econômicos mais amplos entre os membros da aldeia. Tornou-se clássica a resposta que um índio dos Mares do Sul deu à antropóloga Margareth Mead, quando ela lhe perguntou por que ele não se casava com sua própria irmã: “O quê? (...) Será que não compreendes que, se casares com a irmã de outro homem e outro homem com a tua irmã, tu terais dois cunhados, ao passo que, se te casares com tua irmã, não terás nenhum? Com quem irias caçar, quem te ajudaria a cultivar tua horta e a quem irias visitar.” “O índio em sua tribo tem um lugar estável e tranqüilo”, diz o sertanista Orlando Villas Boas. “O índio é totalmente livre, sem precisar dar satisfações de seus atos a quem quer que seja. (...) Que diferença enorme entre as duas humanidades: uma tranqüila, onde o homem é dono de todos os seus atos; outra, uma sociedade em explosão, onde é preciso um aparato, um sistema repressivo, para poder manter a ordem e a paz dentro da sociedade. Se um indivíduo der um grito no centro de São Paulo, uma rádio-patrulha poderá leva-lo preso. Se um índio der um tremendo berro no meio da aldeia, ninguém olhará para ele, nem irá perguntar por que ele gritou. O índio é um homem livre.” Esse índio elogiado por Orlando Villas Boas já sofreu uma mudança na visão de mundo e nas regras de conduta ao ser pacificado pelos brancos, que os convenceram a abandonar as vendettas e o canibalismo, para viverem vizinhos dentro de parques. Convencidos pelos brancos, missionários, sertanistas e antropólogos, os próprios índios que se aproximaram dos 32 32
  • 33. portugueses abandonaram rapidamente o canibalismo. Que aconteceria com os índios brasileiros se eles não tivessem tido contato com os brancos europeus? Provavelmente também abandonariam o canibalismo e os sacrifícios humanos, como o fizeram os gregos arcaicos e os judeus, com o progresso da racionalização das sociedades, que passam a se reger por leis definidas por especialistas,tanto líderes religiosos como lideranças mais velhas, com experiência, alianças e poder. TRAGÉDIA AMERICANA: O MASSACRE DAS MISSÕES, A REPÚBLICA COMUNISTA CRISTÃ DOS GUARANIS Um conjunto de Estados índios, que constituía uma verdadeira federação no Sul do País chegou a ter um padrão de vida superior à média da Colônia e até da Europa. Sociedade singular, foi constituída intermitentemente durante dois séculos, os anos 1600 até o final dos anos 1700, por jesuítas e índios guerreiros no Sul do Brasil, englobando áreas dos atuais Estados do Rio Grande do Sul e Paraná e de países como Uruguai, Paraguai e Argentina. Estimando por baixo, chegaram a constituir mais de 30 cidades-Estados jesuítico-guaranis, com uma média de 3 mil pessoas cada, num conjunto de cerca de 100 mil índios, a maioria guaranis, mas incluindo muitos outros povos, que no modelo jesuítico das reduções viu uma saída para o estado de guerra permanente entre as tribos e os interesses portugueses e espanhóis de aprisionar os índios como escravos. Os jesuítas, ao contrário, propunham a união de índios dispersos, reunidos sob a fé cristã que astuciosamente sobrepuseram à religião guarani, afirmando que se seu deus supremo, tupã, corresponderia ao deus-pai da santíssima trindade. Os jesuítas também reuniram tribos dispersas e ameaçadas nos conturbados tempos da conquista e as subordinaram a uma mesma língua, uma espécie de esperanto feito com a língua guarani submetida à gramática do latim. Tudo isso ocorreu numa espécie e terra de ninguém, disputada entre portugueses e espanhóis, pois, pelo Tratado de Tordesilhas (.....) a região hoje ocupada pelo Sul do Brasil pertenceria à Espanha, ficando os portugueses com uma faixa litorânea. Os reis católicos da Espanha se aproveitaram da situação e apoiaram os jesuítas, que com subvenção da Coroa, trouxeram centenas de cabeças de gado e as distribuíram pelas missões dos pampas gaúchos e das 33 33
