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METAMORFOSES DO ESTADO
BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX*

Brasilio Sallum Jr.




      O objetivo deste artigo é analisar algumas         no Brasil desde os anos de 1930. Ao longo de sua
das mudanças políticas mais importantes ocorridas        existência, este Estado cumpriu o papel de núcleo
no Estado brasileiro nas últimas duas décadas do         organizador da sociedade, deixando pouco espaço
século XX. Para isso focalizarei dois processos que      para a organização e a mobilização autônomas de
alteraram tanto o Estado como suas relações com          grupos sociais (sobretudo dos vinculados às clas-
a ordem social e a ordem econômica: a democra-           ses populares), e funcionou como alavanca para a
tização política e a liberalização econômica.            construção de um capitalismo industrial, nacional-
      Esses dois processos foram dimensões-chave         mente integrado mas dependente do capital exter-
da transição política que transformou a forma au-        no, por meio de uma estratégia de substituição de
                                                         importações.1 Essa forma de Estado vem sendo de-
tocrática e desenvolvimentista de Estado, vigente
                                                         nominada “varguista”, pois adquiriu suas caracte-
                                                         rísticas básicas sob a presidência de Getúlio Vargas.
*   Agradeço a Lawrence Whitehead, Maria D’Alva          Adotarei essa denominação porque ela acentua o
    Kinzo e Eduardo Kugelmas pelos valiosos comen-
    tários a este artigo. Ele é uma versão alterada do
                                                         caráter específico do Estado, cuja superação se es-
    texto apresentado no Seminário Fifteen Years of      tudará neste artigo. Não tenho dúvidas, porém, de
    Democracy in Brazil organizado pelo Institute of     que ele é uma entre outras modalidades autocráti-
    Latin American Studies em Londres, em fevereiro      cas e desenvolvimentistas de Estado ocorridas na
    de 2001.
                                                         periferia capitalista no mesmo período.
    Artigo recebido em março/2003.                              A transição política brasileira começou
    Aprovado em maio/2003.
                                                         com a crise de Estado de 1983-1984 e terminou

                                                                                 RBCS Vol. 18 nº 52 junho/2003
                                                                                               .
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com o primeiro governo de Fernando Henrique             fraturas. Externamente, a moratória mexicana re-
Cardoso, momento em que o Estado ganhou es-             sultou na suspensão dos fluxos voluntários de em-
tabilidade segundo um novo padrão hegemôni-             préstimos bancários para o Brasil e outros países
co de dominação, moderadamente liberal em               devedores latino-americanos de 1982 até o final da
assuntos econômicos e completamente identifi-           década, o que provocou uma profunda crise eco-
cado com a democracia representativa. Nessa             nômica na região. Além disso, desde meados da
transição, a democratização política foi mais im-       década de 1970, as idéias predominantes nos paí-
portante na década de 1980 ao passo que a li-           ses centrais e nas agências financeiras multilaterais
beralização econômica destacou-se nos anos de           em relação à política econômica moveram-se,
1990. Essa transformação política só pode ser           cada vez mais, do paradigma keynesiano para a
completamente entendida se a considerarmos              ortodoxia monetarista, inclinada a adotar políticas
no contexto da transnacionalização do capitalis-        rígidas de contenção de gastos públicos e de con-
mo (desencadeada pela globalização financeira)          trole monetário. Essas mudanças nos fluxos eco-
e da democratização da sociedade brasileira.            nômicos e nas idéias predominantes em relação à
      Na próxima seção procuro caracterizar a cri-      gestão econômica restringiram muito a autonomia
se do Estado varguista em função de sua impor-          das políticas econômicas nacionais.3
tância para a explicação dos processos de demo-                Internamente, as mudanças políticas inicia-
cratização política e liberalização econômica.          das nos anos de 1970 e aprofundadas desde então
Essas duas dimensões serão os objetos centrais da       também dificultaram a rearticulação externa. De
segunda e terceira seções do artigo, respectiva-        fato, nas eleições de 1982, o partido de sustenta-
mente. Ao final, faço um esboço das mudanças            ção do regime militar perdeu sua maioria absolu-
políticas recentes que apontam para o predomí-          ta na Câmara dos Deputados e dez governos esta-
nio de um desenvolvimentismo renovado e para            duais importantes passaram a ser governados por
um aprofundamento da democracia.                        partidos da oposição.4 Com tais resultados, o pro-
                                                        cesso de liberalização política, iniciado por Ernes-
                                                        to Geisel em 1973-1974, pôs mais uma vez em xe-
Crise de Estado e transição política                    que o controle do regime militar sobre a mudança
                                                        política do país.5 Com efeito, esses insucessos po-
      O cerne da crise do Estado desenvolvimen-         líticos aprofundaram o padrão segundo o qual
tista brasileiro foi, do ângulo econômico, a inca-      mudanças sociais empurravam sempre, para além
pacidade de fazer frente aos pagamentos da dívi-        de seus próprios limites, o projeto de liberalização
da externa no início da década de 1980,2                política do regime militar. De fato, a partir de
colocando em xeque o padrão costumeiro de re-           1970, os alicerces politicamente excludentes do re-
lacionamento do Brasil com a ordem capitalista          gime militar e do velho Estado varguista foram
mundial. Dessa forma, a crise só poderia ser con-       abalados por um vigoroso processo de democrati-
tornada ou superada mediante um re-arranjo da           zação política. As classes populares tornaram-se
articulação que havia permitido que o país tives-       politicamente muito mais autônomas e tentaram
se apresentado até então um desenvolvimento ca-         partilhar valores materiais e não-materiais que an-
pitalista pujante, embora dependente. Conforme          tes eram exclusivos das classes média e alta. Por
fosse o caminho escolhido para enfrentar a situa-       meio das eleições, das atividades de novas asso-
ção, poderiam surgir fraturas nas relações do Bra-      ciações civis ou da renovação da atuação de ve-
sil com centros econômicos e políticos mundiais         lhas associações, as classes populares, parte das
mais importantes e/ou na própria base doméstica         classes médias e, até mesmo, alguns setores em-
de sustentação política do Estado.                      presariais passaram a pôr em xeque a capacidade
      Ademais, a situação era tanto mais difícil por-   de o Estado controlar, como antes, a sociedade.6
que as mudanças em curso nos âmbitos interna-                  Dessa forma, no início dos anos de 1980, o
cional e doméstico acentuavam os riscos dessas          governo brasileiro encontrava-se em campo mina-
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                                    37

do. Na escolha da estratégia para enfrentar a crise,     se opôs à estratégia governamental de ajuste, mas
ele sofria, ao mesmo tempo, pressões externas            aderiu a “projetos” alternativos para enfrentar a cri-
para conduzir o país em direção à ortodoxia eco-         se econômica, indicando claramente o esvaziamen-
nômica e estímulos na direção oposta, decorrentes        to da liderança do governo. Uma porção da elite
das novas condições políticas internas. Embora o         empresarial, a dissidência mais numerosa, foi mag-
governo tenha optado por um ajuste externo –             netizada por uma versão mais nacionalista e indus-
produção de megasaldos no comércio exterior              trialista de desenvolvimentismo e uma outra, bem
para pagar o serviço da dívida externa – acompa-         menor, foi atraída por uma variante periférica de
nhado de um ajuste fiscal pouco drástico, isso foi       neoliberalismo.
suficiente para causar sérios danos ao seu supor-               Essas reações surgidas no interior da elite
te sociopolítico.7                                       empresarial e no sistema de empresas estatais fa-
      Com efeito, a estratégia escolhida para en-        voreceram a atuação da oposição político-partidá-
frentar o estrangulamento externo produziu uma           ria no Congresso e seus esforços para mobilizar as
crise política muito complexa.8 Ela começou por          classes médias e populares na luta contra a per-
dissociar o governo da base de sustentação socio-        petuação do regime militar. Essa mobilização de
política do Estado varguista. O “ajuste externo”         massa resultou, entre janeiro e março de 1984, na
opôs-se ao receituário econômico da coalizão de-         mais importante demonstração pública ocorrida
senvolvimentista, que via no crescimento econô-          no Brasil em favor da democratização política – a
mico nacional o valor básico a ser alcançado e fa-       campanha das “ Diretas Já”.
zia das empresas estatais seu pilar central de                  A mobilização popular minou completa-
sustentação. A política governamental foi conside-       mente o apoio ainda existente à política de de-
rada recessiva, inflacionária e “injusta”, pois trans-   mocratização gradual e limitada liderada pelo re-
feria todos os custos do “ajuste” para os agentes        gime autoritário. Com isso, a crise política
econômicos domésticos, principalmente para os            expandiu-se e aprofundou-se: a perda de legiti-
assalariados e para as empresas estatais, evitando       midade do governo estendeu-se, incluindo o pró-
onerar os credores externos. Assim, as políticas         prio regime autoritário. Mais ainda, naquela con-
de governo não só se dissociaram dos interesses          juntura crítica, foi iniciada a ruptura dos limites
imediatos da base de sustentação do Estado como          da legitimidade do Estado varguista. A entrada
passaram a ser consideradas ilegítimas, contrárias       maciça da população na luta política em favor da
aos valores básicos da aliança desenvolvimentista.       superação rápida do regime autoritário produziu
      Um dos resultados disso foi que parte da ve-       uma inovação substancial na vida política brasi-
lha coalizão desenvolvimentista passou a se opor         leira: obrigou o governo a tolerá-la, os meios de
ao governo. As reações dos dirigentes das empre-         comunicação de massa fiéis ao regime a noticiá-
sas estatais, duramente atingidas pela política de       la e as elites políticas a rejeitar as costumeiras
“ajuste” escolhida, foram pouco explícitas, em fun-      condicionalidades interpostas à vigência da de-
ção mesmo do caráter autoritário do regime. Sua          mocracia no Brasil. De fato, a idéia de que não
oposição manifestou-se indiretamente, pela resis-        há democracia sem participação popular e de
tência intra-burocrática aos comandos governa-           que não há participação popular sem a liberdade
mentais e pela atuação de parlamentares sintoniza-       plena de associar-se e de manifestar demandas
dos com as estatais no Congresso. Os empregados          coletivas fortaleceu-se social e politicamente pelo
das empresas estatais, pelo contrário, manifesta-        amplo apoio das classes médias e das massas po-
ram-se pública e claramente contra a política do         pulares. A Campanha das Diretas redefiniu o es-
governo, seja com demonstrações de rua, seja pela        paço legítimo da política no Brasil.
greve de protesto.                                              Em suma, apoiada pela mobilização de mas-
      Foi no empresariado privado, porém, que            sa, a oposição produziu uma crise no padrão vigen-
ocorreu a fratura mais importante da base de apoio       te de hegemonia política. Daí em diante seria ina-
do Estado. Parte das elites empresariais não apenas      ceitável um Estado que impusesse restrições à
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expressão e à organização políticas das massas po-     volvimentismo renovado e que combinasse cres-
pulares; um Estado assim só poderia se manter pela     cimento econômico e redistribuição de renda.
força e/ou pelo interesse. Dessa forma, a campanha
“Diretas Já” anunciou um novo projeto de Estado,
orientado por valores democráticos surgidos do cla-    A Nova República: democratização
mor da sociedade pela democratização.9                 e desenvolvimentismo
       Todavia, o regime militar derrotou no Con-
gresso Nacional a proposta de eleições diretas               Durante o governo Sarney11 o legado institu-
para a Presidência da República, minimizando           cional autoritário ajustou-se ao processo de de-
com isso os efeitos políticos mais profundos da        mocratização em curso, traduzindo as demandas
crise de hegemonia desencadeada pela mobiliza-         de ampliação do espaço da política e do univer-
ção de massa. O governo conseguiu, usando as           so de seus participantes reconhecidos em regime
alavancas de poder de que dispunha, contornar          político democrático. Isso implicou tanto o rompi-
parcial e provisoriamente a crise: manteve as          mento dos limites institucionais impostos à parti-
massas populares fora do processo imediato de          cipação e à organização política das classes popu-
escolha do novo presidente da República, mas           lares como a expansão dos direitos básicos do
não conseguiu evitar que boa parte de sua base         cidadão. Eliminou-se, assim, na Nova República,
político-partidária apoiasse a eleição de um go-       um dos pilares centrais do Estado varguista em
verno civil liderado pela oposição. Não há dúvi-       qualquer de suas formas de organização política.
da, porém, quanto aos efeitos conservadores da               De fato, já no início do governo de José Sar-
exclusão das massas da sucessão presidencial: a        ney alterou-se um conjunto de leis que bloquea-
oposição política, minoritária no Colégio Eleitoral,   vam a participação política popular. No primeiro
só teve condições efetivas de vencer moderando         semestre de 1985 foram instituídos: a) eleições di-
suas ambições e efetuando um pacto político com        retas, em dois turnos, para a Presidência da Repú-
dissidentes do regime autoritário. Ademais, os         blica; b) eleições diretas nas capitais dos estados,
programas dos candidatos permaneceram dentro           áreas de segurança e principais estâncias hidro-
dos limites dados pelo próprio governo e por em-       minerais; c) representação política para o Distrito
presários dissidentes. Tancredo Neves, candidato       Federal na Câmara dos Deputados e no Senado
da Aliança Democrática,10 assimilou algumas das        Federal; d) direito de voto aos analfabetos; e) li-
propostas desenvolvimentistas que contavam             berdade de organização partidária, mesmo para
principalmente com apoio no empresariado in-           os comunistas; e todo um conjunto de alterações
dustrial. O candidato de direita, Paulo Maluf, fez     menores que iam na mesma direção. Além disso,
algo semelhante em relação ao projeto neoliberal,      a legislação sofreu algumas mudanças que provo-
que tinha suporte de associações comerciais e no       caram um enorme impacto na atividade política
setor agrícola de exportação. Mesmo com tais li-       dos trabalhadores, aumentando muito seus direi-
mitações, as propostas anunciavam sua sintonia         tos de participação e liberando-os do controle go-
com as aspirações populares de implantar a de-         vernamental: a) foram readmitidos líderes sindi-
mocracia política no país.                             cais, antes demitidos por “mau comportamento”;
       A esmagadora vitória de Tancredo Neves no       b) foi cancelado o controle do Ministério do Tra-
Colégio Eleitoral mostrou bem quais eram as as-        balho sobre as eleições sindicais; e c) foi elimina-
pirações políticas dominantes na elite política bra-   da a proibição de associações inter-sindicais, o
sileira e, implicitamente, qual o projeto político     que legalizou as atividades das centrais sindicais
que prevaleceria no período presidencial seguin-       que, até então, eram apenas toleradas.
te: construir uma Nova República, uma democra-               Essas e outras mudanças nas normas que re-
cia plena, que não impusesse restrições aos mo-        gulavam a vida pública e também a tolerância go-
vimentos e às organizações populares, que tivesse      vernamental, quando do desrespeito à lei nas ma-
como orientação econômica um nacional-desen-           nifestações coletivas, permitem caracterizar a Nova
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                                   39

República como um arranjo político no qual vá-            volvimentismo democratizado: foram ampliadas as
rios segmentos sociais, inclusive as classes popu-        restrições ao capital estrangeiro, as empresas esta-
lares, puderam lutar por seus interesses e idéias         tais ganharam mais espaço para suas atividades, o
com grande liberdade de ação e organização. De-           Estado obteve mais controle sobre o mercado e os
monstra bem este ponto o crescimento extraordi-           servidores públicos e outros trabalhadores viram
nário do número de greves e dias parados duran-           aumentar sua estabilidade no emprego e vários be-
te o governo Sarney.12                                    nefícios, inclusive os de aposentadoria. Portanto, a
      O aumento da participação popular afetou a          Constituição de 1988 assegurou a permanência à
hierarquia entre os centros de poder do Estado, a         velha articulação entre o Estado e o mercado no
gestão governamental e a amplitude dos direitos           momento mesmo em que o processo de transnacio-
de cidadania. De fato, a crise de hegemonia en-           nalização e a ideologia liberal estavam para ganhar
fraqueceu a hierarquia que caracterizava o regime         uma dimensão mundial em função do colapso do
autoritário anterior. Na Nova República as pres-          socialismo de Estado.
sões da base para o topo da sociedade fortalece-                 Dessa forma, durante a presidência de José
ram a autonomia dos centros de poder que antes            Sarney, a elite política brasileira realizou comple-
costumavam ser subalternos. Portanto, o Congres-          tamente, do ponto de vista institucional, o proje-
so Nacional, o Judiciário, os governos dos estados        to da Nova República. Ainda assim, esta não se
e os partidos políticos ganharam mais latitude de         converteu em um sistema estável de poder. A eli-
ação em relação à Presidência da República.               te política dirigente fracassou em articular uma
      As mudanças nas instituições políticas e no         nova coalizão sociopolítica que sustentasse o pro-
âmbito de poder dos diversos atores culminaram na         jeto desenvolvimentista democratizado para, por
Constituição de 1988, que ampliou o poder de ação         esta via, superar a crise de Estado. A instabilidade
do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público     econômica crescente no governo Sarney sinaliza-
nos processos de decisão governamentais. Parte da         va, de fato, a fragilidade política do Estado. No
base material para exercer o poder – impostos e au-       entanto, não se tratava apenas de a elite política
tonomia financeira – foi transferida da União para os     ter ou não ter as idéias certas ou de ela fazer ou
estados e municípios, a ponto de transformar os úl-       não as alianças apropriadas para estabilizar um
timos em verdadeiras unidades federadas (não su-          novo sistema de poder. Na verdade, as circunstân-
bordinados aos estados). Em relação aos direitos de       cias em que ela operava eram muito difíceis para
cidadania, a nova Constituição estabeleceu uma re-        que pudesse ter sucesso.
gra política democrática e ampliou a proteção social             Com efeito, a elite política tentou renovar a
para todos, trabalhadores ou não. Definiu como de-        estratégia desenvolvimentista, combinando distri-
ver do Estado garantir vários direitos sociais – inclu-   buição e crescimento econômico, mas o fez em
sive alguns direitos difusos, como os relacionados à      um contexto externo muito adverso que, em vez
proteção do meio ambiente – e tornou possível que         de ser uma fonte de capitais (empréstimos estran-
cidadãos e coletividade exigissem o cumprimento           geiros ou investimentos), os drenava continua-
dessas garantias pelo poder público. Além disso, os       mente do país (como obrigações internacionais).
constituintes ampliaram drasticamente o âmbito das        Ademais, a elite dirigente enfrentou esse ambien-
atividades dos promotores públicos fazendo do Mi-         te inóspito em circunstâncias políticas muito des-
nistério Público um ramo especial do Estado, inde-        favoráveis. Ela teve de lidar com uma sociedade
pendente dos três poderes clássicos. Em sua nova          onde os movimentos sociais e as organizações co-
forma, o Ministério Público recebeu a missão de as-       letivas floresciam e demandavam enfaticamente a
segurar o cumprimento dos direitos da cidadania,          satisfação imediata de suas carências. Talvez se
garantidos em lei, inclusive contra a ação ou a omis-     possa dizer que, em uma sociedade tão esperan-
são do Estado.                                            çosa como era o Brasil da Nova República, a es-
      Ao mesmo tempo, a mesma Constituição de             cassez de recursos não dava muito espaço para
1988 emprestou uma moldura legal rígida ao desen-         negociações políticas bem-sucedidas.
40                       REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52
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      Ademais, a elite política tentou resolver os      do, se esvaiu. As taxas de investimento caíram dras-
problemas surgidos com a crise do Estado varguis-       ticamente: estancou a entrada de capital estrangei-
ta como se o Estado não tivesse perdido muito de        ro e o Estado perdeu sua capacidade de investir. O
sua autoridade política e de sua força material. Em     sistema de empresas estatais, que tinham sido a
função dessas perdas, as tentativas ortodoxas ou        vanguarda do modelo desenvolvimentista anterior,
heterodoxas13 de enfrentar a instabilidade econô-       perdeu seu dinamismo próprio passando a se su-
mica depararam-se seja com ameaças coações ex-          bordinar aos objetivos governamentais do “ajusta-
ternas decorrentes da ameaça ou da falta de paga-       mento”, que visava a produzir insumos de preços
mento de débitos, seja com o veto e/ou a adesão         baixos para combater a inflação e/ou ajudar o setor
reticente de membros da velha aliança desenvolvi-       privado a produzir saldos crescentes no comércio
mentista que sustentava o Estado, embora já sem         exterior. A desorganização tanto da economia como
articulação e objetivos definidos. Com efeito, além     das finanças públicas geraram flutuações súbitas no
dos credores privados externos, governos estran-        crescimento do PIB, uma redução do crescimento
geiros e organizações multilaterais, as atividades      econômico médio além de intensas pressões infla-
das coletividades novas ou renovadas, inspiradas        cionárias. A inflação substituiu o desenvolvimento
em ideário ora conservador ora reformista e cons-       como questão política básica daquele período.
tituídas a partir de distintas bases socioeconômicas,   Tudo isso constituiu um poderoso obstáculo para
ajudaram a moldar as políticas estatais, algumas ve-    que na Nova República o processo de democratiza-
zes estimulando e outras colocando alguns limites       ção política produzisse o seu equivalente material.
à ação do Estado. Organizações de empresários           Assim, embora tenha havido expansão dos serviços
agrícolas e de proprietários de terra, por exemplo,     públicos de bem-estar, na década de 1980 os brasi-
restringiram o programa de reforma agrária a um         leiros mais pobres não aumentaram sua participa-
mínimo e, por sua atuação junto ao Congresso            ção na renda nacional.
Constituinte, conseguiram assegurar amplamente                Ademais, as dificuldades de estabilizar uma
os direitos de posse da terra. Em sentido oposto,       nova forma de Estado estimularam o crescimento
em 1989, ano da sucessão presidencial, fortes ma-       no interior da elite brasileira de um novo projeto
nifestações organizadas pela Central Única de Tra-      político para o país. Com efeito, na medida em
balhadores(CUT) e por sindicatos levaram o Con-         que a elite econômica se tornava insegura e as-
gresso Nacional a não aprovar na íntegra o              sustada com as iniciativas reformistas do governo
chamado Plano Verão visto que ele tentava estabi-       da Nova República, sobretudo com as políticas
lizar a moeda reduzindo os salários reais dos traba-    heterodoxas de estabilização monetária, as idéias
lhadores. Seguramente, a eficácia da atuação dos        econômicas liberais passaram a se tornar relevan-
movimentos e das organizações populares e das           tes para ela. Além de se mostrarem ineficientes
camadas médias na Nova República podem ser ex-          para restringir a inflação e retomar o crescimento
plicadas, em boa parte, pela fragilidade material do    econômico de forma sustentada, as políticas hete-
Estado e pela articulação frouxa de sua base de         rodoxas foram interpretadas como ameaças à pro-
sustentação social.                                     priedade privada, pois restringiam a liberdade de
      Em síntese, a Nova República tornou-se um         mercado e ameaçavam os contratos. Daí em dian-
sistema instável de dominação política, em que          te, a elite empresarial mobilizou-se para moldar as
não se articulavam bem a dimensão institucional,        estruturas e controlar as ações do Estado orientan-
a esfera sociopolítica e as condições econômicas.       do-se, pelo menos parcialmente, pelas concep-
      Essa instabilidade resultou, de um ponto de       ções neoliberais que vinham sendo difundidas,
vista material, numa trajetória decadente de desen-     desde os anos de 1970, pelas instituições econô-
volvimento. O Estado continuou a proteger o mer-        micas multilaterais, por think tanks e governos
cado interno, mas o dinamismo econômico ante-           dos países centrais.14 Dessa maneira, sobretudo de
rior, que tinha permitido ao Brasil ter uma das         1987 1988 em diante, a elite econômica passou a
maiores taxas de crescimento econômico do mun-          confrontar o intervencionismo do Estado, exigin-
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                                  41

