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BRASIL PANDEIRO
A VIDA E OBRA DE PERNAMBUCO DO PANDEIRO




     INÁCIO SOBRINHO PINHEIRO
  EZALMONE MOREIRA DOS SANTOS
DEDICATÓRIA




“MEUS IRMÃOS EM ARMAS”: OS MÚSICOS QUE DIVIDIRAM O PALCO COMIGO
SUMÁRIO


1ª. PARTE - FASE NORDESTINA
1. O MEU LUGAR
2. O ENCONTRO COM LAMPEÁO
3. Os VALORES E COSTUMES
4. A IDA PARA O RIO DE JANEIRO

2ª. PARTE – MINHA VIDA NO RIO DE JANEIRO
1. APRENDENDO A VIVER NO RIO DE JANEIRO.
2. O CONVÍVIO COM A ALTA MALANDRAGEM
3. O CONTATO COM A MÚSICA
4. MEU ENCONTRO COM O PANDEIRO
6. O BATISMO DE FOGO
7. O INICIO NO MUNDO MUSICAL
    Os programas de calouros
    O ponto dos músicos
8. PARTICIPAÇÃO NOS CONJUNTOS REGIONAS
9. O REGIONAL DE PERNAMBUCO DO PANDEIRO
10. A ENTRADA DE HERMETO PASCOAL NO REGIONAL
11. A CARREIRA INTERNACIONAL
    Excursão com Carmélia Alves
    A caravana Humberto Teixeira
12. O MUNDO MUSICAL DAS RÁDIOS E GRAVADORAS

3ª PARTE. MINHA VIDA EM BRASÍLIA
O CONVITE DE JK
O ABANDONO DE UM MÚSICO INTERNACIONAL NO CERRADO
O TRABALHO NA CONSTRUÇÃO DA NOVA CAPITAL
A PRISÃO
PARTICIPAÇÃO NO MEIO MUSICAL EM BRASÍLIA
A FUNDAÇÃO DO CLUBE DO CHORO
A PARTICIPAÇÃO NO CONJUNTO DE WALDIR AZEVEDO
MINHA CONVIVENCIA EM MINAS GERAIS
O RETORNO A BRASÍLIA
PEQUENA HOMENAGEM AOS MEUS “IRMÃOS DE ARMAS”.
APRESENTAÇÃO
‘SERÁ FEITA POR HERMETO PASCOAL’
BRASIL PANDEIRO
Coração de sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Lembra a batida de um pandeiro.
“Noel Rosa.”
PRIMEIRA PARTE
   1. O meu lugar.


      Maria Francisca. Assim chamava minha mãe, uma paraibana do sertão,
legítima descendente de Severino Vitoriano de Souza Pinheiro, proprietário do
Engenho São Tomé, de família tradicional que davam ordens e eram obedecidos por
todos. Seus antepassados foram donos escravos e era o arrimo de muitas famílias
que sobreviviam como empregados da Usina; a maioria agregados a um pedaço de
chão cedido para plantar a meia parte.


       Uma mulher dona de suas vontades, personalidade forte e obediente sincera
das suas intuições, engraçou-se logo com João Bezerra, da mesma família do
Sargento que matou Lampião na tocaia de Angicos. Uma amizade proibida. A família
Bezerra do lugar onde nasci era gente honesta, mas muito brigões. Arruaceiros nos
forrós atiravam no candeeiro, furavam fole de concertina e botavam a barraca
abaixo. Era um desespero quando alguém dessa família chegava às reuniões
sociais de Lagoa da Roça.


        Meu pai era um homem bonito: cabelos cacheados, estatura mediana, tez
morena e olhos verdes, o que certamente provocou o interesse por parte de minha
mãe, Maria Francisca, a ponto de se romper com a família casar-se com ele.
Tiveram 19 filhos e como conseqüência da desobediência, passou ser tratada como
uma fotografia virada contra a parede, esquecida, banida e deserdada. Casamento
naquela quadra era uma forma de manter o poder e a tradição da família, os Souzas
não viam em João Bezerra essa possibilidade.


        A sua desobediência foi como uma sentença de morte. Sua família nunca a
perdoou, nem aceitou seus filhos como herdeiros legítimos. Certa vez quando a
fome apertou o cerco em Lagoa da Roça, coloquei um saco nas costas e fui pedir
um adjutório para um tio materno, Antônio Pinheiro. Fui enxotado de sua casa como
um cão pestilento jurado de tomar uma surra se tivesse a insolência de voltar outra
vez lá. A sua falta de caridade cristã me impressionou que até hoje peço a Deus em
minhas preces que o perdoe, por que eu mesmo até hoje nunca senti vontade em
fazê-lo.


           Dona Maria Francisca não era mulher de andar com a cabeça baixa não!
Encarou a situação e tocou a vida dentro de suas possibilidades. Abraçou a
profissão de costureira amparada na fé em Padre Cícero. Fazia ternos, uniformes,
vestidos, camisas, cobertas de chita e mortalhas; costurava toda sorte de roupas
que os sertanejos precisassem. Tinha muita força. Virou rezadeira. Contra
quebranto, mal olhado, espinhela caída e erisipela. Criança chegava obrando verde,
e mãe reclamando que o “peste” quando dormia acordava avechado em solavancos
e com batedeira. Isso era o suficiente para o diagnóstico perfeito: quebranto ou mal
olhado.


           Caminhava medindo os passos para o fundo do quintal levando a criança e a
mãe, com um ramo benzia, e terminava a unção com os olhos lacrimados,
bocejando e reclamando que o menino estava “carregado”. Pedia à mãe que
trouxesse a criança nos “dias fortes” quarta ou sexta-feira para um reparo, e
prescrevia por cima, uma figa para o inocente usar como penduricalho no pescoço,
por função de absorver essas maldades transmitidas sem querer por quem nasceu
com a sina de olhar ruim.


       Ficou mais conhecida como Dona Maria Francisca parteira. Era aparadeira de
mão cheia, a preferida de todas as gestantes da região. A parturiente só acalmava
quando “Siá” Maria Francisca chegava. Assumia o comando. Com voz decidida
clamava por trapos limpos, tesoura, faca fervidas e exigia aguardente e pólvora; se
acaso a mulher perdesse as forças, era forçada a beber essa mistura para
restabelecer-se. Não permitia manifestações de dor, não podia gemer de forma
alguma, gritar estava fora de cogitação, mulher procedesse assim ganhava a fama
de fraca. Eu imagino que inconscientemente ela percebia o inconveniente de
desperdiçar energia à toa, sabia da necessidade de usar toda força no momento
certo para retirar o bebê das entranhas. Assistiu muitas mulheres lutar até o fim.
Parto no sertão era risco de vida, se a criança atravessasse, na maioria casos eram
fatais, morria mãe e filho.
Vivia fé e caridade no dia a dia, não medindo esforços para fazer o bem.
Ajudou muita gente em 1932 durante o surto de varíola que ceifou muitas vidas no
sertão paraibano. Eu mesmo fui parar na folha de bananeira, artifício muito usado
para não “pregar” no lençol quando a varicela “bexiguenta” tomava conta do corpo
todo. Como diz o sertanejo, “depois do coice a queda”, veio a febre bubônica,
provocando imensa mortandade no local. Fazia de graça as mortalhas, preparava os
corpos para serem enterrados, misturava com os doentes e para espanto de todos,
não era contaminada. Explicava-se dizendo que era a fé no Padre Cícero Romão
Batista, a razão de toda força e proteção que aquela bela sertaneja, que tinha a
ternura de um beija-flor e a coragem de uma onça parida quando era para proteger
os seus.


       Eu nasci dessa mulher em 1924, décimo – oitavo dos dezenove filhos seus.
Nascido no município de Gravatás, região do agreste pernambucano. Naquela
época quando a seca castigava o sertão, os que tinham oportunidade se refugiavam
no Agreste, por isso que nasci no Pernambuco, na fazenda de Neco Porto, antigo
prefeito de Caruaru. Fui batizado com o nome de Inácio Pinheiro Sobrinho, devido
ser homônimo a um tio materno incorporaram o “sobrinho” para diferenciar nós dois.


       Com quatro meses de idade voltei para a Lagoa da Roça, lugarejo situado a
10 km de Campina Grande, no Estado da Paraíba. Por isso é que me considero um
pernambucano de coração paraibano. Construi toda minha infância entre as
dificuldades próprias de quem nasceu em uma região desassistida, cresci
trabalhando e amadureci prematuramente sem deixar de ser um moleque levado e
espirituoso.


      Ainda hoje, durante as noites quando o sono me abandona, recordo aqueles
dias difíceis, as reminiscências anestesiadas por mais de 85 anos vividos me
conduzem no tempo com uma boa intenção de felicidade. Imagino com o olhar e o
sentimento daquela criança que vive ainda dentro de mim. As dificuldades de
sertanejo pobre que me deram a força da superação. Caí várias vezes na vida, mas
sempre dei a volta por cima, amparado pela experiência de quem fez um macabro
vestibular para a vida. Criança que sobrevivesse naquelas condições naturalmente
se transformaria em um homem determinado. Tenho a impressão que foi isso que
me transformou em um homem otimista, como dizem na gíria popular, “prá cima”.
Sempre gostei de “incendiar” as pessoas que estivessem ao meu redor, aprendi a
ver o mundo como se fossem um palco, as pessoas atuando cumprindo o seu papel,
e eu o encarregado de alegrá-los, talvez por isso seja que eu tenha me tornado um
artista popular.


       Não conheci meu pai. Minha mãe o desobedeceu para seguir uma romaria
para Juazeiro do Norte a fim de receber uma Benção de Padre Cícero. Era um
sonho dela, já era tempo de pagar tanta graça que havia recebido, e aquela visita
era uma forma de demonstrar gratidão. Para levar a cabo o seu intento, teve que
passar por cima do filho mais velho e do marido para se ter com o beato. Assim que
regressou foi violentamente agredida e teve que separar do marido que a
abandonou com os últimos quatro filhos, os outros já haviam debandado em busca
de melhores condições do que aquelas oferecidas pelo sertão paraibano na terceira
década do século vinte.


        Comecei trabalhar aos quatro anos de idade, cortando capim, fazia os feixes
e vendia na feira para alimentar os animais dos mercadores. Entre seis a sete anos
já fazia a proeza de montar em animais bravios, caia muito, não sei quantas vezes
machuquei. Mas mantinha sempre a determinação de domar aqueles animais
chucros. E depois de domados vinha a parte que eu mais gostava: ensinar os
animais marchar no ritmo certo, já possuía espírito de perfeccionista. Há três tipos
de marcha; o “trotão”, quando o cavalo anda em solavancos, “thum, thum, thum, o
“esquipador”, é um andar mais suave, que não castiga tanto os “bofes” do cavaleiro,
e por último o “bacheiro”, cavalo marchador, cavalga no ritmo certo marcado,
“pacatá, pacatá, pacatá, pacatá...”. Foi essa mania de corrigir os cavalos é quem me
deu esse ritmo da “moléstia” que tenho no seu sangue.


      Uma criança no sertão virava adulto rápido, quatro a cinco anos já começava
a ajudar no que podia. A luta para matar a fome era terrível e desqualificadora, não
dependia somente da vontade e capacidade de trabalhar. Tinha que contar coma
ajuda do sobrenatural, se não chovesse meus amigos, era certeza de miséria.
Somente as pessoas de recursos conseguiam manter estoques de alimentos, o povo
de um modo geral não conseguia. Na época de chuvas o que colhiam tinha que
repartir com o proprietário das terras. Que ainda tirava da outra parte o pagamento
para dívidas vencidas, normalmente alimentos adiantados que o sertanejo retirava
antecipado para pagar dobrado.


      Quase todo povo tinha suas criações de terreiro, galinhas poedeiras, capão,
frango, para o almoço no final de semana. O porco cevado era para o Natal e São
João. Mas no dia a dia, alimentava-se predominantemente de favas, de jabá, ou
carne do Ceará, muito seca e salgada. Também a carne de sol, um pouco mais
úmida e macia. De verduras sómente o maxixe, quiabo, jerimum e macaxeira.
Comer feijão era para pessoas de posses, o feijão de corda nem se fala. Leite,
somente se criasse uma cabra, tínhamos uma. De vez em quando comíamos o “pão”
do dia seguinte. Muito duro, mas, mais barato, em vez de jogar fora o padeiro vendia
pela metade do preço para os mais necessitados.


      Naquele tempo o povo dava um duro danado e o resultado não aparecia, tinha
que se valer da fé meus camaradas, e cada vez que o sofrimento aumentava, era a
maior a certeza que havia uma força maior acima daquela aflição capaz de escrever
um destino conforme cada qual merecesse. Um vizinho, que o tempo me fez
esquecer o nome, jurava que já nascíamos escalados para sofrer devido às
maldades que fizemos em existências anteriores. Que já tínhamos contas debitadas
de vidas passadas e que nessa estávamos tendo a oportunidade de pagar.
Tínhamos que ter fé e, sobretudo resignação, essa última eu nunca consegui
desenvolver.


      A fé do sertanejo era muito grande, havia um respeito generalizado às coisas
sagradas. Qualquer morador abria a porta da sua moradia em alta madrugada se
alguém clamasse “bendito seja nosso senhor Jesus Cristo”! Dentro de casa
respondia: ”para sempre seja louvado, tão bom senhor”! Em seguida a porta abria,
para qualquer um. Nem o pior dos bandidos ousava quebrar esse acordo, pelo temor
de cair sobre si a santa ira divina. E com isso ninguém se arriscava. Até o pior dos
salteadores recolhia-se em oração, trazia orações presas em patuás, reza forte
contra arma de fogo e arma branca, diziam que alguns tinham o corpo fechado e
que só podiam ser atingidos com balas benzidas ou adaga virgem, sem uso.
O povo vivia e divertia-se como podiam nas feiras e em forrós. A feira ainda é
o mercado tradicional mercado onde se compra e vende-se de tudo: animais, carne,
quitandas, cabrestos, arreios, rapadura, farinha, feijão, carne seca. Era o ponto dos
tocadores afamados, alguns com fama de ter “pauta” com o maligno, para poder
dominarem a concertina de oito baixos, conhecida por sanfona “pé de bode.”
Instrumento difícil de ser tocados, devidos os poucos recursos que possui. Tem
sómente oito baixos e um fole muito complicado de controlar, quando abre é uma
nota e quando fecha é outra.


        Os sanfoneiros do nordeste iniciavam-se sempre por ela, por isso quando
passavam para a de 80 ou 120 baixos a coisa aí ficava fácil. Os grandes do pé-de-
bode do meu tempo nas imediações de Lagoa de Roça foram Pólino, Severino de
Guiné, Zé Tempero e o Severino “Galeguinho do Fole” de Itabaiana, nada mais nada
menos do que mestre Sivuca. Fui vê-los várias vezes, não sei se gostava mais da
música ou do bolo de mandioca mole com café servido por uma cabocla bonita de
nome Maria do Joá, quem Sivuca mais tarde lembrou-se de homenageá-la no baião
“feira de mangaio”
“Tinha uma vendinha no canto da rua
Onde o mangaieiro ia se animar
Tomar uma pitada com lambú assado,
E olhar prá “Maria do Joá.”


       A presença de alguns sanfoneiros era sucesso garantido em qualquer forró e
garantia do desempenho comercial da feira. Severino de Guiné era tratado como um
desses astros de televisão de hoje. Aonde chegava os outros sanfoneiros mais
novos iam vê-lo tocar, ficavam sem piscar os olhos em reverencia, silenciosos para
aprender tudo que pudessem. Ali funcionava a pedagogia do talento e do esforço,
que exclui e projeta. O próprio Sivuca em vida afirmava que aprendeu muito com
“mestre” Severino de Guiné. E logo ele, uma das maiores expressões do acordeom
que o mundo teve noticia. Os gênios aprendem com os menos favorecidos. Por isso
é que são gênios.


        Sivuca, Hermeto Pascoal, eu, e outros tantos que fizeram carreira
internacional, tivemos nesse ambiente o início de um aprendizado importante para
uma consagração posterior. Evidentemente que todos nós continuamos estudando a
fundo, mas o substrato cultural, a nossa base estrutural foi apreendida lá. É dela que
propiciou o nosso estilo diferenciado e rico que temos, e, sobretudo a criatividade
espetacular que caracteriza o músico nordestino, sobretudo os sanfoneiros.


         Eu botava mais sentido no triângulo e no zabumba, aquele tilingo lingo ligo
extraído do ferro batido, com têmpera especial, encomendado aos melhores
ferreiros me fascinava, não menos que a zabumba. Essa me tirava o juízo, mexia
comigo nas entranhas. Feita de taboa de barrica, mais leve, ou então de baraúna,
madeira preta que dá na caatinga, muito pesada, mas muito sonora. Cortava-se a
árvore e tirava um pedaço assim de um trinta a quarenta centímetros, deixava no sol
para secar, e depois ia tocando fogo do meio para a beirada, quando ficava somente
um aro de uns dois centímetros de largura, estava pronto para ser vestido com um
couro de bode molhado, a seguir era posto no sol inclemente para secar. Depois de
secado            couro era pregado tendo como suporte uma vara de jucá cozida,
enrolava-se o restante com uma corda, até o couro ficar bem espichado. Para fazer
o teste acendia-se um candeeiro e deixava-o no meio da sala, batia-se bem forte no
centro da zabumba se o candeeiro apagasse estava aprovada.

         Eu não gosto da zabumba de baraúna, tem um som bom, mas o instrumento
fica muito pesado e complica o desempenho de quem está tocando. Hoje pode dá-
se o luxo de escolher, a tecnologia fez aparecer diversos materiais alternativos
fazendo diminuir o peso do instrumento, mas naquele tempo não tinha para onde
correr. Não me lembro de ver naquela época alguém usando o “bacalhau”, aquela
vareta de bambu usada para fazer o contratempo. Essa invenção deu outra vida
para o instrumento, Luís de Januario (mais tarde Gonzaga) foi quem popularizou a
zabumba com o “bacalhau” por intermédio do grande Catamilho, virtuose desse
instrumento trazido do norte pelo próprio Gonzaga.


      Aprendi tocar zabumba batendo em caixote, quando faltavam os maiorais. Era
só dar uma chance lá estava eu, imitando os melhores do lugar. O ambiente de feira
foi minha primeira escola com mestres informais e exigentes. Foi ali que tomei
contato com essa variedade de ritmos que compõe a música nordestina: shotish,
xaxado, baião, coco, choro, samba, embolada, maracatu, rojão, galope, os mais
populares, agora se colocarmos os ritmos da Bahia e do Maranhão, Estados do
nordeste com maior influência africana, precisaríamos de muitas páginas e tempo
para pesquisar.


      A raiz dos nossos ritmos está na áfrica, nas diversas nações indígenas, e na
musica árabe trazida pelos portugueses descendentes dos mouros que vieram com
a colonização. O Brasil é um país muito rico em variedade musical, precisamos levar
isso mais a sério, hoje é necessário ser músico pesquisador para conhecer esse rico
patrimônio legado pelo próprio povo. Muito dos ritmos que ouvíamos naquele tempo
nas feiras e nos forrós, estão em acelerado processo de extinção.


        Não tive professores, vim aprender a escrever quando mudei para o Rio de
Janeiro, mas aprendi muito no sertão, e como o sertanejo além de ser um forte é um
sábio. Aprender ler era para poucos, somente para os filhos de abastados que
contratavam professores itinerantes, ou que mandavam os filhos para colégios de
religiosos. Quando o governo mandava um professor para “desasnar” o povo, era
preciso dividir a cartilha com mais cinco. Além disso, as famílias precisavam do
trabalho dos filhos para sobreviver. Meus amigos preste bem atenção nesse baião
”Oricuri” de João do Vale:

                                 Oricurí madurou
                         e é sinal, que arapuá já fez mel
                         Catingueira fulorou lá no sertão
                              vai cair chuva a granel
                                Arapuá esperando
                                oricurí madurecer
                              Catingueira fulorando
                           sertanejo esperando chover
                   Lá no sertão, quase ninguém tem estudo
                        um ou outro que lá aprendeu ler
                  Mas tem homem capaz de fazer tudo, doutor!
                       Que antecipa o que vai acontecer
                          Catingueira fulora: vai chover
                          andorinha voou: vai ter verão
                           gavião se cantar: é estiada
                          vai haver boa safra no sertão
                          se o galo cantar fora de hora:
                         é mulher dando fora, pode crer
                         acauã se cantar perto de casa:
                       é agouro, é alguém que vai morrer
                                   São segredos
                               que o sertanejo sabe
e não teve o prazer
                                 de aprender ler
                                oricurí madurou
                       e é sinal, que arapuá já fez mel...



      João do Vale explica com sabedoria o que é essa universidade sertaneja,
cujo acesso é dado pela terrível prova de conseguir romper a infância com vida.




   2. O Encontro com Lampião


       O meu sonho de menino era que quando crescesse entrar para o bando do
Capitão Virgulino, o Lampião, para ser visto e respeitado como e um justiceiro do
sertão. Essa vontade nasceu de uma desavença acontecida quando fazíamos “um
quarto” para um vizinho que havia falecido. Nesses velórios havia a parte espiritual e
religiosa, com um discurso exaltando as qualidades em vida do falecido, seguido de
rezas e incelenças, lamento langoroso entoado diante do corpo inanimado. Mas
havia o lado profano com folguedos para passar o tempo. A brincadeira que todos
gostavam era o Gurufim, mas sempre terminava encrenca. O participante era
questionado por quem conduzia o brinquedo a revelar um segredo íntimo, quase
sempre, uma amizade inconfessa.


      Essa brincadeira envolveu meu cunhado, que era apelidado de “o coentro”.
O puxador do gurufim perguntou para uma prima minha, muito safada por sinal: -
Luzia, você esta doente? Você cura com que? Ela respondeu com coentro. Minha
irmã viu-se humilhada devido a essa fulerice com o marido dela. Contou o caso para
dona Maria Francisca que sentiu a honra da família abalada. A velha esperou um
cavaleiro chegar munido de uma vara de jucá cozida, dessas que podia dobrar e
colocar no bolso que a “bicha” não quebrava. Tomou a vara emprestada e disse
para a Luzia: sua doença cura é com cipó de jucá, e sapecou um corretivo
inesquecível na moça. A atingida, por sua vez, era um “chamego” do Sargento
Feitosa, e suplicou a este que tomasse as dores por ela, por isso minha mãe foi
presa e amarrada em um tronco como um bicho.
Passei a noite toda chorando vendo aquela cena do Sargento batendo na
porta com “coice fuzil”, invadindo a casa, dando ordem de prisão, e levando minha
para o tronco. De manhã fui cedinho para a residência do Prefeito Medeiros, sentei-
me no baldrame e comecei a chorar, até que saíram para fora para saber o motivo
daquele pranto. Contei tudo para ele e a esposa muito sensibilizada, foi junto com o
marido para a delegacia e ela mesma deu ordem para que soltasse minha mãe. Mas
aquilo não foi suficiente, eu precisava vingar do “macaco” que fizera aquilo, e isso só
era possível se entrasse no bando do Capitão Virgulino.


       Isso passou ser uma fixação para mim, até que um dia na feira Pocinhos, foi
aquele disse me disse para tudo quanto foi canto, todo mundo assustado, a polícia
correndo para o mato e os ricos enterrando objetos de valor. Era a notícia de que
Lampião estava chegando no lugarejo. Mandou um aviso instantes antes por que
sabia que os “macacos” não tinham peito para enfrentar seus homens e nem teriam
tempo de pedir reforços. Era costume dele como um guerrilheiro astuto, evitar
qualquer confronto desnecessário que envolvesse risco de vida de seus homens.