  • 34. planícies do Uruguai, do Paraguai e da Argentina. Também fizeram da erva- mate nativa da região um comércio rentável. Durante dois séculos, os jesuítas promoveram dois ciclos de colonização, um de 1626 a 1637 e outro de 1682 a 1767, na região das Missões, construindo cidades de pedra com casas para casais, alojamentos para solteiros e viúvos, casas para os frades, oficinas, escolas de arte e áreas de trabalho comum, além de monumentais igrejas de pedra, cujas ruínas até hoje nos impressionam. No Brasil, destacaram-se os chamados Sete Povos das Missões, no oeste do Rio Grande do Sul: São Francisco de Borja (fundado em 1682), São Nicolau, São Luiz Gonzaga , São Miguel Arcanjo (os três de 1687), São Lourenço Mártir (1690), São João Batista (1697) e Santo Ângelo Custódio (1706). Os índios aprenderam ofícios dos europeus, que lhes ensinaram desde a cortar pedras para fazer igrejas até a cultivar cereais, pastorear o gado e fazer esculturas ou compor músicas religiosas. Desse encontro resultou uma sociedade que ainda hoje nos impressiona por sua arquitetura e por suas belíssimas obras de arte, em que os estilos europeus ganham toques indígenas. “No conjunto dos Povos das Missões floresceu e vingou uma sociedade sui- generis nos então indecifráveis limites do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai”, diz o historiador Mario Simon, em Os Sete Povos das Missões, Trágica Experiência, pág. 15): “Uma experiência de civilização independente sem igual em todas as relações que houve em todos os tempos entre índio e colonizador. Tão importante que despertou a atenção e a admiração de intelectuais europeus como Voltaire, Montesquieu e até Hegel. De qualquer modo, a experiência missioneira continua despertando a atenção dos estudiosos, alguns atraídos pelo grande sonho de um socialismo utópico, outros pelos mitos de igualdade fraterna que a história missioneira suscita após mais de 300 anos.” Mas toda essa sociedade sincrética de índios e cristãos foi tragicamente destruída em meados do século 18. De todas as outrora prósperas cidades de pedra só restaram ruínas, como alguns muros e as paredes da Igreja São Miguel, em Santo Ângelo, extremo oeste do Rio Grande do Sul. Na vizinha Argentina também restam ruínas ainda mais monumentais, que ainda hoje são atração turística, como os restos de San Ignácio Mini, com imponentes construções de pedra e muitos objetos do tempo colonial. Também nos deparamos com ruínas jesuíticas nas estradas do Paraguai e do Uruguai, o que mostra a extensão dessa federação jesuítico-indígena, governada por comissões mistas de religiosos e indígenas. Estudando as missões jesuíticas, o socialista francês C. Lugon concluiu, nos anos 40, que nelas o ideal socialista havia se realizado melhor do que nos chamados países socialistas, como a União Soviética de então.”A República 34 34
  • 35. Guarani foi sem dúvida comunista demais para os burgueses da época e cristã demais para os comunistas da época burguesa. (...) Ela aparece na história como a mais importante e a mais original das sociedades comunistas que se tornaram realidade até o advento da União Soviética.” O conjunto de regras que fazia a sociedade guarani funcionar a toques de sinos, com grande espaço de tempo para lazer e criatividade (os índios tinham as tardes livres, por exemplo) é elogiado por C. Lugon: “A República Comunista Cristã dos Guaranis foi a primeira realização concreta na direção de uma sociedade fraterna sem classes e sem privilégios, hierarquizada