No alto de elevações abastecidas por chuvas que vêm do litoral, o semiárido do Nordeste abriga enclaves de Mata Atlântica, cuja biodiversidade só agora começa a ser desvendada pelos cientistas Autores: Arnóbio Cavalcante
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ARTESÉRICAONODERA
A
maiorpartedoterritóriobrasileiroécompostoporpoucas
áreasextensaserelativamentehomogêneasdopontode
vistaecológico.Sãooschamadosdomíniospaisagísticos,
como o da Mata Atlântica e o das caatingas, que tam-
bém incluem áreas de contato e de transição entre os seus trechos
mais típicos e contínuos. Mas, aqui e ali, é possível vislumbrar no
interior dos domínios algumas áreas que destoam dessa relativa
uniformidade, e que chegam a representar um grande contraste
com o que está à sua volta. Essas paisagens de exceção, como são
chamadas,espalham-seportodooBrasil.Entreelas,destacam-se
osenclavesdeflorestasúmidasdosemi-áridobrasileiro,verdadeiras
ilhas de Mata Atlântica em meio à caatinga, que só recentemente
têmrecebidoatençãoespecialdoscientistas.
Abiodiversidadedessasflorestasúmidasdosertãoaindaémuito
poucoconhecida,masébemprovávelqueguardesurpresas,sejapor
seulongoisolamento(umadasprincipaisreceitasdaNaturezapara
produzir novas espécies), seja por terem pertencido originalmente
a um dos biomas mais diversificados da Terra. Além disso, esses
enclaves,porsuacomposiçãodeespécies,podemguardarrelíquias
da época em que, supostamente, Mata Atlântica e Amazônia
eramumaúnicagrandefloresta.
Paraentenderadinâmicaqueregeessesfragmen-
tos,éindispensávellevaremcontaopanodefundo
ondeseinserem–osemi-áridobrasileiro.Ele
ocupa uma área de aproximadamente 788
mil km2,ou 9,3% do território nacional,
situando-se na sua quase totalidade
na região Nordeste, abraçando, ex-
ceto o Maranhão, todos os outros
estados da região e o norte de
Minas Gerais. Apresenta
médias anuais elevadas de
temperatura (28oC) e
evaporação(2.000mm)echuvasdetotalanualmoderado(250-
800mm).Ossolossãopredominantementerasos,muitasvezes
pedregosos, com afloramentos localizados de rocha cristalina.
Tudo isso se reflete em rios e riachos intermitentes. E, como
a vegetação é o espelho do clima e do solo, a cobertura vegetal
que recobre e delimita com precisão essa área é a caatinga (ou
melhor, as caatingas, dada sua variedade). Trata-se de um con-
junto vegetacional adaptado à seca, espinhoso, que perde suas
folhas periodicamente.
Acaatingafazfronteira,medianteáreasdetransiçãoounão,com
oOceanoAtlântico,aAmazônia,ocerradoeaMataAtlântica.Bor-
dejando-apelolesteestáodomíniodaMataAtlântica,umimenso
mosaico de florestas tropicais úmidas que, antes da chegada dos
colonizadoreseuropeus,estendia-se,semruptura,doestadodoRio
Grande do Sul ao Rio Grande do Norte. No Nordeste, a partir da
Bahia,aMataAtlânticatambémseapresentaemformadeunidades
espaciais isoladas quando se direciona para o oeste, pontuando a
caatingaatéafronteiradoCearácomoPiauí.
Portanto,configura-seumapaisagemsemi-áridacomenclaves
espalhados de Mata Atlântica, de diferentes formas, tamanhos e
grausdeisolamento.Literalmente,sãomanchasdevegetaçãosem-
preverdeemum“mardecaatinga”,justificandoaalcunhadeilhas
deflorestasúmidas.Entende-seporenclaveouencraveasformações
vegetacionais estranhas, inseridas em comunidades naturalmente
estabelecidaseemequilíbriocomoambiente.
Essas ilhas de floresta úmida, também rotuladas de enclaves
de Mata Atlântica, matas úmidas (CE) e brejos de altitude (PE),
são encontradas sobre algumas formações de rochas sedimentares
e serras residuais cristalinas, todas elevações que variam de 700 a
1.200m.Totalizampelomenos20enclavesemtodoaregião.Um
balizamentogrosseiropodeserimaginadoparaoslimitesorientais
dessasilhasnoNordeste.Esseseria,aonorte,oplanaltodaIbiapaba
(PI/CE)eaosul,achapadaDiamantina(BA).