       Sua presença tomou conta das atenções, foi apropriando-se do lugar, até
chegar um ponto que existia sómente a pessoa dele naquela praça. Quando
começou dar ordens todos o obedeciam automaticamente. Exigiu que dessem de
comer aos pobres, com voz determinada, imperativo, dizia que domingo era dia de
nosso senhor, bom para fazer caridade aos mais necessitados. Os pobres sairam de
lá munidos de mantas de carne, feijão e farinha. O Capitão ainda lembrou que se
alguém no outro dia fizesse qualquer tido de ameaças para os beneficiados, iam ter
com ele quando voltasse ali de novo. Nesse dia a fome sumiu de Pocinhos, o
Capitão do Cangaço, a seu modo fez justiça social.
       Assisti tudo posicionado há uns vinte metros dele. Com ele havia mais dez
cabras bem vestidos e bem armados. Calças de feitio matuto e blusão de mangas
compridas. Chapéus de feltro outros de couro, no estilo de Napoleão Bonaparte.
Alpercatas ferradas, feitas de sola macia e curtidas, cobriam todo o pé terminando
em um orifício pelo qual saiam o dedo grande e o vizinho. O calcanhar ficava
descoberto para facilitar os movimentos e poder correr sempre que fosse
necessário.
Suas armas eram a carabina “papo amarelo”, revólveres e a temida
“parabelum”. Carregavam até 18 quilos de munição distribuídos em duas
cartucheiras duplas atravessadas no peitoral e uma terceira amarrada na linha da
cintura. Ter um “parabelo” era se sentir grande, capaz de fazer ostentação concreta
de poder e respeito. Essa pistola, desenvolvida pelo alemão Georg Luger, entrou no
Brasil no início do século passado em um cenário onde a ausência de justiça era a
matriz de atitudes de desespero e revolta. Um ambiente onde o ser humano estava
destruído moralmente e materialmente pela fome provocada pela tragédia da seca.

        O controle político estabelecido pelos coronéis da Guarda Nacional, o grave
problema fundiário, a imensidão das caatingas, a possibilidade de fazer justiça
experimentada pelos Cangaceiros, fermentava em um cadinho social de difícil
compreensão pelo cidadão comum sem os recursos das letras. A junção destes
fatores explica muito bem o cenário onde o instinto natural sobrepunha a civilidade,
ambiente propício para o “parabelo” servir como instrumento de poder e status
social. Potente, bela e precisa de morte, era a arma das odiadas volantes, dos
coronéis, do Capitão Virgulino Ferreira e de seus comandados.

         Entretanto, havia por outro lado estava a condição humana, frágil e carente
de cuidados. Ao lado das armas letais era conduzido com todo cuidado diversos
tipos de remédios para primeiros socorros: água oxigenada, água boricada, iodo,
pomadas, álcool, ácido fênico para combate a dor de dentes, algodão, gase e
esparadrapo. A guaraína usada para combater a dor, a gripe e o resfriado. A
vaidade era contemplada com a brilhantina Glostora, a loção Dirce e o tônico capilar
Petrolina Minâncora. Carregavam jóias e dinheiro, anéis de brilhantes, fumo de
corda, palha de milho para fazer cigarros, cachimbo de barro e fósforo. O
equipamento do cangaceiro ficava estrategicamente acima da cintura, por que
freqüentemente eles precisavam rastejar e correr.

        Quando as volantes estavam próximas, não podiam acender fogo temendo
revelar o esconderijo. Ás vezes passava dias e dias sem beber água, tomando
cachaça de ração, chupando rapadura e assando carne na ponta das facas.


	
  
No meu breve contato com o Capitão Virgulino vi algo de bom nele que não
consigo até hoje desvencilhar da simpatia que me provocou. Carrego comigo essa
visão favorável apreendida na minha memória naquele longínquo domingo de 1932,
quando tinha apenas 8 anos de idade. Fui vivendo e aprendendo a razão da luta do
Capitão, e pude saber que houve vários dele no mundo. Onde ocorre a exploração
dos mais pobres aparece uma versão dele, como um espírito vingador que tira dos
ricos para dar aos pobres.


      3.OS VALORES E COSTUMES


   O culto a honra e a valentia faziam com que em todo lugar tivesse um valentão
denominado “galo do lugar”. Geralmente essa coragem vinha amparada por família
numerosa e parecida com ele. Era honesto e trabalhador, habilidoso no que fazia,
mas quando bebia se transformava em um arruaceiro temerário. Era o caso de João
Badoque, exímio amansador de animais, que cito em uma das minhas músicas. O
povo sertanejo tem limites demarcados para provocações, um deles é a honra
familiar, não bula com ela, é procurar morte certa. Sabe-se de muitos valentões que
morreram nas mãos de pacatos cidadãos.


João Badoque tinha esse grave defeito, não respeitava mulher casada, chegou a um
forró e desrespeitou Clotilde, mulher companheira de um primo meu por nome de
Manoel Pinheiro. Este piscou para ela ordenando que “dessa corda” para ver aonde
ele chegaria. E o Badoque foi gostando, se engraçando, tomando coragem,
começou a acariciar o cabelo dela e a falar impropérios. Quando menos esperava,
levou um golpe de peixeira por baixo do sangrador, nem pediu água, morreu sem ter
tempo sequer de colocar uma vela na sua mão.


Manoel Pinheiro sabia que seria caçado igual a um bicho pela família do morto, mas
como dizem no norte “a sorte anda com tem razão”, montou no seu cavalo e caiu no
mundo e ninguém o encontrou. Depois de algum tempo, quando a poeira abaixou,
mandou buscar Clotilde, contratou pessoas para conduzi-la debaixo do maior sigilo.
Nunca mais em Campinote alguém soube mencionar o paradeiro dos dois, naquele
tempo uma pessoa perseguida lá no norte, descia para o sul e se desterrava, em
pouco tempo era riscada da memória e dada como morta.
A igreja católica naquela quadra ditava as ordens no sertão, cuidava das almas e de
outros interesses materiais menos nobres. Seus expoentes Padre Cícero e Frei
Damião eram reverenciados como santos, e até hoje em todo nordeste, nas regiões
onde falta a presença do Estado, lá estão eles a operar milagres e realizar curas.
Para revigorar as esperanças no além os padres dos lugarejos convidavam os freis
com suas missões itinerantes. Preparavam a paróquia para receber os religiosos e
os romeiros que vinham de muitos lugares do sertão nordestino.


O teor das Missões era verificar se os braços da Santa Igreja estavam estendidos de
forma eficiente para abarcar as almas daquele mundo abandonado e sem lei. A
pregação era estrategicamente preparada para assustar o aquele povo desassistido
intelectualmente. Pintavam o inferno com cores assustadoras, mencionava tachos
de água fervente, piscinas incandescentes e o cheiro sufocante de enxofre. As dores
e o ranger de dentes eram exaltados. O sofrimento daquela pobre gente não poderia
ser comparado com a eterna aflição que teria se acaso viessem a perder a salvação
da alma. O final daquela retórica macabra era consumado com a formação de
imensas filas de pessoas que julgavam ter se distanciado dos santos ofícios.


O alvo preferido deste discurso era os casais que viviam sob o manto do pecado,
amancebados. Geralmente formado por jovens que tinham quebrado as ordens do
costume de casamentos combinados. Havia o costume dos pais acertarem
antecipadamente o matrimônio dos filhos, ora voltado a cumprir interesse econômico
ou para selar a amizade entre os dois chefes de família. Depois do combinado,
mantinham a palavra dada, e isso naquela época era mais importante do que manter
a própria vida, a quebra de compromisso significava desonra e descrédito.


Se ocorresse a desventura de um amor proibido, o único meio de livrar desse acordo
feito era fugir para viverem juntos dispensando as bênçãos da família e da igreja.
Por isso os Padres diziam que estavam na companhia do diabo, e que ainda era
tempo de reconciliarem com a igreja e com seus familiares. Se arrependessem,
receberiam o infinito perdão de Deus com a interseção da Igreja na remissão dos
pecados. Isso ocorrendo poderia realizar o casamento e providenciar o batismo dos
filhos pagões. Essa era a única forma possível do perdão dos terríveis pecados da
fornicação e da luxúria, considerado pelos sacerdotes iguais ou pior que o adultério.
O ataque aos amancebados era, na realidade, um modo de manter a eficiência na
arregimentação do rebanho pela lavradura do batistério, tido como documento mais
importante do que o próprio registro civil, imposto após a proclamação da República.


Eu estava na casa dos seis anos de idade quando fui abençoado em uma dessas
missões por frei Damião. Ele era de pequena estatura e tinha um forte sotaque
italianado. Até hoje me impressiono com que ele me disse, pondo a mão em minha
cabeça afirmou que eu era dotado de enorme inteligência musical e que ainda iria
ter muita fama nesse meio. Certa vez José Meneses, grande músico cearense, me
falou também, que quando menino recebeu mesma profecia pela boca de Padre
Cícero. Parece que os dois beatos tinham mesmo o poder de dar uma “espiadela”
no livro da vida, escrito quando cada ser vivente vem cumprir uma missão nesse
vale de dores.


Havia nas igrejas um rigor quase ritualístico nos modos de como se compor para
assistir as missas e participar da eucaristia. Mulher com roupa vermelha e decote
pecaminoso estava proibida. Um marido certa vez autorizou a mulher ir à igreja do
jeito que ela bem quisesse. Na ora da comunhão o padre perguntou em voz alta se
ela era solteira, casada ou se era meretriz. Ela respondeu que era casada, e
apontou para o marido, um jovem advogado temido por sua competência no domínio
das leis, naquela época um advogado naquelas plagas recebia reverência digna das
altas cortes. O padre não quis saber de encrencas com ele, deu a hóstia para a
senhora e esqueceu-se estrategicamente do decoro eclesial.


Quem mandava mesmo nos sertões era os coronéis, em Lagoa de Roça havia dois
de prestígio: Coronel Adelaide e Olinto Coura.       O governo fazia o que eles
quisessem. O prefeito e o sargento estavam em suas mãos, e se porventura
houvesse quebra de confiança eram destituídos ou transferidos dos cargos. O
Coronel Coura era um tipo “populista”, distribuía cestas de alimentos para os pobres,
e não deixava nenhum dos seus morrer a míngua. Por ser generoso era um homem
de muitos compadres e afilhados, quase todos prontos para pegar em armas se ele
ordenasse. Quando um de seus afilhados ia se casar, o pai sempre queria saber se
o casamento era de gosto do compadre Olinto, se não fosse, certamente haveria
dificuldades para o casamento prosseguir.


Coronel Adelaide era do tipo truculento, homem duro e autoritário, forjado para dar
ordens e ser obedecido. Se algum policial desafiasse suas ordens era pedido a sua
transferência para Catolé do Rocha, considerado o cemitério de desobediente. Lá
os Coronéis tratavam os soldados como reles serviçal. Certa vez um dos seus
“protegidos”, que tinha um açougue na feira, foi injustamente agredido por uns
policiais. O homem dentro da rua razão pegou um porrete e bateu nos três
“macacos” que estava ameaçando-o. Pediram reforços e conseguiram com muita
dificuldade desarmá-lo e prende-lo. Quando Coronel Adelaide ficou sabendo veio
pessoalmente exigir que soltassem o seu “chegado” e deixou bem claro que da
próxima vez, Catolé do Rocha era o destino deles.


Havia muitos povoados em volta de Lagoa de Roça: Manguape, Guarabira,
Pocinhos, Puxinanã e Brejo de Areias. Um jeito de o governo tentar manter a ordem
nesses locais eram constituir uma espécie de preposto da lei. Um “cagoeta”
oficializado denominado de Inspetor de Quarteirão. Ele podia prender amarrar e
conduzir o transgressor das leis até o distrito policial em que havia sido sua
consagração de autoridade. Recebia ordens dos Coronéis, do prefeito e do
sargento. Recordo-me bem de dois deles, João dos Santos e Antônio Senhoria.
Esse último morreu cheio de “bicheiras”, teve parte do corpo levado em vida. O
compositor paraibano Rosil Cavalcante compôs um rojão que retrata a relação desse
personagem no seio da comunidade onde vivia:



                                Cabo Tenório
                              (Rosil Cavalcanti)

               O cabo Tenório é o maior inspetor de quarteirão
                   O cabo era bamba, disposto, o danado
                     Bem considerado no seu batalhão
                      Amigo do praça, do subtenente
                      De toda patente, de quinto galão
                   Zangado, era doido, um cabra valente
                    Virava serpente, de punhal na mão
                    Mas ficava manso e a briga acabava
                    Se o povo gritasse lhe dando razão
Lhe dissesse: Cabo Tenório,
                       É o maior inspetor de quarteirão
                                Viva seu cabo!
                Cabo Tenório, é o maior inspetor de quarteirão.
                 Olha aqui, na casa de Tota fizeram um forró
                        Tenório foi só, dançar e beber
                      Os cabra de lá quiseram lhe bater
                       Tenório gritou, vai ter confusão
                    Balançou a mão, deu murro e bufete
                      Tomou canivete, peixeira e facão
                  Os brabos correram quem ficou presente
                  Gritava contente no meio do salão e dizia
                Cabo Tenório é o maior inspetor de quarteirão.



A religião do sertanejo era um catolicismo estilizado, influenciado com mitos
indígenas e africanos. O povo nos domingos ia às missas. Nas sextas-feiras,
considerado um dia forte, recorriam a benzedores sempre às escondidas dos
sacerdotes da igreja. Conheci seu Severino da Xã, um homem de aparência
tranqüila do tipo que não se assusta com notícia ruim. Além de benzedor era
muito procurado como responsador. Diziam que tinha um livro de São Cipriano
e era pautado com o “Trigueiro”.

Responsar significa ter um dom espiritual para descobrir objetos achados,
roubados ou desaparecidos. Revelar quem era o ladrão e onde ele se
encontrava em determinado momento. Certa vez um filho de Maria Touro
roubou uns cordões de ouro da própria mãe, e a culpa foi parar na minha pobre
irmã Ciça. Meus irmãos mais velhos deram um castigo exemplar na moça com
uma peça de couro. Mas como Ciça insistia que era inocente, minha mãe foi
tirar suas dúvidas com seu Severino de Xã, ele responsou e afirmou que
pudesse ficar tranqüila que a menina era mesmo inocente. E disse ainda, que
em três dias o ladrão iria aparecer.

Dentro desse período dado por seu Severino, a própria Maria Touro
surpreendeu o filho devolvendo as jóias roubadas. Arrependida teve a
hombridade de ir pedir perdão a minha irmã. Dona Maria Parteira ameaçou
enxotá-la de casa com uma pisa de cipó de jucá, mas a própria Ciça interveio
dizendo que a mulher estava com boas intenções revendo seu erro em acusá-
la prematuramente, e que a situação tinha ficado bem resolvida. E pior tinha
ficado para Maria Couro, em saber que seu filho Herculano era um ladrão. Não
tinha dor pior do que essa não!

Seu Severino da Xã não era de cobrar os serviços de seus dons, dizia que era
dado por Deus, e por isso não era autorizado receber nada. Por isso recusou o
pagamento oferecido, mas, sugeriu que receberia um agrado, um peru gordo
ou um cabrito, se fosse consoante com a vontade da minha mãe, o que
naturalmente foi atendido por ela sem que com isso pudéssemos esquecer o
grande favor feito por ele.



   3. A IDA PARA O RIO DE JANEIRO


João Naval chegou em Lagoa de Roça em 1936, ninguém esperava por ele, chegou
de sopetão. Tinha ido para o Rio de Janeiro em 1925 tentar a sorte no que desse
certo. Entrou para a Marinha e virou um fuzileiro naval, um feito inimaginável para os
nossos conterrâneos. Tinha saído como retirante e voltado como uma grande
autoridade. Morávamos numa casa um pouco distante do lugarejo, isso fez com que
João permanecesse um pouco na cidade, aproveitando para visitar nosso irmão
José Preto, que era casado com uma moça filha de gente importante na cidade. Mal
teve tempo para saudar o irmão e a porque de minuto a minuto tinha que dá atenção
para um antigo conhecido curioso.


Ele fez questão de chegar paramentado exibindo-se com orgulho a farda de fuzileiro
naval chamada de garanço vermelho. Era um conjunto composto de calça azul
marinho com listas azul e branco, paletó vermelho e boné branco. Uma vizinha
nossa passando próximo à casa do velho Artur, vendo aquele jovem rapaz bem
composto conversando desenvolto com todos quase teve um “vago”. Assim que se
recompôs correu até a nós a fim de cobrar a “alvista”. Era um costume quando
alguém sabia de uma boa noticia, ia avisar com antecedência ao interessado para
receber um prêmio. A Dona Maria Francisca pagou satisfeita a alvista, combinaram
uma dúzia de ovos; meia dúzia de galinha comum e meia de guiné. Ficou muito
comovida com a notícia da vinda de João, já se passara longos onze anos ele
estava chegando sendo alvo de bons comentários e admirações, tratado como gente
importante. Soldados batendo continências, moças saindo para as ruas mais
arrumadas. O filho de dona Maria Parteira tinha virado o centro de atenções, e ela
gostou do que estava vendo, tocou na sua vaidade de mãe.


João havia saltado do navio em Cabedelo proveniente do Rio de Janeiro, seguiu
direto para João Pessoa. Lá tomou uma marinete em direção a Capina Grande, que
fica praticamente encostada em Lagoa de Roça, veio de carona em um caminhão.
Depois do reboliço que causou, com todos querendo vê-lo, saber das novidades do
Rio de Janeiro, querendo saber o que ele tinha feito para subir tanto assim na vida.
Se foi ajudado por algum político influente. No que ele rebatia de imediato, dizendo
que somente Deus, em primeiro lugar o ajudou, e depois a fé em Padre Cícero do
Juazeiro. Tudo esses imprevistos fez com que ele demorasse a chegar em casa.
Quando cruzou o baldrame da porta já foi logo ordenando para que arrumássemos
nossa bagagem, que no prazo de 15 dias iríamos com ele para o Rio de Janeiro.
Minha mãe em vez de chorar, deu uma bronca nele por ter demorado a chegar em
casa. – “Vice! Onde já se viu. Chega e demora desse tanto na rua menino.” Ele
assustou-se comigo e foi dizendo: - Esse é o Inacinho? Como o peste cresceu. – Ah!
Você vai virar gente, pode deixar comigo.


A festa continuou naquele dia um entra e sai como nunca se viu, até o Sargento
Feitosa teve a petulância de ir lá bater continência como irmãos em armas. O
comentário era grande, o rapaz é um “troço” muito alto, pessoa muito importante. E
como era de costume daquele lugarejo, ocasião como aquela não podia faltar um
peru gordo para fazer um pirão. Foi um dia inesquecível para mim sempre me
lembro daquele movimento. Enquanto preparávamos para a viagem João foi para o
sertão adentro em busca de umas malacachetas, umas pedras brilhantes usadas
como isolante de eletricidade. Queria levar algumas para vender no Rio de Janeiro,
enquanto isso ordenou que ficássemos preparando para a viagem.


Eu nunca havia calçado um sapato na minha vida, usava somente chinela de pataca
cruzada, agora precisava de um. Ficamos sabendo que Firmino Julião tinha
comprado um sapato para o filho dele com um número menor, muito apertado.
Compramos o sapato, era muito bonito, desses bicolor, marrom e branco. O sapato
entrou arrochado, mas serviu, de tanto contente que fiquei nem reclamei dos
apertos. De roupa eu até que não vestia muito mal, minha mãe aproveitava toda
sorte de retalhos que sobrava. Um comerciante de Campina Grande deixava umas
peças de pano para ela vender conforme fosse costurando. Trazia mescla azul,
gorgorão de várias cores e linho de coroá. Avisava com antecedência por meio do
motorista da “Sopa”, apelido dado às “marinetes”, os dias em que viria ao povoado.


Chegava com seu Ford Bigode, e fazia de imediato o acerto como havia combinado
com as costureiras, a seguir mostrava as novidades que havia trazido, por fim,
renovava os sortimentos de panos e aviamentos. Minha mãe tinha um cuidado
especial com as mercadorias e com o dinheiro da parte dele. Além da antiga relação
comercial mantida, tinha muita consideração por ele. Encomendava a ele coisas que
não havia em Lagoa de Roça, principalmente remédios, ele fazia questão de dizer
que não botava margem de lucro por que tinha amizade e consideração por ela.


Ganhei três calças e três camisas. Estava bem composto. Com o coração e os pés
apertados deixei Lagoa de Roça no início do mês de novembro de 1936. Eu, minha
mãe, Maria, Luís e João. Fomos para João Pessoa e ficamos hospedados na casa
de tia Santina. Ficamos lá oito dias esperando pelo navio Pará. O porto de Cabedelo
fica situado bem próximo a capital, tanto que hoje faz parte da região metropolitana
da capital paraibana. As instalações eram novinhas, o porto havia sido construído
um ano atrás, em 1935. Achei engraçado o formato do lugar era uma ilhota de uns
cinco quilômetros de largura por dezoito de comprimento, muito apropriado para a
função portuária, segundo os ensinamentos do meu irmão João Naval, conhecedor
do assunto.


Viemos no navio Pará. Era um navio previsto para três classes de gente: a primeira
para os grã-finos, a segunda para os remediados como nós e a terceira para os
menos favorecidos. Eu não conhecia navio nem por fotografia, e agora estava dentro
de um deles. Andava para todo canto, onde permitiam entrar eu entrava, me
entusiasmei. Pedi licença para entrar nos compartimentos destinados às classes A e
C. Lembro-me que no espaço destinado aos ricos havia lugares diferenciados,
decorados com quadros bonitos, possuía um restaurante amplo com mesas cobertas
com forros brancos bordados em várias tonalidades, um imponente salão de jogos,
homens bem vestidos e mulheres cheirosas, parecendo até que não suavam nunca.
Na outra classe vi passageiros empilhados como animais, empoleirados em redes,
como se tecesse uma teia de aranha, no cruzar e entrecruzar de fios daquele tear
bizarro, cuja matéria – prima assimilava à sorte daquele povo apegado aos sonhos
irreais da capital da república. Sonhos simples próprios da dimensão das suas vidas.
Encontrar um trabalho, arrumar um teto, e ter o necessário que a dignidade humana
exige de um lar.


Dentro da minha consciência de adolescente eu não saberia precisar o que esperar
daquele mundo que estava descortinando, o que eu queria mesmo, era um lugar
onde nunca mais haveria seca para não faltar comida, para mim isso já era o bilhete
de entrada para o paraíso. Mas tarde é que vim perceber que aqueles pobres
coitados tinham um destino: a construção civil. Carregar massa de cimento e cal nas
costas e morar indignamente em casas de pensão. Longe dos seus, a solidão
conduzia-os para o álcool como forma de responder aos insultos que recebiam
daquela sociedade preconceituosa. Mais tarde sempre que ouvia o samba “Pedreiro
Valdemar “de Wilson Baptista e Roberto Martins, relembrava daqueles conterrâneos
do navio.
“Vocês conhecem o pedreiro Valdemar
“Faz tanta casa e não tem casa pra morar”

Não vi o que comiam os pobres, não deixaram. Eu sei que a nossa era boa, quis
repetir umas três vezes, e com o prato bem cheio. Mas, dona Maria Francisca não
autorizava gula, e com um olhar circunspecto me desautorizou a vontade, sem, no
entanto, impedir que eu pudesse matar a curiosidade de experimentar iguarias que
eu desconhecia. Deixei de lado os pratos temperados com cebola. Nunca gostei de
alho e cebola,, como disfarçado, fatiados em milímetros, por saber que são bons
para evitar uma infinidade de moléstias. Chamavam-me de feiticeiro pelo meu
confesso pavor ao cheiro do alho cru. Comida boa.


Eu que fora criado em cima de lombo de animal chucro, não consegui domar o
enjoou provocado pelo balanço do mar. No começo o gangorreado até que parecia
divertido, mas, ia fazendo com que a comida tomasse o caminho de volta. Quando o
Pará passou nos Abrolhos parecia um “sabugo” de milho no mar arredio. Deram-me
limão para eu cheirar. Outros me ensinavam a fechar os olhos. Parecia que sómente
eu sentia enjoou, os outros não. Quando o mar ficava calmo, aí eu aproveitava para
andar no que era permitido. De noite observava aquela imensidão de céu estrelado,
as estrelas movimentando, como se riscassem os céus, tinham outras que caiam no
mar. De dia bisbilhotava, queria por tudo conhecer o navio por dentro, ver como
funcionava, conhecer o maquinário que fazia aquele gigante se movimentar.


Foi uma viagem e tanto, com o passar dos dias meu olhar aguçava na imensidão
das águas, até que avistei como se saísse de dentro do mar, o nosso senhor de
braços abertos. Até hoje aquela cena povoa minha memória, Cristo me recebendo
como se quisesse me abraçar. Depois vi o um morro parecendo um pedaço de pão,
meu irmão falou : -“ ta vendo, é o pão de açúcar. – “De açúcar!”Retruquei. Ele
explicou que a gente podia subir lá em cima dentro de um bonde, que subia o morro
deslizando por um fio. Fiquei imaginando como deveria ser isso. Tive que ir um dia lá
para acreditar naquilo que tinha ouvido.