do desregulamentação, melhor acolhida para o             governo faria uma redistribuição de renda deslo-
capital estrangeiro, privatização das empresas es-       cando recursos do topo para a base da sociedade,
tatais etc. Assim, embora o liberalismo econômico        realizaria uma “verdadeira” reforma agrária e as
no Brasil só tenha se tornado politicamente hege-        empresas estatais seriam preservadas, embora sua
mônico nos anos de 1990, essa hegemonia come-            administração devesse ser democratizada. Em
çou a ser socialmente construída ainda na segun-         suma, o reformismo de esquerda visava a elimi-
da metade da década de 1980.                             nar, pelo menos em parte, a “exclusão social”, ra-
       Entretanto, mesmo que a retórica liberal te-      dicalizando o processo de democratização ao lhe
nha sido absorvida pelos meios de comunicação            dar bases materiais adequadas. No pólo oposto,
e tenha se difundido entre as camadas médias da          dando menos de 5% dos votos aos candidatos do
população, isso ocorreu em menor proporção na            PMDB e do PFL o eleitorado ratificou o fracasso
elite política, entre os trabalhadores organizados       da elite política em converter a Nova República
e servidores públicos, que continuaram a defen-          numa forma estável de domínio político.
der os ideais de “ propriedade nacional” e “regu-              O processo eleitoral foi um momento de in-
lação estatal”.                                          flexão nas referências ideológicas que polarizavam
       Eis porque a Constituição de 1988, que ma-        o sistema partidário. A partir da campanha de 1989,
terializou o projeto político da Nova República –        o confronto entre democracia e autoritarismo, que
democratização política e desenvolvimentismo de-         caracterizava o sistema partidário desde a liberali-
mocratizado – tornou-se um alvo para os ataques          zação política do regime militar, tornou-se menos
da elite empresarial e de seus líderes políticos e in-   relevante. As forças partidárias reorganizaram-se de
telectuais e, inversamente, converteu-se em trin-        acordo com novas polarizações, e, nesse processo,
cheira para as organizações de trabalhadores, ser-       sobretudo as relações Estado/mercado ganharam
vidores, funcionários das companhias estatais e da       espaço. Os partidos foram magnetizados pelas
classe média assalariada ligada ao serviço público.      idéias econômicas liberais, de um lado, e pelo de-
       A eleição direta para presidente da Repúbli-      senvolvimentismo democratizado, de outro. O Par-
ca em 1989 sumariou os resultados políticos do           tido da Social Democracia Brasileira (PSDB), dissi-
período anterior. Depois de quase trinta anos de         dência do PMDB organizada como partido em
interrupção de disputas diretas para a Presidência,      1988, inclinou-se decisivamente para o liberalismo,
a eleição foi realizada com total liberdade de ex-       como enfatizou seu candidato Mário Covas ao exi-
pressão e reunião, constituindo um dos pontos            gir para o país um “choque de capitalismo”. O Par-
mais altos de participação das classes populares e       tido Democrata Cristão (PDC) e o Partido Liberal
das camadas médias na política brasileira. Certa-        (PL) também adotaram um programa liberal. O
mente, foi a crescente presença das classes popu-        PDS, partido do extinto regime militar, já havia se
lares e média na esfera pública que abriu cami-          adaptado às idéias do livre mercado desde a crise
nho para o desempenho eleitoral dos candidatos           de 1983/ 84, embora elas tenham sido sufocadas
da esquerda no primeiro turno da eleição presi-          na disputa eleitoral, tal como na sucessão presi-
dencial e, especialmente, para o ex-operário me-         dencial anterior, pelo populismo conservador de
talúrgico e líder sindical Luiz Inácio da Silva (Lula)   seu candidato Paulo Maluf. E, apesar da retórica
no segundo turno. Mesmo sendo candidato de               nacional-desenvolvimentista do candidato do PFL,
um partido tão pequeno como o Partido dos Tra-           Aureliano Chaves, o partido vinha apresentando,
balhadores (PT), Lula foi derrotado apenas por           desde a Constituinte, uma crescente inflexão libe-
uma pequena margem de votos.15 Sublinhe-se,              ral e não lhe deu apoio significativo. Na direção
ainda, que este ótimo resultado foi obtido sem           contrária, o PMDB, o PDT e o PT radicalizaram o
mascarar as intenções reformistas do PT. Lula pro-       desenvolvimentismo em sua versão nacionalista e
meteu durante sua campanha uma ruptura efetiva           distributivista.
do padrão autocrático de dominação social: as                  A campanha eleitoral de 1989 mostrou tam-
classes populares seriam conduzidas ao poder, o          bém outra polarização ideológica: a oposição en-
42                      REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52
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tre dois tipos diferentes de ideais democráticos.      indústria doméstica. Finalmente, deu-se seqüência
Embora todos os partidos fossem favoráveis à de-       à política de integração regional com os países da
mocracia, aqueles que tinham a liberalização eco-      fronteira sul, instituindo-se o Mercosul (1991), com
nômica no centro de sua agenda sinalizavam a           vistas a ampliar o mercado para os produtos do-
aceitação da democracia representativa, mesmo          mésticos de seus participantes.
quando questionavam a forma presidencialista de              Essas medidas significavam o descarte da
governo. No outro pólo, o da esquerda, enfatiza-       estratégia anterior de desenvolvimento, vigente
va-se o caráter limitado da democracia represen-       plenamente até o início dos anos de 1980, cuja
tativa (o de só dar espaço para atuação popular        pretensão era construir uma estrutura industrial
nos períodos eleitorais) e predominava a idéia de      completa e integrada, usando o Estado como es-
avançar em direção a formas mais participativas        cudo protetor ante a competição externa e como
de democracia.                                         alavanca do desenvolvimento industrial e da em-
      Em suma, com a vitória de Fernando Collor        presa privada nacional.
de Mello – político identificado com o neolibera-            Essa reorientação estratégica, embora sintoni-
lismo e pouco simpático aos experimentos parti-        zada com as novas inclinações liberais dos empre-
cipativos da democracia –, as eleições presiden-       sariado local e com as tendências ideológicas domi-
ciais de 1989 tornaram-se o marco divisório entre      nantes no plano internacional, foi insuficiente para
dois momentos da transição política brasileira,        soldar um novo pacto político que superasse a cri-
quais sejam, o período em que predominou a de-         se de hegemonia iniciada em 1983. Não obstante
mocratização política e o que teve como seu im-        Collor parecesse ser um César auspicioso surgido
pulso básico a liberalização econômica.                das fissuras da ordem política em crise com a pro-
                                                       messa de superá-la, seu governo, em vez disso,
                                                       contribuiu para aprofundá-las drasticamente, frus-
A nova hegemonia liberal e suas                        trando as expectativas das forças políticas em cena.
conseqüências16                                        Para estabilizar a moeda o Plano Collor congelou
                                                       preços, confiscou provisoriamente e reduziu parte
      O governo Collor confirmou, em parte, a in-      da riqueza financeira das classes médias e empre-
flexão liberal manifestada no embate eleitoral de      sariais. Assim, além de atingir a riqueza material,
1989. Contribuiu para danificar o quadro institu-      ameaçou a segurança jurídica da propriedade priva-
cional nacional-desenvolvimentista e redirecionar      da. Ademais, o governo submeteu as organizações
a sociedade brasileira em um sentido anti-estatal      tradicionais dos empresários a ataques verbais sis-
e internacionalizante.                                 temáticos organizando, ao mesmo tempo, grupos
      Ainda assim, embora dando ao Estado o im-        de empresários para apoiá-lo na implementação de
pulso inicial para conformar uma nova estratégia de    suas políticas. Também procurou exercer o poder
desenvolvimento, o governo Collor não conseguiu        dissociado da classe política e de seus mecanismos
vencer a crise de Estado experimentada pela socie-     tradicionais de sobrevivência; reduziu as despesas
dade brasileira desde o início da década de 1980.      do Estado de forma arbitrária por meio da demis-
      Durante o período Collor, as licenças e as       são em massa de servidores, desorganizando a ad-
barreiras não tarifárias à importação foram suspen-    ministração pública; e tentou enfraquecer as orga-
sas e as tarifárias alfandegárias foram redefinidas,   nizações      oposicionistas     de    trabalhadores
criando-se um programa para sua redução progres-       estimulando organizações alternativas ligadas ao
siva ao longo de quatro anos.17 Ao mesmo tempo,        governo. No campo internacional, Collor também
programou-se a desregulamentação das atividades        teve dificuldades. Apesar de sua orientação liberal
econômicas e a privatização das companhias esta-       e internacionalizante, a primeira equipe econômica
tais que não estivessem protegidas pela Constitui-     do governo tentou postergar o fim da moratória
ção, afim de recuperar as finanças públicas e redu-    herdada do período Sarney e enfraquecer a posição
zir aos poucos o papel do Estado no incentivo à        dos bancos estrangeiros privados na negociação da
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                                      43

dívida externa. Essa estratégia contribuiu para en-      de aumento no volume das aplicações financeiras
fraquecer ainda mais o suporte da elite econômica        nos países centrais e em direção aos mercados
brasileira e estimulou o governo dos Estados Uni-        “emergentes”, o “alívio” produzido nas carteiras
dos a opor-se a ele e a proteger o sistema bancário      dos credores em função do Plano Brady de rene-
norte-americano. As dificuldades externas só dimi-       gociação da dívida externa e o aperfeiçoamento
nuíram quando uma equipe econômica muito mais            das políticas de liberalização econômica nos países
liberal tomou posse, em 1991.18                          periféricos.21 De qualquer forma, “depois de quase
      Nesse contexto político tão perturbado é           dez anos de transferências de recursos líquidos ne-
que Fernando Collor foi acusado de ser o chefe           gativos, a América Latina recebeu transferências
oculto de um esquema governamental de corrup-            positivas do resto do mundo. A magnitude dos flu-
ção. Depois de ser investigado e processado pelo         xos de capital líquido para a nação cresceu drasti-
Congresso, renunciou à Presidência da República          camente em 1992 e 1993, ultrapassando 20 bilhões
para evitar o impeachment.19 Em suma, Collor fra-        de dólares” (Edwards, 1995, p. 82).
cassou como César.20 Suas ações acirraram a crise               O grande afluxo de capital para o Brasil,22 os
política. Em vez de dar às forças políticas em dis-      legados do período Collor (avanço do liberalismo
puta os meios para resolver de forma negociada           econômico, no plano ideológico e institucional, e
seus próprios impasses, ele tentou impor-lhes            rejeição a soluções autocráticas para a crise), a
uma solução alternativa “de cima para baixo”.            exacerbação da instabilidade político-econômica
Tentou restaurar de forma autocrática a estabilida-      durante o período Itamar Franco e o avassalador
de da moeda – base das relações de troca e da au-        crescimento do prestígio popular de Luiz Inácio
toridade do Estado sobre o mercado – em uma              da Silva, candidato de esquerda à Presidência de
sociedade que, embora mal alinhavada politica-           República, foram algumas das condições e, ao
mente, já havia avançado muito no caminho da             mesmo tempo, alavancas poderosas para a nova
democratização. Com efeito, o impeachment do             tentativa, realizada em 1994, de superar a crise de
presidente Collor de Mello dificilmente teria ocor-      hegemonia que minava a sociedade brasileira
rido se não houvesse avançado tanto na socieda-          desde o início da década de 1980.23
de o sentimento/concepção de que o governo e o                  As condições e as características do sistema ins-
Estado deviam obedecer a limites políticos e mo-         titucional brasileiro especificam a fortuna com que se
rais muito mais estreitos do que anteriormente.          defrontaram algumas lideranças políticas que, bem
Ele também não teria ocorrido se a capacidade de         situadas no seio do Estado e temerosas de perder o
ação autônoma dos vários agrupamentos sociais e          seu controle, tiveram virtú suficiente para aproveitar
dos vários centros de poder do Estado não tives-         a ocasião e negociar a associação entre partidos de
se crescido tanto. As manifestações de dezenas de        centro e de direita em torno da continuidade das re-
milhares de jovens “caras pintadas” que exigiram         formas liberais, da estabilização da economia e da
nas ruas o impeachment, os testemunhos corajo-           tomada do poder político central. Tudo isso foi ma-
sos de trabalhadores subalternos contra o chefe          terializado nos lançamentos bem-sucedidos do Pla-
de Estado, a conduta autônoma da imprensa, do            no Real e da candidatura à Presidência da Repúbli-
rádio e da televisão, assim como do Congresso e          ca de seu articulador, o então Ministro da Fazenda,
do Judiciário são expressões – cada uma a seu            Fernando Henrique Cardoso.
modo – do processo de democratização política                   A referência à fortuna e à virtú permite reto-
do país.                                                 mar cum grano salis a idéia de “momento maquia-
      Embora este governo tenha fracassado na            veliano”, de John Poccok, que enfatiza o papel da
tentativa de superar a crise brasileira, desde o final   liderança na manipulação criativa das oportunida-
dos anos de 1980 as condições econômicas inter-          des legadas pela fortuna para fazer prevalecer os
nacionais vinham se tornando mais positivas para         interesses gerais da comunidade política ameaça-
os países da periferia. Alguns fatores e decisões        da pela confrontação entre interesses particularis-
políticas possibilitaram essa reversão, como o gran-     tas, reconstruindo com isso o Estado.24
44                       REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52
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      Segundo Sola e Kugelmas (1996), o próprio         de 1995 os representantes de um novo sistema
Plano Real teria sido a construção desse “princí-       hegemônico de poder assumiriam o comando de
pio de universalidade [...] capaz de assegurar a su-    um Estado ancorado numa moeda provavelmente
peração da particularidade e da contingência ine-       estável. Nada parecia faltar para que eles pudes-
rentes ao comportamento descontrolado das               sem completar bem a tarefa de moldar a socieda-
forças em conflito”, para retomar os termos se-         de ao ideário econômico liberal.
gundo os quais Malloy e Connaghan (1996) defi-                 A partir de 1995, os novos governantes trata-
nem o momento maquiaveliano. Seguindo esse              ram de eliminar os resíduos do Estado varguista e
raciocínio, a utilização criativa da Revisão Consti-    de construir novas formas de regulamentar o mer-
tucional25 em curso no sentido de gerar condições       cado, seguindo um sistema multifacetado de
fiscais mínimas para a estabilização (Fundo Social      idéias, cujo denominador comum era um liberalis-
de Emergência, votado em fevereiro de 1994); a          mo econômico moderado. As características cen-
instituição de uma moeda paralela, a URV (Unida-        trais desse ideário podem ser assim resumidas: o
de de Referência Variável), unidade de conta que        Estado deveria transferir quase todas as suas fun-
generalizou a indexação e sincronizou preços e          ções empresariais para a iniciativa privada; teria
salários, criando uma espécie de “hiperinflação de      que expandir suas funções reguladoras e suas po-
laboratório”; e a substituição, no dia 1º de julho      líticas sociais; as finanças públicas deveriam ser
de 1994, da URV pelo real, nova moeda ancora-           equilibradas e os incentivos diretos às companhias
da, mas não igual, ao dólar; tudo isso, além de         privadas seriam modestos; haveria também restri-
dezenas de regulamentações específicas, teria           ção aos privilégios existentes entre os servidores
produzido a estabilidade.                               públicos; e o país deveria intensificar sua articula-
      Contudo, o Plano Real não foi senão um            ção com a economia mundial, embora dando
passo, certamente essencial, na construção do           prioridade ao Mercosul e às relações com os de-
“princípio de universalidade” que permitiu supe-        mais países sul-americanos.
rar a conjuntura crítica anterior. Embora tenha                Esse conjunto básico de idéias liberais mate-
sido uma fórmula técnica brilhante para estabili-       rializou-se em iniciativas que mudaram drastica-
zar a moeda, cujo sucesso foi essencial também          mente as relações anteriores entre mercado/Esta-
do ponto de vista eleitoral, o Plano foi apenas         do e a ordem de prioridades do Estado em relação
uma peça subordinada do “momento maquiave-              aos segmentos socioeconômicos, tanto em termos
liano”, cujo elo principal foi a aliança política en-   patrimoniais como institucionais. O alvo central
tre partidos de centro e direita em torno de um         dessas políticas era solapar alguns dos fundamen-
projeto de tomada de poder e de reconstrução do         tos legais do Estado nacional-desenvolvimentista,
Estado em uma perspectiva liberal. O próprio pa-        em parte assegurados pela Constituição de 1988,
pel da liderança, sua virtú, embora crucial foi li-     e diminuir a participação do Estado nas atividades
mitado, na medida em que deu o acabamento fi-           econômicas. Neste ponto, o governo de Cardoso
nal a um processo de construção da hegemonia            foi bem-sucedido, já que os projetos de reforma
liberal cujos alicerces tinham sido erguidos, no        constitucional e infra-constitucional submetidos
plano societário, durante a segunda metade da           ao Congresso foram quase todos aprovados, entre
década de 1980.                                         os quais se destacaram a) o fim da discriminação
      O extraordinário sucesso do Plano Real, a         constitucional ao capital estrangeiro; b) a explora-
eleição de Fernando Henrique Cardoso para a Pre-        ção, o refino e o transporte de petróleo e gás, mo-
sidência da República já no primeiro turno, a es-       nopolizados pela companhia estatal de petróleo
colha de um Congresso Nacional onde o chefe de          (Petrobrás), foram transferidos para a União e
Estado pode construir uma aliança partidária am-        convertidos em concessão do Estado às empresas,
plamente majoritária, a vitória de políticos aliados    principalmente a estatal, que manteve grandes
do presidente em quase todos os estados – tudo          vantagens em relação a outras concessionárias
isso já permitia antever que no dia 1º de janeiro       privadas; e c) o Estado foi autorizado a conceder
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                                    45