3. 62 SCIENTIFICAMERICANBRASIL JANEIRO2005
Resumo/IlhasdeMataÚmida
GrandepartedointeriordoNordesteédominadapelascaatingas,
vegetaçãoespinhosaeadaptadaaoclimasemi-árido.Noentanto,
emplenosertão,hámaisde20enclavesdeflorestatropicalúmida,
semelhanteàMataAtlânticadolitoral.
Osdetalhesdecomoessasilhasseformaramaindaestãosendo
elucidados,mastudoindicaqueelasforamisoladasduranteumasérie
deglaciaçõeseconseguirammanterseucaráteroriginalporestarem
emáreaselevadas,expostasaosventoscarregadosdechuvaque
vinhamdooceanoeestabelecidassobresolospropícios.
Agora,oscientistascomeçamafazerlevantamentosmaisdetalhados
sobresuafloraefauna.Osdadosaindasãoescassos,mastudoindica
queabiodiversidadedessasilhasflorestaisétãoaltaquantoadaMata
Atlântica.ElasabrigamtambémespéciesemcomumcomaAmazônia
e,muitoprovavelmente,têmgrauimportantedeendemismo(seres
vivosquesóocorremnosenclaves).
■
■
■
Oquemantématéhojeorecobrimentoflorestaldessaselevações
é a ação combinada da localização geográfica, altitude, disposição
dorelevoemrelaçãoaodeslocamentodeventosoriundosdolitoral
e do solo. A localização refere-se ao posicionamento das elevações
emrelaçãoaomar,queédeapenasalgumasdezenasdequilômetros.
Essa distância relativamente curta permite que ventos carregados
deumidadeasatinjam.Aaltitudeeaarrumaçãodorelevo,porsua
vez,agemjuntasparaformarumenormemuroquebloqueiaesses
ventos, condicionando a formação de chuvas na vertente exposta
aosventos eno topo daselevações– justamenteondeaflorestase
estabeleceu. Os solos participam desse processo por meio de suas
propriedadesadequadasaosuportedafloresta.
Do Cretáceo ao Presente
SABEMOS ONDE OCORREM essasilhasdeflorestaúmida,quantas
existem e como são essencialmente mantidas. Agora, é pertinente
perguntar:deondevieram?Eporque,atualmente,estãopontuando
osemi-áridobrasileironaformadeenclavesflorestais?Asrespostas
aquiapresentadasaindanãosãodefinitivas,mascertamentecontêm
algomaisdoqueumasimplesaproximaçãodaverdade.
Paraentenderaorigemeevoluçãodessasilhas,éprecisoretornar
ao Cretáceo Superior, intervalo de tempo entre 100 milhões e 65
milhõesdeanosatrás.Nessaépoca,emumaAméricadoSulisolada
comoenormeilha,haviaummantocontínuodeformaçãoflorestal
no litoral leste. Tal manto era um fragmento comprido da antiga
FlorestaGonduânica,queteriacobertotrechosdosupercontinente
GonduananoJurássico,180milhõesantesdopresente.
Essafloresta,precursoradaMataAtlânticaedeseusenclaves,
tinha sua extremidade norte no atual planalto da Ibiapaba. Como
evidências da presença de tal cobertura vegetal no interior do
Nordeste, é possível citar os próprios enclaves de florestas úmidas
espalhadosportodaaregião,comoosdaserradeBaturité(CE),serra
NegradeFloresta(PE),chapadaDiamantina(BA),bemcomoas
madeirasfossilizadasdeBoaVistaedeUmbuzeiros(PB).
DoCretáceoSuperiorpulamosparaoPleistoceno(1,8milhão
até 10 mil anos atrás), quando modificações mais pronunciadas e
definitivasocorreramnavegetação,causadasporextremasvariações
climáticas. No Pleistoceno, o processo gradual de resfriamento e
estiagem que o planeta já vinha enfrentando exacerbou-se. Nessa
época, a Terra experimentou pelos menos cinco glaciações, e cada
umadelasdeusuacontribuiçãoàsmudanças.Noentanto,acredi-
ta-se que o que mais ocasionou transformações nos ecossistemas
brasileiros (e sobretudo na vegetação do Nordeste) foi o último
desseseventos,aglaciaçãodeWürm,quedurou70milanosecuja
culminânciaocorreuentre25mile17milanosatrás.Estima-seque
o nível do mar tenha descido 140 m abaixo do atual, produto do
aprisionamentodaáguanasgeleirasdohemisférioNorte.