Aquela imensidão de casas dispostas ao redor do mar e muitas outras que iam
galgando o morro, confundindo com a vegetação verde deste, tudo muito bonito. Um
novo ambiente aparecendo no meu olhar fustigado, me veio na cabeça, como irei
enfrentar isso tudo? Me confortava na experiência dos meus irmãos que já estavam
lá há mais de dez anos, tinha se dado bem, e com certeza saberiam como proceder.
O navio atracou no cais do porto, eu desci, pisei o solo carioca com o pé direito,
sentindo que ali era o meu novo lugar, com gente diferente, e um mundo novo para
enfrentar.


2ª PARTE: O RIO DE JANEIRO
   1. APRENDENDO A VIVER NO RIO DE JANEIRO.


Descemos no cais do porto lá nosso irmão José Galego nos esperava, pegamos
uma condução de aluguel e fomos para a casa dele. Ele era funcionário da prefeitura
municipal fichado como gari. José era possuidor de um generoso espírito de
provedor, de uma dedicação total a família, quando estávamos em Lagoa de Roça,
todo mês chegava uma carta dele contando as novidades e enviando um pouco de
dinheiro para minha mãe.
Ficamos hospedados em sua casa por uns quinze dias prazo em que eles
providenciaram um barraco alugado a Dona Esperança, no morro de São Carlos
próximo ao Terreiro Grande. João morava por perto e era muito respeitado na área
de modo que nossa integração na comunidade não foi difícil. O local era
maravilhoso. Sei que é difícil de acreditar nos dias de hoje, onde os morros no Rio
vivem em clima de guerra civil, mas naquela quadra reinava a camaradagem e a
generosidade que tanto distingue o povo carioca.


Convivemos muito bem com a família de João, Carminda sua esposa, era um ser
humano de generosidade incomum, junto com sua mãe Leopoldina, conhecida como
dona Dina, ensinaram para Maria e Minha mãe como sobreviver ali naquele novo
local. Mostraram os caminhos mais seguros, os açougues e armazéns mais
confiáveis, em suma, foram de uma dedicação incomum. As cunhadas de João
Adélia e Dininha, minhas primeiras amigas naquele mundo desconhecido. Até hoje
me lembro dessa gente com muita saudade, um tempo feliz por que foi uma época
que vivemos bem, cheios de esperança com o que estaria por vir.


Mesmo contrariando Carminda minha mãe começou a costurar, a velha não gostava
de ficar parada e logo pediu a José que arrumasse uma máquina, daquelas movidas
a mão, pois não se acostumara àquelas movidas a pedal. Quando souberam que
havia uma costureira ali na área, choveu de serviços principalmente consertos, e foi
aquele entra e sai de gente. A situação tornou-se quase insustentável quando
resolveram que minha mãe era capaz de costurar fantasias para o carnaval. Umas
mulheres foram o nosso barraco e no final da tarde minha velha já havia aprendido,
e ela ainda brincou: “– É a mesma coisa de fazer mortalha!” Engraçado, que hoje
eles usam essa expressão “mortalha” para denominar as abadas usadas pelos trios
elétricos baianos. Aquilo era muito para uma senhora idosa meus irmãos e minhas
cunhadas proibiram a velha de costurar, também pelo fato de que ela estava com
um sério problema de catarata que acabou levando-a à cegueira no final da vida.


A vida tece a linha de nossa existência e nos conduzem como se fosse um lance
pensado estrategicamente. Imagine onde fui morar, no Morro de São Carlos, onde
em 1928 o grande Ismael Silva havia fundado a “Deixa Falar” e patenteado uma
batida nova para o samba que permitia facilmente diferenciá-lo do maxixe. Na
subida do Morro de São Carlos reuniam-se com freqüência bambas com o próprio
Ismael Silva, Bide, Marçal, Baiaco, Malvadeza Durão, Brancura e Mano Edgar – uma
das regiões do Rio onde convivia a generosidade com transformações e
transgressões judiciais.


Os botequins situados na Rua Maia Lacerda, próximo a Praça Onze e da tradicional
Zona do Mangue, era ponto de encontro da alta malandragem, alguns deles exímios
sambistas. Vinham de Benfica, da Gamboa, da Providência e de Madureira. Ali era o
cenário do meretrício e das rodas de carteado, vida noturna intensa que garantiu ao
Estácio o título de Berço do Samba do Rio de Janeiro, aquele estilo diferente
dolente, pausado e marcado por instrumentos de percussão. Não é fruto do acaso o
fato da primeira escola de samba a “Deixa Falar”, ter nascido no bairro do Estácio de
Sá, reduto de desocupados e trabalhadores informais, dedicados a jogatina e
exploração de mulheres naqueles meados da década de 1930. Reuniam-se em
botecos em culto a boemia e tudo que estivesse associado. Ali foi o berço da alta
malandragem do samba, o berço de Sua Majestade Ismael Silva. Negro bonito,
elegante no vestir, educadíssimo e bom de briga. Foi nesse local que a vida me
colocou e que aos poucos iria me ensinar a conhecer os segredos e os personagens
daquele palco.


Inicialmente João me matriculou em um Colégio dos Integralistas, ele não era das
fileiras do partido, embora fosse um simpatizante confesso das idéias de Plínio
Salgado. O uniforme escolar era uma camisa verde com uma letra sigma estampada
na manga. Naquela escola respirava o nacionalismo, cantavam diariamente o hino
nacional seguido de um sonoro “anauê”, grito de guerra dos integralistas extraído da
língua tupi que significa “você é meu irmão!”.


Um professor era encarregado de fazer diariamente uma palestra sobre a filosofia do
integralismo. O discurso era voltado para o crescimento e desenvolvimento do Brasil
e a ajuda aos pobres. A essência daquilo tudo eu nunca consegui entender até hoje,
parecia um teatro muito mal ensaiado com personagens folclóricas. Não fiquei muito
naquela escola, só o suficiente para mal aprender ler e escrever. Voltei de imediato
para a Universidade da Vida onde permaneço até hoje, aprendendo na observação
e na companhia dos melhores, valendo-me da experiência dos outros para poder
construir a minha. Vivendo e aprendendo a jogar.


Dona esperança desocupou uma casa maior, de quatro dois quartos, sala e cozinha,
situada próximo ao posto policial de frente a uma caixa d’água pública, aonde as
mulheres vinham buscar água para suas rotinas diárias. Fomos morar lá, ficamos
mais bem acomodados, próximo aquela coreografia do sobe e desce no morro, com
as cabrochas equilibrando as latas d’água na cabeça. Isso certamente inspirou os
compositores Luis Antonio e Oldemar Magalhães para compor o samba “Lata
D’água na Cabeça”, lançado pela cantora Marlene.

                           Lata d'água na cabeça
                                Lá vai Maria
                                Lá vai Maria

                        Sobe o morro e não se cansa
                                Pela mão
                              Leva a criança
                               Lá vai Maria

                                  Maria
                               Lava a roupa
                                Lá no alto
                             Lutando pelo pão
                               De cada dia
                           Sonhando com a vida
                                Do asfalto
                                Que acaba
                           Onde o morro principia

A mensagem do samba acima diz tudo. A dura subida do morro, a luta pelo pão de
cada dia e o sonho do asfalto. Com base nisso fui, que era também a minha
realidade, fui a luta, comecei a trabalhar vendendo pastel, doce e amendoim.
Vendia no campo de futebol próximo no largo do Estácio. Depois descia e pegava a
Rua Pinto de Azevedo para chegar ao Mangue, local do baixo meretrício. Lá
consegui vários fregueses entre cafetões e prostitutas, que sempre me pagavam na
data combinada. Não corria risco de ser assaltado no valor em espécie, porém havia
uma molecada terrível que era acostumada a tomar as quitandas e dar uma surra no
vendedor. Aí Afonso, era o bamba daquela área, e com quem mais tarde ficou meu
amigo, me aconselhou a andar sempre com um cabo de aço escondido sob a roupa.
Ah! Eu tive que bater em muita gente para adquirir respeito e confiança naquelas
imediações.


Estávamos no mês de dezembro, com o natal aproximando, vida nova, costumes
diferentes. Em Lagoa de Roça não estávamos acostumados com aquela profusão
de trocas de presentes. Um malandro me garantiu que se eu deixasse um sapato na
janela o Papai Noel colocaria um presente. Coloquei o meu bicolor de estimação, em
vez de deixar um presente para mim o Papai Noel levou com ele meu único sapato.
Fiquei chateado e a partir daí perdi totalmente a confiança e a crença em Papai
Noel.


Afonso passou ser uma espécie de manual de sobrevivência para mim, a
apresentado o que havia de mais interessante naquelas paragens. Um dia me
chamou para assistir uma briga de galos na casa de um senhor por nome de
Benjamim. Era um lugar o ponto dos galistas do morro de São Carlos e adjacências.
Gostei do ambiente e comecei a freqüentar com assiduidade, tanto que acabei
conquistando a confiança de todos que freqüentavam aquela rinha. Fui conhecendo
e compreendendo todas as manhas do ofício até me consagrar como tratador de
galos de briga.


Tratava o galo da mesma forma como se cuida de um atleta profissional. Os
procedimentos têm que seguir a uma dura rotina diária. De manha começava o
trabalho para o fortalecimento da musculatura das pernas e do aparelho respiratório,
fazendo o galo pular sobre um tapete até ficar ofegante. A seguir refrescava-o com
banho de água natural seguido de um banho de sol. Logo após, o galo entrava no
passeador, um local de mais ou menos um metro e meio por oitenta centímetros,
dotado de um piso de areia para complementar o reforço da musculatura, ficando lá
geralmente das oito às onze da manha.


Voltava novamente à gaiola, agora para tomar água e alimentar-se. Sua refeição
normalmente acontecia por volta de uma da tarde, constituída a base de girassol,
milho quebrado, aveia em casca e leite. Como suplemento, uma torta extra de
tomate, agrião, couve e cenoura. Para desenvolver resistência, pílulas de robustez,
as mesmas dadas para os pombos correios. É um treinamento, com as devidas
proporções, semelhante ao de um lutador de boxe, o bicho é preparado para ter
resistência na hora de assimilar os golpes e agressividade para reagir.


As brigas de galos já estavam proibidas desde 1934, com a edição do Decreto
Federal 24.645 que proíbiu realizar ou promover lutas entre animais da mesma
espécie ou de espécies diferentes. Mas a paixão pelo galismo é tão grande que o
pessoal nunca foi de respeitar esse decreto, volta e meia ficamos sabendo de
batidas policiais e prisões em flagrante de cidadãos com alto prestígio econômico e
político, que até a polícia fica sem jeito de conduzi-los para a delegacia.


Para ser engraxate na Lapa tive que tomar umas aulas com o Lopes, um engraxate
profissional morador no morro de São Carlos, que fez questão de me ensinar as
manhas do ofício. Mas havia outra questão essencial: como sobreviver naquele
ambiente visitado pelos maiorais da malandragem. A Lapa era uma autêntica
academia de formar malandros, alguns com status de astros, como Miguelzinho,
Edgard, Baiaco, Malvadeza Durão, Ataliba, Eduardinho, Camisa Preta e Meia-Noite.
Para conviver ali a exigência era ser um deles, batizado e matriculado no assunto e
coisa e tal.


Conquistar na Lapa um ponto para trabalhar era correr riscos de levar uma surra
inesquecível. Já havia sido avisado que iria para o local mais perigoso da cidade.
Por isso fiz um diagnóstico da área para saber quais os pontos que já estavam
ocupados, para então localizar um lugar aparentemente devoluto. Encontrei um,
próximo de uma farmácia situada em frente à Travessa do Mosqueiro. Mas mesmo
assim, com toda essa precaução estratégica de boa vizinhança, um moleque do
morro dos cabritos que engraxava a uns trinta metros abaixo, não quis admitir
pacificamente a concorrência; aí um garoto grandão, que eu não conhecia, tomou
minhas dores, parecia ser muito respeitado na área, e ordenou que me deixassem
em paz. Assim pude trabalhar ali tranqüilo, confiante no meu cabo de aço escondido
dentro da caixa de engraxate.


Ainda não possuía nenhum conhecimento sobre as personalidades do mundo
folclórico da Lapa, mas de cara, engraxei os sapatos de algum deles. Lembro-me de
Madame Satã, malandro que ficou conhecido no envolvimento da morte do
compositor mineiro Geraldo Pereira. Do China da Lapa, esse não era um valentão,
mas um jogador que sobrevivia do vício, certa vez ele reconheceu Noel Rosa
passando com um violão debaixo do braço, no outro lado da rua, às dez horas dez
da manha. Lembro-me dele dizer: - “ Nossa o Noel ainda está na rua, já ouviu falar
dele menino? Ele é o maioral dos compositores”. Assim eu fui me criando naquele
ambiente, conhecendo seus códigos, no entanto, sem ostentar valentia nem
tampouco covardia. Sempre soube ouvir e por isso vez por outra recebia bons
conselhos de desconhecidos que foram fundamentais para sobreviver naquele
ambiente povoado por marginais, prostitutas, artistas e intelectuais. Gente muito boa
por sinal!


   2. O CONTATO COM A MÚSICA


O Afonso me levou para assistir os ensaios no Bloco “Cada Ano Sai Melhor”, tive
uma sensação de assombro com o que vi. O repicar dos tamborins, a marcação dos
surdos, e as cuícas tirando um som que imitava gente gemendo sabe lá se de dor ou
de alegria. Nem dormi o restante da noite, sensação igual aquela só quando ia às
feiras ouvir Severino de Guiné, Pólino e o Galeguinho de Itabaiana. A música
sempre me furtou as atenções, vendo aquilo eu não conseguia pensar em outra
coisa, queria ser um deles dominando meu instrumento e ser o centro das atenções,
sempre tive esse tipo de vaidade. Peço a Deus que me perdoe se isso for uma
espécie de pecado inclemente.


Depois do que vi, passei a gastar todo meu dinheiro de engraxate, para encontrar
um bilhete premiado que valia um cavaquinho numa birosca de um português muito
mal intencionado. Era um instrumento tosco, de cravelhas, e que depois tive o
dissabor de constatar que era difícil de ser afinado e pior ainda, e de modo algum
segurava a afinação. Minha irmã Maria percebeu que aquele negócio todo tinha um
xaveco por detrás, resolveu ser mais esperta que o português, falsificou com todo
cuidado o tal bilhete premiado. Comprou um envelope, abriu na frente do portuga,
ele com mais atenção na beleza dela não percebeu a troca do comprovante. Mas,
ainda simulou uma reação: “Oh! Raios me garantiram que o cavaquinho não sairia!”
Ter aquele cavaquinho em minhas mãos foi um marco na minha vida, ele ali, à
minha disposição. Não sei e nem quero comparar, mas emoção de tirar o som do
seu primeiro instrumento, com ele assim, coladinho no peito, é como ver o primeiro
sorriso dos filhos, são coisas que a gente cala nos recônditos da alma, e, com o
passar do tempo, as lembranças dessas emoções retiram lágrimas dos olhos da
gente com a maior facilidade. Naturalmente por terem sido vividas de uma
experiência feliz. Lágrimas sem remorsos e, sobretudo humanas na sua mais digna
expressão de sentir e de viver. Sou um homem feliz, por que fui conduzido pela
sorte do meu talento musical. Fiz muita coisa nessa vida, sou um artesão habilidoso,
mas nada se compara ao meu trabalho como músico. Minha paixão pelo palco é
maior do que a minha paixão pela vida, por que sem ela não valeria a pena viver.


Com o cavaquinho nas mãos no outro dia fui à casa do Nequinho, músico de
respeito e meu vizinho. Vendo minha determinação me acolheu com entusiasmo. Os
artistas de um modo geral sempre protegem as crianças talentosas. Dão aulas de
graça, por que talvez vejam neles a sequência do que fazem. Ele de cara foi
afirmando: - “Meu filho, tudo começa com o dó!”. E foi cantarolando aquela
embolada folclórica de domínio público:


“Segura o bode
meu cumpade seu Mané
o seu bode é tão malvado
machucou minha muié.”


Foi me ensinando e dizendo que prestasse atenção na pulsação da música, para eu
sentisse o momento adequado de trocar a posição dos acordes. Para seu espanto
toquei ali de prima, no calor da emoção, o Segura o Bode. Ele percebeu de imediato
a minha capacidade de aprender, e ficou entusiasmado, disse que eu fosse lá todo
dia, uma meia-hora depois que chegasse do colégio, para verificar como eu estava
indo. No dia seguinte ordenou que eu fizesse o dó em outras casas, dizia que era
um exercício muito bom, pois permitia dominar com maior desenvoltura o braço do
instrumento.
Depois fez o mesmo com a tonalidade de ré maior. Ensinou-me uma melodia com as
notas ré, sol, si, ré. As mesmas notas da afinação padrão do cavaquinho para eu
aprender afinar o cavaquinho fazendo associação com essa seqüência musical.
Fazia questão de frisar que cavaquinho não era um pedaço do violão e que tinha
sua afinação específica, e que eu deveria obedecer a esses princípios se quisesse
levar em frente à carreira de instrumentista. Nequinho tinha ojeriza de ouvir
cavaquinho afinado como violão ou bandolim, reagia como se tivesse sido insultado,
para ele era uma espécie de humilhação ao instrumento. Cada instrumento tem sua
identidade baseada em uma afinação característica. Ele era um tipo conservador,
inimigo confesso das afinações alternativas.


Cada dia que passava eu ficava mais entusiasmado com o aprendizado, fui
descobrindo os segredos daquelas quatro cordas. Sentia-me importante aprender
aquela linguagem entendida somente por músicos de respeito. Eram os relativos,
tons vizinhos, cadência, notas falsas, melodia, harmonia, ritmo, tonalidades. Aquilo
me fazia diferenciado dos demais garotos, era reconhecido e respeitado pelos mais
velhos, que me considerava um deles. Ficava impaciente para descobrir coisas
novas; uma forma mais eficiente de segurar a palheta para não deixá-la cair a toda
hora, e, sobretudo, ter cuidado para aprimorar a qualidade do som extraído.


Fiz amizade com um garoto por nome de Pedro, que foi percebendo me interesse
por música, tratou logo de me colocar em contato o seu pai, Manoel do Violão, que
fazia parte de um conjunto amador especializado em choro e samba. A cada
primeiro sábado de mês, eles reunião-se na Rua Catumbi, na residência do saudoso
professor Waldemar, pessoa muito querida no meio, compadre de Pixinguinha. O
sarau era esperado com impaciência, devido o modo especial que o professor e a
esposa recebiam os convidados. Além da hospitalidade havia uma feijoada que
sómente os cariocas sabem fazer. Outras vezes serviam uma rabada com agrião e
batata, meu Deus do céu, era uma coisa séria.


Atraídos pelo ambiente e pela suculenta comida que o Professor Valdemar
proporcionava vinham instrumentistas e aficionados de todas as plagas do Rio:
clarinetistas, violonistas, flautistas, todos de altíssimo nível a ponto de me sentir
acuado, quem era eu para tocar com aqueles mestres. Gentilmente pediam-me para
eu tocar, como eu não me sentia seguro, preferia mesmo era ouvir e ir aprendendo
importantes macetes que ou meus olhos e ouvidos capturavam. Foi lá que conheci
seu Antônio Rodrigues, grande cavaquinista, trabalhava no Ministério do Trabalho.
Ele usava uma afinação que não teve seguidores, mas era um troço bonito, dava um
efeito diferente. Aí cheguei à conclusão que não devia ser tão intransigente em
questão de afinação como havia ensinado meu primeiro professor.


Passei a freqüentar a residência de seu Antônio na Rua do Lavradio. Ele era casado
com dona Maria uma mulher muito doente, mas de uma educação que nunca vi
outra igual, uma esposa extremosa, muito carinhosa comigo, gostava da minha
presença, argumentava que eu ajudava a “prender” seu Antônio em casa. Nas aulas
ele insistia para que eu dominasse as tonalidades, saber de cor os relativos. Na
minha ignorância de inocente quis saber o significado do nome Relativo, ele
sabiamente respondeu: “É que os tons precisam de solidariedade!”


Uma vez descendo o morro de São Carlos fui interceptado por um negro bem
vestido, terno branco, sapato branco e camisa azul. Estava na minha frente nada
mais nada menos do que São Ismael Silva. Vendo-me com o cavaquinho debaixo do
braço perguntou-me se eu conseguia acompanhar um samba e cantou aquele
samba feito por ele com parceria de Noel Rosa:

                         “Estou vivendo com você
                          Num martírio sem igual
                          Vou largar você de mão
                                Com razão
                           Para me livrar do mal.
                          Supliquei humildemente
                           Pra você se endireitar
                          Mas agora, francamente
                         Nosso amor vai se acabar.
                             Vou embora afinal
                           Você vai saber porque
                           É pra me livrar do mal
                           Que eu fujo de você.”



Depois de ver meu esforço ele perguntou: -“Você é do norte?” Respondi que era. Ela
emendou, de agora pra frente você será o garoto do norte. E tem mais uma coisa
Você vai ficar bom nesse negócio aí. Anos mais tarde encontrei com ele em uma
Rádio ele me olhou pensativo e foi logo perguntando. –“ Eu não te conheço? Você
não é o garoto do norte? Trocou o cavaquinho pelo pandeiro, Por que?”


   3. MEU ENCONTRO COM O PANDEIRO.


Naquelas imediações do Largo do Estácio respirava-se o samba, as crianças já
nasciam com o coração marcando o compasso dois por quatro. A vontade de ser
ritmista ia tomando conta, até que um dia passei por cima do compromisso que tinha
com o Nequinho e com o seu Antônio Rodrigues. Cheio de dúvidas me aborreci
acabei trocando o cavaquinho por dois casais de canários bons de briga. Mas depois
de alguns dias comecei a ficar angustiado por ter desfeito do cavaquinho, Ia
engraxar e voltava triste, abatido. Para aliviar um pouco aquilo tudo, passei a
freqüentar a casa do Manoel da Cuíca, ponto de encontro de reuniões musicais,
como o pessoal do conjunto Turma Animada, e dois pandeiristas que se
destacavam: Valdemar e Russo Sapateiro. Tinham estilos completamente diferentes.


O Valdemar era uma cópia do Jacob Palmieri e do Russo do Pandeiro que tocavam
com as platinelas sem abafamento, de tal forma que quase não se ouvia o som do
couro. Ainda muito influenciado pelo samba amaxixado. O outro era o Russo
Sapateiro, que não possuía semelhança musical alguma com o xará. Ele tinha a
malemolência da Turma do Estácio e passei a observá-lo minuciosamente. Mas
havia um problema sério, eu não possuía um pandeiro, passei a improvisar em
pratos ou qualquer outra coisa que assemelhasse a um pandeiro. Fui indo até que
um dia meu irmão, Antônio Fogueteiro, vendo minhas estripulias de sambista
doméstico, aconselhou-me como era conseguir um pandeiro.


Ele me aconselhou ir até a barbearia de Joaquim Pinheiro nas imediações do
Campo de Santana, próximo do Túnel João Ricardo que dá passagem para o cais
do porto. Naqueles tempos haviam os fregueses de caderneta, e vez por outra
ficavam dívidas em aberto, aí depois de algum tempo do vencimento da obrigação
as partes entravam em acordo, como forma de honrar o compromisso o devedor
botava à disposição do credor um objeto de valor como pagamento. O barbeiro
Joaquim havia recebido um pandeiro como pagamento de dívida, e estava sendo
usado como peça de decoração. Dependurado, empoeirado e sem uso.


Seu Joaquim era desses barbeiros que usava um bigode bem aparado, separado ao
meio como aquele ator americano do filme “ E O Vento Levou”, Clarke Gable. Muito
gentil, quis saber o que eu queria, e de prontidão foi pegando uma cadeira e subiu
para apanhar o pandeiro, fez uma ligeira limpeza com um espanador e colocou-o em
minhas mãos. Aí o espírito do Russo sapateiro manifestou em mim, fiz tudo que
havia aprendido observando por vários meses como ele tocava. Seu Joaquim
Pinheiro não resistiu aquilo aquilo e me deu o pandeiro de presente. Agora que eu
estava “armado” fazia questão de ir todos os dias dos ensaios. Percebi que o Russo
Sapateiro tocava com as pontas dos dedos e não dava tapas no pandeiro. Chegava
em casa, treinava, treinava. Não gostava daquele barulho deselegante das
platinelas, sentia que perturbava mais do que agradava a quem ouvia. Fui
experimentando abafadores, isso acabou virando uma obsessão em minha vida
artística, experimentei de tudo e nunca ficava satisfeito, até que um dia, depois de
consagrado, descobri o plástico, esse sim, tem a capacidade de colocar o som das
platinelas no lugar que ele merece, lado a lado com o som do couro, igual a uma
dupla de violões bem afinados, onde um respeita as funções do outro.