os direitos de exploração dos serviços de teleco-        raram conflitos reiterados sobre a política econô-
municação (telefonia fixa e celular, exploração de       mica e acabaram dando um caráter híbrido às
satélites etc.) a companhias privadas (anterior-         ações do Estado. No se interior havia, de um lado,
mente as empresas públicas tinham o monopólio            uma corrente liberal fundamentalista orientada ba-
dos serviços).                                           sicamente para a estabilização monetária e com-
       Além de promover esse conjunto de reformas        prometida com a promoção de uma economia de
constitucionais, o governo Fernando Henrique Car-        livre mercado e, de outro, uma tendência liberal-
doso não só estimulou o Congresso a aprovar a lei        desenvolvimentista, mais inclinada a equilibrar es-
complementar que regulava as concessões de ser-          tabilização monetária com um crescimento com-
viços públicos à iniciativa privada, autorizada pela     petitivo da economia local mediante a intervenção
Constituição (eletricidade, estradas, ferrovias etc.),   moderada do Estado.
mas também conseguiu a aprovação de uma lei de                  Ao longo do primeiro mandato de Fernando
proteção aos direitos de propriedade industrial e        Henrique Cardoso, a primeira versão de liberalismo
intelectual, tal como recomendado pela OMC e,            predominou, servindo de orientação e dando con-
ainda, efetuou um enorme programa de privatiza-          sistência à ação dos que dirigiram a política econô-
ções e venda de concessões, preservando o pro-           mica governamental.27 Os fundamentalistas tenta-
grama de abertura comercial já implementado. De          ram obter a estabilização monetária com políticas
forma similar, os governos dos estados realizaram
                                                         de câmbio sobrevalorizado,28 juros altos e ajuste fis-
programas de privatização e concessões, mas em
                                                         cal brando. A segunda corrente liberal, a desenvol-
menor escala.
                                                         vimentista, não tinha a consistência da primeira,
       Outra área importante atingida por medidas
                                                         pois não possuía um texto programático nem orien-
disciplinares foram as finanças públicas. Fixaram-
                                                         tava sistematicamente a ação governamental.29 En-
se limites máximos para todos os pagamentos de
                                                         tretanto, o liberal-desenvolvimentismo inspirou al-
pessoal, as dívidas dos estados e municípios fo-
                                                         gumas políticas destinadas a contrabalançar as
ram renegociadas e foram proibidos, por muito
                                                         conseqüências negativas da ortodoxia liberal para
tempo, novos empréstimos e renegociações junto
                                                         setores específicos da economia ou mesmo promo-
ao governo Federal.26
                                                         ver o crescimento de algumas atividades produtivas
       Esse conjunto de iniciativas parecia ter ma-
terializado o código comum de um novo bloco              no país. Deve-se salientar que esse tipo de desen-
hegemônico de dominação, adotado por políticos           volvimentismo liberal, em lugar de visar à constru-
e burocratas com comando sobre o poder Execu-            ção de um sistema industrial nacionalmente integra-
tivo, pela grande maioria de parlamentares, por          do, reivindica que a produção doméstica tenha
empresários dos mais variados setores, pela mídia        uma participação significativa no sistema econômi-
etc. e, gradualmente, dominou a classe média e           co mundial. Ele só aceita formas bem definidas de
parte do sindicalismo urbano e das massas popu-          intervenção estatal no sistema produtivo, como po-
lares. Com efeito, as medidas legislativas foram fa-     líticas industriais setoriais, desde que limitadas no
cilmente aprovadas pelo Congresso Nacional,              tempo e no montante de subsídios. Não deseja
apesar da oposição de uma minoria da esquerda            substituir importações a qualquer custo, mas au-
portadora das bandeiras da “defesa do patrimônio         mentar a competitividade de alguns setores econô-
público” e da “economia nacional”. As privatiza-         micos e, no máximo, reduzir a dependência exter-
ções e as vendas de concessões também foram              na pelo “adensamento das cadeias produtivas”,
bem-sucedidas e tiveram apoio popular, apesar            introduzindo novos elos no tecido industrial, sem
das disputas forenses e das manifestações de rua         perder de vista, porém, a necessidade de equiparar
promovidas por organizações de esquerda.                 sua competitividade aos padrões internacionais.30
       Contudo, nesse novo bloco político hegemô-               Embora durante o primeiro governo Cardoso
nico, vinculado pelo já mencionado liberalismo           a sobrevalorização do câmbio e as altas taxas de ju-
econômico moderado, fortes divisões internas ge-         ros tenham produzido estabilidade monetária, tam-
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bém conduziram a economia brasileira a um dese-         cionais e o governo agiu de forma semelhante, ou
quilíbrio externo bastante sério. Para reduzi-lo o      seja, manteve a estabilidade da moeda elevando
governo limitou um pouco a apreciação cambial e         drasticamente os juros para preservar as reservas e
acentuou a elevação dos juros com dois objetivos        refrear tanto a atividade econômica interna como o
complementares: refrear a atividade econômica do-       desequilíbrio externo. Essas medidas conseguiram
méstica e as importações, diminuindo em conse-          preservar o valor da moeda em relação ao dólar e
qüência o déficit comercial, e atrair capitais do Ex-   manter a inflação em nível muito baixo, embora
terior para financiar o desequilíbrio externo do        não reduzissem a fragilidade financeira externa do
país, mantendo assim um nível de reservas alto o        país, pois aumentavam a dívida pública e não re-
bastante para ancorar a nova moeda nacional. Esse       duziam o déficit de transações correntes com o Ex-
programa de estabilização sustentava-se numa per-       terior. Além disso, elas restringiram muito o cresci-
cepção otimista do mercado financeiro global, que       mento do produto nacional bruto e elevaram
via sua liquidez como permanente e capaz de             bastante as taxas de desemprego.31
equilibrar com empréstimos e investimentos dese-              A fragilidade financeira do país em relação
quilíbrios ocasionais no balanço de transações cor-     ao Exterior acabou cobrando um preço alto de-
rentes do Brasil com o Exterior, caso o desempe-        mais. A política cambial brasileira teve de ser alte-
nho econômico do país fosse adequado.                   rada no início do segundo mandato de FHC para
      A crise financeira do México, em dezembro         evitar o esgotamento das reservas em moeda es-
de 1994, mostrou pela primeira vez os riscos de         trangeira que ancoravam o real. Sublinhe-se ainda
adequar a política macroeconômica à orientação          que a mudança ocorreu apesar de o governo ter
liberal fundamentalista. De fato, tal crise deixou      assinado acordo com o FMI em novembro de 1998
claro que, dependendo das circunstâncias inter-         e ter obtido grande empréstimo dos Estados Uni-
nacionais, poderia ser difícil obter capital no Ex-     dos para se defender com mais segurança da fuga
terior para financiar um desequilíbrio acentuado        de capitais externos.
nos balanços comerciais e de serviços. Apesar                 A substituição do antigo nacional-desenvol-
dessa advertência e embora o governo tenha ado-         vimentismo por uma estratégia liberal de desen-
tado algumas políticas compensatórias para prote-       volvimento redirecionou o Estado em relação a
ger a economia doméstica, sua orientação ma-            vários setores socioeconômicos. Ressalte-se a pro-
croeconômica básica foi mantida até a crise             pósito que, desde o lançamento do Plano Real até
cambial de janeiro de 1999.                             janeiro de 1999, a estratégia liberalizante privile-
      Essa obstinação contribuiu para aumentar          giou nitidamente a esfera financeira ante as ativi-
muito a fragilidade financeira externa da econo-        dades produtivas e comerciais por meio das polí-
mia brasileira e a debilidade do Estado ante os         ticas de juros altos e câmbio sobrevalorizado.
credores privados, pois levou ao endividamento          Estas duas políticas funcionaram o tempo todo
crescente para cobrir os desequilíbrios gerados         como bombas de sucção dos recursos do Estado
pela política macroeconômica. Como resultado da         e das atividades produtivas e comerciais para os
dependência financeira, as mudanças nas condi-          detentores, locais ou estrangeiros, de capital fi-
ções do mercado internacional afetaram cada vez         nanceiro. Isso mostra haver nítida afinidade entre
mais, pela variação do fluxo de capitais, o equilí-     o predomínio do fundamentalismo liberal no blo-
brio das contas externas do país e expuseram a          co político hegemônico e a fase da “financeiriza-
moeda nacional a ataques especulativos tenden-          ção da riqueza” que caracteriza o capitalismo
tes a desvalorizá-la. Assim, depois da crise mexi-      mundial contemporâneo.32
cana, a crise financeira asiática de 1997 e a mora-           Entretanto, a transformação mais distintiva
tória russa de agosto de 1998 abriram caminho a         ocorrida na relação Estado/economia foi terem as
tais ataques especulativos.                             empresas estatais deixado de ser os suportes da
      Em todas essas situações críticas o país per-     gestão econômica governamental. Além de a maio-
deu uma grande quantidade de reservas interna-          ria das estatais ter sido privatizada, algumas áreas
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                                47

antes atendidas pela administração direta do Estado     em torno da assinatura de acordos de livre-comér-
passaram aos cuidados de empresas privadas (ma-         cio com os Estados Unidos e a União Européia –
nutenção de estradas de rodagem, por exemplo). A        os assuntos agrícolas e a luta contra as políticas
diminuição drástica das funções empresariais do Es-     protecionistas dos países centrais tornaram-se um
tado não eliminou o intervencionismo estatal, mas       ponto central da diplomacia brasileira.
o modificou profundamente. O Estado expandiu                  As mudanças na orientação do Estado foram
suas funções normativas e de controle por meio de       tão profundas que romperam um dos parâmetros
agências reguladoras setoriais (telecomunicações,       básicos da velha aliança nacional-desenvolvi-
eletricidade, petróleo e gás, por exemplo) e mante-     mentista: a propriedade agrária deixou de ser in-
ve grande parte de sua capacidade de moldar a ati-      tocável. A própria estabilização monetária redu-
vidade econômica pelo financiamento de longo            ziu os preços da propriedade territorial, antes
prazo às empresas privadas e pela compra de bens        muito usada como reserva de valor. Além disso,
e serviços.                                             não só por iniciativa do próprio governo, mas
       Também as companhias privadas nacionais          também por pressão social do Movimento dos
deixaram de ser o foco privilegiado das políticas       Trabalhadores sem Terra (MST), da Confederação
estatais. Não só as companhias estrangeiras foram       Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (Contag) e
constitucionalmente equiparadas às nacionais,           da Igreja Católica, durante os dois mandatos de
mas também a orientação estatal básica foi a de         Cardoso desenvolveu-se um grande programa
atrair ao máximo os investimentos externos e a de       de reforma agrária. Este incluiu desapropriações de
promover sua associação com as empresas lo-             propriedades improdutivas e o assentamento
cais.33 Além dessa orientação geral (tanto da União     de centenas de milhares de famílias de trabalha-
quanto dos estados), o governo federal tentou           dores agrícolas sem terra, assim como um con-
atrair, sistematicamente, as companhias multina-        junto de reformas institucionais e medidas espe-
cionais para ramos da indústria como o automoti-        cíficas que elevaram a taxação sobre terras
vo, o de telecomunicações etc., modulando as leis       improdutivas e aumentaram o controle do poder
tributárias e o sistema de financiamento e toman-       público sobre a propriedade fundiária, inclusive
do iniciativas para “vender” a imagem do Brasil         pela retomada da posse sobre imensas áreas ile-
como um excelente destino para o capital estran-        galmente apropriadas por grileiros.
geiro. É possível que isso tenha ajudado o Brasil
a se tornar um dos maiores destinos do investi-
mento estrangeiro direto no mundo, embora sem-          Liberalismo, desenvolvimentismo
pre ultrapassado, entre os países “emergentes”,         e democracia
pela China.34
       Outra mudança importante introduzida na                Embora a reeleição de Fernando Henrique
relação Estado/economia é que, desde 1995, ten-         Cardoso em 1998 e a manutenção quase total de
deu a desaparecer a prioridade política antes           seu suporte político (no Congresso e entre os go-
concedida ao desenvolvimento das manufaturas            vernadores) tenham confirmado a aquiescência
industriais. No âmbito de BNDES, principal agen-        da maioria em relação ao programa liberal, o go-
te financeiro da industrialização brasileira, foi no-   verno perdeu sua força política anterior, pois dei-
tável a diversificação das atividades econômicas        xou de ter controle sobre sua política econômica
atendidas. Além de manufaturas, foram financia-         (foi levado a desvalorizar da moeda em janeiro de
das empresas comerciais, agrícolas etc. A agricul-      1999 mesmo depois de recorrer ao apoio do FMI
tura empresarial, sobretudo, foi diretamente be-        e do governo norte-americano) e foi constrangido
neficiada pelo governo federal e teve seus              por enormes dificuldades econômicas.
interesses de expansão convertidos em demanda                 É verdade que o governo teve sucesso na
prioritária da política externa brasileira. Desde       substituição do regime de câmbio semi-fixo e so-
1996 – quando ganharam impulso as discussões            brevalorizado pelo câmbio flutuante e no manejo
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da política monetária. A estabilidade da moeda foi    vimentista. Com efeito, desde o começo de 2000
mantida e, depois da estagnação de 1999, houve        o Ministério do Desenvolvimento, o da Ciência e
um crescimento de 4% do PIB em 2000. Entretan-        Tecnologia, a Secretaria do Planejamento e até a
to, o apoio do FMI foi dado e renovado em troca       Presidência da República manifestaram sinais des-
do compromisso de o governo fazer um severo           se tipo de transformação, mais acentuada ainda
ajuste fiscal, objetivando produzir um grande su-     com a aproximação das eleições de 2002. Mesmo
perávit anual nas contas públicas (sem considerar     assim, os portadores do fundamentalismo liberal
os juros devidos), um superávit grande o bastante     mantiveram o controle sobre as principais alavan-
para permitir reduzir a proporção da dívida públi-    cas do poder – o Ministério da Fazenda e o Ban-
ca em relação ao PIB.35 Além disso, a estagnação      co Central – e por meio delas preservaram a prio-
internacional de 2001 e 2002, a crise da Argentina    ridade para a estabilização, embora tenham
e o risco político associado à eleição presidencial   adotado a política fiscal, em lugar da política cam-
de 2002 produziram constrangimentos adicionais        bial, como instrumento central para conservá-la.
às políticas governamentais. Houve, de fato, uma      Em suma, o bloco hegemônico manteve suas di-
importante redução dos fluxos de investimentos        visões internas, embora atenuadas, e seus confli-
externos diretos (IDE) para o Brasil e dificuldades   tos internos foram deslocados da questão cambial
para rolar as dívidas externa e interna.36            para assuntos fiscais. Como conseqüência, as de-
      Assim, uma vez mais, revelaram-se a depen-      cisões governamentais tenderam a ser lentas e
dência externa e a fragilidade econômica do Bra-      não sistemáticas.
sil, apesar da nova política de câmbio flutuante.           As dificuldades econômicas e políticas men-
Esta não pode proteger plenamente a economia          cionadas contribuíram também para enfraquecer
da conjuntura internacional negativa e das incer-     a coalizão política que governava o Estado du-
tezas políticas em função das enormes dívidas ex-     rante o segundo governo Cardoso. No seu pri-
terna e interna produzidas pela política de estabi-   meiro mandato, o presidente FHC tinha um alto
lização do primeiro governo Cardoso e do              prestígio popular, originado principalmente da
crônico déficit brasileiro nas suas transações cor-   súbita estabilização monetária, o que reforçou os
rentes com o exterior. As contramedidas do Ban-       poderes presidenciais usuais e o ajudou muito a
co Central – aprofundar o ajuste fiscal, aumentar     lidar com a ampla coalizão de partidos governis-
as taxas de juros e assinar novos acordos com o       tas para executar o programa reformista liberal.
FMI –, embora protegessem a solvência financei-       Além disso, a estabilidade monetária conseguida
ra do Brasil, reduziram o crescimento do PIB em       pelo Plano Real e a política de contenção econô-
2001 e 2002 a menos de 2% anuais.37                   mica que predominou no primeiro governo de
      A nova gestão macroeconômica surgida a          Fernando Henrique Cardoso restringiu a ação
partir da crise cambial de janeiro de 1999 implicou   dos movimentos e das organizações das massas
algumas mudanças nas relações Estado/setores          populares. A hegemonia liberal também dificul-
econômicos. As atividades não financeiras tende-      tou a mobilização dos sindicatos que se mantive-
ram a ganhar mais relevância e o governo estimu-      ram ideologicamente vinculados a idéias estatis-
lou de diferentes maneiras os segmentos econômi-      tas ou social-democratas. Ademais, a propagação
cos que podiam ajudar a produzir superávit no         do apoio popular ao governo facilitou a adoção
comércio exterior. Durante do segundo governo         de um estilo tecnocrático de exercer o poder e
Cardoso até foi dada atenção e alguma ajuda às        reforçou as dificuldades de participação política
companhias que tinham certa probabilidade de          popular fora dos períodos eleitorais. É notável
competir internacionalmente como multinacionais.      que, apesar dessas dificuldades, tenha aumenta-
      Essas mudanças podem ser vistas como si-        do muito a mobilização dos trabalhadores agríco-
nais de transformação política dentro do bloco        las em favor da reforma agrária, forçando o go-
hegemônico. Este se inclinou de forma irregular e     verno a desenvolver o amplo programa de
hesitante em direção a seu pólo liberal-desenvol-     reforma agrária antes mencionado.
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                               49