Isso contribuiu para reduzir a água circulante na atmosfera.
Conseqüentemente,supõem-semenosprecipitaçõesemaissecase
expansõesdedesertos.Efoiprovavelmentenessaépocaquealgumas
ENCLAVESVERDESNOSEMI-ÁRIDO
Os enclaves de
floresta tropical no
meio da caatinga
passam de 20 em
todo o Nordeste
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manchas de florestas tropicais do Nordeste foram sentenciadas a
viveremcompletoisolamento.Avegetaçãoadaptadaàsecaseex-
pandiu,circundoueisolouasflorestas,parafinalmenteconfiguraros
encravesdeflorestasúmidasdosemi-áridobrasileiro.Comoostopos
dasserraseasvertentesexpostasaosventosdolitoralconseguiram
mantersuascondiçõesdeumidadedeoutrora,asespéciesflorestais
damataúmidaalipermaneceram.
Dessa maneira, pode-se deduzir que o processo naturalmente
emandamentoédediminuiçãoespacialdessasáreasúmidas,atéseu
completodesaparecimento.Obviamente,issosóocorrerásemanti-
dasastendênciasclimáticas.Eesseprocessodedesaparecimentodos
enclavesflorestaisdoNordestebemquepoderiaserlongínquo,se
dependesseapenasdasforçasnaturais.Masumfatorestáacelerando
esseprocessoeantecipandoosumiçodomapadessesenclavespara
um futuro próximo: as ações humanas. Por conta disso, grandes
esforçosestãosendodespendidosparaestudaressasáreas.
Serra de Baturité
CONFORME JÁ MENCIONAMOS, os enclaves de florestas úmidas
espalham-se por todo o semi-árido brasileiro. Uma unidade da
federação revestida na sua quase totalidade por caatinga (92%) e
que apresenta um conjunto soberbo de ilhas de florestas úmidas
é o Ceará. Aqui totalizam nove, estando situadas nas vertentes
da chapada do Araripe e planalto da Ibiapaba, e sobre as serras
(cristalinas) das Matas, do Machado, de Aratanha, Maranguape,
Meruoca,UruburetamaeBaturité.
Dentreessesenclaves,aserradeBaturitééamaismajestosa,e
issoficabemrespaldadopelaetimologiadonomedaserra.Elevem
dotermoindígenabatuité,queliteralmentesignifica“serramelhor
que as outras”. A partir de agora, vamos nos concentrar nas carac-
terísticasgeográficaseecológicasdessaregiãocomorepresentante
dosenclavesdeflorestasúmidasdoNordesteedossegredosnaturais
queelesaindaescondem.
AserradeBaturitéocupa 38.220hectares,comsubsolocons-
tituído quase totalmente por rochas cristalinas e relevo de feições
variadas,taiscomocristas,colinas,lombasevales.Aaltitudemédia
édeaproximadamente700m,ealgumascristaspodemsuperaros
900m.Noentanto,oquemaisimpressionanessaresumidacarac-
terização física da serra são seus condicionantes climáticos, aqui
representadossomentepelatemperaturaeíndicedechuvas.
Atemperaturamédiaanualficaemtornode24oC,amédiadas
máximas28oCeadasmínimas17oC.Poroutrolado,nacaatinga
circunvizinhalogoabaixo,atemperaturamédiaanualficaemtorno
de28oC,amédiadasmáximas33oCeadasmínimas22oC.Achuva
é regularmente distribuída ao longo do ano, com média anual de
aproximados 1.700 mm (enquanto a da caatinga fica apenas em
Aaçãodachuvaedosventos,quandoosenclavescomeçaram
aseformar,atingiatodoointeriordoestado.Noentanto,alguns
lugareserammaisresistentesdoqueoutrosàerosão,porcausada
presençaderochascristalinas.Jáomaterialmaisleve(areia,siltee
argila)eracarregadoparaomar.
EROSÃO DIVISORA
PROCESSOS GEOLÓGICOS EM AÇÃO AINDA HOJE AJUDAM A AUMENTAR O ISOLAMENTO DOS FRAGMENTOS DE MATA NO NORDESTE
A chamada erosão diferenciada é um processo coadjuvante, mas importante, na formação das áreas isoladas de floresta
úmida. É possível ver qual o seu papel durante a formação do enclave da serra de Baturité, no Ceará.