Com essa preocupação toda e treinando muito, logo chamei a atenção dos próprios
músicos. Ouvi elogios repetidos e incentivadores dos pandeiristas Adolfinho e
Valdemar. Esse último chegou até a afirmar que estava com vergonha dele mesmo.
Havia passado lá em casa e me ouviu treinando no quarto, disse que não acreditou
no que ouviu. – “Esse menino não tem a metade de nossa idade e já esta fazendo
isso, imagine só quando crescer, não vai ter para ninguém!” Começaram a me
aconselhar a ir a algum programa de rádio para mostrar meu talento. Eu nem tinha
noção do que falavam treinava muito porque, parecia que havia uma voz lá de
dentro de mim ordenando a continuar trabalhando em busca da perfeição.


Minha fama começou a circular de boca em boca até que o Roberto do conjunto
Turma Animada pediu que eu fosse assistir os ensaios deles. Era um conjunto semi-
profissional, todos tinham suas profissões, mas quase todo mês ganhavam um
dinheirinho tocando normalmente em reuniões sociais. O Roberto tocava violão.
Nequinho, meu professor, cavaquinho. Sete Camisas no pandeiro. Osmar no
bandolim e Suquinho tocava ganzá e cantava, diga-se de passagem, grande cantor,
não sei como não se consagrou no Rádio.


Eu tinha catorze anos, parecia ter um pouco mais, porque andava sempre bem
alinhado para parecer mais velho e ostentar respeito. Cheguei no local onde
ensaiavam, me aboletei em uma cadeira distante uns cinco metros mais ou menos,
e fiquei prestando atenção no bom desempenho do grupo. Quase no final do ensaio
Roberto ordenou a Sete Camisas que me passasse o pandeiro. Quando comecei a
tocar Dona Regina, mãe de Roberto chegou da cozinha toda assustada: - “Mas é o
Inacinho, não acredito! Você tem que ir a Rádio meu filho, complementando o
assombro dela com meu desempenho.


Não tinha palavras mais doces ao ouvido de um músico iniciante do que essas:
“Você tem que ir tocar na rádio!” Isso significava o reconhecimento de sua
comunidade. Tocar na rádio significava a transposição da sua Aldeia, era viajar
pelos ares e ser conhecido no país todo e naturalmente ser reconhecido
financeiramente. Mas antes de chegar na rádio tive uma experiência muito
interessante.


   4. O BATISMO DE FOGO.


O Sete Camisas, pandeirista oficial do grupo, não pode continuar no conjunto por
problemas particulares, aí o Roberto pediu autorização a minha mãe para que eu
tocasse com eles. Como o pessoal do conjunto pertencia à comunidade local e eram
benquistos por todos, Dona Maria Francisca não teve dúvidas em autorizar que eu
participasse do grupo. Meu entusiasmo era tanto que isso pesou muito na decisão
dela. O Roberto foi um grande incentivador, confiando na minha capacidade me
levou para tocar na gafieira Flor do Abacate. Fomos a pé, passando pela Glória, foi
quando ele me contou o que estava planejando. É que lá passava um flautista que
adorava derrubar tudo quanto é pandeirista, mas nós apostamos que ele não vai
poder com você.
Chegamos à casa onde o Álvaro Sandin em sua homenagem, compôs aquele
antológico homônimo, gravado magistralmente pelo Jacob do Bandolim. A Flor Do
Abacate ficava em um prédio bonito com gente elegante dançando. Mulheres
cheirosas e bem vestidas deslizavam em um piso liso e escorregadio compondo
pares de dançarinos magistrais. Tudo aquilo ali era novo para mim. Meio assustado,
mas com um pandeiro novo que minha irmã tinha me presenteado, com estojo de
madeira e tudo, fiquei sentado esperando a nossa vez de tocar.


Depois de uma meia-hora que estávamos tocando entrou um negro alto, vestindo
um terno branco de linho S120, chapéu de aba larga e sapato bicolor. Muito
elegante mesmo. Trazia uma flauta debaixo do braço no estilo de Pixinguinha. E foi
logo me observando: - “Tem cara nova hoje!” Era o especialista em desmoralizar
pandeirista, começava tocando lento e ia aumentando o andamento, aumentando
até que o pandeirista desistia, e isso era a glória para ele. Era aclamado como
campeão como se musica fosse uma competição de pugilato. O aprendizado
informal da música acaba produzindo pessoas com esse tido de comportamento.
Nunca vi grandes músicos agirem dessa forma. Abel Ferreira, Pixinguinha, Waldir
Azevedo nunca tiveram atitudes semelhante a esta. Pelo menos eu não vi e nunca
tive notícia.


O tal do Tião da Flauta ficou de lado bebendo umas cervejas, no intervalo e ele
chegou e comentou com o Roberto, esse menino tem uma batida diferente, segura.
Meu amigo concordou, mas evitou entrar em qualquer tipo de detalhe. Para não ficar
deselegante apenas comentou que eu estava muito verde ainda, mas que prometia.
Aí o flautista ficou animado em me desafiar. Assim que começou tocar de novo, ele
no final da segunda música foi olhando para mim dizendo: -” Tem cara nova aqui
hoje!” Subiu no palco e foi dizendo para que eu segurasse o “Urubu Malandro”. O
Urubu é um choro predileto dos flautistas virtuoses. É uma obrigação de todo
flautista de valor tocá-lo.


Ele começou, só eu e ele fomos aumentando a velocidade, eu segurando. Quando
estava muito rápido eu usei de uma malandragem, criada ali na hora, que nenhum
ritmista carioca poderia imaginar. Meti a batida do frevo, que é muito mais folgada
para o bandeirista, e exige muito mais do solista, e fui puxando, fui puxando, até que
a flauta só fazia piu, piu... acelerei mais ainda, ele parou. “- Roberto, hoje eu
encontrei um, que maravilha de garoto você encontrou.” Pegou a minha mão direita
e repetiu aquele gesto que os juízes fazem quando um pugilista vence uma luta.
Juro que fiquei com vergonha, aquele homem que dez minutos atrás era um falador
arrogante, agora queria a todo custo prostrar-se em meus pés.


Hoje, esse recurso de trocar o choro ou samba pelo frevo, é uma alternativa muito
usada por pandeiristas que sabem das coisas, quando solistas de alma circense
querem tocar em alta rotação. Vejam por exemplo o que está acontecendo hoje com
as escolas de samba, pelo fato de possuir um tempo determinado para cumprir seu
percurso, o diretor de bateria impõe um ritmo frenético, aí, sem querer o samba vira
frevo. Acho que quem usou isso pela primeira vez de forma consciente fui eu
naquela demanda com o saudoso Tião da Flauta. Chegando em casa comecei a
pensar onde tinha buscado aquilo. Ai lembrei-me que lá no norte eu acompanhava
sanfoneiros batendo caixote, imitando zabumba. Dali em diante comecei a relembrar
tudo aquilo, a mistura do rojão, do baião, xaxado, frevo, maracatu, samba e choro,
acabou constituindo o meu jeito de tocar pandeiro, a meu jeito, sempre com a
pontinha dos dedos. Salve o Russo Sapateiro, que Deus o tenha em glória.


Depois daquele confronto, meu tratamento na comunidade onde vivia passou a ser
outro, minha fama espalhou como fogo que sobe morro acima. Aí vieram as tapinhas
nas costas, pandeiristas dos outros grupos exigindo que eu desse uma canja. Passei
ser anunciado como o Inacinho do pandeiro. Nas rodas na casa do Professor
Valdemar ninguém mais queria botar a mão no pandeiro. “Sem querer, ouvia
aqueles músicos experientes dizendo: -” Esse menino tem uma cadência diferente,
dá muita firmeza e enriquece o solo!”


Aquilo tudo acabou me tornando um adulto precoce, aos catorze anos comecei a ser
comparado com os grandes do instrumento. Jacob Palmieri, Russo do Pandeiro,
João da Baiana e Popeye. E sempre ouvindo: “Já deixou para trás!” Confesso que
dos três eu gostava mais do Popeye, mais da minha geração. Mas hoje, depois de
tanto, tempo curvo a cabeça para os três primeiros, que tiveram a primazia de
introduzir o instrumento definitivamente no cenário profissional.
O Russo era paulistano, mas, ainda criança mudou-se para o Rio de Janeiro. E
dizem que tocou em um casamento de sua irmã com Benedito Lacerda, a partir daí
fundaram o conjunto Gente do Morro, que seria no futuro o regional de Benedito
Lacerda. Foi para os Estados Unidos com a Carmem Miranda, trabalhou em muitos
filmes e teve conjunto por lá. Além de virtuose do pandeiro foi um excelente
compositor com vários sucessos registrados. Muita gente que hoje tem sucesso
internacional            como          ritmista,        principalmente              pandeiristas,             deveria         trazer
permanentemente uma fotografia dele na carteira, ele foi um bandeirante do
pandeiro, um verdadeiro rompedor de fronteiras.


O João Da Baiana trazia aquela coisa da África, não era só pandeirista, tocava
vários instrumentos de percussão, e conhecia muito aqueles pontos de macumba,
ele era do candomblé e sabia de muitos segredos em termos de ritmos ligados aos
rituais fechados. Era muito ligado ao Pixinguinha participou de diversas gravações
tocando, além do pandeiro, garfo e faca. Compositor de prestígio.


Em ralação ao Jacob Palmieri, não tenho muito conhecimento, só sei que era o
pandeirista de confiança de Pixinguinha nos Oito Batutas, isso dispensa quaisquer
dúvidas a respeito de sua competência técnica. Deixo aqui, como uma homenagem
particular, o registro desses três instrumentistas com os quais me comparavam, e
que mais tarde tornaram-se meus irmãos em armas. E faço questão de salientar a
importância que tiveram para a memória da cultura nacional.
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PROGRAMAS DE CALOURO




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Depois de 1940 entre os programas de radio de maior prestígio era "O Trem da
Alegria", comando por                    Heber de Boscoli, por Yara Sales e o grande copositor
Lamartine Babo, "O Trio do Osso", assim denominado devido ao fato de que todos
os seus componentes serem magros. Foi um programa de enorme popularidade
naquela época em todo o Brasil. Um outro programa que marcou época foi o do
grande apresentador César de Alencar. Vejam só, seu sucesso foi tanto que para
assistir seu programa tinha que adquirir         os ingressos para o auditório
antecipadamente com até duas semanas de antecedência.


Também vale a pena ressaltar o programa do Renato Murce e sua assistente “Miss
Mary”, o nome do programa era Papel Carbono, ia ao ar aos domingos de noite na
Radio Nacional na década de 1940. Murce era casado com Eliane, a musa dos
filmes da Atlântida. No Papel Carbono os calouros tinham que imitar um astro que
estivesse em evidencia, e pode-se dizer cem cerimônias que o programa foi um
verdadeiro celeiro de astros: Doris Monteiro, Alaíde Costa, Ângela Maria, Élen de
Lima, Claudete Soares, Ivon Curi, Ademilde Fonseca, entre outros. Os programas de
auditório era o ponto forte das Rádios, e a Rádio Nacional comandava os maiores
deles.


Os grandes programas desta época dignos de nota são: "A Hora do Pato", mais
tarde denominado "Aí vem o Pato", da Rádio Nacional; "Pescando Estrelas", da
Rádio Clube, apresentado por Renato Amaral e o famoso "Buzina do Chacrinha",
também da Rádio Clube. O Programa César de Alencar, que em um dos seus
aniversários levou ao Maracananzinho quase vinte mil pessoas em              1955.
Vale lembrar ainda lembrarmos os nomes de Haroldo Barbosa, que trabalhou nas
Rádios Nacional, Tupy e Mayrink Veiga, fazendo sucesso com os programas "Um
Milhão de Melodias", "Calouros da Orquestra", o Fernando Lobo, pai do compositor
Edu Lobo, um grande produtor de programas, sendo responsável pela produção de
vários programas da Nacional.


O Ari Barroso afirmava categoricamente que o seu programa não tinha a finalidade
de procurar estrelas. E se assim fosse, não permitiria a apresentação de candidatos
destituídos de condições técnicas. No programa em que dirigia qualquer um tinha o
direito de se apresentar para fazer o que quisesse desde que fizesse formalmente a
inscrição. Embora muitos ex-calouros acabariam se transformando em autênticos
astros do firmamento musical nacional. Uma das razões aventadas para explicar o
sucesso obtido era ter passado pelo crivo de Ari Barroso. Ele era muito exigente e
entendia do assunto. Se o candidato mostrasse virtude tinha tudo com ele.
O clímax do programa era a pitada de humor e a irreverência em que o Ari era
mestre. Ficava nervoso quando alguém insinuava que ele humilhava os calouros.
Afirmava que não ridicularizava os calouros e justificava com o número cada vez
mais elevado de inscrições que cresciam assustadoramente para o seu programa,
mas por outro lado, não podia impedir que os “ridículos de nascensa”, segundo ele
se constituísses na nora humorística di programa.




Incentivaram-me a ir aos programas de calouro, fui no Papel Carbono. Eu e o João,
um flautista que no momento não me recordo do sobrenome. Isso era por volta de
1938. Ele com sua flauta de bambu imitava o Benedito Lacerda e eu o Russo do
Pandeiro. Fizemos a inscrição com aquele famoso tema para flauta e pandeiro – o
Urubu Malandro. O grande solista de violão Dilermando Reis que era o chefe do
conjunto regional me disse nos ensaios: - hoje não vai ter pra ninguém!.	
  


Voltamos para o morro e ensaiamos o que pudemos, vestimos a melhor roupa, com
sapato engraxado e tudo mais. Fomos para a cidade por volta de 19 horas por que o
programa começava às 20 em ponto. No palco estava o Renato Murce e Miss Mary,
Recebemos uma salva de palmas, mas mesmo assim não foi o suficiente para
espantar o medo. Os nossos concorrentes pareciam mais nervosos. O primeiro com
um violão tenor imitando Claudionor Cruz, e o segundo imitando Jacob do bandolim.
No final levamos o primeiro lugar e o Renato Murce, fora do ar, me falou em
particular: - olha garoto o Russo tem que tomar cuidado com você, esse pandeiro
que você toca não faz barulho, é tudo muito equilibrado. Voltamos para o morro e a
vizinhança veio em peso dar tapinhas nas costas, aquelas congratulações de praxe,
alguns prevendo um futuro cheio de glamour e dinheiro fácil.


Depois do sucesso no Renato Murce, fiquei sabendo que o programa A Hora do
Pato estava acumulado, e dessa fez eu fui sozinho. Naquele programa eu teria que
desafiar um grande astro, e esse astro que eu iria desafiar não era nada menos do
que Luís Americano do Rego. Tio Luís, como passei a chamá-lo posteriormente, foi
também um clarinetista e saxofonista extraordinário, compositor inspirado de valsas
e choros, talvez o melhor para clarineta. Além das gravações como solista,
participou de milhares gravações, sobretudo acompanhando os grandes cantores e
cantoras da década de 1930 e 1940 o som de sua clarineta e de seu sax-tenor é
inconfundível, marcante. Ao ouvirmos essas gravações, percebemos sem muita
dificuldades os momentos em que surgem as intervenções maravilhosas de Luís
Americano. 	
  


Pois bem, o prêmio interessante me encorajou e fui armado de um pandeiro
devidamente colocado no estojo, quando entrei na no recinto onde estava sendo
feito os ensaios, o Índio do cavaquinho me perguntou: - o que você veio fazer aqui?
O Tio Luis quando viu logo me deu um sorriso irradiando bondade, e disse: - vamos
dar uma passadinha. Quis saber onde eu morava, e pediu para que o Índio se
juntasse a nós. Eu já tinha escutado o “Passeando Pelas Arábias”, e como eu era
um assíduo espectador de filmes em série. Enquanto Tio Luís fazia aquela clássica
introdução, eu batia o pandeiro com o cotovelo e com a mão imitava uma Naja. Ele
gostou muito, e fez questão de dizer que eu era um prodígio, e iria fazer questão que
eu ganhasse o prêmio.
Na hora da apresentação fizeram toda aquela pompa, e, diziam assim: o garotinho
do norte, Inacinho, que veio desafiar Luis Americano. Eu fui muito bem vstido com
um terno de linho caroá. Tio Luís me recebeu com aquela gaitada gostosa que só
ele sabia dar no clarinete. E o resultado não deu outro ganhei o primeiro lugar,
naturalmente com todo envolvimento daquele monstro sagrado da música
instrumental brasileira, e que depois fui muito amigo, era acima de tudo um grande
conselheiro para os mais novos que estavam começando.
	
  


       5. O INICIO NO MUNDO PROFISSIONAL DA MÚSICA


Depois quando terminaram toda aquela euforia, as pessoas querendo saber onde
eu morava, Tio Luis me chamou de lado e me disse: você já está pronto meu filho, já
pode vir para o ponto dos músicos. O ponto era assim dividido de um lado junto ao
Teatro João Caetano, era o ponto dos músicos de orquestra, e no Teatro Carlos
Gomes o ponto de músicos de conjunto regional. O ponto era uma espécie de
mercado de trabalho, formavam-se conjuntos ali, em cima da hora, até pequenas
orquestras eram criadas no calor do improviso.
.
Fui para o ponto e n primeiro dia tive a sorte de conhecer um dos maiores violonistas
que esse país já teve, e que não tem o nome divulgado como o seu grande talento
musical merecia. Trata-se de Arlindo Ferreira, e que devido o seu gosto pelo
cachimbo, passou ser conhecido como Arlindo Cachimbo. Era mineiro, formou uma
das melhores duplas de violões que o cenário artístico já conheceu com Djalma
Ferreira, o lendário Bola Sete no regional do Claudionor Cruz, e depois, foi o
violonista de confiança de Abel Ferreira por muitos anos. Era do mesmo nível do
Meira e do Dino, que por sinal era seu amigo e compadre. Era um mineiro muito
calado e sistemático, quando a Aracy cantava aquele samba do Mulato Calado do
Wilson Baptista:
                                   “vocês estão vendo
                                  Aquele mulato calado
                                Com o seu chapéu de lado
                                      Já matou um
                                     Já matou um..”


Ela cantava e apontava para ele. Ele depois reclamava com ela dizendo que o povo
ia pensar que ele era um assassino. Um grande artista. Meu amigo acima de tudo.
E. perfeito para um regional.
                                                           Acervo Sérgio Prata /1970
Da esquerda para a direita: Arlindo Cachimbo, Canhoto, Sílvio Caldas, Meira,
Niquinho e Gilson. A foto é da década de 70.


O Arlindo Ferreira me convidou então para tocar com ele no Circo DUDU, que
estava instalado na Praça da Bandeira. Iríamos acompanhar a cantora Aracy de
Almeida, o Jorge Veiga e o Gilberto Alves. Quando fiquei sabendo que iria
acompanhar a grande Aracy de Almeida de quem eu particularmente era fã, me deu
um calafrio, mas uma certeza que estava no caminho certo e com a pessoa certa. Eu
sempre gostei dela, por que sua voz era um instrumento de ritmo, o jeito que ela
dividia, não tinha para ninguém, por isso que ela era chamada de “O Samba em
Pessoa”.


Seguramente a maior interprete de Noel Rosa, e que por sinal, era sua cantora
preferida. Tinha o gênio forte e um repertório interminável de palavrões.
Ela gostou muito do meu novo jeito de tocar o instrumento, e saiu fazendo
propaganda para todo mundo: “viram o garotinho que o Arlindo descobriu, toca
pandeiro com surdina.” Daí para frente ordenou ao Arlindo Ferreira que seria eu o
seu pandeirista, e não queria saber mais daquele “pitilingu pitilingu “ que os
pandeiristas até então faziam. “E tamos conversados!”


Outra pessoa de enorme importância na minha carreira musical foi Vicente de Paula
Jose Soares - o Pinguim. Conheci-o em uma casa na rua Andre Cavalcante onde ele
dava uma “canja”,, juntamente com o grande ritmista Luna. Fiquei impressionado
como ele tocava o cavaquinho, um estilo completamente diferenciado. Fazia o
centro puxando os violões. E era bom também no segundo violão. É outro
instrumentista esquecido nesses pais sem memória. Outro dia atrás conversando
com meu amigo Voltaire7Cordas, ele me afirmou que ia assistir o programa do meu
regional na Rádio Mauá para ver o Pinguim tocar, agora,          um elogio vindo do
Voltaire pesa.


Passamos a nos encontrar com freqüência no morro Santo Antonio onde eu morava,
ele ia lá freqüentemente jogar futebol. Assim soube por seu intermédio que havia
uma vaga no regional do Benedito César de Faria, pai do compositor Paulinho da
Viola, eu iria substituir temporariamente o pandeirista Afonso. O regional do César
só tinha fera olha só a formação Fernando Boninha no primeiro violão, César no
segundo, Piguim no cavaquinho, eu no pandeiro, e nada mais nada menos do que
Jacob Bittencourt no bandolim. Um time de divisão especial. Quero aqui ressaltar a
qualidade desse violonista que ninguém lembra mais, o Boninha, era um violonista
de um talento incomum, um gênio no melhor sentido da palavra. Falar do Jacob e
do César seria chover no molhado. Mas quero ressaltar aqui a grande amizade que
mantive com o César durante toda a minha vida, um homem muito fino e educado.
Amizade que estendeu à sua família por meio do Paulinho, que tive a honra de
acompanhá-lo em shows realizados em Brasília.


Toquei trinta dias, o Jacob queria ficasse definitivamente, mas eu jamais iria tomar o
lugar de um “irmão em armas”, o Afonso voltou, e logo também o conjunto de César
deixou de tocar na Rádio Ipanema que acabou sendo fechada por problemas
políticos. Estávamos na época da segunda grande guerra mundial, e            segundo
comentaram, seus proprietários tinham ligação com os Nazistas e o governo de
Vargas fechou aquela emissora tirando-a do ar ar.definitivamente.
Eu não estava mais indo no ponto dos músicos, estava tocando na “orquestra de
folga”, era uma orquestra organizada para cobrir as folgas dos músicos nos
“dancings”. Minha irmâ Maria trabalhava na Samba Dancing e conseguiu uma vaga
para mim. Tocava das 20hs até 2 da manha, e nos sábados ate as 4 da madrugada.
Passei a ser sondado para tocar em conjuntos que formavam no calor da ocasião.
Muito comum naquela época, organizado para abrilhantar uma festa particular,
aniversários, ou comemorações que requeriam a presença de um conjunto regional.


   6. MINHA PARTICIPAÇÃO NOS CONJUNTOS REGIONAIS



Com o início das gravações elétricas em 1927 e o advento das rádios na
década de 1930 com o subseqüente surgimento dos programas de rádio
bancados pela veiculação da propaganda paga, isso proporcionou a criação de
um novo mercado para a atuação dos músicos. O gênero musical da época
que enquadrava nas exigências comerciais era o samba. Surgiu assim a
necessidade de uma modalidade de conjunto que fizesse o acompanhamento
dos cantores profissionais e dos calouros que se aventuravam em busca do
caminho da glória artística.

Os músicos oriundos do choro eram mestres no acompanhamento “de ouvido”;
uma bem-vinda praticidade, pois não necessitavam de arranjos escritos,
bastando saber o tom da música e acertar a introdução, além de um inegável
virtuosismo quando se tratava de apresentar o seu repertório de choro, fizeram
dos regionais a instrumentação musical ideal para a radiofonia brasileira, ainda
em formação.

Os conjuntos regionais demonstravam a condição sócia econômica do país por
meio dos instrumentos utilizados de fácil aquisição. No solo, uma flauta de
madeira feita de ébano, bandolim ou clarinete, emprestado das bandas de
músicas, dando a introdução para os cantores; na harmonização, um
cavaquinho e dois violões fazendo frases musicais "em terças" alinhavados
pelo ritmo de um pandeiro de atuação discreta, indicava qual seria o formato a
seguir. Depois do advento do violão de sete cordas passou-se a utilizá-lo,
valorizando ainda mais o contraponto das cordas.

Na época em que atuei como musico profissional no Rio de Janeiro, lembro
dos regionais do Benedito Lacerda, que posteriormente se transformou no
regional do Canhoto. O regional de Claudionor Cruz que rivalizava com o do
Benedito Lacerda nas gravações. Tinha o do Dante Santoro, do Rogério
Guimarães, do César Moreno e do César Faria e o meu. Desses todos só não
toquei no do Dante Santoro e do César Moreno

Minha consolidação como músico de regional aconteceu quando fiz parte do
conjunto de Claudionor Cruz. O Arlindo comentou a meu respeito e ele, foi
conferir vendo meu desempenho no Samba Dancing, na orquestra de Folga do
Maestro Guilherme. Assim que terminou uma seleção, no intervalo ele me
procurou e fez o convite, afirmando que eu tinha sido recomendado pelo
Cachimbo, e que ele tinha gostado muito, me propôs um contrato e eu aceitei
de imediato.