de acordo com as capacidades e os serviços pessoais. Essa sociedade cujo desenvolvimento foi interrompido por forças externas, e não internas, traz em si um ingrediente que foi esquecido pelas sociedades comunistas mais evoluídas e mais complexas, que degeneraram por não ter conseguido aplicar de forma tão perfeita e integral os princípios fundamentais de toda sociedade humana.” C. Lugon, La Republique Communiste Chrétienne des Guaranis (1610-1768) – A República Comunista Cristã dos Guaranis (1160-1768) O singular surgimento de padres guerreiros com armas de fogo e exércitos de índios no sul do Brasil se deu por circunstâncias históricas. Os guaranis atraídos para as reduções jesuíticas já estavam em guerra com tribos vizinhas, como os guenoas. O historiador Mario Simon, em Os Sete Povos das Missões – Trágica Experiência, conta que “por ocasião da Fundação de São Borja, em 1682, vieram, de São Tomé, 1952 índios. Em 1690, havia uma população de 2.396 pessoas, isto possível porque, em 1687, São Borja recebe um contingente de quase mil índios, como intuito de reforçar a povoação. São Borja atingiu, em 1732, quase 4 mil habitantes.” O jesuítas adestravam militarmente os índios e, a partir de 1639, passaram a receber armas de fogo como arcabuzes e canhões do próprio rei da Espanha para sua própria defesa e defesa dos territórios espanhóis. Essa corrida armamentista se deu depois das derrotas que encerraram o primeiro ciclo missioneiro, que chegou a ter 18 povos e terminou em 1637, quando os índios e jesuítas tiveram de mudar para o outro lado do Rio Uruguai, “acossados que eram pelos bandeirantes preadores de índios. Presume-se que desde o início das preações os bandeirantes aprisionaram e levaram das Missões Jesuíticas (Paraguai, Argentina e Brasil) 200 mil índios. Destes, 60 mil da região dos Povos das Missões do Rio Grande do Sul” (Mario Simon, Os Sete Povos das Missões – Trágica Experiência). Houve muitas guerras e guerrilhas sangrentas entre índios selvagens, índios aculturados pelos jesuítas, portugueses e espanhóis pela posse dos territórios do Sul, inclusive a batalha de M’Bororé, em 1641, no leito do Rio Uruguai, 35 35
  • 36. onde o exército guarani, liderado pelo cacique Nicolau Nenguiru derrotou os bandeirantes. Uma nova derrota em 1651 teria massacrado os bandeirantes, impondo-lhes medo e permitindo que as missões jesuíticas fossem retomando antigos territórios, como os Sete Povos das Missões no Rio Grande do Sul. O problema é que, para resolver os conflitos de terra, os reinados de Portugal e Espanha tomaram uma decisão benéfica aos portugueses, mas que foi trágica para as missões guaranis: o Tratado de Madri de 1750, que permuta os Sete Povos das Missões pela Colônia de Sacramento. Índios e jesuítas são intimados a deixar todas as terras e casas das margens do Rio Uruguai. Os índios e algumas lideranças jesuítas não aceitam as ordens do governo e declaram guerra. Eis uma carta escrita pelos caciques de Santo Ângelo para o governador de Buenos Aires, que os intimara a abandonar a cidade: “Não sabes tu porventura que, quando veio por governador dom Miguel Salcedo no ano de 1736, nos trouxe e deu a nós uma boa nova, dizendo-nos então que o Rei Nosso Senhor Felipe V havia mandado, e que tinha vindo por amor de Deus, por amor dos santos padres, e por amor de nós, que éramos desvalidos índios? Disse-nos também então fazendo-nos saber boa nova: “Cuidai da terra onde viveis; essa terra a vós só Deus a deu, logo que sentirdes algum dano, avisai-me logo. Por que agora tu (nos ameaças com canhões e artilharia) e dás sete formosos povos em paga da colônia que é um pobre povo? O seu valor não é suficiente