Oresultadoéqueas
regiõesemvoltadas
áreasderochacristalina
acabamvirandodepressões
porcausadaerosão,enquanto
háumaelevaçãorelativodas
áreasrochosasresistentes.
Aflorestaúmidatendeaseconcentrar
nasáreasmaisaltas,enquantoperde
terrenonasmaisbaixas,cujosolofica
empobrecidodevidoaocarregamentode
seuscomponentespelaágua
1 2 3
areia
silte
argila
mar SerradeBaturité
PLEISTOCENO HOJE
áreasrebaixadas
(caatinga)
5. 64 SCIENTIFICAMERICANBRASIL JANEIRO2005
ARNÓBIO CAVALCANTE é professor da Universidade Estadual do Ceará
(Uece),ondeensinaEcologiadoSemi-ÁridoeEcologiadaPaisagemnos
cursosdegraduaçãoepós-graduação,respectivamente.Graduou-seem
Engenharia Agronômica na Universidade Federal do Ceará, em 1990.
Obteve o grau de doutor em Ecologia e Recursos Naturais na Universi-
dade Federal de São Carlos (Ufscar), em 1998. Atualmente, investiga a
ecologia de enclaves e de ilhas lacustres do semi-árido.
OAUTOR
PROCESSODEFORMAÇÃO
Até o Pleistoceno, há
2 milhões de anos, é
provável que grandes
áreas contínuas de
floresta parecida
com a Mata Atlântica
recobrissem também o
atual interior do Nordeste
O resfriamento e
ressecamento do planeta,
em momentos como a
glaciação de Würm (70 mil
anos atrás), favoreceram a
expansão de uma vegetação
mais adaptada aos períodos
de seca, que começou a
cortar o contato entre as
regiões de floresta úmida
Como a Era Glacial ajudou a criar trechos isolados de mata no semi-árido
800mm).Portanto,choveoequivalenteàpluviosidadedealgumas
áreasdaAmazôniaedaMataAtlânticaoriental.
Outrodetalheinteressanteestáligadoaoprocessodecomoaser-
rachegouaseutamanhoeformaatuais.Emalgumintervaloremoto
dotempogeológico,deveterocorrido,nolugarondehojeseencontra
ela,umlevedobramentonacrostaterrestre.Essedobramentopouco
afloravanasuperfícienaquelestempos,talqualumicebergnomar.
Foiapartirdaíqueseutamanhoeformaatualmentereveladosforam
sendoesculpidos,pelaaçãocombinadadeváriosfenômenosnaturais
queaindahojecontinuamaatuardiscretamente.Ofenômenomais
atuante, primordial e modulador da serra foi (e continua sendo) a
erosão.Sobaaçãododesgasteprovocadopeloclima(chuva,vento,
temperatura),omaterialmaisresistentedaregião(rochacristalina)
permaneceurelativamenteincólumeefixonolugar,aopassoqueo
materialinconsolidado(areia,silteeargila)foiremovido.
AserradeBaturité,porserconstituídaessencialmentederocha
cristalina,resistiumaisaodesgasteimpostopeloclimadoquesuas
adjacências ao longo dos anos. Lentamente, ela foi aflorando, en-
quantoasregiõesvizinhas,maisvulneráveis,iamsendoremovidas
emdireçãoaomaredeprimidas.Chama-seaesseprocessoerosão
diferenciada, sendo a periferia da serra denominada depressão
sertanejaeaserra,maciçoresidual.
A erosão descrita acima também teve participação decisiva na
formaçãodealgunsenclaves,aofavoreceracaatinga.Àmedidaquea
erosãoremoviaosoloeoembasamentocristalinoaflorava,formando
solosrasos,essascondiçõesficavamcadavezmaisinadequadaspara
sustentar a floresta úmida que, pouco a pouco, perecia e recuava.
Omesmoespaçoeragradualmenteocupadopelascaatingas,mais
bemadaptadasaessasituação.