O regional de Claudionor era um ninho de cobras alem do Arlindo, tinha o
clarinetista Antonio de Souza, O Bola Sete como segundo violão, o Claudionor
no violão tenor. Entrando depois eu, e o clarinetista e saxofonista Abel Ferreira.

O CLAUDIONOR CRUZ, era mineiro de Paraíbuna, apareceu formando uma dupla
com Zé Gonçalves, o Zé da Zilda. Tocava cavaquinho, mas seu instrumento de
devoção era o violão tenor. Um dos maiores compositores da musica brasileira, teve
diversos parceiros, porém o mais freqüente foi Pedro Caetano, com quem produziu
verdadeiras jóias musicais. Era um homem do coração bom .muito honesto com os
músicos..


A dupla de violões, era covardia, Arlindo e Bola Sete. Esse último arrisco a afirmar
sem ter medo, foi um dos maiores músicos que passou no planeta, não era desse
mundo. Se eu tivesse que apontar cinco dos melhores músicos que vi em toda
minha carreira, com certeza o de Andrade estaria na lista. Um fato marcante que
presenciei, foi um dia que Luis Americano chamou-o para a lousa para discutirem
teoria musical. Ele saiu de lá, o procurou imediatamente o Antônio de Souza, que o
A vida e obra de Pernambuco do Pandeiro
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A vida e obra de Pernambuco do Pandeiro