      No segundo governo Cardoso, entretanto, o       Cardoso seja aproximando-se do centro do espec-
presidente perdeu muito prestígio, principalmen-      tro partidário. De fato, além do PT se compor
te porque o governo não manteve as promessas,         com alguns partidos de esquerda, aliou-se ao Par-
desvalorizando a moeda em janeiro de 1999 e de-       tido Liberal e fez de um empresário, senador por
sencadeando a desconfiança na sua capacidade          este partido, o seu candidato à vice-presidente.
de manter a estabilidade monetária. A crise cam-            Em suma, nas eleições de 2002, o conjunto
bial afastou, ao mesmo tempo, a possibilidade de      das forças políticas tentou posicionar-se na ala es-
o governo realizar em tempo as promessas de re-       querda do establishment. Isto significa que todos
tomada do crescimento econômico. A inflação           eles advogavam mais controle do Estado sobre o
alta não voltou e as atividades econômicas come-      mercado, mais incentivos estatais para as atividades
çaram a crescer, pouco mais de um ano depois,         produtivas e maior proteção do Estado para os mais
mas, mesmo assim, o presidente não recuperou o        pobres, mas tudo isso sem quebrar o molde liberal
prestígio político e a liderança que tinha no seu     que conforma a coalizão sociopolítica no poder.
primeiro mandato. Dessa forma, a coalizão políti-           Assim, embora a vitória do Partido dos Tra-
ca governamental tornou-se menos disciplinada e       balhadores na eleição para a Presidência presidên-
o governo perdeu muito de sua capacidade para         cia da República tenha resultado, evidentemente,
aprovar leis no Congresso e para definir políticas    em mudança da coalizão política governamental,
específicas, dando margem ao fortalecimento dos       ela não tende a produzir qualquer ruptura na he-
partidos de oposição. Em contrapartida, tais parti-   gemonia liberal estabelecida anos atrás. Mesmo
dos passaram por grande metamorfose ao longo          que haja tensão entre a nova coalizão político-par-
dos anos, tornando-se cada vez mais permeáveis        tidária que comanda o Estado e a coalizão socio-
às idéias liberais. A mudança foi até o ponto de a    política que o vem sustentando, o eixo da agenda
camada dirigente do principal partido oposicio-       do novo governo é liberal-desenvolvimentista: seu
nista, o Partido dos Trabalhadores, não ultrapas-     objetivo não é reconstruir o Estado empresarial,
sar os limites do que temos denominado liberal-       mas reformar o Estado para que possa estimular o
desenvolvimentismo.                                   desenvolvimento privado e a igualdade social.38
      A luta eleitoral pela Presidência da Repúbli-         É certo que os novos governantes vêm afir-
ca, em 2002, exprimiu muito bem as mudanças           mando que suas políticas ortodoxas são apenas
ocorridas no bloco hegemônico, a debilidade da        “um remédio inevitável mas provisório”, a ser uti-
coalizão política governante e a mudança ideoló-      lizado só enquanto a dívida interna e externa e a
gica dos principais partidos de oposição. Nenhum      estagnação econômica internacional continuarem
candidato à Presidência defendeu o fundamenta-        a constranger a capacidade de ação do Estado.
lismo liberal. Além de advogar idéias liberal-de-     Embora o novo governo queira sugerir com isso
senvolvimentistas, o candidato situacionista não      que há uma diferença qualitativa da política que
conseguiu manter o apoio de toda a coalizão de        adota com a do anterior, não se vislumbra no ho-
sustentação de Cardoso. A ala direita da coalizão     rizonte nenhuma alternativa de gestão macroeco-
abandonou a candidatura oficial mas não teve          nômica que, alterados os atuais constrangimentos,
condições de lançar o seu próprio candidato à         não pudesse ser adotada também pelo governo
Presidência. Foi capaz de mostrar apenas alguma       Cardoso, caso ainda estivesse no poder. O que se
força no plano regional. Por outro lado, os con-      pode esperar, sim, é que o governo Lula no futu-
correntes de oposição mostraram-se sintonizados       ro expanda e dê uma maior consistência às polí-
com as idéias liberal-desenvolvimentistas, a des-     ticas de desenvolvimento e às políticas sociais
peito da exacerbada retórica nacionalista de al-      empreendidas pelo governo Cardoso. Dada a de-
guns deles. Especialmente o Partido dos Trabalha-     pendência do Estado em relação ao capital finan-
dores e seu candidato fizeram grandes esforços        ceiro, não parece provável a adoção de políticas
para se ajustar ao establishment, seja comprome-      muito drásticas de redistribuição do patrimônio e
tendo-se a manter o eixo da gestão econômica de       da renda, ainda que haja muita boa vontade entre
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                                                                          .


as elites em relação a programas de combate à mi-     tolerância crescente das classes médias e populares
séria e à pobreza. É verdade, também, que o novo      diante do comportamento predatório das elites e
governo tem advogado uma maior participação           também cada vez mais exigências de distribuição
política no desenho e na gestão das políticas esta-   mais justa da renda. Essas demandas de responsa-
tais, contrariando o estilo tecnocrático de decisão   bilidade política e social tendem a consolidar as
do governo anterior. E que, em função disso, fo-      instituições políticas democráticas e, como a válvu-
ram criados vários conselhos consultivos – com-       la inflacionária – mecanismo de escape típico da-
postos por representantes convidados de organi-       quela elite em face das pressões distributivas – está
zações sociais e por membros do governo.              razoavelmente bloqueada, parece provável que
Embora as promessas de maior participação polí-       paralelamente ao crescimento econômico venha a
tica tenham tido, sem dúvida, um alto valor polí-     ocorrer uma maior redução dos índices brasileiros
tico para a eleição do atual presidente, especial-    de desigualdade material e cultural.
mente entre os empresários e a classe média,                 Nas últimas décadas do século XX, por
ainda é muito cedo para avaliar se os mecanismos      maiores que tenham sido as mudanças ocorridas,
imaginados para realizá-las produzirão transfor-      o Brasil não escapou de sua condição periférica.
mações institucionais significativas que aprofun-     A retomada do crescimento acelerado e a conso-
dem a ordem democrática vigente.                      lidação do Mercosul não serão suficientes para
       Seja como for, o extraordinário conjunto de    permitir que isso ocorra. Superar essa condição
reformas liberalizantes efetuadas nos anos            exige a inclusão social e econômica dos mais po-
de 1990 definiu o quadro institucional básico que     bres, que ainda permanecem à margem das con-
regulará as relações entre o Estado e o mercado e     quistas materiais da civilização moderna. Este é o
entre o sistema econômico nacional e o capitalis-     desafio mais difícil e mais necessário para a socie-
mo mundial no começo do século XXI. Esse qua-         dade brasileira superar neste século XXI.
dro dificilmente será alterado a médio prazo, pois
é a materialização de uma nova perspectiva hege-
mônica na sociedade. As mudanças ocorridas na         NOTAS
gestão econômica inclinaram-na cada vez mais
para o liberal-desenvolvimentismo, e é razoável       1   Sobre o padrão autocrático de dominação na socie-
supor que o novo governo de esquerda tenda a              dade e no Estado brasileiros consultar Fernandes
reforçar as características centrais dessa inflexão       (1975). Em relação ao Estado desenvolvimentista
no campo hegemônico liberal. A dependência ex-            brasileiro ver Draibe (1985). Marçal Brandão (1997)
terna e o Mercosul são os elos mais frágeis da            faz uma análise das dificuldades da população em
nova forma de integração do país no capitalismo           participar autonomamente da política mesmo du-
mundial. De um lado, a incapacidade crônica de            rante o período de democracia populista anterior ao
gerar poupança interna suficiente para sustentar          regime militar autoritário instalado em 1964.
investimentos ameaça o desenvolvimento econô-         2   A moratória brasileira do final de 1982 e a assinatu-
mico contínuo do Brasil. De outro, a fraqueza             ra de acordo com o FMI em janeiro de 1983 sinali-
econômica e a política dos países membros do              zam o caráter externo da crise. Isso não significa
Mercosul no plano mundial e a falta de harmonia           ausência de desequilíbrio fiscal. Este não dava, po-
entre eles pode complicar a sua consolidação              rém, especificidade à crise, ao contrário do que tem
como bloco regional. Ademais, os Estados Unidos           sublinhado Bresser Pereira (1993). A diferença é im-
pressionam intensamente para subordinar o Mer-            portante pois, se o desequilíbrio fiscal não decor-
cosul a um processo de integração que com-                resse principalmente do endividamento externo, o
preende toda a América sob sua liderança.                 Estado teria maior raio de manobra para resolvê-lo
       De uma perspectiva mais ampla, foi notável o       de outra forma. Ver Whitehead (1993, pp.1380 e
progresso brasileiro na direção de uma sociedade          1382) para uma análise crítica da interpretação de
mais democrática. Há nítidas manifestações de in-         Bresser Pereira.
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                                           51

3   Tais mudanças de paradigma e nas políticas econômi-      15 No segundo turno eleitoral 37% votaram em Lula,
    cas foram estudadas por Helleiner (1994, caps. 6 e 7).      apenas 4% menos do que no candidato vencedor,
4   A reforma partidária de 1979 rompeu o sistema bi-           Fernando Collor de Mello.
    partidário, instituído pelo regime autoritário em        16 Nesta seção reelaboro parte de análises e informa-
    1965. O PDS (Partido Social Democrata) tomou o lu-          ções que constam de Sallum Jr. (1999, 2000). O pri-
    gar da Arena como representante do regime e os              meiro texto faz parte, com outros artigos, do “Dossiê
    partidos PMDB, PDT, PTB e PT assumiram o lugar              FHC – 1º Governo”, publicado na revista Tempo So-
    do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) como              cial (Revista de Sociologia da USP). Mais recente-
    oposição política. Na eleição de 1982, o PMDB ele-          mente, Lamounier e Figueiredo (2002) organizaram
    geu nove governadores de estado e o PDT, um.                uma coletânea de trabalhos sobre o governo FHC,
5   Em relação à liberalização política ver Velasco e           redigidos por jornalistas com base em pesquisas aca-
    Cruz e Martins (1983) e Lamounier (1985).                   dêmicas. Este trabalho contém análises de ótima qua-
6   Sobre o processo de democratização política, ado-           lidade, mas seus resultados não alteram substancial-
    to a perspectiva de Touraine (1995). A democrati-           mente a interpretação aqui desenvolvida.
    zação política tem sido sustentada por processo          17 As tarifas médias eram 31,6% em 1989. Foram re-
    mais amplo de democratização da sociedade bra-              duzidas para 30% em 1990, para 23,3% em 1991,
    sileira, que não será examinado aqui.                       para 19,2% em janeiro de 1992, para 15% em outu-
7   O ajuste fiscal escolhido foi muito menos drástico do       bro de 1992 até 19,2% em Julho de 1993.
    que o realizado pelo México, em situação similar. Para   18 A primeira equipe econômica de Collor foi substi-
    uma visão comparativa, consultar Kaufman (1988).            tuída em maio de 1991. A negociação da dívida ex-
8   Faço um relato detalhado dessa crise em Sallum Jr.          terna, durante seu governo, foi analisada com exa-
    ( 1996, cap. 2).                                            tidão em Candia Veiga (1993).

9   A campanha das “Diretas” ultrapassou em parte os         19 Collor renunciou em outubro de 1992.
    próprios valores básicos que legitimavam o Estado.       20 Emprego o termo cesarismo em sentido metafórico.
    A partir de então seria insustentável uma hegemo-           Ver em Bobbio et al.(1994) um texto curto, mas rico
    nia fundada na restrição à participação política das        sobre o assunto.
    classes populares.                                       21 Sobre o Plano Brady, ver Cline (1989). Um texto
10 A Aliança Democrática foi constituída pelo PMDB e            sintético sobre os novos fluxos de capital e refor-
   pela Frente Liberal, dissidência do PDS, que depois          mas que caracterizaram a passagem doa anos de
   converteu-se no Partido da Frente Liberal (PFL). A           1980 para a década de 1990, consultar Naím (1995).
   candidatura de Paulo Maluf foi lançada pelo PDS e         22 O fluxo voluntário de capital externo começou a
   apoiada pelo governo militar.                                voltar ao Brasil em 1991. Suas reservas de câmbio
11 O presidente eleito Tancredo Neves não tomou pos-            atingiram 42 bilhões de dólares na metade de 1994,
   se em 15 de março de 1985 porque ficou repentina-            quando o Plano Real foi lançado.
   mente doente, morrendo poucas semanas depois.             23 Há um bom estudo sobre as condições políticas e
   Em seu lugar foi empossado o vice-presidente José            econômicas na época do Plano Real em Sola e Ku-
   Sarney que governou até 15 de março de 1990.                 gelmas (1996).
12 A esse respeito, consultar o trabalho de Noronha,         24 Malloy e Connaghan (1996) e Mettenhein e Malloy
   Gebrin e Elias Jr. (2003).                                   (1998) analisaram algumas experiências políticas lati-
13 Durante o governo Sarney, podem ser contadas como            no-americanas sob à luz do que Pocock entende por
   tentativa heterodoxas de superar a instabilidade eco-        “ momento maquiaveliano”. Sola e Kugelmas(1996)
   nômica os planos “Cruzado”, lançado em fevereiro de          estudaram a eleição e o Plano Real de Cardoso sob
   1986, “Bresser”, editado em meados de 1987, e “Ve-           a mesma ótica.
   rão”, cuja vigência foi iniciada em janeiro de 1989.      25 Durante o período de Revisão Constitucional as re-
14 Biersteker (1995) trata desse processo de difusão.           formas podiam ser aprovadas por maioria simples.
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26 No segundo governo de Fernando Henrique Cardo-                 26,8 bilhões em 1998, e finalmente para US$ 31,2
   so foram aprovadas normas estritas de “responsabi-             bilhões em 1999.
   lidade fiscal” para os governantes e penalidades            35 O compromisso de produzir superávit primário
   para os transgressores.                                        anual de 3,5% do PIB (elevado em 2002 para
27 Os principais representantes dessa corrente ideoló-            3,75%) implicou uma grande contenção de gastos.
   gica no governo foram o primeiro presidente do                 Ainda mais que os números foram de fato supera-
   Banco Central, Gustavo Franco, e o Ministro da Fa-             dos. Sublinhe-se que, durante o primeiro mandato
   zenda, Pedro Malan. Fora do governo suas princi-               de FHC, embora o governo defendesse a necessida-
   pais expressões intelectuais foram os economistas              de de ajustar as contas públicas, apenas as mante-
   da PUC-Rio de Janeiro.                                         ve equilibradas (não contando os juros pagos).
28 Apesar da retórica política da oposição política, a         36 Os fluxos de IDE foram de US$ 33,3 bilhões em 2000,
   sobrevalorização do câmbio não se vincula ao ideá-             caíram para US$ 20 bilhões em 2001 e para US$ 16,6
   rio neoliberal, que recomenda, ao contrário, um                bilhões em 2002. As dificuldades de rolagem da dívi-
   market exchange. A versão brasileira radical de li-            da interna manifestaram-se apenas em termos de cus-
   beralismo adotou a sobrevalorização para forçar as             to monetário mais alto. Em relação à dívida externa,
   empresas brasileiras a se enquadrarem rapidamen-               houve redução dos montantes disponíveis para reno-
   te, sob pena de desaparecimento, aos padrões do                var linhas de crédito às exportações, algo que não
   mercado, isto é, aos níveis internacionais de preços           ocorrera sequer na crise dos anos de 1980.
   e produtividade. Eis porque denomino fundamenta-            37 Apesar do considerável ajuste fiscal, o Brasil não
   lista esse tipo de liberalismo.                                conseguiu reduzir a proporção de sua dívida pública
29 Representavam esse ponto de vista, no primeiro go-             em relação ao PIB. Em compensação, a enorme des-
   verno FHC, principalmente José Serra, ministro do              valorização cambial relacionada à incerteza eleitoral
   Planejamento, Luiz Carlos Mendonça de Barros,                  de 2002 ajudou o Brasil a gerar um superávit comer-
   presidente do BNDES, e José Roberto Mendonça de                cial de US$ 13,1 bilhões, o que reduziu o déficit ex-
   Barros, secretário de Política Econômica. Fora do              terno corrente a 1,7% do PIB (entre 1998 e 2001 o
   governo o nome mais relevante era o do deputado                déficit anual tinha atingido mais de 4% do PIB).
   federal Delfim Neto, figura importante do regime            38 É importante sublinhar que no Brasil e em outros
   autoritário, em que ocupou diversos ministérios da             países latino-americanos os adeptos do liberalismo
   área econômica.                                                econômico não costumam se opor ao Estado de
30 Em Sallum Jr. (2000) tratei dessas medidas compensa-           Bem-Estar, mas ao Estado Empresário (nacional-de-
   tórias. Sobre o conceito de política industrial referido,      senvolvimentista), manifestando-se a favor de polí-
   consultar Mendonça de Barros e Goldenstein (1997).             ticas sociais.

31 As taxas médias anuais de desemprego evoluíram
   da seguinte maneira: 4,85% (de julho de 1994 a ju-
   nho de 1995); 5,75% (1995-1996); 5,77% (1996-
                                                               BIBLIOGRAFIA
   1997); 7,37% (1997-1998); e 8,32% (1998-1999).
                                                               BRAGA, José Carlos de Souza. (1987), “Financei-
32 Tomo o conceito de Braga (1997). Além do texto ci-
                                                                       rização global: o padrão sistêmico de ri-
   tado podem ser consultadas os trabalhos de Chesnais
                                                                       queza do capitalismo contemporâneo”,
   (1996, 1998) que, embora de forma um pouco diver-                   in Maria da Conceição Tavares e José
   sa, vão na mesma direção.                                           Luís Fiori (orgs.), Poder e Dinheiro:
33 A própria política de estabilização no primeiro go-                 uma economia política da globaliza-
   verno de FHC contribuiu para dar vantagens às em-                   ção, Petrópolis, Vozes.
   presas estrangeiras em relação às nacionais.                BOBBIO, Norberto et al. (1994), Dicionário de
34 Em 1996 o IDE atingiu apenas US$ 9,6 bilhões; em                   politica, 6 ed., Brasília, Editora da UnB,
   1997 subiu para US$ 17,9 bilhões e depois para US$                 vol. 1.
METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX                                              53

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54                      REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52
                                                                          .


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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS                                                                                         213

METAMORFOSES DO ESTADO                    METAMORPHOSIS OF THE                        MÉTAMORPHOSES DE L’ÉTAT
BRASILEIRO NO FINAL DO                    BRAZILIAN STATE IN THE END                  BRÉSILIEN À LA FIN DU XXE
SÉCULO XX                                 OF THE TWENTIETH CENTURY                    SIÈCLE

Brasilio Sallum Jr.                       Brasilio Sallum Jr.                         Brasilio Sallum Jr.

Palavras-chave                            Key words                                   Mots-clés
Estado; Desenvolvimentismo; De-           State; Development; Democratiza-            État; Processus de développement;
mocratização; Liberalização econô-        tion; Economic liberalization; Politi-      Démocratisation; Libéralisation éco-
mica; Transição política; Brasil.         cal transition; Brazil.                     nomique; Brésil.

O artigo procura reconstruir o pro-       The article aims at reconstructing          Cet article propose une reconstruc-
cesso de crise do Estado varguista e      both the process of crisis of the State     tion de la crise de l’État sous l’ère
de transição para a forma nova for-       during the Vargas era and the transi-       Vargas ainsi que du processus de
ma de Estado, moderadamente libe-         tion process towards a new format of        transition vers une nouvelle forme
ral em termos econômicos e demo-          State, which was moderately liberal         d’État, modérément libéral en termes
crática em termos políticos, que          in terms of economy and democratic          économiques, et démocratique du
emergiu nos anos de 1990, ganhou          in terms of politics, that emerged in       point de vue politique. Cette nouvel-
solidez durante sob a presidência         the nineties, became consolidated           le forme d’État apparue dans les an-
de Fernando Henrique Cardoso e foi        during the presidency of Fernando           nées 1990, s’est consolidée sous le
reiterada com a eleição de Luiz Iná-      Henrique Cardoso, and has been rei-         gouvernement de Fernando Henri-
cio da Silva. Procura-se explorar a       terated with the election of Luiz Ina-      que Cardoso et a été réaffirmée sui-
natureza da crise de hegemonia que        cio Lula da Silva. It also explores the     te à l’élection de Luiz Inácio Lula da
marcou o início da transição política     nature of the hegemony crisis found         Silva. Nous explorons la nature de la
brasileira, no início dos anos de 1980,   in the beginning of the Brazilian po-       crise d’hégémonie qui marqua le dé-
e caracterizar a emergência de um         litical transition in the early eighties,   but de la transition politique brési-
novo padrão hegemônico de domi-           as well as characterizes the appea-         lienne au début des années 80 et
nação. Ressalta-se principalmente os      rance of a new hegemonic standard           tentons de caractériser l’émergence
dois aspectos principais da transição     of domination. It calls attention for       d’une nouvelle référence hégémoni-
política – a democratização política      two main aspects of the so-called           que de domination dans les années
e a liberalização econômica – pro-        political transition – the political de-    suivantes. Nous nous sommes atta-
curando-se salientar as transforma-       mocratization and the economic li-          chés, particulièrement, à deux as-
ções da sociedade nacional e da or-       beralization – as it enhances the tra-      pects principaux de la transition – la
dem mundial em que se inserem.            nsformations of both the national           démocratisation politique et la libé-
                                          society and the world order in which        ralisation économique –, en mettant
                                          they are inserted.                          l’accent sur les transformations de la
                                                                                      société nationale et sur l’ordre mon-
                                                                                      dial dans laquelle elle s’inscrit.