Diversidade Inexplorada
NA FLORESTA ÚMIDA DA SERRA, o convívio de ipês, orquídeas,
samambaias,musgosehepáticasmodelaumaflorestapossuidorade
enormefitodiversidade.Contrastandocomtodaessariquezaflorís-
ticaestáainsignificânciadoconhecimentoatéhojegeradosobresua
botânica e ecologia, ainda incipiente diante da grandeza territorial
eadiversidadedeespécies,padrõeseprocessosqueoperamnesse
extraordinário fragmento de Mata Atlântica. Até o momento, são
registradas apenas algumas dezenas de espécies arbóreas e arbus-
tivas. Contudo, estimativas sugerem que até 500 espécies podem
Florestatropicaloriginal
Vegetaçãosecaemexpansão
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No entanto, em várias das
áreas mais elevadas e com
solo melhor do interior, a
mata conseguiu persistir.
As chuvas que vinham do
litoral eram barradas pelas
elevações e despencavam
em suas encostas,
alimentando a floresta
No final, sobreviveram
alguns enclaves
justamente nos
lugares mais elevados
e voltados para o
litoral, cercados por um
mar de caatinga
ocorrerlá,entreárvores,arbustos,ervas,cipós,epífitas(plantasque
se apóiam nas outras, como as trepadeiras), saprófitas (que usam
matéria orgânica em decomposição) e parasitas. E esses dados
incipientessobreacomunidadevegetaltambémsãoaregraparaa
grandemaioriadosoutrosenclaves.
Atualmente,oestadodeconhecimentosobreafloraangiospér-
mica(aschamadasplantascomflores)paraáreasdeflorestaatlântica
no Nordeste aponta pelo menos 128 famílias, 445 gêneros e um
pouco mais de mil espécies, considerando algumas das formas de
vidasupracitadas.Semdúvida,essesnúmerosdevemcrescer,jáque
existeummaiornúmerodecientistasestãotrabalhandonessasáreas
nomomento.Sóparadarumaidéiadoquãopoucoseconheceda
flora desses enclaves, estima-se que, em apenas um hectare no sul
da Bahia, ocorrem 454 espécies vegetais e, no Domínio da Mata
Atlântica,aproximadamente20milespécies.
Nesse universo vegetal, as árvores proporcionam refúgio,
integramabasedacadeiaalimentar,sãovegetaisverdadeiramente
residentesecontribuem,normalmente,commaisrecursosbiológicos
edeformamaisduradouradoqueplantasanuaiseherbáceas.Por
taisrazões,sãoconsideradasespécies-chave.Aqui,citamosalgumas
espécies de ampla distribuição, que também aparecem em outras
áreas.AlgumasocorremtantonamatadaserradeBaturitéquanto
em outros trechos de Mata Atlântica do Nordeste: Buchenavia
capitata(amarelão),Byrsonimasericea(murici-vermelho),Tabebuia
serratifolia(ipê-amarelo),Xylopiasericea(embiriba)eZanthoxylum
rhoifolium (limãozinho). Outras aparecem na serra e também na
Mata Atlântica do leste do Brasil, como Protium heptaphyllum
(almesca)eCecropiapachystachya(gargaúba),ounaMataAtlântica
dosuldoBrasil(Podocarpussellovii,pinheiro-bravo).Finalmente,
há árvores comuns entre Baturité e a região amazônica – Stryph-
nodendron purpureum (favinha) e Simarouba amara (paraíba) são
doisexemplosdisso.
Apresençadetantasespéciescomunsentreregiõestãodistan-
tes, apontada pela lista acima, é facilmente explicada pelo manto
contínuodeformaçãoflorestaldoCretáceo,conformejáexplicado.
Porém,comrelaçãoaoúltimoitem(espéciescompartilhadasentre
a Amazônia e Baturité), pelo menos duas perguntas importantes
emergem:teriaexistidoalgumaconexãoflorísticaconcretadosen-
clavescearensescomaflorestaamazônica?Eosenclavescearenses
seriamrestosdeumaantigapontequeremotamenteuniraaMata
AtlânticaàsmatasdaAmazônia?Essaéumadiscussãoqueainda
está acontecendo, e é importante que mais cientistas façam parte
delapara,finalmente,termosessasrespostas.Elucidartalproblema
também é fundamental para explicar a fauna compartilhada por
esses vários lugares.