paga nem de um só povo nosso”, dizem os caciques, que se sentem traídos pelo rei da Espanha. E continuam, desta vez em tom de ameaça: “Portanto, não temeremos do mal que nos queres fazer: ainda que tragas os teus canhões, não temeremos. Deus nosso senhor somente, sendo nós uns pobres índios, nos ajudará muito, e o Santo Anjo tam´bem será ajudador e protetor. Quiçá Deus nosso senhor te porá em nossas mãos. Nós não temos cuidado pelos espanhóis: não erramos nem fizemos mal aos de Montevidéu, nem aos de Buenos Aires, nem de Santafé, nem aos de Corrientes, nem Paraguai; quanto mais nem aos portugueses. Não erramos em coisa alguma, nem desejamos, nem cuidamos de espanhol algum; estamos sós em nosso povo, onde estamos bem. Por isso, se vierdes teremos guerra. Isto queremos nós se tu vierdes, e nós só nos animaremos e nos mandaremos contra ti até vencer-te.” (Carta dos Caciques de Santo Ângelo ao Governador Andonaegui, de Buenos Aires, segundo Aurélio Porto, História das Missões Orientais do Uruguai, citado por Mário Simon, em Os Sete Povos das Missões – Trágica Experiência, págs. 137-138) Como resultado, tanto tropas espanholas como tropas portuguesas guerrearam contra as missões jesuíticas. Os jesuítas, expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal em 1757, foram também expulsos dos domínios 36 36
  • 37. espanhóis em 1767. Tanto o rei de Portugal como o da Espanha temiam o surgimento de Estados eclesiásticos independentes, como parecia estar acontecendo nas missões. Em 1753, “o padre Lope Luis Altamirano, comissário encarregado pelo Geral da Companhia de Jesus de convencer os índios a cumprirem o Tratado de Madri, tem que fugir, escoltado, ante a fúria e revolta dos guaranis. Gomes Freire de Andrade inicia a demarcação dos limites traçados pelo tratado. Sepé Tiaraju, o alferes real do povo de São Miguel, nas proximidades de Santa Tecla, intima o general Gomes Freire a cessar a demarcação, alertando-o que de Santa Tecla para diante não passariam sem guerra. O exército retirou-se para a colônia de Sacramento. Mas em 1756, na trágica batalha de Caiboaté, uniram-se mais de 3.700 soldados dos exércitos português e espanhol no Campo das Mercês para dar combate aos cerca de 2.100 índios revoltosos das Missões. Os brancos tinham canhões e boas armas; dos índios, “só uns poucos estavam armados com fuzil, mais dois canhões de ferro e outros de taquarassu, recobertos de couro e imprestáveis depois do primeiro tiro. A história narra que, além das armas, os ingênuos índios contavam com a proteção dos santos, que eram carregados junto com as tropas. Foi uma devastação, com a derrota do exército missioneiro. Morreram 1.500 índios e apenas um soldado português e três espanhóis.” Mário Simon, Os Sete Povos das Missões – Trágica Experiência, págs 163, 164 (Cronologia) e 145 (Guerra Guaranítica – o Fim dos Sete Povos). Ainda em 1756, no dia 7 de fevereiro, o cacique Sepé Tiaraju havia sido morto em combate. Pouco mais de quatro meses depois, no dia 17 de maio, Gomes Freire, vitorioso na Batalha de Caiboaté, ocupa São Miguel e ordena que se rendam Santo Ângelo e São João. Por causa do abandono, as cidades missioneiras saqueadas acabaram virando ruínas. Segundo o historiador Mario Simon, “em 1835, existiam, em todo o território dos Missões dos Sete Povos, apenas 136 homens aptos para o trabalho, 38 inválidos, 32 menores, 113 mulheres ‘sem grandes defeitos’, 32 inválidas e 23 menores. Total da população missioneira: 374 pessoas.” EXPULSÃO DOS JESUÍTAS MARCA TAMBÉM O FIM DAS MISSÕES ESPANHOLAS 37 37