  • 1. BRASIL PANDEIRO A VIDA E OBRA DE PERNAMBUCO DO PANDEIRO INÁCIO SOBRINHO PINHEIRO EZALMONE MOREIRA DOS SANTOS
  • 2. DEDICATÓRIA “MEUS IRMÃOS EM ARMAS”: OS MÚSICOS QUE DIVIDIRAM O PALCO COMIGO
  • 3. SUMÁRIO 1ª. PARTE - FASE NORDESTINA 1. O MEU LUGAR 2. O ENCONTRO COM LAMPEÁO 3. Os VALORES E COSTUMES 4. A IDA PARA O RIO DE JANEIRO 2ª. PARTE – MINHA VIDA NO RIO DE JANEIRO 1. APRENDENDO A VIVER NO RIO DE JANEIRO. 2. O CONVÍVIO COM A ALTA MALANDRAGEM 3. O CONTATO COM A MÚSICA 4. MEU ENCONTRO COM O PANDEIRO 6. O BATISMO DE FOGO 7. O INICIO NO MUNDO MUSICAL Os programas de calouros O ponto dos músicos 8. PARTICIPAÇÃO NOS CONJUNTOS REGIONAS 9. O REGIONAL DE PERNAMBUCO DO PANDEIRO 10. A ENTRADA DE HERMETO PASCOAL NO REGIONAL 11. A CARREIRA INTERNACIONAL Excursão com Carmélia Alves A caravana Humberto Teixeira 12. O MUNDO MUSICAL DAS RÁDIOS E GRAVADORAS 3ª PARTE. MINHA VIDA EM BRASÍLIA O CONVITE DE JK O ABANDONO DE UM MÚSICO INTERNACIONAL NO CERRADO O TRABALHO NA CONSTRUÇÃO DA NOVA CAPITAL A PRISÃO PARTICIPAÇÃO NO MEIO MUSICAL EM BRASÍLIA A FUNDAÇÃO DO CLUBE DO CHORO A PARTICIPAÇÃO NO CONJUNTO DE WALDIR AZEVEDO MINHA CONVIVENCIA EM MINAS GERAIS O RETORNO A BRASÍLIA PEQUENA HOMENAGEM AOS MEUS “IRMÃOS DE ARMAS”.
  • 5.
  • 6. BRASIL PANDEIRO Coração de sambista brasileiro Quando bate no pulmão Lembra a batida de um pandeiro. “Noel Rosa.”
  • 7. PRIMEIRA PARTE 1. O meu lugar. Maria Francisca. Assim chamava minha mãe, uma paraibana do sertão, legítima descendente de Severino Vitoriano de Souza Pinheiro, proprietário do Engenho São Tomé, de família tradicional que davam ordens e eram obedecidos por todos. Seus antepassados foram donos escravos e era o arrimo de muitas famílias que sobreviviam como empregados da Usina; a maioria agregados a um pedaço de chão cedido para plantar a meia parte. Uma mulher dona de suas vontades, personalidade forte e obediente sincera das suas intuições, engraçou-se logo com João Bezerra, da mesma família do Sargento que matou Lampião na tocaia de Angicos. Uma amizade proibida. A família Bezerra do lugar onde nasci era gente honesta, mas muito brigões. Arruaceiros nos forrós atiravam no candeeiro, furavam fole de concertina e botavam a barraca abaixo. Era um desespero quando alguém dessa família chegava às reuniões sociais de Lagoa da Roça. Meu pai era um homem bonito: cabelos cacheados, estatura mediana, tez morena e olhos verdes, o que certamente provocou o interesse por parte de minha mãe, Maria Francisca, a ponto de se romper com a família casar-se com ele. Tiveram 19 filhos e como conseqüência da desobediência, passou ser tratada como uma fotografia virada contra a parede, esquecida, banida e deserdada. Casamento naquela quadra era uma forma de manter o poder e a tradição da família, os Souzas não viam em João Bezerra essa possibilidade. A sua desobediência foi como uma sentença de morte. Sua família nunca a perdoou, nem aceitou seus filhos como herdeiros legítimos. Certa vez quando a fome apertou o cerco em Lagoa da Roça, coloquei um saco nas costas e fui pedir um adjutório para um tio materno, Antônio Pinheiro. Fui enxotado de sua casa como um cão pestilento jurado de tomar uma surra se tivesse a insolência de voltar outra vez lá. A sua falta de caridade cristã me impressionou que até hoje peço a Deus em
  • 8. minhas preces que o perdoe, por que eu mesmo até hoje nunca senti vontade em fazê-lo. Dona Maria Francisca não era mulher de andar com a cabeça baixa não! Encarou a situação e tocou a vida dentro de suas possibilidades. Abraçou a profissão de costureira amparada na fé em Padre Cícero. Fazia ternos, uniformes, vestidos, camisas, cobertas de chita e mortalhas; costurava toda sorte de roupas que os sertanejos precisassem. Tinha muita força. Virou rezadeira. Contra quebranto, mal olhado, espinhela caída e erisipela. Criança chegava obrando verde, e mãe reclamando que o “peste” quando dormia acordava avechado em solavancos e com batedeira. Isso era o suficiente para o diagnóstico perfeito: quebranto ou mal olhado. Caminhava medindo os passos para o fundo do quintal levando a criança e a mãe, com um ramo benzia, e terminava a unção com os olhos lacrimados, bocejando e reclamando que o menino estava “carregado”. Pedia à mãe que trouxesse a criança nos “dias fortes” quarta ou sexta-feira para um reparo, e prescrevia por cima, uma figa para o inocente usar como penduricalho no pescoço, por função de absorver essas maldades transmitidas sem querer por quem nasceu com a sina de olhar ruim. Ficou mais conhecida como Dona Maria Francisca parteira. Era aparadeira de mão cheia, a preferida de todas as gestantes da região. A parturiente só acalmava quando “Siá” Maria Francisca chegava. Assumia o comando. Com voz decidida clamava por trapos limpos, tesoura, faca fervidas e exigia aguardente e pólvora; se acaso a mulher perdesse as forças, era forçada a beber essa mistura para restabelecer-se. Não permitia manifestações de dor, não podia gemer de forma alguma, gritar estava fora de cogitação, mulher procedesse assim ganhava a fama de fraca. Eu imagino que inconscientemente ela percebia o inconveniente de desperdiçar energia à toa, sabia da necessidade de usar toda força no momento certo para retirar o bebê das entranhas. Assistiu muitas mulheres lutar até o fim. Parto no sertão era risco de vida, se a criança atravessasse, na maioria casos eram fatais, morria mãe e filho.
  • 9. Vivia fé e caridade no dia a dia, não medindo esforços para fazer o bem. Ajudou muita gente em 1932 durante o surto de varíola que ceifou muitas vidas no sertão paraibano. Eu mesmo fui parar na folha de bananeira, artifício muito usado para não “pregar” no lençol quando a varicela “bexiguenta” tomava conta do corpo todo. Como diz o sertanejo, “depois do coice a queda”, veio a febre bubônica, provocando imensa mortandade no local. Fazia de graça as mortalhas, preparava os corpos para serem enterrados, misturava com os doentes e para espanto de todos, não era contaminada. Explicava-se dizendo que era a fé no Padre Cícero Romão Batista, a razão de toda força e proteção que aquela bela sertaneja, que tinha a ternura de um beija-flor e a coragem de uma onça parida quando era para proteger os seus. Eu nasci dessa mulher em 1924, décimo – oitavo dos dezenove filhos seus. Nascido no município de Gravatás, região do agreste pernambucano. Naquela época quando a seca castigava o sertão, os que tinham oportunidade se refugiavam no Agreste, por isso que nasci no Pernambuco, na fazenda de Neco Porto, antigo prefeito de Caruaru. Fui batizado com o nome de Inácio Pinheiro Sobrinho, devido ser homônimo a um tio materno incorporaram o “sobrinho” para diferenciar nós dois. Com quatro meses de idade voltei para a Lagoa da Roça, lugarejo situado a 10 km de Campina Grande, no Estado da Paraíba. Por isso é que me considero um pernambucano de coração paraibano. Construi toda minha infância entre as dificuldades próprias de quem nasceu em uma região desassistida, cresci trabalhando e amadureci prematuramente sem deixar de ser um moleque levado e espirituoso. Ainda hoje, durante as noites quando o sono me abandona, recordo aqueles dias difíceis, as reminiscências anestesiadas por mais de 85 anos vividos me conduzem no tempo com uma boa intenção de felicidade. Imagino com o olhar e o sentimento daquela criança que vive ainda dentro de mim. As dificuldades de sertanejo pobre que me deram a força da superação. Caí várias vezes na vida, mas sempre dei a volta por cima, amparado pela experiência de quem fez um macabro vestibular para a vida. Criança que sobrevivesse naquelas condições naturalmente se transformaria em um homem determinado. Tenho a impressão que foi isso que
  • 10. me transformou em um homem otimista, como dizem na gíria popular, “prá cima”. Sempre gostei de “incendiar” as pessoas que estivessem ao meu redor, aprendi a ver o mundo como se fossem um palco, as pessoas atuando cumprindo o seu papel, e eu o encarregado de alegrá-los, talvez por isso seja que eu tenha me tornado um artista popular. Não conheci meu pai. Minha mãe o desobedeceu para seguir uma romaria para Juazeiro do Norte a fim de receber uma Benção de Padre Cícero. Era um sonho dela, já era tempo de pagar tanta graça que havia recebido, e aquela visita era uma forma de demonstrar gratidão. Para levar a cabo o seu intento, teve que passar por cima do filho mais velho e do marido para se ter com o beato. Assim que regressou foi violentamente agredida e teve que separar do marido que a abandonou com os últimos quatro filhos, os outros já haviam debandado em busca de melhores condições do que aquelas oferecidas pelo sertão paraibano na terceira década do século vinte. Comecei trabalhar aos quatro anos de idade, cortando capim, fazia os feixes e vendia na feira para alimentar os animais dos mercadores. Entre seis a sete anos já fazia a proeza de montar em animais bravios, caia muito, não sei quantas vezes machuquei. Mas mantinha sempre a determinação de domar aqueles animais chucros. E depois de domados vinha a parte que eu mais gostava: ensinar os animais marchar no ritmo certo, já possuía espírito de perfeccionista. Há três tipos de marcha; o “trotão”, quando o cavalo anda em solavancos, “thum, thum, thum, o “esquipador”, é um andar mais suave, que não castiga tanto os “bofes” do cavaleiro, e por último o “bacheiro”, cavalo marchador, cavalga no ritmo certo marcado, “pacatá, pacatá, pacatá, pacatá...”. Foi essa mania de corrigir os cavalos é quem me deu esse ritmo da “moléstia” que tenho no seu sangue. Uma criança no sertão virava adulto rápido, quatro a cinco anos já começava a ajudar no que podia. A luta para matar a fome era terrível e desqualificadora, não dependia somente da vontade e capacidade de trabalhar. Tinha que contar coma ajuda do sobrenatural, se não chovesse meus amigos, era certeza de miséria. Somente as pessoas de recursos conseguiam manter estoques de alimentos, o povo de um modo geral não conseguia. Na época de chuvas o que colhiam tinha que
  • 11. repartir com o proprietário das terras. Que ainda tirava da outra parte o pagamento para dívidas vencidas, normalmente alimentos adiantados que o sertanejo retirava antecipado para pagar dobrado. Quase todo povo tinha suas criações de terreiro, galinhas poedeiras, capão, frango, para o almoço no final de semana. O porco cevado era para o Natal e São João. Mas no dia a dia, alimentava-se predominantemente de favas, de jabá, ou carne do Ceará, muito seca e salgada. Também a carne de sol, um pouco mais úmida e macia. De verduras sómente o maxixe, quiabo, jerimum e macaxeira. Comer feijão era para pessoas de posses, o feijão de corda nem se fala. Leite, somente se criasse uma cabra, tínhamos uma. De vez em quando comíamos o “pão” do dia seguinte. Muito duro, mas, mais barato, em vez de jogar fora o padeiro vendia pela metade do preço para os mais necessitados. Naquele tempo o povo dava um duro danado e o resultado não aparecia, tinha que se valer da fé meus camaradas, e cada vez que o sofrimento aumentava, era a maior a certeza que havia uma força maior acima daquela aflição capaz de escrever um destino conforme cada qual merecesse. Um vizinho, que o tempo me fez esquecer o nome, jurava que já nascíamos escalados para sofrer devido às maldades que fizemos em existências anteriores. Que já tínhamos contas debitadas de vidas passadas e que nessa estávamos tendo a oportunidade de pagar. Tínhamos que ter fé e, sobretudo resignação, essa última eu nunca consegui desenvolver. A fé do sertanejo era muito grande, havia um respeito generalizado às coisas sagradas. Qualquer morador abria a porta da sua moradia em alta madrugada se alguém clamasse “bendito seja nosso senhor Jesus Cristo”! Dentro de casa respondia: ”para sempre seja louvado, tão bom senhor”! Em seguida a porta abria, para qualquer um. Nem o pior dos bandidos ousava quebrar esse acordo, pelo temor de cair sobre si a santa ira divina. E com isso ninguém se arriscava. Até o pior dos salteadores recolhia-se em oração, trazia orações presas em patuás, reza forte contra arma de fogo e arma branca, diziam que alguns tinham o corpo fechado e que só podiam ser atingidos com balas benzidas ou adaga virgem, sem uso.
  • 12. O povo vivia e divertia-se como podiam nas feiras e em forrós. A feira ainda é o mercado tradicional mercado onde se compra e vende-se de tudo: animais, carne, quitandas, cabrestos, arreios, rapadura, farinha, feijão, carne seca. Era o ponto dos tocadores afamados, alguns com fama de ter “pauta” com o maligno, para poder dominarem a concertina de oito baixos, conhecida por sanfona “pé de bode.” Instrumento difícil de ser tocados, devidos os poucos recursos que possui. Tem sómente oito baixos e um fole muito complicado de controlar, quando abre é uma nota e quando fecha é outra. Os sanfoneiros do nordeste iniciavam-se sempre por ela, por isso quando passavam para a de 80 ou 120 baixos a coisa aí ficava fácil. Os grandes do pé-de- bode do meu tempo nas imediações de Lagoa de Roça foram Pólino, Severino de Guiné, Zé Tempero e o Severino “Galeguinho do Fole” de Itabaiana, nada mais nada menos do que mestre Sivuca. Fui vê-los várias vezes, não sei se gostava mais da música ou do bolo de mandioca mole com café servido por uma cabocla bonita de nome Maria do Joá, quem Sivuca mais tarde lembrou-se de homenageá-la no baião “feira de mangaio” “Tinha uma vendinha no canto da rua Onde o mangaieiro ia se animar Tomar uma pitada com lambú assado, E olhar prá “Maria do Joá.” A presença de alguns sanfoneiros era sucesso garantido em qualquer forró e garantia do desempenho comercial da feira. Severino de Guiné era tratado como um desses astros de televisão de hoje. Aonde chegava os outros sanfoneiros mais novos iam vê-lo tocar, ficavam sem piscar os olhos em reverencia, silenciosos para aprender tudo que pudessem. Ali funcionava a pedagogia do talento e do esforço, que exclui e projeta. O próprio Sivuca em vida afirmava que aprendeu muito com “mestre” Severino de Guiné. E logo ele, uma das maiores expressões do acordeom que o mundo teve noticia. Os gênios aprendem com os menos favorecidos. Por isso é que são gênios. Sivuca, Hermeto Pascoal, eu, e outros tantos que fizeram carreira internacional, tivemos nesse ambiente o início de um aprendizado importante para uma consagração posterior. Evidentemente que todos nós continuamos estudando a
  • 13. fundo, mas o substrato cultural, a nossa base estrutural foi apreendida lá. É dela que propiciou o nosso estilo diferenciado e rico que temos, e, sobretudo a criatividade espetacular que caracteriza o músico nordestino, sobretudo os sanfoneiros. Eu botava mais sentido no triângulo e no zabumba, aquele tilingo lingo ligo extraído do ferro batido, com têmpera especial, encomendado aos melhores ferreiros me fascinava, não menos que a zabumba. Essa me tirava o juízo, mexia comigo nas entranhas. Feita de taboa de barrica, mais leve, ou então de baraúna, madeira preta que dá na caatinga, muito pesada, mas muito sonora. Cortava-se a árvore e tirava um pedaço assim de um trinta a quarenta centímetros, deixava no sol para secar, e depois ia tocando fogo do meio para a beirada, quando ficava somente um aro de uns dois centímetros de largura, estava pronto para ser vestido com um couro de bode molhado, a seguir era posto no sol inclemente para secar. Depois de secado couro era pregado tendo como suporte uma vara de jucá cozida, enrolava-se o restante com uma corda, até o couro ficar bem espichado. Para fazer o teste acendia-se um candeeiro e deixava-o no meio da sala, batia-se bem forte no centro da zabumba se o candeeiro apagasse estava aprovada. Eu não gosto da zabumba de baraúna, tem um som bom, mas o instrumento fica muito pesado e complica o desempenho de quem está tocando. Hoje pode dá- se o luxo de escolher, a tecnologia fez aparecer diversos materiais alternativos fazendo diminuir o peso do instrumento, mas naquele tempo não tinha para onde correr. Não me lembro de ver naquela época alguém usando o “bacalhau”, aquela vareta de bambu usada para fazer o contratempo. Essa invenção deu outra vida para o instrumento, Luís de Januario (mais tarde Gonzaga) foi quem popularizou a zabumba com o “bacalhau” por intermédio do grande Catamilho, virtuose desse instrumento trazido do norte pelo próprio Gonzaga. Aprendi tocar zabumba batendo em caixote, quando faltavam os maiorais. Era só dar uma chance lá estava eu, imitando os melhores do lugar. O ambiente de feira foi minha primeira escola com mestres informais e exigentes. Foi ali que tomei contato com essa variedade de ritmos que compõe a música nordestina: shotish, xaxado, baião, coco, choro, samba, embolada, maracatu, rojão, galope, os mais populares, agora se colocarmos os ritmos da Bahia e do Maranhão, Estados do
  • 14. nordeste com maior influência africana, precisaríamos de muitas páginas e tempo para pesquisar. A raiz dos nossos ritmos está na áfrica, nas diversas nações indígenas, e na musica árabe trazida pelos portugueses descendentes dos mouros que vieram com a colonização. O Brasil é um país muito rico em variedade musical, precisamos levar isso mais a sério, hoje é necessário ser músico pesquisador para conhecer esse rico patrimônio legado pelo próprio povo. Muito dos ritmos que ouvíamos naquele tempo nas feiras e nos forrós, estão em acelerado processo de extinção. Não tive professores, vim aprender a escrever quando mudei para o Rio de Janeiro, mas aprendi muito no sertão, e como o sertanejo além de ser um forte é um sábio. Aprender ler era para poucos, somente para os filhos de abastados que contratavam professores itinerantes, ou que mandavam os filhos para colégios de religiosos. Quando o governo mandava um professor para “desasnar” o povo, era preciso dividir a cartilha com mais cinco. Além disso, as famílias precisavam do trabalho dos filhos para sobreviver. Meus amigos preste bem atenção nesse baião ”Oricuri” de João do Vale: Oricurí madurou e é sinal, que arapuá já fez mel Catingueira fulorou lá no sertão vai cair chuva a granel Arapuá esperando oricurí madurecer Catingueira fulorando sertanejo esperando chover Lá no sertão, quase ninguém tem estudo um ou outro que lá aprendeu ler Mas tem homem capaz de fazer tudo, doutor! Que antecipa o que vai acontecer Catingueira fulora: vai chover andorinha voou: vai ter verão gavião se cantar: é estiada vai haver boa safra no sertão se o galo cantar fora de hora: é mulher dando fora, pode crer acauã se cantar perto de casa: é agouro, é alguém que vai morrer São segredos que o sertanejo sabe
  • 15. e não teve o prazer de aprender ler oricurí madurou e é sinal, que arapuá já fez mel... João do Vale explica com sabedoria o que é essa universidade sertaneja, cujo acesso é dado pela terrível prova de conseguir romper a infância com vida. 2. O Encontro com Lampião O meu sonho de menino era que quando crescesse entrar para o bando do Capitão Virgulino, o Lampião, para ser visto e respeitado como e um justiceiro do sertão. Essa vontade nasceu de uma desavença acontecida quando fazíamos “um quarto” para um vizinho que havia falecido. Nesses velórios havia a parte espiritual e religiosa, com um discurso exaltando as qualidades em vida do falecido, seguido de rezas e incelenças, lamento langoroso entoado diante do corpo inanimado. Mas havia o lado profano com folguedos para passar o tempo. A brincadeira que todos gostavam era o Gurufim, mas sempre terminava encrenca. O participante era questionado por quem conduzia o brinquedo a revelar um segredo íntimo, quase sempre, uma amizade inconfessa. Essa brincadeira envolveu meu cunhado, que era apelidado de “o coentro”. O puxador do gurufim perguntou para uma prima minha, muito safada por sinal: - Luzia, você esta doente? Você cura com que? Ela respondeu com coentro. Minha irmã viu-se humilhada devido a essa fulerice com o marido dela. Contou o caso para dona Maria Francisca que sentiu a honra da família abalada. A velha esperou um cavaleiro chegar munido de uma vara de jucá cozida, dessas que podia dobrar e colocar no bolso que a “bicha” não quebrava. Tomou a vara emprestada e disse para a Luzia: sua doença cura é com cipó de jucá, e sapecou um corretivo inesquecível na moça. A atingida, por sua vez, era um “chamego” do Sargento Feitosa, e suplicou a este que tomasse as dores por ela, por isso minha mãe foi presa e amarrada em um tronco como um bicho.
  • 16. Passei a noite toda chorando vendo aquela cena do Sargento batendo na porta com “coice fuzil”, invadindo a casa, dando ordem de prisão, e levando minha para o tronco. De manhã fui cedinho para a residência do Prefeito Medeiros, sentei- me no baldrame e comecei a chorar, até que saíram para fora para saber o motivo daquele pranto. Contei tudo para ele e a esposa muito sensibilizada, foi junto com o marido para a delegacia e ela mesma deu ordem para que soltasse minha mãe. Mas aquilo não foi suficiente, eu precisava vingar do “macaco” que fizera aquilo, e isso só era possível se entrasse no bando do Capitão Virgulino. Isso passou ser uma fixação para mim, até que um dia na feira Pocinhos, foi aquele disse me disse para tudo quanto foi canto, todo mundo assustado, a polícia correndo para o mato e os ricos enterrando objetos de valor. Era a notícia de que Lampião estava chegando no lugarejo. Mandou um aviso instantes antes por que sabia que os “macacos” não tinham peito para enfrentar seus homens e nem teriam tempo de pedir reforços. Era costume dele como um guerrilheiro astuto, evitar qualquer confronto desnecessário que envolvesse risco de vida de seus homens. Sua presença tomou conta das atenções, foi apropriando-se do lugar, até chegar um ponto que existia sómente a pessoa dele naquela praça. Quando começou dar ordens todos o obedeciam automaticamente. Exigiu que dessem de comer aos pobres, com voz determinada, imperativo, dizia que domingo era dia de nosso senhor, bom para fazer caridade aos mais necessitados. Os pobres sairam de lá munidos de mantas de carne, feijão e farinha. O Capitão ainda lembrou que se alguém no outro dia fizesse qualquer tido de ameaças para os beneficiados, iam ter com ele quando voltasse ali de novo. Nesse dia a fome sumiu de Pocinhos, o Capitão do Cangaço, a seu modo fez justiça social. Assisti tudo posicionado há uns vinte metros dele. Com ele havia mais dez cabras bem vestidos e bem armados. Calças de feitio matuto e blusão de mangas compridas. Chapéus de feltro outros de couro, no estilo de Napoleão Bonaparte. Alpercatas ferradas, feitas de sola macia e curtidas, cobriam todo o pé terminando em um orifício pelo qual saiam o dedo grande e o vizinho. O calcanhar ficava descoberto para facilitar os movimentos e poder correr sempre que fosse necessário.
  • 17. Suas armas eram a carabina “papo amarelo”, revólveres e a temida “parabelum”. Carregavam até 18 quilos de munição distribuídos em duas cartucheiras duplas atravessadas no peitoral e uma terceira amarrada na linha da cintura. Ter um “parabelo” era se sentir grande, capaz de fazer ostentação concreta de poder e respeito. Essa pistola, desenvolvida pelo alemão Georg Luger, entrou no Brasil no início do século passado em um cenário onde a ausência de justiça era a matriz de atitudes de desespero e revolta. Um ambiente onde o ser humano estava destruído moralmente e materialmente pela fome provocada pela tragédia da seca. O controle político estabelecido pelos coronéis da Guarda Nacional, o grave problema fundiário, a imensidão das caatingas, a possibilidade de fazer justiça experimentada pelos Cangaceiros, fermentava em um cadinho social de difícil compreensão pelo cidadão comum sem os recursos das letras. A junção destes fatores explica muito bem o cenário onde o instinto natural sobrepunha a civilidade, ambiente propício para o “parabelo” servir como instrumento de poder e status social. Potente, bela e precisa de morte, era a arma das odiadas volantes, dos coronéis, do Capitão Virgulino Ferreira e de seus comandados. Entretanto, havia por outro lado estava a condição humana, frágil e carente de cuidados. Ao lado das armas letais era conduzido com todo cuidado diversos tipos de remédios para primeiros socorros: água oxigenada, água boricada, iodo, pomadas, álcool, ácido fênico para combate a dor de dentes, algodão, gase e esparadrapo. A guaraína usada para combater a dor, a gripe e o resfriado. A vaidade era contemplada com a brilhantina Glostora, a loção Dirce e o tônico capilar Petrolina Minâncora. Carregavam jóias e dinheiro, anéis de brilhantes, fumo de corda, palha de milho para fazer cigarros, cachimbo de barro e fósforo. O equipamento do cangaceiro ficava estrategicamente acima da cintura, por que freqüentemente eles precisavam rastejar e correr. Quando as volantes estavam próximas, não podiam acender fogo temendo revelar o esconderijo. Ás vezes passava dias e dias sem beber água, tomando cachaça de ração, chupando rapadura e assando carne na ponta das facas.  
  • 18. No meu breve contato com o Capitão Virgulino vi algo de bom nele que não consigo até hoje desvencilhar da simpatia que me provocou. Carrego comigo essa visão favorável apreendida na minha memória naquele longínquo domingo de 1932, quando tinha apenas 8 anos de idade. Fui vivendo e aprendendo a razão da luta do Capitão, e pude saber que houve vários dele no mundo. Onde ocorre a exploração dos mais pobres aparece uma versão dele, como um espírito vingador que tira dos ricos para dar aos pobres. 3.OS VALORES E COSTUMES O culto a honra e a valentia faziam com que em todo lugar tivesse um valentão denominado “galo do lugar”. Geralmente essa coragem vinha amparada por família numerosa e parecida com ele. Era honesto e trabalhador, habilidoso no que fazia, mas quando bebia se transformava em um arruaceiro temerário. Era o caso de João Badoque, exímio amansador de animais, que cito em uma das minhas músicas. O povo sertanejo tem limites demarcados para provocações, um deles é a honra familiar, não bula com ela, é procurar morte certa. Sabe-se de muitos valentões que morreram nas mãos de pacatos cidadãos. João Badoque tinha esse grave defeito, não respeitava mulher casada, chegou a um forró e desrespeitou Clotilde, mulher companheira de um primo meu por nome de Manoel Pinheiro. Este piscou para ela ordenando que “dessa corda” para ver aonde ele chegaria. E o Badoque foi gostando, se engraçando, tomando coragem, começou a acariciar o cabelo dela e a falar impropérios. Quando menos esperava, levou um golpe de peixeira por baixo do sangrador, nem pediu água, morreu sem ter tempo sequer de colocar uma vela na sua mão. Manoel Pinheiro sabia que seria caçado igual a um bicho pela família do morto, mas como dizem no norte “a sorte anda com tem razão”, montou no seu cavalo e caiu no mundo e ninguém o encontrou. Depois de algum tempo, quando a poeira abaixou, mandou buscar Clotilde, contratou pessoas para conduzi-la debaixo do maior sigilo. Nunca mais em Campinote alguém soube mencionar o paradeiro dos dois, naquele tempo uma pessoa perseguida lá no norte, descia para o sul e se desterrava, em pouco tempo era riscada da memória e dada como morta.
  • 19. A igreja católica naquela quadra ditava as ordens no sertão, cuidava das almas e de outros interesses materiais menos nobres. Seus expoentes Padre Cícero e Frei Damião eram reverenciados como santos, e até hoje em todo nordeste, nas regiões onde falta a presença do Estado, lá estão eles a operar milagres e realizar curas. Para revigorar as esperanças no além os padres dos lugarejos convidavam os freis com suas missões itinerantes. Preparavam a paróquia para receber os religiosos e os romeiros que vinham de muitos lugares do sertão nordestino. O teor das Missões era verificar se os braços da Santa Igreja estavam estendidos de forma eficiente para abarcar as almas daquele mundo abandonado e sem lei. A pregação era estrategicamente preparada para assustar o aquele povo desassistido intelectualmente. Pintavam o inferno com cores assustadoras, mencionava tachos de água fervente, piscinas incandescentes e o cheiro sufocante de enxofre. As dores e o ranger de dentes eram exaltados. O sofrimento daquela pobre gente não poderia ser comparado com a eterna aflição que teria se acaso viessem a perder a salvação da alma. O final daquela retórica macabra era consumado com a formação de imensas filas de pessoas que julgavam ter se distanciado dos santos ofícios. O alvo preferido deste discurso era os casais que viviam sob o manto do pecado, amancebados. Geralmente formado por jovens que tinham quebrado as ordens do costume de casamentos combinados. Havia o costume dos pais acertarem antecipadamente o matrimônio dos filhos, ora voltado a cumprir interesse econômico ou para selar a amizade entre os dois chefes de família. Depois do combinado, mantinham a palavra dada, e isso naquela época era mais importante do que manter a própria vida, a quebra de compromisso significava desonra e descrédito. Se ocorresse a desventura de um amor proibido, o único meio de livrar desse acordo feito era fugir para viverem juntos dispensando as bênçãos da família e da igreja. Por isso os Padres diziam que estavam na companhia do diabo, e que ainda era tempo de reconciliarem com a igreja e com seus familiares. Se arrependessem, receberiam o infinito perdão de Deus com a interseção da Igreja na remissão dos pecados. Isso ocorrendo poderia realizar o casamento e providenciar o batismo dos filhos pagões. Essa era a única forma possível do perdão dos terríveis pecados da
  • 20. fornicação e da luxúria, considerado pelos sacerdotes iguais ou pior que o adultério. O ataque aos amancebados era, na realidade, um modo de manter a eficiência na arregimentação do rebanho pela lavradura do batistério, tido como documento mais importante do que o próprio registro civil, imposto após a proclamação da República. Eu estava na casa dos seis anos de idade quando fui abençoado em uma dessas missões por frei Damião. Ele era de pequena estatura e tinha um forte sotaque italianado. Até hoje me impressiono com que ele me disse, pondo a mão em minha cabeça afirmou que eu era dotado de enorme inteligência musical e que ainda iria ter muita fama nesse meio. Certa vez José Meneses, grande músico cearense, me falou também, que quando menino recebeu mesma profecia pela boca de Padre Cícero. Parece que os dois beatos tinham mesmo o poder de dar uma “espiadela” no livro da vida, escrito quando cada ser vivente vem cumprir uma missão nesse vale de dores. Havia nas igrejas um rigor quase ritualístico nos modos de como se compor para assistir as missas e participar da eucaristia. Mulher com roupa vermelha e decote pecaminoso estava proibida. Um marido certa vez autorizou a mulher ir à igreja do jeito que ela bem quisesse. Na ora da comunhão o padre perguntou em voz alta se ela era solteira, casada ou se era meretriz. Ela respondeu que era casada, e apontou para o marido, um jovem advogado temido por sua competência no domínio das leis, naquela época um advogado naquelas plagas recebia reverência digna das altas cortes. O padre não quis saber de encrencas com ele, deu a hóstia para a senhora e esqueceu-se estrategicamente do decoro eclesial. Quem mandava mesmo nos sertões era os coronéis, em Lagoa de Roça havia dois de prestígio: Coronel Adelaide e Olinto Coura. O governo fazia o que eles quisessem. O prefeito e o sargento estavam em suas mãos, e se porventura houvesse quebra de confiança eram destituídos ou transferidos dos cargos. O Coronel Coura era um tipo “populista”, distribuía cestas de alimentos para os pobres, e não deixava nenhum dos seus morrer a míngua. Por ser generoso era um homem de muitos compadres e afilhados, quase todos prontos para pegar em armas se ele ordenasse. Quando um de seus afilhados ia se casar, o pai sempre queria saber se