Assim como acontece com as plantas, a fauna abrigada pela
Umidadesustentaenclaves
Caatinga
Ilhasdeflorestaúmida
7. 66 SCIENTIFICAMERICANBRASIL JANEIRO2005
Mestre em mimetismo e acostumado
a se confundir com as folhas da
serrapilheira, o sapo Bufo margaritifer e
comum também à Amazônia
Acoral-verdadeira(Micrurusibiboboca),comveneno
potenteedecoloracaoviva,eencontradaapartirdo
nortedeMinasGerais eemtodooNordestebrasileiro
Acomunidadedeformigasdo
enclavecearenseédiversificada:
contam-se125espécies,entre
elasaDinoponeraquadríceps,a
maiordeseugruponomundo
Comfamadeperigosa,asurucucu(Lachesismuta)tambémocorrenaregião
amazônicaepodeestarsofrendoextinçãolocalemBaturité
Carnívoroscomoaraposa
Cerdocyonthousaindahabitam
naserradeBaturité,massua
populaçãopareceestaremdeclínio
Ogato-do-matoFelistigrina,apesardasemelhançacomseusparentesdomésticose
dotamanhodiminuto,éferozeestáadaptadoaflorestasemregiõesmontanhosas
Assimcomoseuparentemaior,otamanduá-bandeira,oTamanduatetradactyla
(tamanduá-mirim)ébastantevulnerávelàdestruiçãodeseuhábitat
FAUNAVARIADA(EAINDAQUASEDESCONHECIDA)
A FLORESTA UMIDA PROVAVELMENTE abriga maior diversidade de
animais do que se conhece hoje em dia, pois existem poucos
levantamentos feitos até agora. Acredita-se que haja tanto espécies
exclusivas dessas áreas quanto animais em comum com a Mata
Atlântica e à Amazônia. Abaixo, alguns dos habitantes conhecidos do
enclave da serra de Baturité:
8. WWW.SCIAM.COM.BR SCIENTIFICAMERICANBRASIL 67
ASerradeBaturité.ArnóbioCavalcante.Fortaleza:Edit.LivrariasLivroTécnico,2005.
ConexõesFlorísticasdoBrasil.AfrânioFernandes.Fortaleza:BNB,2003.
OsDomíniosdeNaturezanoBrasil.AzizA’Sáber.SãoPaulo:AteliêEditoral,2003.
PARA CONHECER MAIS
floresta serrana ainda está sendo desvendada. Todavia, alguns
grupos já são relativamente conhecidos, como as formigas. Um
levantamento recente revelou que, em poucos hectares de floresta
primária,podemcoexistircercade125espéciessónaserrapilheira
(o solo recoberto de folhas caídas da mata), riqueza de espécies
similar à encontrada em outros lugares da Mata Atlântica, como o
suldaBahia.Umhabitanteilustredessacomunidadediversificada
de formigas é a Dinoponera quadriceps (formiga gigante), a maior
deseugruponomundo.Apesquisatambémmostrouqueexistem
espécies endêmicas e outras que ocorrem também em áreas da
florestaatlânticaoriental,fortalecendoahipótesedeuniãopretérita
comosenclavesflorestais.Jácomparaçõescomcoleçõesdafloresta
amazônicaaindanãoforamrealizadas.
Quantos aos anfisbenídeos (répteis que lembram as cobras)
e lagartos residentes na serra, esses totalizam 25 espécies no mo-
mento, sendo seis endêmicas (exclusivas daquele local), como o
Colobosauroides cearensis e o Leposoma baturitensis. Essa riqueza
de espécies, quando comparada à Mata Atlântica e à Amazônia,
com53e89espéciesdelagartorespectivamente,revela-sebastante
inferior–provavelmenteumadecorrênciadaincipiênciadoslevan-
tamentos,conformejádito.Quantoàsespéciescompartilhadascom
outrasregiões,oAnalisfuscoauratuséencontradoemBaturité,Mata
Atlântica e Amazônia e o Enyalius bibronii em Baturité e na Mata
Atlântica. Entre os anfíbios, uma espécie que habita tanto a serra
cearense quanto a Amazônia é o Bufo margaritifer, popularmente
chamado de sapo-folha, incrível por sua camuflagem perfeita que
imita fielmente uma folha seca da serrapilheira. Essas espécies e
outrasmaislevamacreremumapossívelconexãopretéritaentreas
duasgrandesflorestastropicais,passandopelaserra.
Emrelaçãoàscobras,aliteraturamencionaaexistênciadeapro-
ximadamente25espécies,dasquaisapenasquatrosãopeçonhentas,
destacando-seaLachesismuta(surucucu).NoCeará,elasóocorre
em Baturité, embora também esteja presente na Amazônia. Esse
belo animal tem sido raramente visto na serra, levando a suspeitar
deumprovávelprocessocorrentedeextinçãolocal.