  • 38. “As sociedades indígenas do litoral, as primeiras a entrar em contato com os europeus, são também as primeiras a desaparecer: bem no começo do século 18 já não subsiste uma única tribo tupi em toda a faixa costeira”, diz a antropóloga Helene Clastres, que estudou as missões jesuíticas do Paraguai e da Argentina, que não passaram pela guerra ocorrida no Brasil, mas também foram desarticuladas pela expulsão dos jesuítas nos territórios espanhóis, que passou para a administração civil o comando efetivo das reduções. “O destino dos guaranis já é diferente. A penetração européia na sua região começa no primeiro terço do século 16, muito local e incerta durante as primeiras décadas. Assunção, fundada em 1537, é apenas um pequeno fortim. Os primeiros jesuítas chegam a Assunção em 1558 e visitam a província do Guayrá: nessa época, a evangelização está reduzida à sua mais simples expressão. Os missionários não se preocupam em residir entre os índios: bastava-lhes atravessar as aldeias, batizando às pressas milhares de pessoas. É somente no começo do século 17 que as missões começam a implantar-se. Em 1609, o rei de Espanha, a pedido de Hernanderías de Saavedra, então governador do Paraguai, concede à Companhia de Jesus o direito de empreender a conquista espiritual dos 150 mil guaranis do Guayrá. No ano seguinte, dois jesuítas, padres José Cataldino e Simon Maceta, conseguem reunir algumas centenas de selvagens na primeira redução. O pardre Antonio Ruiz de Montoya, o mais ilustre evangelista dos guaranis, fundará onze reduções entre 1622 e 1629. Foi assim que se inaugurou uma realização surpreendente: o que vivria ser chamado de ‘o reino de Deus na Terra’, a ‘república comunista católica’ ou, mais simplesmente, ‘o Estado jesuítico do Paraguai’. “Durante mais de um século e meio (até 1768, data da expulsão dos jesuítas dos territórios espanhóis), as trinta cidades desse Estado próspero e praticamente autônomo (somente o papa e o rei de Espanha tinham autoridade sobre ele) iriam isolar os guaranis – mais de 200 mil índios – do mundo colonial espanhol. Com a partida dos jesuítas, a direção das missões foi confiada aos franciscanos, controlados por administradores: as antigas reduções slogo foram invadidas pelos colonos e não tardou para o que sistema econômico coletivista estabelecido pelos jesuítas se transformasse num impiedoso sistema de exploração. “Aos milhares, os guaranis abandonaram as missões, indo o mais das vezes instalar-se nas aldeias espanholas. Trinta anos após a expulsão, menos da metade dos índios vivia ainda nas reduções. Mas tarde, várias guerras acabaram de arruinar o que restava das cidades. Os guaranis que escaparam de tais massacres se estabeleceram em pequenas aldeias, no Guayrá, não longo do sítio das antigas reduções. Mas, em 1848, o ditador Carlos Antônio López 38 38
  • 39. obrigou esses índios (cerca de 6 mil) a abandonar as suas aldeias para irem viver nas dos paraguaios. “Foi esta, resumida em suas linhas-gerais, a história pós-colombiana dos guaranis: protegidos durante mais de 150 anos da dominação dos colonos, posteriormente eles se fundiram, pouco a pouco, na população paraguaia.” (Helene Clastres, Terra Sem Mal – o Profetismo Tupi-Guarani, págs. 9 e 10) UM MUNDO DE PADRES GUERREIROS E INDIOS ARMADOS DE ARCABUZES “As primeiras reduções duraram pouco mais de 20 anos. Acossadas pelos bandeirantes paulistas, em 1631 foram abandonadas. Nesta ocasião, registra-se um fato, épico pelo incrível denodo dos jesuítas e índios. Trata-se do êxodo da província de Guayrá, só comparável à Retirada dos Dez Mil de Xenofonte, da história grega, ou então com o Êxodo do povo israelita, comandado por Moisés através do mar e do deserto. Só que o êxodo do Guayrá foi mil vezes mais trágico. Os padres, sob o comando do grande