  • 21. o casamento era de gosto do compadre Olinto, se não fosse, certamente haveria dificuldades para o casamento prosseguir. Coronel Adelaide era do tipo truculento, homem duro e autoritário, forjado para dar ordens e ser obedecido. Se algum policial desafiasse suas ordens era pedido a sua transferência para Catolé do Rocha, considerado o cemitério de desobediente. Lá os Coronéis tratavam os soldados como reles serviçal. Certa vez um dos seus “protegidos”, que tinha um açougue na feira, foi injustamente agredido por uns policiais. O homem dentro da rua razão pegou um porrete e bateu nos três “macacos” que estava ameaçando-o. Pediram reforços e conseguiram com muita dificuldade desarmá-lo e prende-lo. Quando Coronel Adelaide ficou sabendo veio pessoalmente exigir que soltassem o seu “chegado” e deixou bem claro que da próxima vez, Catolé do Rocha era o destino deles. Havia muitos povoados em volta de Lagoa de Roça: Manguape, Guarabira, Pocinhos, Puxinanã e Brejo de Areias. Um jeito de o governo tentar manter a ordem nesses locais eram constituir uma espécie de preposto da lei. Um “cagoeta” oficializado denominado de Inspetor de Quarteirão. Ele podia prender amarrar e conduzir o transgressor das leis até o distrito policial em que havia sido sua consagração de autoridade. Recebia ordens dos Coronéis, do prefeito e do sargento. Recordo-me bem de dois deles, João dos Santos e Antônio Senhoria. Esse último morreu cheio de “bicheiras”, teve parte do corpo levado em vida. O compositor paraibano Rosil Cavalcante compôs um rojão que retrata a relação desse personagem no seio da comunidade onde vivia: Cabo Tenório (Rosil Cavalcanti) O cabo Tenório é o maior inspetor de quarteirão O cabo era bamba, disposto, o danado Bem considerado no seu batalhão Amigo do praça, do subtenente De toda patente, de quinto galão Zangado, era doido, um cabra valente Virava serpente, de punhal na mão Mas ficava manso e a briga acabava Se o povo gritasse lhe dando razão
  • 22. Lhe dissesse: Cabo Tenório, É o maior inspetor de quarteirão Viva seu cabo! Cabo Tenório, é o maior inspetor de quarteirão. Olha aqui, na casa de Tota fizeram um forró Tenório foi só, dançar e beber Os cabra de lá quiseram lhe bater Tenório gritou, vai ter confusão Balançou a mão, deu murro e bufete Tomou canivete, peixeira e facão Os brabos correram quem ficou presente Gritava contente no meio do salão e dizia Cabo Tenório é o maior inspetor de quarteirão. A religião do sertanejo era um catolicismo estilizado, influenciado com mitos indígenas e africanos. O povo nos domingos ia às missas. Nas sextas-feiras, considerado um dia forte, recorriam a benzedores sempre às escondidas dos sacerdotes da igreja. Conheci seu Severino da Xã, um homem de aparência tranqüila do tipo que não se assusta com notícia ruim. Além de benzedor era muito procurado como responsador. Diziam que tinha um livro de São Cipriano e era pautado com o “Trigueiro”. Responsar significa ter um dom espiritual para descobrir objetos achados, roubados ou desaparecidos. Revelar quem era o ladrão e onde ele se encontrava em determinado momento. Certa vez um filho de Maria Touro roubou uns cordões de ouro da própria mãe, e a culpa foi parar na minha pobre irmã Ciça. Meus irmãos mais velhos deram um castigo exemplar na moça com uma peça de couro. Mas como Ciça insistia que era inocente, minha mãe foi tirar suas dúvidas com seu Severino de Xã, ele responsou e afirmou que pudesse ficar tranqüila que a menina era mesmo inocente. E disse ainda, que em três dias o ladrão iria aparecer. Dentro desse período dado por seu Severino, a própria Maria Touro surpreendeu o filho devolvendo as jóias roubadas. Arrependida teve a hombridade de ir pedir perdão a minha irmã. Dona Maria Parteira ameaçou enxotá-la de casa com uma pisa de cipó de jucá, mas a própria Ciça interveio dizendo que a mulher estava com boas intenções revendo seu erro em acusá- la prematuramente, e que a situação tinha ficado bem resolvida. E pior tinha
  • 23. ficado para Maria Couro, em saber que seu filho Herculano era um ladrão. Não tinha dor pior do que essa não! Seu Severino da Xã não era de cobrar os serviços de seus dons, dizia que era dado por Deus, e por isso não era autorizado receber nada. Por isso recusou o pagamento oferecido, mas, sugeriu que receberia um agrado, um peru gordo ou um cabrito, se fosse consoante com a vontade da minha mãe, o que naturalmente foi atendido por ela sem que com isso pudéssemos esquecer o grande favor feito por ele. 3. A IDA PARA O RIO DE JANEIRO João Naval chegou em Lagoa de Roça em 1936, ninguém esperava por ele, chegou de sopetão. Tinha ido para o Rio de Janeiro em 1925 tentar a sorte no que desse certo. Entrou para a Marinha e virou um fuzileiro naval, um feito inimaginável para os nossos conterrâneos. Tinha saído como retirante e voltado como uma grande autoridade. Morávamos numa casa um pouco distante do lugarejo, isso fez com que João permanecesse um pouco na cidade, aproveitando para visitar nosso irmão José Preto, que era casado com uma moça filha de gente importante na cidade. Mal teve tempo para saudar o irmão e a porque de minuto a minuto tinha que dá atenção para um antigo conhecido curioso. Ele fez questão de chegar paramentado exibindo-se com orgulho a farda de fuzileiro naval chamada de garanço vermelho. Era um conjunto composto de calça azul marinho com listas azul e branco, paletó vermelho e boné branco. Uma vizinha nossa passando próximo à casa do velho Artur, vendo aquele jovem rapaz bem composto conversando desenvolto com todos quase teve um “vago”. Assim que se recompôs correu até a nós a fim de cobrar a “alvista”. Era um costume quando alguém sabia de uma boa noticia, ia avisar com antecedência ao interessado para receber um prêmio. A Dona Maria Francisca pagou satisfeita a alvista, combinaram uma dúzia de ovos; meia dúzia de galinha comum e meia de guiné. Ficou muito comovida com a notícia da vinda de João, já se passara longos onze anos ele estava chegando sendo alvo de bons comentários e admirações, tratado como gente
  • 24. importante. Soldados batendo continências, moças saindo para as ruas mais arrumadas. O filho de dona Maria Parteira tinha virado o centro de atenções, e ela gostou do que estava vendo, tocou na sua vaidade de mãe. João havia saltado do navio em Cabedelo proveniente do Rio de Janeiro, seguiu direto para João Pessoa. Lá tomou uma marinete em direção a Capina Grande, que fica praticamente encostada em Lagoa de Roça, veio de carona em um caminhão. Depois do reboliço que causou, com todos querendo vê-lo, saber das novidades do Rio de Janeiro, querendo saber o que ele tinha feito para subir tanto assim na vida. Se foi ajudado por algum político influente. No que ele rebatia de imediato, dizendo que somente Deus, em primeiro lugar o ajudou, e depois a fé em Padre Cícero do Juazeiro. Tudo esses imprevistos fez com que ele demorasse a chegar em casa. Quando cruzou o baldrame da porta já foi logo ordenando para que arrumássemos nossa bagagem, que no prazo de 15 dias iríamos com ele para o Rio de Janeiro. Minha mãe em vez de chorar, deu uma bronca nele por ter demorado a chegar em casa. – “Vice! Onde já se viu. Chega e demora desse tanto na rua menino.” Ele assustou-se comigo e foi dizendo: - Esse é o Inacinho? Como o peste cresceu. – Ah! Você vai virar gente, pode deixar comigo. A festa continuou naquele dia um entra e sai como nunca se viu, até o Sargento Feitosa teve a petulância de ir lá bater continência como irmãos em armas. O comentário era grande, o rapaz é um “troço” muito alto, pessoa muito importante. E como era de costume daquele lugarejo, ocasião como aquela não podia faltar um peru gordo para fazer um pirão. Foi um dia inesquecível para mim sempre me lembro daquele movimento. Enquanto preparávamos para a viagem João foi para o sertão adentro em busca de umas malacachetas, umas pedras brilhantes usadas como isolante de eletricidade. Queria levar algumas para vender no Rio de Janeiro, enquanto isso ordenou que ficássemos preparando para a viagem. Eu nunca havia calçado um sapato na minha vida, usava somente chinela de pataca cruzada, agora precisava de um. Ficamos sabendo que Firmino Julião tinha comprado um sapato para o filho dele com um número menor, muito apertado. Compramos o sapato, era muito bonito, desses bicolor, marrom e branco. O sapato entrou arrochado, mas serviu, de tanto contente que fiquei nem reclamei dos
  • 25. apertos. De roupa eu até que não vestia muito mal, minha mãe aproveitava toda sorte de retalhos que sobrava. Um comerciante de Campina Grande deixava umas peças de pano para ela vender conforme fosse costurando. Trazia mescla azul, gorgorão de várias cores e linho de coroá. Avisava com antecedência por meio do motorista da “Sopa”, apelido dado às “marinetes”, os dias em que viria ao povoado. Chegava com seu Ford Bigode, e fazia de imediato o acerto como havia combinado com as costureiras, a seguir mostrava as novidades que havia trazido, por fim, renovava os sortimentos de panos e aviamentos. Minha mãe tinha um cuidado especial com as mercadorias e com o dinheiro da parte dele. Além da antiga relação comercial mantida, tinha muita consideração por ele. Encomendava a ele coisas que não havia em Lagoa de Roça, principalmente remédios, ele fazia questão de dizer que não botava margem de lucro por que tinha amizade e consideração por ela. Ganhei três calças e três camisas. Estava bem composto. Com o coração e os pés apertados deixei Lagoa de Roça no início do mês de novembro de 1936. Eu, minha mãe, Maria, Luís e João. Fomos para João Pessoa e ficamos hospedados na casa de tia Santina. Ficamos lá oito dias esperando pelo navio Pará. O porto de Cabedelo fica situado bem próximo a capital, tanto que hoje faz parte da região metropolitana da capital paraibana. As instalações eram novinhas, o porto havia sido construído um ano atrás, em 1935. Achei engraçado o formato do lugar era uma ilhota de uns cinco quilômetros de largura por dezoito de comprimento, muito apropriado para a função portuária, segundo os ensinamentos do meu irmão João Naval, conhecedor do assunto. Viemos no navio Pará. Era um navio previsto para três classes de gente: a primeira para os grã-finos, a segunda para os remediados como nós e a terceira para os menos favorecidos. Eu não conhecia navio nem por fotografia, e agora estava dentro de um deles. Andava para todo canto, onde permitiam entrar eu entrava, me entusiasmei. Pedi licença para entrar nos compartimentos destinados às classes A e C. Lembro-me que no espaço destinado aos ricos havia lugares diferenciados, decorados com quadros bonitos, possuía um restaurante amplo com mesas cobertas com forros brancos bordados em várias tonalidades, um imponente salão de jogos, homens bem vestidos e mulheres cheirosas, parecendo até que não suavam nunca.
  • 26. Na outra classe vi passageiros empilhados como animais, empoleirados em redes, como se tecesse uma teia de aranha, no cruzar e entrecruzar de fios daquele tear bizarro, cuja matéria – prima assimilava à sorte daquele povo apegado aos sonhos irreais da capital da república. Sonhos simples próprios da dimensão das suas vidas. Encontrar um trabalho, arrumar um teto, e ter o necessário que a dignidade humana exige de um lar. Dentro da minha consciência de adolescente eu não saberia precisar o que esperar daquele mundo que estava descortinando, o que eu queria mesmo, era um lugar onde nunca mais haveria seca para não faltar comida, para mim isso já era o bilhete de entrada para o paraíso. Mas tarde é que vim perceber que aqueles pobres coitados tinham um destino: a construção civil. Carregar massa de cimento e cal nas costas e morar indignamente em casas de pensão. Longe dos seus, a solidão conduzia-os para o álcool como forma de responder aos insultos que recebiam daquela sociedade preconceituosa. Mais tarde sempre que ouvia o samba “Pedreiro Valdemar “de Wilson Baptista e Roberto Martins, relembrava daqueles conterrâneos do navio. “Vocês conhecem o pedreiro Valdemar “Faz tanta casa e não tem casa pra morar” Não vi o que comiam os pobres, não deixaram. Eu sei que a nossa era boa, quis repetir umas três vezes, e com o prato bem cheio. Mas, dona Maria Francisca não autorizava gula, e com um olhar circunspecto me desautorizou a vontade, sem, no entanto, impedir que eu pudesse matar a curiosidade de experimentar iguarias que eu desconhecia. Deixei de lado os pratos temperados com cebola. Nunca gostei de alho e cebola,, como disfarçado, fatiados em milímetros, por saber que são bons para evitar uma infinidade de moléstias. Chamavam-me de feiticeiro pelo meu confesso pavor ao cheiro do alho cru. Comida boa. Eu que fora criado em cima de lombo de animal chucro, não consegui domar o enjoou provocado pelo balanço do mar. No começo o gangorreado até que parecia divertido, mas, ia fazendo com que a comida tomasse o caminho de volta. Quando o Pará passou nos Abrolhos parecia um “sabugo” de milho no mar arredio. Deram-me limão para eu cheirar. Outros me ensinavam a fechar os olhos. Parecia que sómente
  • 27. eu sentia enjoou, os outros não. Quando o mar ficava calmo, aí eu aproveitava para andar no que era permitido. De noite observava aquela imensidão de céu estrelado, as estrelas movimentando, como se riscassem os céus, tinham outras que caiam no mar. De dia bisbilhotava, queria por tudo conhecer o navio por dentro, ver como funcionava, conhecer o maquinário que fazia aquele gigante se movimentar. Foi uma viagem e tanto, com o passar dos dias meu olhar aguçava na imensidão das águas, até que avistei como se saísse de dentro do mar, o nosso senhor de braços abertos. Até hoje aquela cena povoa minha memória, Cristo me recebendo como se quisesse me abraçar. Depois vi o um morro parecendo um pedaço de pão, meu irmão falou : -“ ta vendo, é o pão de açúcar. – “De açúcar!”Retruquei. Ele explicou que a gente podia subir lá em cima dentro de um bonde, que subia o morro deslizando por um fio. Fiquei imaginando como deveria ser isso. Tive que ir um dia lá para acreditar naquilo que tinha ouvido. Aquela imensidão de casas dispostas ao redor do mar e muitas outras que iam galgando o morro, confundindo com a vegetação verde deste, tudo muito bonito. Um novo ambiente aparecendo no meu olhar fustigado, me veio na cabeça, como irei enfrentar isso tudo? Me confortava na experiência dos meus irmãos que já estavam lá há mais de dez anos, tinha se dado bem, e com certeza saberiam como proceder. O navio atracou no cais do porto, eu desci, pisei o solo carioca com o pé direito, sentindo que ali era o meu novo lugar, com gente diferente, e um mundo novo para enfrentar. 2ª PARTE: O RIO DE JANEIRO 1. APRENDENDO A VIVER NO RIO DE JANEIRO. Descemos no cais do porto lá nosso irmão José Galego nos esperava, pegamos uma condução de aluguel e fomos para a casa dele. Ele era funcionário da prefeitura municipal fichado como gari. José era possuidor de um generoso espírito de provedor, de uma dedicação total a família, quando estávamos em Lagoa de Roça, todo mês chegava uma carta dele contando as novidades e enviando um pouco de dinheiro para minha mãe.
  • 28. Ficamos hospedados em sua casa por uns quinze dias prazo em que eles providenciaram um barraco alugado a Dona Esperança, no morro de São Carlos próximo ao Terreiro Grande. João morava por perto e era muito respeitado na área de modo que nossa integração na comunidade não foi difícil. O local era maravilhoso. Sei que é difícil de acreditar nos dias de hoje, onde os morros no Rio vivem em clima de guerra civil, mas naquela quadra reinava a camaradagem e a generosidade que tanto distingue o povo carioca. Convivemos muito bem com a família de João, Carminda sua esposa, era um ser humano de generosidade incomum, junto com sua mãe Leopoldina, conhecida como dona Dina, ensinaram para Maria e Minha mãe como sobreviver ali naquele novo local. Mostraram os caminhos mais seguros, os açougues e armazéns mais confiáveis, em suma, foram de uma dedicação incomum. As cunhadas de João Adélia e Dininha, minhas primeiras amigas naquele mundo desconhecido. Até hoje me lembro dessa gente com muita saudade, um tempo feliz por que foi uma época que vivemos bem, cheios de esperança com o que estaria por vir. Mesmo contrariando Carminda minha mãe começou a costurar, a velha não gostava de ficar parada e logo pediu a José que arrumasse uma máquina, daquelas movidas a mão, pois não se acostumara àquelas movidas a pedal. Quando souberam que havia uma costureira ali na área, choveu de serviços principalmente consertos, e foi aquele entra e sai de gente. A situação tornou-se quase insustentável quando resolveram que minha mãe era capaz de costurar fantasias para o carnaval. Umas mulheres foram o nosso barraco e no final da tarde minha velha já havia aprendido, e ela ainda brincou: “– É a mesma coisa de fazer mortalha!” Engraçado, que hoje eles usam essa expressão “mortalha” para denominar as abadas usadas pelos trios elétricos baianos. Aquilo era muito para uma senhora idosa meus irmãos e minhas cunhadas proibiram a velha de costurar, também pelo fato de que ela estava com um sério problema de catarata que acabou levando-a à cegueira no final da vida. A vida tece a linha de nossa existência e nos conduzem como se fosse um lance pensado estrategicamente. Imagine onde fui morar, no Morro de São Carlos, onde em 1928 o grande Ismael Silva havia fundado a “Deixa Falar” e patenteado uma batida nova para o samba que permitia facilmente diferenciá-lo do maxixe. Na
  • 29. subida do Morro de São Carlos reuniam-se com freqüência bambas com o próprio Ismael Silva, Bide, Marçal, Baiaco, Malvadeza Durão, Brancura e Mano Edgar – uma das regiões do Rio onde convivia a generosidade com transformações e transgressões judiciais. Os botequins situados na Rua Maia Lacerda, próximo a Praça Onze e da tradicional Zona do Mangue, era ponto de encontro da alta malandragem, alguns deles exímios sambistas. Vinham de Benfica, da Gamboa, da Providência e de Madureira. Ali era o cenário do meretrício e das rodas de carteado, vida noturna intensa que garantiu ao Estácio o título de Berço do Samba do Rio de Janeiro, aquele estilo diferente dolente, pausado e marcado por instrumentos de percussão. Não é fruto do acaso o fato da primeira escola de samba a “Deixa Falar”, ter nascido no bairro do Estácio de Sá, reduto de desocupados e trabalhadores informais, dedicados a jogatina e exploração de mulheres naqueles meados da década de 1930. Reuniam-se em botecos em culto a boemia e tudo que estivesse associado. Ali foi o berço da alta malandragem do samba, o berço de Sua Majestade Ismael Silva. Negro bonito, elegante no vestir, educadíssimo e bom de briga. Foi nesse local que a vida me colocou e que aos poucos iria me ensinar a conhecer os segredos e os personagens daquele palco. Inicialmente João me matriculou em um Colégio dos Integralistas, ele não era das fileiras do partido, embora fosse um simpatizante confesso das idéias de Plínio Salgado. O uniforme escolar era uma camisa verde com uma letra sigma estampada na manga. Naquela escola respirava o nacionalismo, cantavam diariamente o hino nacional seguido de um sonoro “anauê”, grito de guerra dos integralistas extraído da língua tupi que significa “você é meu irmão!”. Um professor era encarregado de fazer diariamente uma palestra sobre a filosofia do integralismo. O discurso era voltado para o crescimento e desenvolvimento do Brasil e a ajuda aos pobres. A essência daquilo tudo eu nunca consegui entender até hoje, parecia um teatro muito mal ensaiado com personagens folclóricas. Não fiquei muito naquela escola, só o suficiente para mal aprender ler e escrever. Voltei de imediato para a Universidade da Vida onde permaneço até hoje, aprendendo na observação
  • 30. e na companhia dos melhores, valendo-me da experiência dos outros para poder construir a minha. Vivendo e aprendendo a jogar. Dona esperança desocupou uma casa maior, de quatro dois quartos, sala e cozinha, situada próximo ao posto policial de frente a uma caixa d’água pública, aonde as mulheres vinham buscar água para suas rotinas diárias. Fomos morar lá, ficamos mais bem acomodados, próximo aquela coreografia do sobe e desce no morro, com as cabrochas equilibrando as latas d’água na cabeça. Isso certamente inspirou os compositores Luis Antonio e Oldemar Magalhães para compor o samba “Lata D’água na Cabeça”, lançado pela cantora Marlene. Lata d'água na cabeça Lá vai Maria Lá vai Maria Sobe o morro e não se cansa Pela mão Leva a criança Lá vai Maria Maria Lava a roupa Lá no alto Lutando pelo pão De cada dia Sonhando com a vida Do asfalto Que acaba Onde o morro principia A mensagem do samba acima diz tudo. A dura subida do morro, a luta pelo pão de cada dia e o sonho do asfalto. Com base nisso fui, que era também a minha realidade, fui a luta, comecei a trabalhar vendendo pastel, doce e amendoim. Vendia no campo de futebol próximo no largo do Estácio. Depois descia e pegava a Rua Pinto de Azevedo para chegar ao Mangue, local do baixo meretrício. Lá consegui vários fregueses entre cafetões e prostitutas, que sempre me pagavam na data combinada. Não corria risco de ser assaltado no valor em espécie, porém havia uma molecada terrível que era acostumada a tomar as quitandas e dar uma surra no vendedor. Aí Afonso, era o bamba daquela área, e com quem mais tarde ficou meu amigo, me aconselhou a andar sempre com um cabo de aço escondido sob a roupa.
  • 31. Ah! Eu tive que bater em muita gente para adquirir respeito e confiança naquelas imediações. Estávamos no mês de dezembro, com o natal aproximando, vida nova, costumes diferentes. Em Lagoa de Roça não estávamos acostumados com aquela profusão de trocas de presentes. Um malandro me garantiu que se eu deixasse um sapato na janela o Papai Noel colocaria um presente. Coloquei o meu bicolor de estimação, em vez de deixar um presente para mim o Papai Noel levou com ele meu único sapato. Fiquei chateado e a partir daí perdi totalmente a confiança e a crença em Papai Noel. Afonso passou ser uma espécie de manual de sobrevivência para mim, a apresentado o que havia de mais interessante naquelas paragens. Um dia me chamou para assistir uma briga de galos na casa de um senhor por nome de Benjamim. Era um lugar o ponto dos galistas do morro de São Carlos e adjacências. Gostei do ambiente e comecei a freqüentar com assiduidade, tanto que acabei conquistando a confiança de todos que freqüentavam aquela rinha. Fui conhecendo e compreendendo todas as manhas do ofício até me consagrar como tratador de galos de briga. Tratava o galo da mesma forma como se cuida de um atleta profissional. Os procedimentos têm que seguir a uma dura rotina diária. De manha começava o trabalho para o fortalecimento da musculatura das pernas e do aparelho respiratório, fazendo o galo pular sobre um tapete até ficar ofegante. A seguir refrescava-o com banho de água natural seguido de um banho de sol. Logo após, o galo entrava no passeador, um local de mais ou menos um metro e meio por oitenta centímetros, dotado de um piso de areia para complementar o reforço da musculatura, ficando lá geralmente das oito às onze da manha. Voltava novamente à gaiola, agora para tomar água e alimentar-se. Sua refeição normalmente acontecia por volta de uma da tarde, constituída a base de girassol, milho quebrado, aveia em casca e leite. Como suplemento, uma torta extra de tomate, agrião, couve e cenoura. Para desenvolver resistência, pílulas de robustez, as mesmas dadas para os pombos correios. É um treinamento, com as devidas
  • 32. proporções, semelhante ao de um lutador de boxe, o bicho é preparado para ter resistência na hora de assimilar os golpes e agressividade para reagir. As brigas de galos já estavam proibidas desde 1934, com a edição do Decreto Federal 24.645 que proíbiu realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou de espécies diferentes. Mas a paixão pelo galismo é tão grande que o pessoal nunca foi de respeitar esse decreto, volta e meia ficamos sabendo de batidas policiais e prisões em flagrante de cidadãos com alto prestígio econômico e político, que até a polícia fica sem jeito de conduzi-los para a delegacia. Para ser engraxate na Lapa tive que tomar umas aulas com o Lopes, um engraxate profissional morador no morro de São Carlos, que fez questão de me ensinar as manhas do ofício. Mas havia outra questão essencial: como sobreviver naquele ambiente visitado pelos maiorais da malandragem. A Lapa era uma autêntica academia de formar malandros, alguns com status de astros, como Miguelzinho, Edgard, Baiaco, Malvadeza Durão, Ataliba, Eduardinho, Camisa Preta e Meia-Noite. Para conviver ali a exigência era ser um deles, batizado e matriculado no assunto e coisa e tal. Conquistar na Lapa um ponto para trabalhar era correr riscos de levar uma surra inesquecível. Já havia sido avisado que iria para o local mais perigoso da cidade. Por isso fiz um diagnóstico da área para saber quais os pontos que já estavam ocupados, para então localizar um lugar aparentemente devoluto. Encontrei um, próximo de uma farmácia situada em frente à Travessa do Mosqueiro. Mas mesmo assim, com toda essa precaução estratégica de boa vizinhança, um moleque do morro dos cabritos que engraxava a uns trinta metros abaixo, não quis admitir pacificamente a concorrência; aí um garoto grandão, que eu não conhecia, tomou minhas dores, parecia ser muito respeitado na área, e ordenou que me deixassem em paz. Assim pude trabalhar ali tranqüilo, confiante no meu cabo de aço escondido dentro da caixa de engraxate. Ainda não possuía nenhum conhecimento sobre as personalidades do mundo folclórico da Lapa, mas de cara, engraxei os sapatos de algum deles. Lembro-me de Madame Satã, malandro que ficou conhecido no envolvimento da morte do
  • 33. compositor mineiro Geraldo Pereira. Do China da Lapa, esse não era um valentão, mas um jogador que sobrevivia do vício, certa vez ele reconheceu Noel Rosa passando com um violão debaixo do braço, no outro lado da rua, às dez horas dez da manha. Lembro-me dele dizer: - “ Nossa o Noel ainda está na rua, já ouviu falar dele menino? Ele é o maioral dos compositores”. Assim eu fui me criando naquele ambiente, conhecendo seus códigos, no entanto, sem ostentar valentia nem tampouco covardia. Sempre soube ouvir e por isso vez por outra recebia bons conselhos de desconhecidos que foram fundamentais para sobreviver naquele ambiente povoado por marginais, prostitutas, artistas e intelectuais. Gente muito boa por sinal! 2. O CONTATO COM A MÚSICA O Afonso me levou para assistir os ensaios no Bloco “Cada Ano Sai Melhor”, tive uma sensação de assombro com o que vi. O repicar dos tamborins, a marcação dos surdos, e as cuícas tirando um som que imitava gente gemendo sabe lá se de dor ou de alegria. Nem dormi o restante da noite, sensação igual aquela só quando ia às feiras ouvir Severino de Guiné, Pólino e o Galeguinho de Itabaiana. A música sempre me furtou as atenções, vendo aquilo eu não conseguia pensar em outra coisa, queria ser um deles dominando meu instrumento e ser o centro das atenções, sempre tive esse tipo de vaidade. Peço a Deus que me perdoe se isso for uma espécie de pecado inclemente. Depois do que vi, passei a gastar todo meu dinheiro de engraxate, para encontrar um bilhete premiado que valia um cavaquinho numa birosca de um português muito mal intencionado. Era um instrumento tosco, de cravelhas, e que depois tive o dissabor de constatar que era difícil de ser afinado e pior ainda, e de modo algum segurava a afinação. Minha irmã Maria percebeu que aquele negócio todo tinha um xaveco por detrás, resolveu ser mais esperta que o português, falsificou com todo cuidado o tal bilhete premiado. Comprou um envelope, abriu na frente do portuga, ele com mais atenção na beleza dela não percebeu a troca do comprovante. Mas, ainda simulou uma reação: “Oh! Raios me garantiram que o cavaquinho não sairia!”
  • 34. Ter aquele cavaquinho em minhas mãos foi um marco na minha vida, ele ali, à minha disposição. Não sei e nem quero comparar, mas emoção de tirar o som do seu primeiro instrumento, com ele assim, coladinho no peito, é como ver o primeiro sorriso dos filhos, são coisas que a gente cala nos recônditos da alma, e, com o passar do tempo, as lembranças dessas emoções retiram lágrimas dos olhos da gente com a maior facilidade. Naturalmente por terem sido vividas de uma experiência feliz. Lágrimas sem remorsos e, sobretudo humanas na sua mais digna expressão de sentir e de viver. Sou um homem feliz, por que fui conduzido pela sorte do meu talento musical. Fiz muita coisa nessa vida, sou um artesão habilidoso, mas nada se compara ao meu trabalho como músico. Minha paixão pelo palco é maior do que a minha paixão pela vida, por que sem ela não valeria a pena viver. Com o cavaquinho nas mãos no outro dia fui à casa do Nequinho, músico de respeito e meu vizinho. Vendo minha determinação me acolheu com entusiasmo. Os artistas de um modo geral sempre protegem as crianças talentosas. Dão aulas de graça, por que talvez vejam neles a sequência do que fazem. Ele de cara foi afirmando: - “Meu filho, tudo começa com o dó!”. E foi cantarolando aquela embolada folclórica de domínio público: “Segura o bode meu cumpade seu Mané o seu bode é tão malvado machucou minha muié.” Foi me ensinando e dizendo que prestasse atenção na pulsação da música, para eu sentisse o momento adequado de trocar a posição dos acordes. Para seu espanto toquei ali de prima, no calor da emoção, o Segura o Bode. Ele percebeu de imediato a minha capacidade de aprender, e ficou entusiasmado, disse que eu fosse lá todo dia, uma meia-hora depois que chegasse do colégio, para verificar como eu estava indo. No dia seguinte ordenou que eu fizesse o dó em outras casas, dizia que era um exercício muito bom, pois permitia dominar com maior desenvoltura o braço do instrumento.