A fauna da serra de Baturité não inclui apenas diversos inver-
tebrados, répteis e anfíbios. A mata da região abriga também uma
riquíssimacoleçãodeaves,commaisde180espéciesresidentese
transientes já registradas. Dessa lista, aproximadamente 10% são
consideradasespéciesendêmicas,comooPyrrhuraanaca(periquito-
de-cara-suja). Infelizmente, trata-se de um dos quatro animais do
Cearánalistadoscriticamenteameaçadosdeextinção.
Duranteoperíododeestiagemdaregião,aserrafuncionacomo
refúgioparaalgunsrepresentantesdafaunadepássarosdacaatinga,
quecostumamsubi-la.UmadasespéciesqueseabrigamemBatu-
ritééaProcniasaverano(araponga-do-nordeste),juntocomquase
todososbeija-flores.Ademais,aregiãoserranaviracasadeveraneio
paraoHirundineaferruginea(gibão-de-couro)eStreptoprocnezona-
ris(andorinhão-de-coleira),procedentesdosuldoBrasileAmérica
doNorte,respectivamente,quantofazfrionessasregiões.
Finalmente,tambémexisteminúmerosmamíferosinsetívorose
carnívoros,comooTamanduatetradactyla(tamanduá-mirim),araposa
Cerdocyonthouseogato-do-matoFelistigrina.Sãoespéciesdignas
decitaçãoporevidenciaremacentuadodeclínioemsuaspopulações
locaiseteremnohomemseuprincipalpredadorouinimigo.
Refúgio do Nordeste
TOMANDOCOMOREFERENCIAL aserradeBaturité,épossívelesti-
marqueilhasdeflorestasúmidassejamoslugaresdemaiorriquezade
vidaselvagemdoNordestesemi-árido.Porapresentarumambiente
físico significativamente heterogêneo (locais secos, úmidos, planos,
acidentados,altos,baixos,açoitadospelovento,protegidosdovento,
quentes,frios,ensolaradosesombreados),láevoluiuumacomunidade
bastantediversificadadeplantaseanimais.Dessamaneira,recente-
mente,oMinistériodoMeioAmbientereconheceuessasáreascomo
prioritáriasparaconservaçãodabiodiversidadenoBrasil.Noentanto,
salienta-sequeaimportânciadessasilhasnãodevelimitar-seàriqueza
biológicaeaoendemismo,mastambémaquiloquepodemoferecer
naformadealimentos,águaeoutrosrecursosnaturaisgratuitamente.
Nessasregiões,porexemplo,nascemcursosd’águaquebeneficiam
milhares de pessoas e tornam possível a prática da agropecuária rio
abaixo, funcionando tal qual uma caixa d’água natural em meio ao
semi-árido.Alémdisso,essesriosmatamasededenumerososanimais
dacaatingaquandonaseca.
Apesar de todas essas benesses, a situação atual de uso e ocu-
pação dos enclaves requer grande atenção e acompanhamento
ostensivo,governamentalenão-governamental.Oestadoatualde
conservação, no geral, é ruim. São anos de extrativismo vegetal e
animal, agricultura de cana-de-açúcar, banana, café e hortaliças e,
maisrecentemente,construçãodeenormescasas,comseusjardins
fartosdeplantasexóticas.
Hádécadas,todasessasações,emépocasdistintas,vêmdestruin-
dohábitats,introduzindoespéciesexóticas,extraindorecursosbiológi-
cosexcessivamente,poluindoefragmentandoapaisagemoriginal,de
formaacausardanosgravesàbiodiversidadedaregião.Noentanto,
épossívelreconheceravançosparaprotegeressasáreas,pormeiodo
surgimentodeunidadesdeconservação.Dosnoveenclavescearen-
ses,porexemplo,seissãoprotegidoslegalmente,inclusiveaSerrade
Baturité,transformadaemÁreadeProteçãoAmbiental(APA).Eo
mesmoseaplicaaosoutrosestadosqueabrigamenclaves,totalizando
aproximadamente 50% da cobertura vegetal das ilhas de florestas
úmidas. É importante salientar que as serras das Matas, Machado
eUruburetama(CE),devidoàaçãodohomem,jáperderamquase
completamentesuasflorestas.São,portanto,umalertaparaasociedade
sobreoprocessocorrentequeestádestruindoosenclaves.