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Sallum metamorfoses do estado

  • 1. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX* Brasilio Sallum Jr. O objetivo deste artigo é analisar algumas no Brasil desde os anos de 1930. Ao longo de sua das mudanças políticas mais importantes ocorridas existência, este Estado cumpriu o papel de núcleo no Estado brasileiro nas últimas duas décadas do organizador da sociedade, deixando pouco espaço século XX. Para isso focalizarei dois processos que para a organização e a mobilização autônomas de alteraram tanto o Estado como suas relações com grupos sociais (sobretudo dos vinculados às clas- a ordem social e a ordem econômica: a democra- ses populares), e funcionou como alavanca para a tização política e a liberalização econômica. construção de um capitalismo industrial, nacional- Esses dois processos foram dimensões-chave mente integrado mas dependente do capital exter- da transição política que transformou a forma au- no, por meio de uma estratégia de substituição de importações.1 Essa forma de Estado vem sendo de- tocrática e desenvolvimentista de Estado, vigente nominada “varguista”, pois adquiriu suas caracte- rísticas básicas sob a presidência de Getúlio Vargas. * Agradeço a Lawrence Whitehead, Maria D’Alva Adotarei essa denominação porque ela acentua o Kinzo e Eduardo Kugelmas pelos valiosos comen- tários a este artigo. Ele é uma versão alterada do caráter específico do Estado, cuja superação se es- texto apresentado no Seminário Fifteen Years of tudará neste artigo. Não tenho dúvidas, porém, de Democracy in Brazil organizado pelo Institute of que ele é uma entre outras modalidades autocráti- Latin American Studies em Londres, em fevereiro cas e desenvolvimentistas de Estado ocorridas na de 2001. periferia capitalista no mesmo período. Artigo recebido em março/2003. A transição política brasileira começou Aprovado em maio/2003. com a crise de Estado de 1983-1984 e terminou RBCS Vol. 18 nº 52 junho/2003 .
  • 2. 36 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . com o primeiro governo de Fernando Henrique fraturas. Externamente, a moratória mexicana re- Cardoso, momento em que o Estado ganhou es- sultou na suspensão dos fluxos voluntários de em- tabilidade segundo um novo padrão hegemôni- préstimos bancários para o Brasil e outros países co de dominação, moderadamente liberal em devedores latino-americanos de 1982 até o final da assuntos econômicos e completamente identifi- década, o que provocou uma profunda crise eco- cado com a democracia representativa. Nessa nômica na região. Além disso, desde meados da transição, a democratização política foi mais im- década de 1970, as idéias predominantes nos paí- portante na década de 1980 ao passo que a li- ses centrais e nas agências financeiras multilaterais beralização econômica destacou-se nos anos de em relação à política econômica moveram-se, 1990. Essa transformação política só pode ser cada vez mais, do paradigma keynesiano para a completamente entendida se a considerarmos ortodoxia monetarista, inclinada a adotar políticas no contexto da transnacionalização do capitalis- rígidas de contenção de gastos públicos e de con- mo (desencadeada pela globalização financeira) trole monetário. Essas mudanças nos fluxos eco- e da democratização da sociedade brasileira. nômicos e nas idéias predominantes em relação à Na próxima seção procuro caracterizar a cri- gestão econômica restringiram muito a autonomia se do Estado varguista em função de sua impor- das políticas econômicas nacionais.3 tância para a explicação dos processos de demo- Internamente, as mudanças políticas inicia- cratização política e liberalização econômica. das nos anos de 1970 e aprofundadas desde então Essas duas dimensões serão os objetos centrais da também dificultaram a rearticulação externa. De segunda e terceira seções do artigo, respectiva- fato, nas eleições de 1982, o partido de sustenta- mente. Ao final, faço um esboço das mudanças ção do regime militar perdeu sua maioria absolu- políticas recentes que apontam para o predomí- ta na Câmara dos Deputados e dez governos esta- nio de um desenvolvimentismo renovado e para duais importantes passaram a ser governados por um aprofundamento da democracia. partidos da oposição.4 Com tais resultados, o pro- cesso de liberalização política, iniciado por Ernes- to Geisel em 1973-1974, pôs mais uma vez em xe- Crise de Estado e transição política que o controle do regime militar sobre a mudança política do país.5 Com efeito, esses insucessos po- O cerne da crise do Estado desenvolvimen- líticos aprofundaram o padrão segundo o qual tista brasileiro foi, do ângulo econômico, a inca- mudanças sociais empurravam sempre, para além pacidade de fazer frente aos pagamentos da dívi- de seus próprios limites, o projeto de liberalização da externa no início da década de 1980,2 política do regime militar. De fato, a partir de colocando em xeque o padrão costumeiro de re- 1970, os alicerces politicamente excludentes do re- lacionamento do Brasil com a ordem capitalista gime militar e do velho Estado varguista foram mundial. Dessa forma, a crise só poderia ser con- abalados por um vigoroso processo de democrati- tornada ou superada mediante um re-arranjo da zação política. As classes populares tornaram-se articulação que havia permitido que o país tives- politicamente muito mais autônomas e tentaram se apresentado até então um desenvolvimento ca- partilhar valores materiais e não-materiais que an- pitalista pujante, embora dependente. Conforme tes eram exclusivos das classes média e alta. Por fosse o caminho escolhido para enfrentar a situa- meio das eleições, das atividades de novas asso- ção, poderiam surgir fraturas nas relações do Bra- ciações civis ou da renovação da atuação de ve- sil com centros econômicos e políticos mundiais lhas associações, as classes populares, parte das mais importantes e/ou na própria base doméstica classes médias e, até mesmo, alguns setores em- de sustentação política do Estado. presariais passaram a pôr em xeque a capacidade Ademais, a situação era tanto mais difícil por- de o Estado controlar, como antes, a sociedade.6 que as mudanças em curso nos âmbitos interna- Dessa forma, no início dos anos de 1980, o cional e doméstico acentuavam os riscos dessas governo brasileiro encontrava-se em campo mina-
  • 3. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 37 do. Na escolha da estratégia para enfrentar a crise, se opôs à estratégia governamental de ajuste, mas ele sofria, ao mesmo tempo, pressões externas aderiu a “projetos” alternativos para enfrentar a cri- para conduzir o país em direção à ortodoxia eco- se econômica, indicando claramente o esvaziamen- nômica e estímulos na direção oposta, decorrentes to da liderança do governo. Uma porção da elite das novas condições políticas internas. Embora o empresarial, a dissidência mais numerosa, foi mag- governo tenha optado por um ajuste externo – netizada por uma versão mais nacionalista e indus- produção de megasaldos no comércio exterior trialista de desenvolvimentismo e uma outra, bem para pagar o serviço da dívida externa – acompa- menor, foi atraída por uma variante periférica de nhado de um ajuste fiscal pouco drástico, isso foi neoliberalismo. suficiente para causar sérios danos ao seu supor- Essas reações surgidas no interior da elite te sociopolítico.7 empresarial e no sistema de empresas estatais fa- Com efeito, a estratégia escolhida para en- voreceram a atuação da oposição político-partidá- frentar o estrangulamento externo produziu uma ria no Congresso e seus esforços para mobilizar as crise política muito complexa.8 Ela começou por classes médias e populares na luta contra a per- dissociar o governo da base de sustentação socio- petuação do regime militar. Essa mobilização de política do Estado varguista. O “ajuste externo” massa resultou, entre janeiro e março de 1984, na opôs-se ao receituário econômico da coalizão de- mais importante demonstração pública ocorrida senvolvimentista, que via no crescimento econô- no Brasil em favor da democratização política – a mico nacional o valor básico a ser alcançado e fa- campanha das “ Diretas Já”. zia das empresas estatais seu pilar central de A mobilização popular minou completa- sustentação. A política governamental foi conside- mente o apoio ainda existente à política de de- rada recessiva, inflacionária e “injusta”, pois trans- mocratização gradual e limitada liderada pelo re- feria todos os custos do “ajuste” para os agentes gime autoritário. Com isso, a crise política econômicos domésticos, principalmente para os expandiu-se e aprofundou-se: a perda de legiti- assalariados e para as empresas estatais, evitando midade do governo estendeu-se, incluindo o pró- onerar os credores externos. Assim, as políticas prio regime autoritário. Mais ainda, naquela con- de governo não só se dissociaram dos interesses juntura crítica, foi iniciada a ruptura dos limites imediatos da base de sustentação do Estado como da legitimidade do Estado varguista. A entrada passaram a ser consideradas ilegítimas, contrárias maciça da população na luta política em favor da aos valores básicos da aliança desenvolvimentista. superação rápida do regime autoritário produziu Um dos resultados disso foi que parte da ve- uma inovação substancial na vida política brasi- lha coalizão desenvolvimentista passou a se opor leira: obrigou o governo a tolerá-la, os meios de ao governo. As reações dos dirigentes das empre- comunicação de massa fiéis ao regime a noticiá- sas estatais, duramente atingidas pela política de la e as elites políticas a rejeitar as costumeiras “ajuste” escolhida, foram pouco explícitas, em fun- condicionalidades interpostas à vigência da de- ção mesmo do caráter autoritário do regime. Sua mocracia no Brasil. De fato, a idéia de que não oposição manifestou-se indiretamente, pela resis- há democracia sem participação popular e de tência intra-burocrática aos comandos governa- que não há participação popular sem a liberdade mentais e pela atuação de parlamentares sintoniza- plena de associar-se e de manifestar demandas dos com as estatais no Congresso. Os empregados coletivas fortaleceu-se social e politicamente pelo das empresas estatais, pelo contrário, manifesta- amplo apoio das classes médias e das massas po- ram-se pública e claramente contra a política do pulares. A Campanha das Diretas redefiniu o es- governo, seja com demonstrações de rua, seja pela paço legítimo da política no Brasil. greve de protesto. Em suma, apoiada pela mobilização de mas- Foi no empresariado privado, porém, que sa, a oposição produziu uma crise no padrão vigen- ocorreu a fratura mais importante da base de apoio te de hegemonia política. Daí em diante seria ina- do Estado. Parte das elites empresariais não apenas ceitável um Estado que impusesse restrições à
  • 4. 38 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . expressão e à organização políticas das massas po- volvimentismo renovado e que combinasse cres- pulares; um Estado assim só poderia se manter pela cimento econômico e redistribuição de renda. força e/ou pelo interesse. Dessa forma, a campanha “Diretas Já” anunciou um novo projeto de Estado, orientado por valores democráticos surgidos do cla- A Nova República: democratização mor da sociedade pela democratização.9 e desenvolvimentismo Todavia, o regime militar derrotou no Con- gresso Nacional a proposta de eleições diretas Durante o governo Sarney11 o legado institu- para a Presidência da República, minimizando cional autoritário ajustou-se ao processo de de- com isso os efeitos políticos mais profundos da mocratização em curso, traduzindo as demandas crise de hegemonia desencadeada pela mobiliza- de ampliação do espaço da política e do univer- ção de massa. O governo conseguiu, usando as so de seus participantes reconhecidos em regime alavancas de poder de que dispunha, contornar político democrático. Isso implicou tanto o rompi- parcial e provisoriamente a crise: manteve as mento dos limites institucionais impostos à parti- massas populares fora do processo imediato de cipação e à organização política das classes popu- escolha do novo presidente da República, mas lares como a expansão dos direitos básicos do não conseguiu evitar que boa parte de sua base cidadão. Eliminou-se, assim, na Nova República, político-partidária apoiasse a eleição de um go- um dos pilares centrais do Estado varguista em verno civil liderado pela oposição. Não há dúvi- qualquer de suas formas de organização política. da, porém, quanto aos efeitos conservadores da De fato, já no início do governo de José Sar- exclusão das massas da sucessão presidencial: a ney alterou-se um conjunto de leis que bloquea- oposição política, minoritária no Colégio Eleitoral, vam a participação política popular. No primeiro só teve condições efetivas de vencer moderando semestre de 1985 foram instituídos: a) eleições di- suas ambições e efetuando um pacto político com retas, em dois turnos, para a Presidência da Repú- dissidentes do regime autoritário. Ademais, os blica; b) eleições diretas nas capitais dos estados, programas dos candidatos permaneceram dentro áreas de segurança e principais estâncias hidro- dos limites dados pelo próprio governo e por em- minerais; c) representação política para o Distrito presários dissidentes. Tancredo Neves, candidato Federal na Câmara dos Deputados e no Senado da Aliança Democrática,10 assimilou algumas das Federal; d) direito de voto aos analfabetos; e) li- propostas desenvolvimentistas que contavam berdade de organização partidária, mesmo para principalmente com apoio no empresariado in- os comunistas; e todo um conjunto de alterações dustrial. O candidato de direita, Paulo Maluf, fez menores que iam na mesma direção. Além disso, algo semelhante em relação ao projeto neoliberal, a legislação sofreu algumas mudanças que provo- que tinha suporte de associações comerciais e no caram um enorme impacto na atividade política setor agrícola de exportação. Mesmo com tais li- dos trabalhadores, aumentando muito seus direi- mitações, as propostas anunciavam sua sintonia tos de participação e liberando-os do controle go- com as aspirações populares de implantar a de- vernamental: a) foram readmitidos líderes sindi- mocracia política no país. cais, antes demitidos por “mau comportamento”; A esmagadora vitória de Tancredo Neves no b) foi cancelado o controle do Ministério do Tra- Colégio Eleitoral mostrou bem quais eram as as- balho sobre as eleições sindicais; e c) foi elimina- pirações políticas dominantes na elite política bra- da a proibição de associações inter-sindicais, o sileira e, implicitamente, qual o projeto político que legalizou as atividades das centrais sindicais que prevaleceria no período presidencial seguin- que, até então, eram apenas toleradas. te: construir uma Nova República, uma democra- Essas e outras mudanças nas normas que re- cia plena, que não impusesse restrições aos mo- gulavam a vida pública e também a tolerância go- vimentos e às organizações populares, que tivesse vernamental, quando do desrespeito à lei nas ma- como orientação econômica um nacional-desen- nifestações coletivas, permitem caracterizar a Nova
  • 5. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 39 República como um arranjo político no qual vá- volvimentismo democratizado: foram ampliadas as rios segmentos sociais, inclusive as classes popu- restrições ao capital estrangeiro, as empresas esta- lares, puderam lutar por seus interesses e idéias tais ganharam mais espaço para suas atividades, o com grande liberdade de ação e organização. De- Estado obteve mais controle sobre o mercado e os monstra bem este ponto o crescimento extraordi- servidores públicos e outros trabalhadores viram nário do número de greves e dias parados duran- aumentar sua estabilidade no emprego e vários be- te o governo Sarney.12 nefícios, inclusive os de aposentadoria. Portanto, a O aumento da participação popular afetou a Constituição de 1988 assegurou a permanência à hierarquia entre os centros de poder do Estado, a velha articulação entre o Estado e o mercado no gestão governamental e a amplitude dos direitos momento mesmo em que o processo de transnacio- de cidadania. De fato, a crise de hegemonia en- nalização e a ideologia liberal estavam para ganhar fraqueceu a hierarquia que caracterizava o regime uma dimensão mundial em função do colapso do autoritário anterior. Na Nova República as pres- socialismo de Estado. sões da base para o topo da sociedade fortalece- Dessa forma, durante a presidência de José ram a autonomia dos centros de poder que antes Sarney, a elite política brasileira realizou comple- costumavam ser subalternos. Portanto, o Congres- tamente, do ponto de vista institucional, o proje- so Nacional, o Judiciário, os governos dos estados to da Nova República. Ainda assim, esta não se e os partidos políticos ganharam mais latitude de converteu em um sistema estável de poder. A eli- ação em relação à Presidência da República. te política dirigente fracassou em articular uma As mudanças nas instituições políticas e no nova coalizão sociopolítica que sustentasse o pro- âmbito de poder dos diversos atores culminaram na jeto desenvolvimentista democratizado para, por Constituição de 1988, que ampliou o poder de ação esta via, superar a crise de Estado. A instabilidade do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público econômica crescente no governo Sarney sinaliza- nos processos de decisão governamentais. Parte da va, de fato, a fragilidade política do Estado. No base material para exercer o poder – impostos e au- entanto, não se tratava apenas de a elite política tonomia financeira – foi transferida da União para os ter ou não ter as idéias certas ou de ela fazer ou estados e municípios, a ponto de transformar os úl- não as alianças apropriadas para estabilizar um timos em verdadeiras unidades federadas (não su- novo sistema de poder. Na verdade, as circunstân- bordinados aos estados). Em relação aos direitos de cias em que ela operava eram muito difíceis para cidadania, a nova Constituição estabeleceu uma re- que pudesse ter sucesso. gra política democrática e ampliou a proteção social Com efeito, a elite política tentou renovar a para todos, trabalhadores ou não. Definiu como de- estratégia desenvolvimentista, combinando distri- ver do Estado garantir vários direitos sociais – inclu- buição e crescimento econômico, mas o fez em sive alguns direitos difusos, como os relacionados à um contexto externo muito adverso que, em vez proteção do meio ambiente – e tornou possível que de ser uma fonte de capitais (empréstimos estran- cidadãos e coletividade exigissem o cumprimento geiros ou investimentos), os drenava continua- dessas garantias pelo poder público. Além disso, os mente do país (como obrigações internacionais). constituintes ampliaram drasticamente o âmbito das Ademais, a elite dirigente enfrentou esse ambien- atividades dos promotores públicos fazendo do Mi- te inóspito em circunstâncias políticas muito des- nistério Público um ramo especial do Estado, inde- favoráveis. Ela teve de lidar com uma sociedade pendente dos três poderes clássicos. Em sua nova onde os movimentos sociais e as organizações co- forma, o Ministério Público recebeu a missão de as- letivas floresciam e demandavam enfaticamente a segurar o cumprimento dos direitos da cidadania, satisfação imediata de suas carências. Talvez se garantidos em lei, inclusive contra a ação ou a omis- possa dizer que, em uma sociedade tão esperan- são do Estado. çosa como era o Brasil da Nova República, a es- Ao mesmo tempo, a mesma Constituição de cassez de recursos não dava muito espaço para 1988 emprestou uma moldura legal rígida ao desen- negociações políticas bem-sucedidas.