jesuíta Antônio Ruiz de Montoya, reunindo às pressas 12 mil índios reduzidos, desceram o Rio Paraná amontoados em 900 canoas. Na altura das Sete Quedas, hoje desaparecidas, e diante da iminência dos bandeirantes comandados pelo não menos famoso Raposo Tavares, deixaram que parte das embarcações caísse nas violentas águas do Paraná, com a esperança de apanhá-las rio abaixo. No entanto, as águas despedaçaram todas as barcaças e não restou à multidão senão o caminho tenebroso das selvas paranaenses, a pé. Iniciou-se então uma marcha desesperada, na qual, além de dois padres, desapareceram 8 mil índios, mortos pela fome, pelos animais selvagens, doenças e fugas. Não era para menos, pois que tinham que enfrentar quase duas centenas de quilômetros mato adentro, em direção à Foz do Rio Iguaçu, onde apenas 4 mil lograram chegar para iniciar novas Reduções em terras da atual província Argentina de Missiones” (Mário Simon, Os Sete Povos das Missões – Trágica Experiência, págs. 13 e 14) 39 39
  • 40. QUEM ESTOUDOU OS INDIOS BRASILEIROS? Embora tenham valor antropológico, as descrições dos ameríndios feitas pelos jesuítas em geral só dão valor à cultura indígena na medida em que a podem apagar e substituir pela cultura européia, pois para os jesuítas, “os deuses dos gentios são demônios”. Assim, lendas e cerimônias indígenas foram desde muito cedo adaptadas para o cristianismo. Tupã, deus do trovão na cultura animista e politeísta dos índios tupis, passou a ser a primeira pessoa da Santíssima Trindade, e Sumé, o herói civilizador, passou a ser São Tomé, o que gerou uma lenda entre os jesuítas de que o apóstolo teria vindo pregar o evangelho nas Américas. Uma visão científica dos índios brasileiros só tomou corpo no começo do século 20. Antes, acumulara-se toda uma literatura de religiosos e viajantes estrangeiros, principalmente sobre os povos tupis- guaranis do litoral, com escasso material sobre os índios do interior, como os do grupo lingüístico jê. O primeiro cientista viajante a colher informações lingüísticas sobre os índios brasileiros foi o botânico alemão Karl Friedrich Philipp von Martius, conhecido como Von Martius (1794-1868), no começo do século 19. Depois já com perspectiva da antropologia moderna surgem, na virada para o século 20, Karl von Steinen, Paul Ehrenreich, Theodor Koch- Grunberg, Paul Rivet, Herbert Huntington Smith, Curt Nimuendaju, e Joseph Alden Mason, que se preocuparam em estudar as línguas e o pensamento dos indígenas brasileiros. A ênfase no detalhe que caracteriza esses pioneiros seria substituída, num movimento que vem até a atualidade, pela procura de grandes sínteses, por lingüistas posteriores, como Maurício Swadesh e Joseph H. Greenberg, os pesquisadores do Summer Institute of Linguistics, dos EUA, e a equipe do lingüista brasileiro Aryon Dall’Igna Rodrigues, no Departamento de Antropologia do Museu Nacional. Foi com os primeiros lingüistas que surgiram os sertanistas, como Curt Nimuendaju, que deu origem de toda uma tradição de humanistas pacificadores de índios, como os irmãos Villas-Bôas, gente que viveu entre os índios e os defendeu, ao mesmo tempo produzindo conhecimento sobre eles. As teses de Nimuendaju preenchem todos os requisitos acadêmicos sobre trabalhos científicos, mais na linha da corrente dos antropólogos ou etnólogos, que corre paralela à dos sertanistas e também se dedica a estudar os índios americanos, participando ou não, em vários graus, de sua vida e de seus problemas e produzindo relatos sobre sua cultura e sociedade como é o caso dos pesquisadores modernos, desde Von Steinen e Theodor Koch-Grunberg a Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro. 40 40