  • 35. Depois fez o mesmo com a tonalidade de ré maior. Ensinou-me uma melodia com as notas ré, sol, si, ré. As mesmas notas da afinação padrão do cavaquinho para eu aprender afinar o cavaquinho fazendo associação com essa seqüência musical. Fazia questão de frisar que cavaquinho não era um pedaço do violão e que tinha sua afinação específica, e que eu deveria obedecer a esses princípios se quisesse levar em frente à carreira de instrumentista. Nequinho tinha ojeriza de ouvir cavaquinho afinado como violão ou bandolim, reagia como se tivesse sido insultado, para ele era uma espécie de humilhação ao instrumento. Cada instrumento tem sua identidade baseada em uma afinação característica. Ele era um tipo conservador, inimigo confesso das afinações alternativas. Cada dia que passava eu ficava mais entusiasmado com o aprendizado, fui descobrindo os segredos daquelas quatro cordas. Sentia-me importante aprender aquela linguagem entendida somente por músicos de respeito. Eram os relativos, tons vizinhos, cadência, notas falsas, melodia, harmonia, ritmo, tonalidades. Aquilo me fazia diferenciado dos demais garotos, era reconhecido e respeitado pelos mais velhos, que me considerava um deles. Ficava impaciente para descobrir coisas novas; uma forma mais eficiente de segurar a palheta para não deixá-la cair a toda hora, e, sobretudo, ter cuidado para aprimorar a qualidade do som extraído. Fiz amizade com um garoto por nome de Pedro, que foi percebendo me interesse por música, tratou logo de me colocar em contato o seu pai, Manoel do Violão, que fazia parte de um conjunto amador especializado em choro e samba. A cada primeiro sábado de mês, eles reunião-se na Rua Catumbi, na residência do saudoso professor Waldemar, pessoa muito querida no meio, compadre de Pixinguinha. O sarau era esperado com impaciência, devido o modo especial que o professor e a esposa recebiam os convidados. Além da hospitalidade havia uma feijoada que sómente os cariocas sabem fazer. Outras vezes serviam uma rabada com agrião e batata, meu Deus do céu, era uma coisa séria. Atraídos pelo ambiente e pela suculenta comida que o Professor Valdemar proporcionava vinham instrumentistas e aficionados de todas as plagas do Rio: clarinetistas, violonistas, flautistas, todos de altíssimo nível a ponto de me sentir acuado, quem era eu para tocar com aqueles mestres. Gentilmente pediam-me para
  • 36. eu tocar, como eu não me sentia seguro, preferia mesmo era ouvir e ir aprendendo importantes macetes que ou meus olhos e ouvidos capturavam. Foi lá que conheci seu Antônio Rodrigues, grande cavaquinista, trabalhava no Ministério do Trabalho. Ele usava uma afinação que não teve seguidores, mas era um troço bonito, dava um efeito diferente. Aí cheguei à conclusão que não devia ser tão intransigente em questão de afinação como havia ensinado meu primeiro professor. Passei a freqüentar a residência de seu Antônio na Rua do Lavradio. Ele era casado com dona Maria uma mulher muito doente, mas de uma educação que nunca vi outra igual, uma esposa extremosa, muito carinhosa comigo, gostava da minha presença, argumentava que eu ajudava a “prender” seu Antônio em casa. Nas aulas ele insistia para que eu dominasse as tonalidades, saber de cor os relativos. Na minha ignorância de inocente quis saber o significado do nome Relativo, ele sabiamente respondeu: “É que os tons precisam de solidariedade!” Uma vez descendo o morro de São Carlos fui interceptado por um negro bem vestido, terno branco, sapato branco e camisa azul. Estava na minha frente nada mais nada menos do que São Ismael Silva. Vendo-me com o cavaquinho debaixo do braço perguntou-me se eu conseguia acompanhar um samba e cantou aquele samba feito por ele com parceria de Noel Rosa: “Estou vivendo com você Num martírio sem igual Vou largar você de mão Com razão Para me livrar do mal. Supliquei humildemente Pra você se endireitar Mas agora, francamente Nosso amor vai se acabar. Vou embora afinal Você vai saber porque É pra me livrar do mal Que eu fujo de você.” Depois de ver meu esforço ele perguntou: -“Você é do norte?” Respondi que era. Ela emendou, de agora pra frente você será o garoto do norte. E tem mais uma coisa
  • 37. Você vai ficar bom nesse negócio aí. Anos mais tarde encontrei com ele em uma Rádio ele me olhou pensativo e foi logo perguntando. –“ Eu não te conheço? Você não é o garoto do norte? Trocou o cavaquinho pelo pandeiro, Por que?” 3. MEU ENCONTRO COM O PANDEIRO. Naquelas imediações do Largo do Estácio respirava-se o samba, as crianças já nasciam com o coração marcando o compasso dois por quatro. A vontade de ser ritmista ia tomando conta, até que um dia passei por cima do compromisso que tinha com o Nequinho e com o seu Antônio Rodrigues. Cheio de dúvidas me aborreci acabei trocando o cavaquinho por dois casais de canários bons de briga. Mas depois de alguns dias comecei a ficar angustiado por ter desfeito do cavaquinho, Ia engraxar e voltava triste, abatido. Para aliviar um pouco aquilo tudo, passei a freqüentar a casa do Manoel da Cuíca, ponto de encontro de reuniões musicais, como o pessoal do conjunto Turma Animada, e dois pandeiristas que se destacavam: Valdemar e Russo Sapateiro. Tinham estilos completamente diferentes. O Valdemar era uma cópia do Jacob Palmieri e do Russo do Pandeiro que tocavam com as platinelas sem abafamento, de tal forma que quase não se ouvia o som do couro. Ainda muito influenciado pelo samba amaxixado. O outro era o Russo Sapateiro, que não possuía semelhança musical alguma com o xará. Ele tinha a malemolência da Turma do Estácio e passei a observá-lo minuciosamente. Mas havia um problema sério, eu não possuía um pandeiro, passei a improvisar em pratos ou qualquer outra coisa que assemelhasse a um pandeiro. Fui indo até que um dia meu irmão, Antônio Fogueteiro, vendo minhas estripulias de sambista doméstico, aconselhou-me como era conseguir um pandeiro. Ele me aconselhou ir até a barbearia de Joaquim Pinheiro nas imediações do Campo de Santana, próximo do Túnel João Ricardo que dá passagem para o cais do porto. Naqueles tempos haviam os fregueses de caderneta, e vez por outra ficavam dívidas em aberto, aí depois de algum tempo do vencimento da obrigação as partes entravam em acordo, como forma de honrar o compromisso o devedor botava à disposição do credor um objeto de valor como pagamento. O barbeiro
  • 38. Joaquim havia recebido um pandeiro como pagamento de dívida, e estava sendo usado como peça de decoração. Dependurado, empoeirado e sem uso. Seu Joaquim era desses barbeiros que usava um bigode bem aparado, separado ao meio como aquele ator americano do filme “ E O Vento Levou”, Clarke Gable. Muito gentil, quis saber o que eu queria, e de prontidão foi pegando uma cadeira e subiu para apanhar o pandeiro, fez uma ligeira limpeza com um espanador e colocou-o em minhas mãos. Aí o espírito do Russo sapateiro manifestou em mim, fiz tudo que havia aprendido observando por vários meses como ele tocava. Seu Joaquim Pinheiro não resistiu aquilo aquilo e me deu o pandeiro de presente. Agora que eu estava “armado” fazia questão de ir todos os dias dos ensaios. Percebi que o Russo Sapateiro tocava com as pontas dos dedos e não dava tapas no pandeiro. Chegava em casa, treinava, treinava. Não gostava daquele barulho deselegante das platinelas, sentia que perturbava mais do que agradava a quem ouvia. Fui experimentando abafadores, isso acabou virando uma obsessão em minha vida artística, experimentei de tudo e nunca ficava satisfeito, até que um dia, depois de consagrado, descobri o plástico, esse sim, tem a capacidade de colocar o som das platinelas no lugar que ele merece, lado a lado com o som do couro, igual a uma dupla de violões bem afinados, onde um respeita as funções do outro. Com essa preocupação toda e treinando muito, logo chamei a atenção dos próprios músicos. Ouvi elogios repetidos e incentivadores dos pandeiristas Adolfinho e Valdemar. Esse último chegou até a afirmar que estava com vergonha dele mesmo. Havia passado lá em casa e me ouviu treinando no quarto, disse que não acreditou no que ouviu. – “Esse menino não tem a metade de nossa idade e já esta fazendo isso, imagine só quando crescer, não vai ter para ninguém!” Começaram a me aconselhar a ir a algum programa de rádio para mostrar meu talento. Eu nem tinha noção do que falavam treinava muito porque, parecia que havia uma voz lá de dentro de mim ordenando a continuar trabalhando em busca da perfeição. Minha fama começou a circular de boca em boca até que o Roberto do conjunto Turma Animada pediu que eu fosse assistir os ensaios deles. Era um conjunto semi- profissional, todos tinham suas profissões, mas quase todo mês ganhavam um dinheirinho tocando normalmente em reuniões sociais. O Roberto tocava violão.
  • 39. Nequinho, meu professor, cavaquinho. Sete Camisas no pandeiro. Osmar no bandolim e Suquinho tocava ganzá e cantava, diga-se de passagem, grande cantor, não sei como não se consagrou no Rádio. Eu tinha catorze anos, parecia ter um pouco mais, porque andava sempre bem alinhado para parecer mais velho e ostentar respeito. Cheguei no local onde ensaiavam, me aboletei em uma cadeira distante uns cinco metros mais ou menos, e fiquei prestando atenção no bom desempenho do grupo. Quase no final do ensaio Roberto ordenou a Sete Camisas que me passasse o pandeiro. Quando comecei a tocar Dona Regina, mãe de Roberto chegou da cozinha toda assustada: - “Mas é o Inacinho, não acredito! Você tem que ir a Rádio meu filho, complementando o assombro dela com meu desempenho. Não tinha palavras mais doces ao ouvido de um músico iniciante do que essas: “Você tem que ir tocar na rádio!” Isso significava o reconhecimento de sua comunidade. Tocar na rádio significava a transposição da sua Aldeia, era viajar pelos ares e ser conhecido no país todo e naturalmente ser reconhecido financeiramente. Mas antes de chegar na rádio tive uma experiência muito interessante. 4. O BATISMO DE FOGO. O Sete Camisas, pandeirista oficial do grupo, não pode continuar no conjunto por problemas particulares, aí o Roberto pediu autorização a minha mãe para que eu tocasse com eles. Como o pessoal do conjunto pertencia à comunidade local e eram benquistos por todos, Dona Maria Francisca não teve dúvidas em autorizar que eu participasse do grupo. Meu entusiasmo era tanto que isso pesou muito na decisão dela. O Roberto foi um grande incentivador, confiando na minha capacidade me levou para tocar na gafieira Flor do Abacate. Fomos a pé, passando pela Glória, foi quando ele me contou o que estava planejando. É que lá passava um flautista que adorava derrubar tudo quanto é pandeirista, mas nós apostamos que ele não vai poder com você.
  • 40. Chegamos à casa onde o Álvaro Sandin em sua homenagem, compôs aquele antológico homônimo, gravado magistralmente pelo Jacob do Bandolim. A Flor Do Abacate ficava em um prédio bonito com gente elegante dançando. Mulheres cheirosas e bem vestidas deslizavam em um piso liso e escorregadio compondo pares de dançarinos magistrais. Tudo aquilo ali era novo para mim. Meio assustado, mas com um pandeiro novo que minha irmã tinha me presenteado, com estojo de madeira e tudo, fiquei sentado esperando a nossa vez de tocar. Depois de uma meia-hora que estávamos tocando entrou um negro alto, vestindo um terno branco de linho S120, chapéu de aba larga e sapato bicolor. Muito elegante mesmo. Trazia uma flauta debaixo do braço no estilo de Pixinguinha. E foi logo me observando: - “Tem cara nova hoje!” Era o especialista em desmoralizar pandeirista, começava tocando lento e ia aumentando o andamento, aumentando até que o pandeirista desistia, e isso era a glória para ele. Era aclamado como campeão como se musica fosse uma competição de pugilato. O aprendizado informal da música acaba produzindo pessoas com esse tido de comportamento. Nunca vi grandes músicos agirem dessa forma. Abel Ferreira, Pixinguinha, Waldir Azevedo nunca tiveram atitudes semelhante a esta. Pelo menos eu não vi e nunca tive notícia. O tal do Tião da Flauta ficou de lado bebendo umas cervejas, no intervalo e ele chegou e comentou com o Roberto, esse menino tem uma batida diferente, segura. Meu amigo concordou, mas evitou entrar em qualquer tipo de detalhe. Para não ficar deselegante apenas comentou que eu estava muito verde ainda, mas que prometia. Aí o flautista ficou animado em me desafiar. Assim que começou tocar de novo, ele no final da segunda música foi olhando para mim dizendo: -” Tem cara nova aqui hoje!” Subiu no palco e foi dizendo para que eu segurasse o “Urubu Malandro”. O Urubu é um choro predileto dos flautistas virtuoses. É uma obrigação de todo flautista de valor tocá-lo. Ele começou, só eu e ele fomos aumentando a velocidade, eu segurando. Quando estava muito rápido eu usei de uma malandragem, criada ali na hora, que nenhum ritmista carioca poderia imaginar. Meti a batida do frevo, que é muito mais folgada para o bandeirista, e exige muito mais do solista, e fui puxando, fui puxando, até que
  • 41. a flauta só fazia piu, piu... acelerei mais ainda, ele parou. “- Roberto, hoje eu encontrei um, que maravilha de garoto você encontrou.” Pegou a minha mão direita e repetiu aquele gesto que os juízes fazem quando um pugilista vence uma luta. Juro que fiquei com vergonha, aquele homem que dez minutos atrás era um falador arrogante, agora queria a todo custo prostrar-se em meus pés. Hoje, esse recurso de trocar o choro ou samba pelo frevo, é uma alternativa muito usada por pandeiristas que sabem das coisas, quando solistas de alma circense querem tocar em alta rotação. Vejam por exemplo o que está acontecendo hoje com as escolas de samba, pelo fato de possuir um tempo determinado para cumprir seu percurso, o diretor de bateria impõe um ritmo frenético, aí, sem querer o samba vira frevo. Acho que quem usou isso pela primeira vez de forma consciente fui eu naquela demanda com o saudoso Tião da Flauta. Chegando em casa comecei a pensar onde tinha buscado aquilo. Ai lembrei-me que lá no norte eu acompanhava sanfoneiros batendo caixote, imitando zabumba. Dali em diante comecei a relembrar tudo aquilo, a mistura do rojão, do baião, xaxado, frevo, maracatu, samba e choro, acabou constituindo o meu jeito de tocar pandeiro, a meu jeito, sempre com a pontinha dos dedos. Salve o Russo Sapateiro, que Deus o tenha em glória. Depois daquele confronto, meu tratamento na comunidade onde vivia passou a ser outro, minha fama espalhou como fogo que sobe morro acima. Aí vieram as tapinhas nas costas, pandeiristas dos outros grupos exigindo que eu desse uma canja. Passei ser anunciado como o Inacinho do pandeiro. Nas rodas na casa do Professor Valdemar ninguém mais queria botar a mão no pandeiro. “Sem querer, ouvia aqueles músicos experientes dizendo: -” Esse menino tem uma cadência diferente, dá muita firmeza e enriquece o solo!” Aquilo tudo acabou me tornando um adulto precoce, aos catorze anos comecei a ser comparado com os grandes do instrumento. Jacob Palmieri, Russo do Pandeiro, João da Baiana e Popeye. E sempre ouvindo: “Já deixou para trás!” Confesso que dos três eu gostava mais do Popeye, mais da minha geração. Mas hoje, depois de tanto, tempo curvo a cabeça para os três primeiros, que tiveram a primazia de introduzir o instrumento definitivamente no cenário profissional.
  • 42. O Russo era paulistano, mas, ainda criança mudou-se para o Rio de Janeiro. E dizem que tocou em um casamento de sua irmã com Benedito Lacerda, a partir daí fundaram o conjunto Gente do Morro, que seria no futuro o regional de Benedito Lacerda. Foi para os Estados Unidos com a Carmem Miranda, trabalhou em muitos filmes e teve conjunto por lá. Além de virtuose do pandeiro foi um excelente compositor com vários sucessos registrados. Muita gente que hoje tem sucesso internacional como ritmista, principalmente pandeiristas, deveria trazer permanentemente uma fotografia dele na carteira, ele foi um bandeirante do pandeiro, um verdadeiro rompedor de fronteiras. O João Da Baiana trazia aquela coisa da África, não era só pandeirista, tocava vários instrumentos de percussão, e conhecia muito aqueles pontos de macumba, ele era do candomblé e sabia de muitos segredos em termos de ritmos ligados aos rituais fechados. Era muito ligado ao Pixinguinha participou de diversas gravações tocando, além do pandeiro, garfo e faca. Compositor de prestígio. Em ralação ao Jacob Palmieri, não tenho muito conhecimento, só sei que era o pandeirista de confiança de Pixinguinha nos Oito Batutas, isso dispensa quaisquer dúvidas a respeito de sua competência técnica. Deixo aqui, como uma homenagem particular, o registro desses três instrumentistas com os quais me comparavam, e que mais tarde tornaram-se meus irmãos em armas. E faço questão de salientar a importância que tiveram para a memória da cultura nacional. ................................................................................................................................. PROGRAMAS DE CALOURO . Depois de 1940 entre os programas de radio de maior prestígio era "O Trem da Alegria", comando por Heber de Boscoli, por Yara Sales e o grande copositor Lamartine Babo, "O Trio do Osso", assim denominado devido ao fato de que todos os seus componentes serem magros. Foi um programa de enorme popularidade naquela época em todo o Brasil. Um outro programa que marcou época foi o do grande apresentador César de Alencar. Vejam só, seu sucesso foi tanto que para
  • 43. assistir seu programa tinha que adquirir os ingressos para o auditório antecipadamente com até duas semanas de antecedência. Também vale a pena ressaltar o programa do Renato Murce e sua assistente “Miss Mary”, o nome do programa era Papel Carbono, ia ao ar aos domingos de noite na Radio Nacional na década de 1940. Murce era casado com Eliane, a musa dos filmes da Atlântida. No Papel Carbono os calouros tinham que imitar um astro que estivesse em evidencia, e pode-se dizer cem cerimônias que o programa foi um verdadeiro celeiro de astros: Doris Monteiro, Alaíde Costa, Ângela Maria, Élen de Lima, Claudete Soares, Ivon Curi, Ademilde Fonseca, entre outros. Os programas de auditório era o ponto forte das Rádios, e a Rádio Nacional comandava os maiores deles. Os grandes programas desta época dignos de nota são: "A Hora do Pato", mais tarde denominado "Aí vem o Pato", da Rádio Nacional; "Pescando Estrelas", da Rádio Clube, apresentado por Renato Amaral e o famoso "Buzina do Chacrinha", também da Rádio Clube. O Programa César de Alencar, que em um dos seus aniversários levou ao Maracananzinho quase vinte mil pessoas em 1955. Vale lembrar ainda lembrarmos os nomes de Haroldo Barbosa, que trabalhou nas Rádios Nacional, Tupy e Mayrink Veiga, fazendo sucesso com os programas "Um Milhão de Melodias", "Calouros da Orquestra", o Fernando Lobo, pai do compositor Edu Lobo, um grande produtor de programas, sendo responsável pela produção de vários programas da Nacional. O Ari Barroso afirmava categoricamente que o seu programa não tinha a finalidade de procurar estrelas. E se assim fosse, não permitiria a apresentação de candidatos destituídos de condições técnicas. No programa em que dirigia qualquer um tinha o direito de se apresentar para fazer o que quisesse desde que fizesse formalmente a inscrição. Embora muitos ex-calouros acabariam se transformando em autênticos astros do firmamento musical nacional. Uma das razões aventadas para explicar o sucesso obtido era ter passado pelo crivo de Ari Barroso. Ele era muito exigente e entendia do assunto. Se o candidato mostrasse virtude tinha tudo com ele.
  • 44. O clímax do programa era a pitada de humor e a irreverência em que o Ari era mestre. Ficava nervoso quando alguém insinuava que ele humilhava os calouros. Afirmava que não ridicularizava os calouros e justificava com o número cada vez mais elevado de inscrições que cresciam assustadoramente para o seu programa, mas por outro lado, não podia impedir que os “ridículos de nascensa”, segundo ele se constituísses na nora humorística di programa. Incentivaram-me a ir aos programas de calouro, fui no Papel Carbono. Eu e o João, um flautista que no momento não me recordo do sobrenome. Isso era por volta de 1938. Ele com sua flauta de bambu imitava o Benedito Lacerda e eu o Russo do Pandeiro. Fizemos a inscrição com aquele famoso tema para flauta e pandeiro – o Urubu Malandro. O grande solista de violão Dilermando Reis que era o chefe do conjunto regional me disse nos ensaios: - hoje não vai ter pra ninguém!.   Voltamos para o morro e ensaiamos o que pudemos, vestimos a melhor roupa, com sapato engraxado e tudo mais. Fomos para a cidade por volta de 19 horas por que o programa começava às 20 em ponto. No palco estava o Renato Murce e Miss Mary, Recebemos uma salva de palmas, mas mesmo assim não foi o suficiente para espantar o medo. Os nossos concorrentes pareciam mais nervosos. O primeiro com um violão tenor imitando Claudionor Cruz, e o segundo imitando Jacob do bandolim. No final levamos o primeiro lugar e o Renato Murce, fora do ar, me falou em particular: - olha garoto o Russo tem que tomar cuidado com você, esse pandeiro que você toca não faz barulho, é tudo muito equilibrado. Voltamos para o morro e a vizinhança veio em peso dar tapinhas nas costas, aquelas congratulações de praxe, alguns prevendo um futuro cheio de glamour e dinheiro fácil. Depois do sucesso no Renato Murce, fiquei sabendo que o programa A Hora do Pato estava acumulado, e dessa fez eu fui sozinho. Naquele programa eu teria que desafiar um grande astro, e esse astro que eu iria desafiar não era nada menos do que Luís Americano do Rego. Tio Luís, como passei a chamá-lo posteriormente, foi também um clarinetista e saxofonista extraordinário, compositor inspirado de valsas e choros, talvez o melhor para clarineta. Além das gravações como solista, participou de milhares gravações, sobretudo acompanhando os grandes cantores e
  • 45. cantoras da década de 1930 e 1940 o som de sua clarineta e de seu sax-tenor é inconfundível, marcante. Ao ouvirmos essas gravações, percebemos sem muita dificuldades os momentos em que surgem as intervenções maravilhosas de Luís Americano.   Pois bem, o prêmio interessante me encorajou e fui armado de um pandeiro devidamente colocado no estojo, quando entrei na no recinto onde estava sendo feito os ensaios, o Índio do cavaquinho me perguntou: - o que você veio fazer aqui? O Tio Luis quando viu logo me deu um sorriso irradiando bondade, e disse: - vamos dar uma passadinha. Quis saber onde eu morava, e pediu para que o Índio se juntasse a nós. Eu já tinha escutado o “Passeando Pelas Arábias”, e como eu era um assíduo espectador de filmes em série. Enquanto Tio Luís fazia aquela clássica introdução, eu batia o pandeiro com o cotovelo e com a mão imitava uma Naja. Ele gostou muito, e fez questão de dizer que eu era um prodígio, e iria fazer questão que eu ganhasse o prêmio. Na hora da apresentação fizeram toda aquela pompa, e, diziam assim: o garotinho do norte, Inacinho, que veio desafiar Luis Americano. Eu fui muito bem vstido com um terno de linho caroá. Tio Luís me recebeu com aquela gaitada gostosa que só ele sabia dar no clarinete. E o resultado não deu outro ganhei o primeiro lugar, naturalmente com todo envolvimento daquele monstro sagrado da música instrumental brasileira, e que depois fui muito amigo, era acima de tudo um grande conselheiro para os mais novos que estavam começando.   5. O INICIO NO MUNDO PROFISSIONAL DA MÚSICA Depois quando terminaram toda aquela euforia, as pessoas querendo saber onde eu morava, Tio Luis me chamou de lado e me disse: você já está pronto meu filho, já pode vir para o ponto dos músicos. O ponto era assim dividido de um lado junto ao Teatro João Caetano, era o ponto dos músicos de orquestra, e no Teatro Carlos Gomes o ponto de músicos de conjunto regional. O ponto era uma espécie de mercado de trabalho, formavam-se conjuntos ali, em cima da hora, até pequenas orquestras eram criadas no calor do improviso. .
  • 46. Fui para o ponto e n primeiro dia tive a sorte de conhecer um dos maiores violonistas que esse país já teve, e que não tem o nome divulgado como o seu grande talento musical merecia. Trata-se de Arlindo Ferreira, e que devido o seu gosto pelo cachimbo, passou ser conhecido como Arlindo Cachimbo. Era mineiro, formou uma das melhores duplas de violões que o cenário artístico já conheceu com Djalma Ferreira, o lendário Bola Sete no regional do Claudionor Cruz, e depois, foi o violonista de confiança de Abel Ferreira por muitos anos. Era do mesmo nível do Meira e do Dino, que por sinal era seu amigo e compadre. Era um mineiro muito calado e sistemático, quando a Aracy cantava aquele samba do Mulato Calado do Wilson Baptista: “vocês estão vendo Aquele mulato calado Com o seu chapéu de lado Já matou um Já matou um..” Ela cantava e apontava para ele. Ele depois reclamava com ela dizendo que o povo ia pensar que ele era um assassino. Um grande artista. Meu amigo acima de tudo. E. perfeito para um regional. Acervo Sérgio Prata /1970
  • 47. Da esquerda para a direita: Arlindo Cachimbo, Canhoto, Sílvio Caldas, Meira, Niquinho e Gilson. A foto é da década de 70. O Arlindo Ferreira me convidou então para tocar com ele no Circo DUDU, que estava instalado na Praça da Bandeira. Iríamos acompanhar a cantora Aracy de Almeida, o Jorge Veiga e o Gilberto Alves. Quando fiquei sabendo que iria acompanhar a grande Aracy de Almeida de quem eu particularmente era fã, me deu um calafrio, mas uma certeza que estava no caminho certo e com a pessoa certa. Eu sempre gostei dela, por que sua voz era um instrumento de ritmo, o jeito que ela dividia, não tinha para ninguém, por isso que ela era chamada de “O Samba em Pessoa”. Seguramente a maior interprete de Noel Rosa, e que por sinal, era sua cantora preferida. Tinha o gênio forte e um repertório interminável de palavrões. Ela gostou muito do meu novo jeito de tocar o instrumento, e saiu fazendo propaganda para todo mundo: “viram o garotinho que o Arlindo descobriu, toca pandeiro com surdina.” Daí para frente ordenou ao Arlindo Ferreira que seria eu o
  • 48. seu pandeirista, e não queria saber mais daquele “pitilingu pitilingu “ que os pandeiristas até então faziam. “E tamos conversados!” Outra pessoa de enorme importância na minha carreira musical foi Vicente de Paula Jose Soares - o Pinguim. Conheci-o em uma casa na rua Andre Cavalcante onde ele dava uma “canja”,, juntamente com o grande ritmista Luna. Fiquei impressionado como ele tocava o cavaquinho, um estilo completamente diferenciado. Fazia o centro puxando os violões. E era bom também no segundo violão. É outro instrumentista esquecido nesses pais sem memória. Outro dia atrás conversando com meu amigo Voltaire7Cordas, ele me afirmou que ia assistir o programa do meu regional na Rádio Mauá para ver o Pinguim tocar, agora, um elogio vindo do Voltaire pesa. Passamos a nos encontrar com freqüência no morro Santo Antonio onde eu morava, ele ia lá freqüentemente jogar futebol. Assim soube por seu intermédio que havia uma vaga no regional do Benedito César de Faria, pai do compositor Paulinho da Viola, eu iria substituir temporariamente o pandeirista Afonso. O regional do César só tinha fera olha só a formação Fernando Boninha no primeiro violão, César no segundo, Piguim no cavaquinho, eu no pandeiro, e nada mais nada menos do que Jacob Bittencourt no bandolim. Um time de divisão especial. Quero aqui ressaltar a qualidade desse violonista que ninguém lembra mais, o Boninha, era um violonista de um talento incomum, um gênio no melhor sentido da palavra. Falar do Jacob e do César seria chover no molhado. Mas quero ressaltar aqui a grande amizade que mantive com o César durante toda a minha vida, um homem muito fino e educado. Amizade que estendeu à sua família por meio do Paulinho, que tive a honra de acompanhá-lo em shows realizados em Brasília. Toquei trinta dias, o Jacob queria ficasse definitivamente, mas eu jamais iria tomar o lugar de um “irmão em armas”, o Afonso voltou, e logo também o conjunto de César deixou de tocar na Rádio Ipanema que acabou sendo fechada por problemas políticos. Estávamos na época da segunda grande guerra mundial, e segundo comentaram, seus proprietários tinham ligação com os Nazistas e o governo de Vargas fechou aquela emissora tirando-a do ar ar.definitivamente.
  • 49. Eu não estava mais indo no ponto dos músicos, estava tocando na “orquestra de folga”, era uma orquestra organizada para cobrir as folgas dos músicos nos “dancings”. Minha irmâ Maria trabalhava na Samba Dancing e conseguiu uma vaga para mim. Tocava das 20hs até 2 da manha, e nos sábados ate as 4 da madrugada. Passei a ser sondado para tocar em conjuntos que formavam no calor da ocasião. Muito comum naquela época, organizado para abrilhantar uma festa particular, aniversários, ou comemorações que requeriam a presença de um conjunto regional. 6. MINHA PARTICIPAÇÃO NOS CONJUNTOS REGIONAIS Com o início das gravações elétricas em 1927 e o advento das rádios na década de 1930 com o subseqüente surgimento dos programas de rádio bancados pela veiculação da propaganda paga, isso proporcionou a criação de um novo mercado para a atuação dos músicos. O gênero musical da época que enquadrava nas exigências comerciais era o samba. Surgiu assim a necessidade de uma modalidade de conjunto que fizesse o acompanhamento dos cantores profissionais e dos calouros que se aventuravam em busca do caminho da glória artística. Os músicos oriundos do choro eram mestres no acompanhamento “de ouvido”; uma bem-vinda praticidade, pois não necessitavam de arranjos escritos, bastando saber o tom da música e acertar a introdução, além de um inegável virtuosismo quando se tratava de apresentar o seu repertório de choro, fizeram dos regionais a instrumentação musical ideal para a radiofonia brasileira, ainda em formação. Os conjuntos regionais demonstravam a condição sócia econômica do país por meio dos instrumentos utilizados de fácil aquisição. No solo, uma flauta de madeira feita de ébano, bandolim ou clarinete, emprestado das bandas de músicas, dando a introdução para os cantores; na harmonização, um cavaquinho e dois violões fazendo frases musicais "em terças" alinhavados pelo ritmo de um pandeiro de atuação discreta, indicava qual seria o formato a
  • 50. seguir. Depois do advento do violão de sete cordas passou-se a utilizá-lo, valorizando ainda mais o contraponto das cordas. Na época em que atuei como musico profissional no Rio de Janeiro, lembro dos regionais do Benedito Lacerda, que posteriormente se transformou no regional do Canhoto. O regional de Claudionor Cruz que rivalizava com o do Benedito Lacerda nas gravações. Tinha o do Dante Santoro, do Rogério Guimarães, do César Moreno e do César Faria e o meu. Desses todos só não toquei no do Dante Santoro e do César Moreno Minha consolidação como músico de regional aconteceu quando fiz parte do conjunto de Claudionor Cruz. O Arlindo comentou a meu respeito e ele, foi conferir vendo meu desempenho no Samba Dancing, na orquestra de Folga do Maestro Guilherme. Assim que terminou uma seleção, no intervalo ele me procurou e fez o convite, afirmando que eu tinha sido recomendado pelo Cachimbo, e que ele tinha gostado muito, me propôs um contrato e eu aceitei de imediato. O regional de Claudionor era um ninho de cobras alem do Arlindo, tinha o clarinetista Antonio de Souza, O Bola Sete como segundo violão, o Claudionor no violão tenor. Entrando depois eu, e o clarinetista e saxofonista Abel Ferreira. O CLAUDIONOR CRUZ, era mineiro de Paraíbuna, apareceu formando uma dupla com Zé Gonçalves, o Zé da Zilda. Tocava cavaquinho, mas seu instrumento de devoção era o violão tenor. Um dos maiores compositores da musica brasileira, teve diversos parceiros, porém o mais freqüente foi Pedro Caetano, com quem produziu verdadeiras jóias musicais. Era um homem do coração bom .muito honesto com os músicos.. A dupla de violões, era covardia, Arlindo e Bola Sete. Esse último arrisco a afirmar sem ter medo, foi um dos maiores músicos que passou no planeta, não era desse mundo. Se eu tivesse que apontar cinco dos melhores músicos que vi em toda minha carreira, com certeza o de Andrade estaria na lista. Um fato marcante que presenciei, foi um dia que Luis Americano chamou-o para a lousa para discutirem teoria musical. Ele saiu de lá, o procurou imediatamente o Antônio de Souza, que o