  • 6. 40 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . Ademais, a elite política tentou resolver os do, se esvaiu. As taxas de investimento caíram dras- problemas surgidos com a crise do Estado varguis- ticamente: estancou a entrada de capital estrangei- ta como se o Estado não tivesse perdido muito de ro e o Estado perdeu sua capacidade de investir. O sua autoridade política e de sua força material. Em sistema de empresas estatais, que tinham sido a função dessas perdas, as tentativas ortodoxas ou vanguarda do modelo desenvolvimentista anterior, heterodoxas13 de enfrentar a instabilidade econô- perdeu seu dinamismo próprio passando a se su- mica depararam-se seja com ameaças coações ex- bordinar aos objetivos governamentais do “ajusta- ternas decorrentes da ameaça ou da falta de paga- mento”, que visava a produzir insumos de preços mento de débitos, seja com o veto e/ou a adesão baixos para combater a inflação e/ou ajudar o setor reticente de membros da velha aliança desenvolvi- privado a produzir saldos crescentes no comércio mentista que sustentava o Estado, embora já sem exterior. A desorganização tanto da economia como articulação e objetivos definidos. Com efeito, além das finanças públicas geraram flutuações súbitas no dos credores privados externos, governos estran- crescimento do PIB, uma redução do crescimento geiros e organizações multilaterais, as atividades econômico médio além de intensas pressões infla- das coletividades novas ou renovadas, inspiradas cionárias. A inflação substituiu o desenvolvimento em ideário ora conservador ora reformista e cons- como questão política básica daquele período. tituídas a partir de distintas bases socioeconômicas, Tudo isso constituiu um poderoso obstáculo para ajudaram a moldar as políticas estatais, algumas ve- que na Nova República o processo de democratiza- zes estimulando e outras colocando alguns limites ção política produzisse o seu equivalente material. à ação do Estado. Organizações de empresários Assim, embora tenha havido expansão dos serviços agrícolas e de proprietários de terra, por exemplo, públicos de bem-estar, na década de 1980 os brasi- restringiram o programa de reforma agrária a um leiros mais pobres não aumentaram sua participa- mínimo e, por sua atuação junto ao Congresso ção na renda nacional. Constituinte, conseguiram assegurar amplamente Ademais, as dificuldades de estabilizar uma os direitos de posse da terra. Em sentido oposto, nova forma de Estado estimularam o crescimento em 1989, ano da sucessão presidencial, fortes ma- no interior da elite brasileira de um novo projeto nifestações organizadas pela Central Única de Tra- político para o país. Com efeito, na medida em balhadores(CUT) e por sindicatos levaram o Con- que a elite econômica se tornava insegura e as- gresso Nacional a não aprovar na íntegra o sustada com as iniciativas reformistas do governo chamado Plano Verão visto que ele tentava estabi- da Nova República, sobretudo com as políticas lizar a moeda reduzindo os salários reais dos traba- heterodoxas de estabilização monetária, as idéias lhadores. Seguramente, a eficácia da atuação dos econômicas liberais passaram a se tornar relevan- movimentos e das organizações populares e das tes para ela. Além de se mostrarem ineficientes camadas médias na Nova República podem ser ex- para restringir a inflação e retomar o crescimento plicadas, em boa parte, pela fragilidade material do econômico de forma sustentada, as políticas hete- Estado e pela articulação frouxa de sua base de rodoxas foram interpretadas como ameaças à pro- sustentação social. priedade privada, pois restringiam a liberdade de Em síntese, a Nova República tornou-se um mercado e ameaçavam os contratos. Daí em dian- sistema instável de dominação política, em que te, a elite empresarial mobilizou-se para moldar as não se articulavam bem a dimensão institucional, estruturas e controlar as ações do Estado orientan- a esfera sociopolítica e as condições econômicas. do-se, pelo menos parcialmente, pelas concep- Essa instabilidade resultou, de um ponto de ções neoliberais que vinham sendo difundidas, vista material, numa trajetória decadente de desen- desde os anos de 1970, pelas instituições econô- volvimento. O Estado continuou a proteger o mer- micas multilaterais, por think tanks e governos cado interno, mas o dinamismo econômico ante- dos países centrais.14 Dessa maneira, sobretudo de rior, que tinha permitido ao Brasil ter uma das 1987 1988 em diante, a elite econômica passou a maiores taxas de crescimento econômico do mun- confrontar o intervencionismo do Estado, exigin-
  • 7. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 41 do desregulamentação, melhor acolhida para o governo faria uma redistribuição de renda deslo- capital estrangeiro, privatização das empresas es- cando recursos do topo para a base da sociedade, tatais etc. Assim, embora o liberalismo econômico realizaria uma “verdadeira” reforma agrária e as no Brasil só tenha se tornado politicamente hege- empresas estatais seriam preservadas, embora sua mônico nos anos de 1990, essa hegemonia come- administração devesse ser democratizada. Em çou a ser socialmente construída ainda na segun- suma, o reformismo de esquerda visava a elimi- da metade da década de 1980. nar, pelo menos em parte, a “exclusão social”, ra- Entretanto, mesmo que a retórica liberal te- dicalizando o processo de democratização ao lhe nha sido absorvida pelos meios de comunicação dar bases materiais adequadas. No pólo oposto, e tenha se difundido entre as camadas médias da dando menos de 5% dos votos aos candidatos do população, isso ocorreu em menor proporção na PMDB e do PFL o eleitorado ratificou o fracasso elite política, entre os trabalhadores organizados da elite política em converter a Nova República e servidores públicos, que continuaram a defen- numa forma estável de domínio político. der os ideais de “ propriedade nacional” e “regu- O processo eleitoral foi um momento de in- lação estatal”. flexão nas referências ideológicas que polarizavam Eis porque a Constituição de 1988, que ma- o sistema partidário. A partir da campanha de 1989, terializou o projeto político da Nova República – o confronto entre democracia e autoritarismo, que democratização política e desenvolvimentismo de- caracterizava o sistema partidário desde a liberali- mocratizado – tornou-se um alvo para os ataques zação política do regime militar, tornou-se menos da elite empresarial e de seus líderes políticos e in- relevante. As forças partidárias reorganizaram-se de telectuais e, inversamente, converteu-se em trin- acordo com novas polarizações, e, nesse processo, cheira para as organizações de trabalhadores, ser- sobretudo as relações Estado/mercado ganharam vidores, funcionários das companhias estatais e da espaço. Os partidos foram magnetizados pelas classe média assalariada ligada ao serviço público. idéias econômicas liberais, de um lado, e pelo de- A eleição direta para presidente da Repúbli- senvolvimentismo democratizado, de outro. O Par- ca em 1989 sumariou os resultados políticos do tido da Social Democracia Brasileira (PSDB), dissi- período anterior. Depois de quase trinta anos de dência do PMDB organizada como partido em interrupção de disputas diretas para a Presidência, 1988, inclinou-se decisivamente para o liberalismo, a eleição foi realizada com total liberdade de ex- como enfatizou seu candidato Mário Covas ao exi- pressão e reunião, constituindo um dos pontos gir para o país um “choque de capitalismo”. O Par- mais altos de participação das classes populares e tido Democrata Cristão (PDC) e o Partido Liberal das camadas médias na política brasileira. Certa- (PL) também adotaram um programa liberal. O mente, foi a crescente presença das classes popu- PDS, partido do extinto regime militar, já havia se lares e média na esfera pública que abriu cami- adaptado às idéias do livre mercado desde a crise nho para o desempenho eleitoral dos candidatos de 1983/ 84, embora elas tenham sido sufocadas da esquerda no primeiro turno da eleição presi- na disputa eleitoral, tal como na sucessão presi- dencial e, especialmente, para o ex-operário me- dencial anterior, pelo populismo conservador de talúrgico e líder sindical Luiz Inácio da Silva (Lula) seu candidato Paulo Maluf. E, apesar da retórica no segundo turno. Mesmo sendo candidato de nacional-desenvolvimentista do candidato do PFL, um partido tão pequeno como o Partido dos Tra- Aureliano Chaves, o partido vinha apresentando, balhadores (PT), Lula foi derrotado apenas por desde a Constituinte, uma crescente inflexão libe- uma pequena margem de votos.15 Sublinhe-se, ral e não lhe deu apoio significativo. Na direção ainda, que este ótimo resultado foi obtido sem contrária, o PMDB, o PDT e o PT radicalizaram o mascarar as intenções reformistas do PT. Lula pro- desenvolvimentismo em sua versão nacionalista e meteu durante sua campanha uma ruptura efetiva distributivista. do padrão autocrático de dominação social: as A campanha eleitoral de 1989 mostrou tam- classes populares seriam conduzidas ao poder, o bém outra polarização ideológica: a oposição en-
  • 8. 42 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . tre dois tipos diferentes de ideais democráticos. indústria doméstica. Finalmente, deu-se seqüência Embora todos os partidos fossem favoráveis à de- à política de integração regional com os países da mocracia, aqueles que tinham a liberalização eco- fronteira sul, instituindo-se o Mercosul (1991), com nômica no centro de sua agenda sinalizavam a vistas a ampliar o mercado para os produtos do- aceitação da democracia representativa, mesmo mésticos de seus participantes. quando questionavam a forma presidencialista de Essas medidas significavam o descarte da governo. No outro pólo, o da esquerda, enfatiza- estratégia anterior de desenvolvimento, vigente va-se o caráter limitado da democracia represen- plenamente até o início dos anos de 1980, cuja tativa (o de só dar espaço para atuação popular pretensão era construir uma estrutura industrial nos períodos eleitorais) e predominava a idéia de completa e integrada, usando o Estado como es- avançar em direção a formas mais participativas cudo protetor ante a competição externa e como de democracia. alavanca do desenvolvimento industrial e da em- Em suma, com a vitória de Fernando Collor presa privada nacional. de Mello – político identificado com o neolibera- Essa reorientação estratégica, embora sintoni- lismo e pouco simpático aos experimentos parti- zada com as novas inclinações liberais dos empre- cipativos da democracia –, as eleições presiden- sariado local e com as tendências ideológicas domi- ciais de 1989 tornaram-se o marco divisório entre nantes no plano internacional, foi insuficiente para dois momentos da transição política brasileira, soldar um novo pacto político que superasse a cri- quais sejam, o período em que predominou a de- se de hegemonia iniciada em 1983. Não obstante mocratização política e o que teve como seu im- Collor parecesse ser um César auspicioso surgido pulso básico a liberalização econômica. das fissuras da ordem política em crise com a pro- messa de superá-la, seu governo, em vez disso, contribuiu para aprofundá-las drasticamente, frus- A nova hegemonia liberal e suas trando as expectativas das forças políticas em cena. conseqüências16 Para estabilizar a moeda o Plano Collor congelou preços, confiscou provisoriamente e reduziu parte O governo Collor confirmou, em parte, a in- da riqueza financeira das classes médias e empre- flexão liberal manifestada no embate eleitoral de sariais. Assim, além de atingir a riqueza material, 1989. Contribuiu para danificar o quadro institu- ameaçou a segurança jurídica da propriedade priva- cional nacional-desenvolvimentista e redirecionar da. Ademais, o governo submeteu as organizações a sociedade brasileira em um sentido anti-estatal tradicionais dos empresários a ataques verbais sis- e internacionalizante. temáticos organizando, ao mesmo tempo, grupos Ainda assim, embora dando ao Estado o im- de empresários para apoiá-lo na implementação de pulso inicial para conformar uma nova estratégia de suas políticas. Também procurou exercer o poder desenvolvimento, o governo Collor não conseguiu dissociado da classe política e de seus mecanismos vencer a crise de Estado experimentada pela socie- tradicionais de sobrevivência; reduziu as despesas dade brasileira desde o início da década de 1980. do Estado de forma arbitrária por meio da demis- Durante o período Collor, as licenças e as são em massa de servidores, desorganizando a ad- barreiras não tarifárias à importação foram suspen- ministração pública; e tentou enfraquecer as orga- sas e as tarifárias alfandegárias foram redefinidas, nizações oposicionistas de trabalhadores criando-se um programa para sua redução progres- estimulando organizações alternativas ligadas ao siva ao longo de quatro anos.17 Ao mesmo tempo, governo. No campo internacional, Collor também programou-se a desregulamentação das atividades teve dificuldades. Apesar de sua orientação liberal econômicas e a privatização das companhias esta- e internacionalizante, a primeira equipe econômica tais que não estivessem protegidas pela Constitui- do governo tentou postergar o fim da moratória ção, afim de recuperar as finanças públicas e redu- herdada do período Sarney e enfraquecer a posição zir aos poucos o papel do Estado no incentivo à dos bancos estrangeiros privados na negociação da
  • 9. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 43 dívida externa. Essa estratégia contribuiu para en- de aumento no volume das aplicações financeiras fraquecer ainda mais o suporte da elite econômica nos países centrais e em direção aos mercados brasileira e estimulou o governo dos Estados Uni- “emergentes”, o “alívio” produzido nas carteiras dos a opor-se a ele e a proteger o sistema bancário dos credores em função do Plano Brady de rene- norte-americano. As dificuldades externas só dimi- gociação da dívida externa e o aperfeiçoamento nuíram quando uma equipe econômica muito mais das políticas de liberalização econômica nos países liberal tomou posse, em 1991.18 periféricos.21 De qualquer forma, “depois de quase Nesse contexto político tão perturbado é dez anos de transferências de recursos líquidos ne- que Fernando Collor foi acusado de ser o chefe gativos, a América Latina recebeu transferências oculto de um esquema governamental de corrup- positivas do resto do mundo. A magnitude dos flu- ção. Depois de ser investigado e processado pelo xos de capital líquido para a nação cresceu drasti- Congresso, renunciou à Presidência da República camente em 1992 e 1993, ultrapassando 20 bilhões para evitar o impeachment.19 Em suma, Collor fra- de dólares” (Edwards, 1995, p. 82). cassou como César.20 Suas ações acirraram a crise O grande afluxo de capital para o Brasil,22 os política. Em vez de dar às forças políticas em dis- legados do período Collor (avanço do liberalismo puta os meios para resolver de forma negociada econômico, no plano ideológico e institucional, e seus próprios impasses, ele tentou impor-lhes rejeição a soluções autocráticas para a crise), a uma solução alternativa “de cima para baixo”. exacerbação da instabilidade político-econômica Tentou restaurar de forma autocrática a estabilida- durante o período Itamar Franco e o avassalador de da moeda – base das relações de troca e da au- crescimento do prestígio popular de Luiz Inácio toridade do Estado sobre o mercado – em uma da Silva, candidato de esquerda à Presidência de sociedade que, embora mal alinhavada politica- República, foram algumas das condições e, ao mente, já havia avançado muito no caminho da mesmo tempo, alavancas poderosas para a nova democratização. Com efeito, o impeachment do tentativa, realizada em 1994, de superar a crise de presidente Collor de Mello dificilmente teria ocor- hegemonia que minava a sociedade brasileira rido se não houvesse avançado tanto na socieda- desde o início da década de 1980.23 de o sentimento/concepção de que o governo e o As condições e as características do sistema ins- Estado deviam obedecer a limites políticos e mo- titucional brasileiro especificam a fortuna com que se rais muito mais estreitos do que anteriormente. defrontaram algumas lideranças políticas que, bem Ele também não teria ocorrido se a capacidade de situadas no seio do Estado e temerosas de perder o ação autônoma dos vários agrupamentos sociais e seu controle, tiveram virtú suficiente para aproveitar dos vários centros de poder do Estado não tives- a ocasião e negociar a associação entre partidos de se crescido tanto. As manifestações de dezenas de centro e de direita em torno da continuidade das re- milhares de jovens “caras pintadas” que exigiram formas liberais, da estabilização da economia e da nas ruas o impeachment, os testemunhos corajo- tomada do poder político central. Tudo isso foi ma- sos de trabalhadores subalternos contra o chefe terializado nos lançamentos bem-sucedidos do Pla- de Estado, a conduta autônoma da imprensa, do no Real e da candidatura à Presidência da Repúbli- rádio e da televisão, assim como do Congresso e ca de seu articulador, o então Ministro da Fazenda, do Judiciário são expressões – cada uma a seu Fernando Henrique Cardoso. modo – do processo de democratização política A referência à fortuna e à virtú permite reto- do país. mar cum grano salis a idéia de “momento maquia- Embora este governo tenha fracassado na veliano”, de John Poccok, que enfatiza o papel da tentativa de superar a crise brasileira, desde o final liderança na manipulação criativa das oportunida- dos anos de 1980 as condições econômicas inter- des legadas pela fortuna para fazer prevalecer os nacionais vinham se tornando mais positivas para interesses gerais da comunidade política ameaça- os países da periferia. Alguns fatores e decisões da pela confrontação entre interesses particularis- políticas possibilitaram essa reversão, como o gran- tas, reconstruindo com isso o Estado.24
  • 10. 44 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . Segundo Sola e Kugelmas (1996), o próprio de 1995 os representantes de um novo sistema Plano Real teria sido a construção desse “princí- hegemônico de poder assumiriam o comando de pio de universalidade [...] capaz de assegurar a su- um Estado ancorado numa moeda provavelmente peração da particularidade e da contingência ine- estável. Nada parecia faltar para que eles pudes- rentes ao comportamento descontrolado das sem completar bem a tarefa de moldar a socieda- forças em conflito”, para retomar os termos se- de ao ideário econômico liberal. gundo os quais Malloy e Connaghan (1996) defi- A partir de 1995, os novos governantes trata- nem o momento maquiaveliano. Seguindo esse ram de eliminar os resíduos do Estado varguista e raciocínio, a utilização criativa da Revisão Consti- de construir novas formas de regulamentar o mer- tucional25 em curso no sentido de gerar condições cado, seguindo um sistema multifacetado de fiscais mínimas para a estabilização (Fundo Social idéias, cujo denominador comum era um liberalis- de Emergência, votado em fevereiro de 1994); a mo econômico moderado. As características cen- instituição de uma moeda paralela, a URV (Unida- trais desse ideário podem ser assim resumidas: o de de Referência Variável), unidade de conta que Estado deveria transferir quase todas as suas fun- generalizou a indexação e sincronizou preços e ções empresariais para a iniciativa privada; teria salários, criando uma espécie de “hiperinflação de que expandir suas funções reguladoras e suas po- laboratório”; e a substituição, no dia 1º de julho líticas sociais; as finanças públicas deveriam ser de 1994, da URV pelo real, nova moeda ancora- equilibradas e os incentivos diretos às companhias da, mas não igual, ao dólar; tudo isso, além de privadas seriam modestos; haveria também restri- dezenas de regulamentações específicas, teria ção aos privilégios existentes entre os servidores produzido a estabilidade. públicos; e o país deveria intensificar sua articula- Contudo, o Plano Real não foi senão um ção com a economia mundial, embora dando passo, certamente essencial, na construção do prioridade ao Mercosul e às relações com os de- “princípio de universalidade” que permitiu supe- mais países sul-americanos. rar a conjuntura crítica anterior. Embora tenha Esse conjunto básico de idéias liberais mate- sido uma fórmula técnica brilhante para estabili- rializou-se em iniciativas que mudaram drastica- zar a moeda, cujo sucesso foi essencial também mente as relações anteriores entre mercado/Esta- do ponto de vista eleitoral, o Plano foi apenas do e a ordem de prioridades do Estado em relação uma peça subordinada do “momento maquiave- aos segmentos socioeconômicos, tanto em termos liano”, cujo elo principal foi a aliança política en- patrimoniais como institucionais. O alvo central tre partidos de centro e direita em torno de um dessas políticas era solapar alguns dos fundamen- projeto de tomada de poder e de reconstrução do tos legais do Estado nacional-desenvolvimentista, Estado em uma perspectiva liberal. O próprio pa- em parte assegurados pela Constituição de 1988, pel da liderança, sua virtú, embora crucial foi li- e diminuir a participação do Estado nas atividades mitado, na medida em que deu o acabamento fi- econômicas. Neste ponto, o governo de Cardoso nal a um processo de construção da hegemonia foi bem-sucedido, já que os projetos de reforma liberal cujos alicerces tinham sido erguidos, no constitucional e infra-constitucional submetidos plano societário, durante a segunda metade da ao Congresso foram quase todos aprovados, entre década de 1980. os quais se destacaram a) o fim da discriminação O extraordinário sucesso do Plano Real, a constitucional ao capital estrangeiro; b) a explora- eleição de Fernando Henrique Cardoso para a Pre- ção, o refino e o transporte de petróleo e gás, mo- sidência da República já no primeiro turno, a es- nopolizados pela companhia estatal de petróleo colha de um Congresso Nacional onde o chefe de (Petrobrás), foram transferidos para a União e Estado pode construir uma aliança partidária am- convertidos em concessão do Estado às empresas, plamente majoritária, a vitória de políticos aliados principalmente a estatal, que manteve grandes do presidente em quase todos os estados – tudo vantagens em relação a outras concessionárias isso já permitia antever que no dia 1º de janeiro privadas; e c) o Estado foi autorizado a conceder
  • 11. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 45 os direitos de exploração dos serviços de teleco- raram conflitos reiterados sobre a política econô- municação (telefonia fixa e celular, exploração de mica e acabaram dando um caráter híbrido às satélites etc.) a companhias privadas (anterior- ações do Estado. No se interior havia, de um lado, mente as empresas públicas tinham o monopólio uma corrente liberal fundamentalista orientada ba- dos serviços). sicamente para a estabilização monetária e com- Além de promover esse conjunto de reformas prometida com a promoção de uma economia de constitucionais, o governo Fernando Henrique Car- livre mercado e, de outro, uma tendência liberal- doso não só estimulou o Congresso a aprovar a lei desenvolvimentista, mais inclinada a equilibrar es- complementar que regulava as concessões de ser- tabilização monetária com um crescimento com- viços públicos à iniciativa privada, autorizada pela petitivo da economia local mediante a intervenção Constituição (eletricidade, estradas, ferrovias etc.), moderada do Estado. mas também conseguiu a aprovação de uma lei de Ao longo do primeiro mandato de Fernando proteção aos direitos de propriedade industrial e Henrique Cardoso, a primeira versão de liberalismo intelectual, tal como recomendado pela OMC e, predominou, servindo de orientação e dando con- ainda, efetuou um enorme programa de privatiza- sistência à ação dos que dirigiram a política econô- ções e venda de concessões, preservando o pro- mica governamental.27 Os fundamentalistas tenta- grama de abertura comercial já implementado. De ram obter a estabilização monetária com políticas forma similar, os governos dos estados realizaram de câmbio sobrevalorizado,28 juros altos e ajuste fis- programas de privatização e concessões, mas em cal brando. A segunda corrente liberal, a desenvol- menor escala. vimentista, não tinha a consistência da primeira, Outra área importante atingida por medidas pois não possuía um texto programático nem orien- disciplinares foram as finanças públicas. Fixaram- tava sistematicamente a ação governamental.29 En- se limites máximos para todos os pagamentos de tretanto, o liberal-desenvolvimentismo inspirou al- pessoal, as dívidas dos estados e municípios fo- gumas políticas destinadas a contrabalançar as ram renegociadas e foram proibidos, por muito conseqüências negativas da ortodoxia liberal para tempo, novos empréstimos e renegociações junto setores específicos da economia ou mesmo promo- ao governo Federal.26 ver o crescimento de algumas atividades produtivas Esse conjunto de iniciativas parecia ter ma- terializado o código comum de um novo bloco no país. Deve-se salientar que esse tipo de desen- hegemônico de dominação, adotado por políticos volvimentismo liberal, em lugar de visar à constru- e burocratas com comando sobre o poder Execu- ção de um sistema industrial nacionalmente integra- tivo, pela grande maioria de parlamentares, por do, reivindica que a produção doméstica tenha empresários dos mais variados setores, pela mídia uma participação significativa no sistema econômi- etc. e, gradualmente, dominou a classe média e co mundial. Ele só aceita formas bem definidas de parte do sindicalismo urbano e das massas popu- intervenção estatal no sistema produtivo, como po- lares. Com efeito, as medidas legislativas foram fa- líticas industriais setoriais, desde que limitadas no cilmente aprovadas pelo Congresso Nacional, tempo e no montante de subsídios. Não deseja apesar da oposição de uma minoria da esquerda substituir importações a qualquer custo, mas au- portadora das bandeiras da “defesa do patrimônio mentar a competitividade de alguns setores econô- público” e da “economia nacional”. As privatiza- micos e, no máximo, reduzir a dependência exter- ções e as vendas de concessões também foram na pelo “adensamento das cadeias produtivas”, bem-sucedidas e tiveram apoio popular, apesar introduzindo novos elos no tecido industrial, sem das disputas forenses e das manifestações de rua perder de vista, porém, a necessidade de equiparar promovidas por organizações de esquerda. sua competitividade aos padrões internacionais.30 Contudo, nesse novo bloco político hegemô- Embora durante o primeiro governo Cardoso nico, vinculado pelo já mencionado liberalismo a sobrevalorização do câmbio e as altas taxas de ju- econômico moderado, fortes divisões internas ge- ros tenham produzido estabilidade monetária, tam-
  • 12. 46 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . bém conduziram a economia brasileira a um dese- cionais e o governo agiu de forma semelhante, ou quilíbrio externo bastante sério. Para reduzi-lo o seja, manteve a estabilidade da moeda elevando governo limitou um pouco a apreciação cambial e drasticamente os juros para preservar as reservas e acentuou a elevação dos juros com dois objetivos refrear tanto a atividade econômica interna como o complementares: refrear a atividade econômica do- desequilíbrio externo. Essas medidas conseguiram méstica e as importações, diminuindo em conse- preservar o valor da moeda em relação ao dólar e qüência o déficit comercial, e atrair capitais do Ex- manter a inflação em nível muito baixo, embora terior para financiar o desequilíbrio externo do não reduzissem a fragilidade financeira externa do país, mantendo assim um nível de reservas alto o país, pois aumentavam a dívida pública e não re- bastante para ancorar a nova moeda nacional. Esse duziam o déficit de transações correntes com o Ex- programa de estabilização sustentava-se numa per- terior. Além disso, elas restringiram muito o cresci- cepção otimista do mercado financeiro global, que mento do produto nacional bruto e elevaram via sua liquidez como permanente e capaz de bastante as taxas de desemprego.31 equilibrar com empréstimos e investimentos dese- A fragilidade financeira do país em relação quilíbrios ocasionais no balanço de transações cor- ao Exterior acabou cobrando um preço alto de- rentes do Brasil com o Exterior, caso o desempe- mais. A política cambial brasileira teve de ser alte- nho econômico do país fosse adequado. rada no início do segundo mandato de FHC para A crise financeira do México, em dezembro evitar o esgotamento das reservas em moeda es- de 1994, mostrou pela primeira vez os riscos de trangeira que ancoravam o real. Sublinhe-se ainda adequar a política macroeconômica à orientação que a mudança ocorreu apesar de o governo ter liberal fundamentalista. De fato, tal crise deixou assinado acordo com o FMI em novembro de 1998 claro que, dependendo das circunstâncias inter- e ter obtido grande empréstimo dos Estados Uni- nacionais, poderia ser difícil obter capital no Ex- dos para se defender com mais segurança da fuga terior para financiar um desequilíbrio acentuado de capitais externos. nos balanços comerciais e de serviços. Apesar A substituição do antigo nacional-desenvol- dessa advertência e embora o governo tenha ado- vimentismo por uma estratégia liberal de desen- tado algumas políticas compensatórias para prote- volvimento redirecionou o Estado em relação a ger a economia doméstica, sua orientação ma- vários setores socioeconômicos. Ressalte-se a pro- croeconômica básica foi mantida até a crise pósito que, desde o lançamento do Plano Real até cambial de janeiro de 1999. janeiro de 1999, a estratégia liberalizante privile- Essa obstinação contribuiu para aumentar giou nitidamente a esfera financeira ante as ativi- muito a fragilidade financeira externa da econo- dades produtivas e comerciais por meio das polí- mia brasileira e a debilidade do Estado ante os ticas de juros altos e câmbio sobrevalorizado. credores privados, pois levou ao endividamento Estas duas políticas funcionaram o tempo todo crescente para cobrir os desequilíbrios gerados como bombas de sucção dos recursos do Estado pela política macroeconômica. Como resultado da e das atividades produtivas e comerciais para os dependência financeira, as mudanças nas condi- detentores, locais ou estrangeiros, de capital fi- ções do mercado internacional afetaram cada vez nanceiro. Isso mostra haver nítida afinidade entre mais, pela variação do fluxo de capitais, o equilí- o predomínio do fundamentalismo liberal no blo- brio das contas externas do país e expuseram a co político hegemônico e a fase da “financeiriza- moeda nacional a ataques especulativos tenden- ção da riqueza” que caracteriza o capitalismo tes a desvalorizá-la. Assim, depois da crise mexi- mundial contemporâneo.32 cana, a crise financeira asiática de 1997 e a mora- Entretanto, a transformação mais distintiva tória russa de agosto de 1998 abriram caminho a ocorrida na relação Estado/economia foi terem as tais ataques especulativos. empresas estatais deixado de ser os suportes da Em todas essas situações críticas o país per- gestão econômica governamental. Além de a maio- deu uma grande quantidade de reservas interna- ria das estatais ter sido privatizada, algumas áreas
  • 13. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 47 antes atendidas pela administração direta do Estado em torno da assinatura de acordos de livre-comér- passaram aos cuidados de empresas privadas (ma- cio com os Estados Unidos e a União Européia – nutenção de estradas de rodagem, por exemplo). A os assuntos agrícolas e a luta contra as políticas diminuição drástica das funções empresariais do Es- protecionistas dos países centrais tornaram-se um tado não eliminou o intervencionismo estatal, mas ponto central da diplomacia brasileira. o modificou profundamente. O Estado expandiu As mudanças na orientação do Estado foram suas funções normativas e de controle por meio de tão profundas que romperam um dos parâmetros agências reguladoras setoriais (telecomunicações, básicos da velha aliança nacional-desenvolvi- eletricidade, petróleo e gás, por exemplo) e mante- mentista: a propriedade agrária deixou de ser in- ve grande parte de sua capacidade de moldar a ati- tocável. A própria estabilização monetária redu- vidade econômica pelo financiamento de longo ziu os preços da propriedade territorial, antes prazo às empresas privadas e pela compra de bens muito usada como reserva de valor. Além disso, e serviços. não só por iniciativa do próprio governo, mas Também as companhias privadas nacionais também por pressão social do Movimento dos deixaram de ser o foco privilegiado das políticas Trabalhadores sem Terra (MST), da Confederação estatais. Não só as companhias estrangeiras foram Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (Contag) e constitucionalmente equiparadas às nacionais, da Igreja Católica, durante os dois mandatos de mas também a orientação estatal básica foi a de Cardoso desenvolveu-se um grande programa atrair ao máximo os investimentos externos e a de de reforma agrária. Este incluiu desapropriações de promover sua associação com as empresas lo- propriedades improdutivas e o assentamento cais.33 Além dessa orientação geral (tanto da União de centenas de milhares de famílias de trabalha- quanto dos estados), o governo federal tentou dores agrícolas sem terra, assim como um con- atrair, sistematicamente, as companhias multina- junto de reformas institucionais e medidas espe- cionais para ramos da indústria como o automoti- cíficas que elevaram a taxação sobre terras vo, o de telecomunicações etc., modulando as leis improdutivas e aumentaram o controle do poder tributárias e o sistema de financiamento e toman- público sobre a propriedade fundiária, inclusive do iniciativas para “vender” a imagem do Brasil pela retomada da posse sobre imensas áreas ile- como um excelente destino para o capital estran- galmente apropriadas por grileiros. geiro. É possível que isso tenha ajudado o Brasil a se tornar um dos maiores destinos do investi- mento estrangeiro direto no mundo, embora sem- Liberalismo, desenvolvimentismo pre ultrapassado, entre os países “emergentes”, e democracia pela China.34 Outra mudança importante introduzida na Embora a reeleição de Fernando Henrique relação Estado/economia é que, desde 1995, ten- Cardoso em 1998 e a manutenção quase total de deu a desaparecer a prioridade política antes seu suporte político (no Congresso e entre os go- concedida ao desenvolvimento das manufaturas vernadores) tenham confirmado a aquiescência industriais. No âmbito de BNDES, principal agen- da maioria em relação ao programa liberal, o go- te financeiro da industrialização brasileira, foi no- verno perdeu sua força política anterior, pois dei- tável a diversificação das atividades econômicas xou de ter controle sobre sua política econômica atendidas. Além de manufaturas, foram financia- (foi levado a desvalorizar da moeda em janeiro de das empresas comerciais, agrícolas etc. A agricul- 1999 mesmo depois de recorrer ao apoio do FMI tura empresarial, sobretudo, foi diretamente be- e do governo norte-americano) e foi constrangido neficiada pelo governo federal e teve seus por enormes dificuldades econômicas. interesses de expansão convertidos em demanda É verdade que o governo teve sucesso na prioritária da política externa brasileira. Desde substituição do regime de câmbio semi-fixo e so- 1996 – quando ganharam impulso as discussões brevalorizado pelo câmbio flutuante e no manejo
  • 14. 48 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . da política monetária. A estabilidade da moeda foi vimentista. Com efeito, desde o começo de 2000 mantida e, depois da estagnação de 1999, houve o Ministério do Desenvolvimento, o da Ciência e um crescimento de 4% do PIB em 2000. Entretan- Tecnologia, a Secretaria do Planejamento e até a to, o apoio do FMI foi dado e renovado em troca Presidência da República manifestaram sinais des- do compromisso de o governo fazer um severo se tipo de transformação, mais acentuada ainda ajuste fiscal, objetivando produzir um grande su- com a aproximação das eleições de 2002. Mesmo perávit anual nas contas públicas (sem considerar assim, os portadores do fundamentalismo liberal os juros devidos), um superávit grande o bastante mantiveram o controle sobre as principais alavan- para permitir reduzir a proporção da dívida públi- cas do poder – o Ministério da Fazenda e o Ban- ca em relação ao PIB.35 Além disso, a estagnação co Central – e por meio delas preservaram a prio- internacional de 2001 e 2002, a crise da Argentina ridade para a estabilização, embora tenham e o risco político associado à eleição presidencial adotado a política fiscal, em lugar da política cam- de 2002 produziram constrangimentos adicionais bial, como instrumento central para conservá-la. às políticas governamentais. Houve, de fato, uma Em suma, o bloco hegemônico manteve suas di- importante redução dos fluxos de investimentos visões internas, embora atenuadas, e seus confli- externos diretos (IDE) para o Brasil e dificuldades tos internos foram deslocados da questão cambial para rolar as dívidas externa e interna.36 para assuntos fiscais. Como conseqüência, as de- Assim, uma vez mais, revelaram-se a depen- cisões governamentais tenderam a ser lentas e dência externa e a fragilidade econômica do Bra- não sistemáticas. sil, apesar da nova política de câmbio flutuante. As dificuldades econômicas e políticas men- Esta não pode proteger plenamente a economia cionadas contribuíram também para enfraquecer da conjuntura internacional negativa e das incer- a coalizão política que governava o Estado du- tezas políticas em função das enormes dívidas ex- rante o segundo governo Cardoso. No seu pri- terna e interna produzidas pela política de estabi- meiro mandato, o presidente FHC tinha um alto lização do primeiro governo Cardoso e do prestígio popular, originado principalmente da crônico déficit brasileiro nas suas transações cor- súbita estabilização monetária, o que reforçou os rentes com o exterior. As contramedidas do Ban- poderes presidenciais usuais e o ajudou muito a co Central – aprofundar o ajuste fiscal, aumentar lidar com a ampla coalizão de partidos governis- as taxas de juros e assinar novos acordos com o tas para executar o programa reformista liberal. FMI –, embora protegessem a solvência financei- Além disso, a estabilidade monetária conseguida ra do Brasil, reduziram o crescimento do PIB em pelo Plano Real e a política de contenção econô- 2001 e 2002 a menos de 2% anuais.37 mica que predominou no primeiro governo de A nova gestão macroeconômica surgida a Fernando Henrique Cardoso restringiu a ação partir da crise cambial de janeiro de 1999 implicou dos movimentos e das organizações das massas algumas mudanças nas relações Estado/setores populares. A hegemonia liberal também dificul- econômicos. As atividades não financeiras tende- tou a mobilização dos sindicatos que se mantive- ram a ganhar mais relevância e o governo estimu- ram ideologicamente vinculados a idéias estatis- lou de diferentes maneiras os segmentos econômi- tas ou social-democratas. Ademais, a propagação cos que podiam ajudar a produzir superávit no do apoio popular ao governo facilitou a adoção comércio exterior. Durante do segundo governo de um estilo tecnocrático de exercer o poder e Cardoso até foi dada atenção e alguma ajuda às reforçou as dificuldades de participação política companhias que tinham certa probabilidade de popular fora dos períodos eleitorais. É notável competir internacionalmente como multinacionais. que, apesar dessas dificuldades, tenha aumenta- Essas mudanças podem ser vistas como si- do muito a mobilização dos trabalhadores agríco- nais de transformação política dentro do bloco las em favor da reforma agrária, forçando o go- hegemônico. Este se inclinou de forma irregular e verno a desenvolver o amplo programa de hesitante em direção a seu pólo liberal-desenvol- reforma agrária antes mencionado.
  • 15. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 49 No segundo governo Cardoso, entretanto, o Cardoso seja aproximando-se do centro do espec- presidente perdeu muito prestígio, principalmen- tro partidário. De fato, além do PT se compor te porque o governo não manteve as promessas, com alguns partidos de esquerda, aliou-se ao Par- desvalorizando a moeda em janeiro de 1999 e de- tido Liberal e fez de um empresário, senador por sencadeando a desconfiança na sua capacidade este partido, o seu candidato à vice-presidente. de manter a estabilidade monetária. A crise cam- Em suma, nas eleições de 2002, o conjunto bial afastou, ao mesmo tempo, a possibilidade de das forças políticas tentou posicionar-se na ala es- o governo realizar em tempo as promessas de re- querda do establishment. Isto significa que todos tomada do crescimento econômico. A inflação eles advogavam mais controle do Estado sobre o alta não voltou e as atividades econômicas come- mercado, mais incentivos estatais para as atividades çaram a crescer, pouco mais de um ano depois, produtivas e maior proteção do Estado para os mais mas, mesmo assim, o presidente não recuperou o pobres, mas tudo isso sem quebrar o molde liberal prestígio político e a liderança que tinha no seu que conforma a coalizão sociopolítica no poder. primeiro mandato. Dessa forma, a coalizão políti- Assim, embora a vitória do Partido dos Tra- ca governamental tornou-se menos disciplinada e balhadores na eleição para a Presidência presidên- o governo perdeu muito de sua capacidade para cia da República tenha resultado, evidentemente, aprovar leis no Congresso e para definir políticas em mudança da coalizão política governamental, específicas, dando margem ao fortalecimento dos ela não tende a produzir qualquer ruptura na he- partidos de oposição. Em contrapartida, tais parti- gemonia liberal estabelecida anos atrás. Mesmo dos passaram por grande metamorfose ao longo que haja tensão entre a nova coalizão político-par- dos anos, tornando-se cada vez mais permeáveis tidária que comanda o Estado e a coalizão socio- às idéias liberais. A mudança foi até o ponto de a política que o vem sustentando, o eixo da agenda camada dirigente do principal partido oposicio- do novo governo é liberal-desenvolvimentista: seu nista, o Partido dos Trabalhadores, não ultrapas- objetivo não é reconstruir o Estado empresarial, sar os limites do que temos denominado liberal- mas reformar o Estado para que possa estimular o desenvolvimentismo. desenvolvimento privado e a igualdade social.38 A luta eleitoral pela Presidência da Repúbli- É certo que os novos governantes vêm afir- ca, em 2002, exprimiu muito bem as mudanças mando que suas políticas ortodoxas são apenas ocorridas no bloco hegemônico, a debilidade da “um remédio inevitável mas provisório”, a ser uti- coalizão política governante e a mudança ideoló- lizado só enquanto a dívida interna e externa e a gica dos principais partidos de oposição. Nenhum estagnação econômica internacional continuarem candidato à Presidência defendeu o fundamenta- a constranger a capacidade de ação do Estado. lismo liberal. Além de advogar idéias liberal-de- Embora o novo governo queira sugerir com isso senvolvimentistas, o candidato situacionista não que há uma diferença qualitativa da política que conseguiu manter o apoio de toda a coalizão de adota com a do anterior, não se vislumbra no ho- sustentação de Cardoso. A ala direita da coalizão rizonte nenhuma alternativa de gestão macroeco- abandonou a candidatura oficial mas não teve nômica que, alterados os atuais constrangimentos, condições de lançar o seu próprio candidato à não pudesse ser adotada também pelo governo Presidência. Foi capaz de mostrar apenas alguma Cardoso, caso ainda estivesse no poder. O que se força no plano regional. Por outro lado, os con- pode esperar, sim, é que o governo Lula no futu- correntes de oposição mostraram-se sintonizados ro expanda e dê uma maior consistência às polí- com as idéias liberal-desenvolvimentistas, a des- ticas de desenvolvimento e às políticas sociais peito da exacerbada retórica nacionalista de al- empreendidas pelo governo Cardoso. Dada a de- guns deles. Especialmente o Partido dos Trabalha- pendência do Estado em relação ao capital finan- dores e seu candidato fizeram grandes esforços ceiro, não parece provável a adoção de políticas para se ajustar ao establishment, seja comprome- muito drásticas de redistribuição do patrimônio e tendo-se a manter o eixo da gestão econômica de da renda, ainda que haja muita boa vontade entre
  • 16. 50 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . as elites em relação a programas de combate à mi- tolerância crescente das classes médias e populares séria e à pobreza. É verdade, também, que o novo diante do comportamento predatório das elites e governo tem advogado uma maior participação também cada vez mais exigências de distribuição política no desenho e na gestão das políticas esta- mais justa da renda. Essas demandas de responsa- tais, contrariando o estilo tecnocrático de decisão bilidade política e social tendem a consolidar as do governo anterior. E que, em função disso, fo- instituições políticas democráticas e, como a válvu- ram criados vários conselhos consultivos – com- la inflacionária – mecanismo de escape típico da- postos por representantes convidados de organi- quela elite em face das pressões distributivas – está zações sociais e por membros do governo. razoavelmente bloqueada, parece provável que Embora as promessas de maior participação polí- paralelamente ao crescimento econômico venha a tica tenham tido, sem dúvida, um alto valor polí- ocorrer uma maior redução dos índices brasileiros tico para a eleição do atual presidente, especial- de desigualdade material e cultural. mente entre os empresários e a classe média, Nas últimas décadas do século XX, por ainda é muito cedo para avaliar se os mecanismos maiores que tenham sido as mudanças ocorridas, imaginados para realizá-las produzirão transfor- o Brasil não escapou de sua condição periférica. mações institucionais significativas que aprofun- A retomada do crescimento acelerado e a conso- dem a ordem democrática vigente. lidação do Mercosul não serão suficientes para Seja como for, o extraordinário conjunto de permitir que isso ocorra. Superar essa condição reformas liberalizantes efetuadas nos anos exige a inclusão social e econômica dos mais po- de 1990 definiu o quadro institucional básico que bres, que ainda permanecem à margem das con- regulará as relações entre o Estado e o mercado e quistas materiais da civilização moderna. Este é o entre o sistema econômico nacional e o capitalis- desafio mais difícil e mais necessário para a socie- mo mundial no começo do século XXI. Esse qua- dade brasileira superar neste século XXI. dro dificilmente será alterado a médio prazo, pois é a materialização de uma nova perspectiva hege- mônica na sociedade. As mudanças ocorridas na NOTAS gestão econômica inclinaram-na cada vez mais para o liberal-desenvolvimentismo, e é razoável 1 Sobre o padrão autocrático de dominação na socie- supor que o novo governo de esquerda tenda a dade e no Estado brasileiros consultar Fernandes reforçar as características centrais dessa inflexão (1975). Em relação ao Estado desenvolvimentista no campo hegemônico liberal. A dependência ex- brasileiro ver Draibe (1985). Marçal Brandão (1997) terna e o Mercosul são os elos mais frágeis da faz uma análise das dificuldades da população em nova forma de integração do país no capitalismo participar autonomamente da política mesmo du- mundial. De um lado, a incapacidade crônica de rante o período de democracia populista anterior ao gerar poupança interna suficiente para sustentar regime militar autoritário instalado em 1964. investimentos ameaça o desenvolvimento econô- 2 A moratória brasileira do final de 1982 e a assinatu- mico contínuo do Brasil. De outro, a fraqueza ra de acordo com o FMI em janeiro de 1983 sinali- econômica e a política dos países membros do zam o caráter externo da crise. Isso não significa Mercosul no plano mundial e a falta de harmonia ausência de desequilíbrio fiscal. Este não dava, po- entre eles pode complicar a sua consolidação rém, especificidade à crise, ao contrário do que tem como bloco regional. Ademais, os Estados Unidos sublinhado Bresser Pereira (1993). A diferença é im- pressionam intensamente para subordinar o Mer- portante pois, se o desequilíbrio fiscal não decor- cosul a um processo de integração que com- resse principalmente do endividamento externo, o preende toda a América sob sua liderança. Estado teria maior raio de manobra para resolvê-lo De uma perspectiva mais ampla, foi notável o de outra forma. Ver Whitehead (1993, pp.1380 e progresso brasileiro na direção de uma sociedade 1382) para uma análise crítica da interpretação de mais democrática. Há nítidas manifestações de in- Bresser Pereira.
  • 17. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 51 3 Tais mudanças de paradigma e nas políticas econômi- 15 No segundo turno eleitoral 37% votaram em Lula, cas foram estudadas por Helleiner (1994, caps. 6 e 7). apenas 4% menos do que no candidato vencedor, 4 A reforma partidária de 1979 rompeu o sistema bi- Fernando Collor de Mello. partidário, instituído pelo regime autoritário em 16 Nesta seção reelaboro parte de análises e informa- 1965. O PDS (Partido Social Democrata) tomou o lu- ções que constam de Sallum Jr. (1999, 2000). O pri- gar da Arena como representante do regime e os meiro texto faz parte, com outros artigos, do “Dossiê partidos PMDB, PDT, PTB e PT assumiram o lugar FHC – 1º Governo”, publicado na revista Tempo So- do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) como cial (Revista de Sociologia da USP). Mais recente- oposição política. Na eleição de 1982, o PMDB ele- mente, Lamounier e Figueiredo (2002) organizaram geu nove governadores de estado e o PDT, um. uma coletânea de trabalhos sobre o governo FHC, 5 Em relação à liberalização política ver Velasco e redigidos por jornalistas com base em pesquisas aca- Cruz e Martins (1983) e Lamounier (1985). dêmicas. Este trabalho contém análises de ótima qua- 6 Sobre o processo de democratização política, ado- lidade, mas seus resultados não alteram substancial- to a perspectiva de Touraine (1995). A democrati- mente a interpretação aqui desenvolvida. zação política tem sido sustentada por processo 17 As tarifas médias eram 31,6% em 1989. Foram re- mais amplo de democratização da sociedade bra- duzidas para 30% em 1990, para 23,3% em 1991, sileira, que não será examinado aqui. para 19,2% em janeiro de 1992, para 15% em outu- 7 O ajuste fiscal escolhido foi muito menos drástico do bro de 1992 até 19,2% em Julho de 1993. que o realizado pelo México, em situação similar. Para 18 A primeira equipe econômica de Collor foi substi- uma visão comparativa, consultar Kaufman (1988). tuída em maio de 1991. A negociação da dívida ex- 8 Faço um relato detalhado dessa crise em Sallum Jr. terna, durante seu governo, foi analisada com exa- ( 1996, cap. 2). tidão em Candia Veiga (1993). 9 A campanha das “Diretas” ultrapassou em parte os 19 Collor renunciou em outubro de 1992. próprios valores básicos que legitimavam o Estado. 20 Emprego o termo cesarismo em sentido metafórico. A partir de então seria insustentável uma hegemo- Ver em Bobbio et al.(1994) um texto curto, mas rico nia fundada na restrição à participação política das sobre o assunto. classes populares. 21 Sobre o Plano Brady, ver Cline (1989). Um texto 10 A Aliança Democrática foi constituída pelo PMDB e sintético sobre os novos fluxos de capital e refor- pela Frente Liberal, dissidência do PDS, que depois mas que caracterizaram a passagem doa anos de converteu-se no Partido da Frente Liberal (PFL). A 1980 para a década de 1990, consultar Naím (1995). candidatura de Paulo Maluf foi lançada pelo PDS e 22 O fluxo voluntário de capital externo começou a apoiada pelo governo militar. voltar ao Brasil em 1991. Suas reservas de câmbio 11 O presidente eleito Tancredo Neves não tomou pos- atingiram 42 bilhões de dólares na metade de 1994, se em 15 de março de 1985 porque ficou repentina- quando o Plano Real foi lançado. mente doente, morrendo poucas semanas depois. 23 Há um bom estudo sobre as condições políticas e Em seu lugar foi empossado o vice-presidente José econômicas na época do Plano Real em Sola e Ku- Sarney que governou até 15 de março de 1990. gelmas (1996). 12 A esse respeito, consultar o trabalho de Noronha, 24 Malloy e Connaghan (1996) e Mettenhein e Malloy Gebrin e Elias Jr. (2003). (1998) analisaram algumas experiências políticas lati- 13 Durante o governo Sarney, podem ser contadas como no-americanas sob à luz do que Pocock entende por tentativa heterodoxas de superar a instabilidade eco- “ momento maquiaveliano”. Sola e Kugelmas(1996) nômica os planos “Cruzado”, lançado em fevereiro de estudaram a eleição e o Plano Real de Cardoso sob 1986, “Bresser”, editado em meados de 1987, e “Ve- a mesma ótica. rão”, cuja vigência foi iniciada em janeiro de 1989. 25 Durante o período de Revisão Constitucional as re- 14 Biersteker (1995) trata desse processo de difusão. formas podiam ser aprovadas por maioria simples.
  • 18. 52 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . 26 No segundo governo de Fernando Henrique Cardo- 26,8 bilhões em 1998, e finalmente para US$ 31,2 so foram aprovadas normas estritas de “responsabi- bilhões em 1999. lidade fiscal” para os governantes e penalidades 35 O compromisso de produzir superávit primário para os transgressores. anual de 3,5% do PIB (elevado em 2002 para 27 Os principais representantes dessa corrente ideoló- 3,75%) implicou uma grande contenção de gastos. gica no governo foram o primeiro presidente do Ainda mais que os números foram de fato supera- Banco Central, Gustavo Franco, e o Ministro da Fa- dos. Sublinhe-se que, durante o primeiro mandato zenda, Pedro Malan. Fora do governo suas princi- de FHC, embora o governo defendesse a necessida- pais expressões intelectuais foram os economistas de de ajustar as contas públicas, apenas as mante- da PUC-Rio de Janeiro. ve equilibradas (não contando os juros pagos). 28 Apesar da retórica política da oposição política, a 36 Os fluxos de IDE foram de US$ 33,3 bilhões em 2000, sobrevalorização do câmbio não se vincula ao ideá- caíram para US$ 20 bilhões em 2001 e para US$ 16,6 rio neoliberal, que recomenda, ao contrário, um bilhões em 2002. As dificuldades de rolagem da dívi- market exchange. A versão brasileira radical de li- da interna manifestaram-se apenas em termos de cus- beralismo adotou a sobrevalorização para forçar as to monetário mais alto. Em relação à dívida externa, empresas brasileiras a se enquadrarem rapidamen- houve redução dos montantes disponíveis para reno- te, sob pena de desaparecimento, aos padrões do var linhas de crédito às exportações, algo que não mercado, isto é, aos níveis internacionais de preços ocorrera sequer na crise dos anos de 1980. e produtividade. Eis porque denomino fundamenta- 37 Apesar do considerável ajuste fiscal, o Brasil não lista esse tipo de liberalismo. conseguiu reduzir a proporção de sua dívida pública 29 Representavam esse ponto de vista, no primeiro go- em relação ao PIB. Em compensação, a enorme des- verno FHC, principalmente José Serra, ministro do valorização cambial relacionada à incerteza eleitoral Planejamento, Luiz Carlos Mendonça de Barros, de 2002 ajudou o Brasil a gerar um superávit comer- presidente do BNDES, e José Roberto Mendonça de cial de US$ 13,1 bilhões, o que reduziu o déficit ex- Barros, secretário de Política Econômica. Fora do terno corrente a 1,7% do PIB (entre 1998 e 2001 o governo o nome mais relevante era o do deputado déficit anual tinha atingido mais de 4% do PIB). federal Delfim Neto, figura importante do regime 38 É importante sublinhar que no Brasil e em outros autoritário, em que ocupou diversos ministérios da países latino-americanos os adeptos do liberalismo área econômica. econômico não costumam se opor ao Estado de 30 Em Sallum Jr. (2000) tratei dessas medidas compensa- Bem-Estar, mas ao Estado Empresário (nacional-de- tórias. Sobre o conceito de política industrial referido, senvolvimentista), manifestando-se a favor de polí- consultar Mendonça de Barros e Goldenstein (1997). ticas sociais. 31 As taxas médias anuais de desemprego evoluíram da seguinte maneira: 4,85% (de julho de 1994 a ju- nho de 1995); 5,75% (1995-1996); 5,77% (1996- BIBLIOGRAFIA 1997); 7,37% (1997-1998); e 8,32% (1998-1999). BRAGA, José Carlos de Souza. (1987), “Financei- 32 Tomo o conceito de Braga (1997). Além do texto ci- rização global: o padrão sistêmico de ri- tado podem ser consultadas os trabalhos de Chesnais queza do capitalismo contemporâneo”, (1996, 1998) que, embora de forma um pouco diver- in Maria da Conceição Tavares e José sa, vão na mesma direção. Luís Fiori (orgs.), Poder e Dinheiro: 33 A própria política de estabilização no primeiro go- uma economia política da globaliza- verno de FHC contribuiu para dar vantagens às em- ção, Petrópolis, Vozes. presas estrangeiras em relação às nacionais. BOBBIO, Norberto et al. (1994), Dicionário de 34 Em 1996 o IDE atingiu apenas US$ 9,6 bilhões; em politica, 6 ed., Brasília, Editora da UnB, 1997 subiu para US$ 17,9 bilhões e depois para US$ vol. 1.
  • 19. METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 53 CHESNAIS, François. (1996), A mundialização do LAMOUNIER, Bolivar & Figueiredo, Rubens capital. São Paulo, Xamã. (orgs.). (2002), A era FHC: um balanço. _________(org.). (1998), A mundialização finan- São Paulo, Cultura Editores Associados. ceira: gênese, custos e riscos. São Paulo, MALLOY, James & CONNAGHAN, C. (1996), Un- Xamã. settling Statecraft, democracy and neoli- CLINE, William. (1989), “From the Baker plan to beralism in Central Andes. Pittsburg, the Brady plan”, in Israt Husain e Ishac Pittsburg University Press. Diwan (eds.), Dealing with the debt cri- MARÇAL BRANDÃO, Gildo. (1987), A esquerda sis, Washington D.C., World Bank Sim- positiva. São Paulo, Hucitec. posium. POCOCK, John. G. A. (1975), The machiavelian BIERSTEKER, Thomas. (1995), “The “triumph” of moment. Princeton, Princeton Univer- liberal economic ideas”, in Barbara Stal- sity Press. lings (ed.), Global change, regional res- MATTENHEIM, Kurt & MALLOY, James. (1998), ponse, Cambridge, Cambridge Univer- “Introduction”, in K. Mattenheim e J. sity Press. Malloy (eds.), Deepening democracy in BRESSER Pereira, Luiz Carlos. (1993), “Economic Latin America, Pittsburgh, University of reforms and cycles of State interven- Pittsburgh Press. tion”. World Development, 21 (8). MENDONÇA DE BARROS, José. Roberto. & GOL- CANDIA VEIGA, João Paulo. (1993), Dívida ex- DESTEIN, Lídia. (1997), “Prefácio”, in terna e o contexto internacional. Dis- BNDES, Balança comercial brasileira, sertação de mestrado apresentada no Rio de Janeiro (série “BNDES Setorial”, Departamento de Ciência Política, São edição especial). Paulo, USP. NAÍM, Moises. (1995), “Latin America the morning DRAIBE, Sonia. (1985), Rumos e metamorfoses: after”. Foreign Affairs, 74 (4), jun.-ago. Estado e industrialização no Brasil, NORONHA, Eduardo G.; GERIN, Vera & ELIAS 1930-1960. Rio de Janeiro, Paz e Terra. JR., Jorge. (2003), “Explaning an excep- EDWARDS, Sebastian. (1995), Crisis and reform in tional wave of strikes: from authorita- Latin America: from despair to hope. rian Brazil to democracy”. Artigo com Nova York, World Bank/Oxford Univer- aceitação preliminar para publicação no sity Press. British Journal of Industrial Relations, FERNANDES, Florestan. (1975), A revolução bur- Oxford, Blackwell Publishers. guesa no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar SALLUM JR., Brasilio. (1996), Labirintos: dos gene- Editores. rais à Nova República. São Paulo, Huci- HELLEINER, Eric. (1994), States and the reemer- tec/Sociologia-USP. gence of global finance. Ithaca/Londres, _________. (1999), “O Brasil sob Cardoso: neoli- Cornell University Press. beralismo e desenvolvimentismo”. Tem- KAUFMAN, Robert. (1988), The politics of debt in po Social (Revista de Sociologia da Argentina, Brazil, and Mexico: econo- USP), São Paulo, 11 (2): 23-47, out. mic stabilization in the 1980s. Berkeley, _________. (2000), “Globalização e desenvolvi- IIS-University of California. mento: a estratégia brasileira nos anos LAMOUNIER, Bolivar. (1985), “Apontamentos so- 90”. Novos Estudos Cebrap, 58, nov. bre a questão democrática brasileira”, in SOLA, L. & KUGELMAS. (1996), “Statecraft, insta- Alain Rouquier, Bolivar Lamounier e bilidade economica e incerteza política: Jorge Schvarzer (orgs.), Como renascem o Brasil em perspectiva comparada”, in as democracias, São Paulo, Brasiliense. Eli Diniz (org.), Anais do seminário in-
  • 20. 54 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº 52 . ternacional: o desafio da democracia na América Latina, Rio de Janeiro, Iu- perj, pp. 398-414. TOURAINE, Alain. (1995), “Democracy: from a politics of citizenship to a politics of re- cognition”, in Louis Maheu (ed.), Social movements and social classes: the future of colletive action, Londres, Sage/ISA. VELASCO E CRUZ, Sebastião & MARTINS, Carlos E. (1983), “De Castello a Figueiredo: uma incursão na pré-história da ‘abertu- ra’”, in Bernardo Sorj e Maria H. Tava- res, Sociedade e política no Brasil pós- 64, São Paulo, Brasiliense. WHITEHEAD, Laurence. (1993), “On ‘reform of the State’ and ‘regulation of the market’”. World Development, 21 (8): 1371-1393.
  • 21. RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 213 METAMORFOSES DO ESTADO METAMORPHOSIS OF THE MÉTAMORPHOSES DE L’ÉTAT BRASILEIRO NO FINAL DO BRAZILIAN STATE IN THE END BRÉSILIEN À LA FIN DU XXE SÉCULO XX OF THE TWENTIETH CENTURY SIÈCLE Brasilio Sallum Jr. Brasilio Sallum Jr. Brasilio Sallum Jr. Palavras-chave Key words Mots-clés Estado; Desenvolvimentismo; De- State; Development; Democratiza- État; Processus de développement; mocratização; Liberalização econô- tion; Economic liberalization; Politi- Démocratisation; Libéralisation éco- mica; Transição política; Brasil. cal transition; Brazil. nomique; Brésil. O artigo procura reconstruir o pro- The article aims at reconstructing Cet article propose une reconstruc- cesso de crise do Estado varguista e both the process of crisis of the State tion de la crise de l’État sous l’ère de transição para a forma nova for- during the Vargas era and the transi- Vargas ainsi que du processus de ma de Estado, moderadamente libe- tion process towards a new format of transition vers une nouvelle forme ral em termos econômicos e demo- State, which was moderately liberal d’État, modérément libéral en termes crática em termos políticos, que in terms of economy and democratic économiques, et démocratique du emergiu nos anos de 1990, ganhou in terms of politics, that emerged in point de vue politique. Cette nouvel- solidez durante sob a presidência the nineties, became consolidated le forme d’État apparue dans les an- de Fernando Henrique Cardoso e foi during the presidency of Fernando nées 1990, s’est consolidée sous le reiterada com a eleição de Luiz Iná- Henrique Cardoso, and has been rei- gouvernement de Fernando Henri- cio da Silva. Procura-se explorar a terated with the election of Luiz Ina- que Cardoso et a été réaffirmée sui- natureza da crise de hegemonia que cio Lula da Silva. It also explores the te à l’élection de Luiz Inácio Lula da marcou o início da transição política nature of the hegemony crisis found Silva. Nous explorons la nature de la brasileira, no início dos anos de 1980, in the beginning of the Brazilian po- crise d’hégémonie qui marqua le dé- e caracterizar a emergência de um litical transition in the early eighties, but de la transition politique brési- novo padrão hegemônico de domi- as well as characterizes the appea- lienne au début des années 80 et nação. Ressalta-se principalmente os rance of a new hegemonic standard tentons de caractériser l’émergence dois aspectos principais da transição of domination. It calls attention for d’une nouvelle référence hégémoni- política – a democratização política two main aspects of the so-called que de domination dans les années e a liberalização econômica – pro- political transition – the political de- suivantes. Nous nous sommes atta- curando-se salientar as transforma- mocratization and the economic li- chés, particulièrement, à deux as- ções da sociedade nacional e da or- beralization – as it enhances the tra- pects principaux de la transition – la dem mundial em que se inserem. nsformations of both the national démocratisation politique et la libé- society and the world order in which ralisation économique –, en mettant they are inserted. l’accent sur les transformations de la société nationale et sur l’ordre mon- dial dans laquelle elle s’inscrit.