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Quando a Evidência Não é o Bastante
Dra.Isabella V. de Oliveira

isaoli@terra.com.br

28/03/2011

Embora historicamente “razão técnica” e “razão moral” tenham sido vistas como opostas, esta
idéia é enganosa “porque uma razão técnica, para ser uma verdadeira razão humana, deve ter
      em conta valores morais”, e “uma razão ética que não tem em devida conta a eficácia e a
                                                              eficiência é sem dúvida injusta”

                                                                                        (Cortina, 1998).

Em minha carreira de médica auditora e gestora de saúde tenho vivenciado diversas situações
que comprovam que nem sempre as evidências científicas são o bastante. Confesso que
inicialmente, eu não concordava com as decisões políticas e comerciais tomadas por algumas
empresas (ou não as entendia), a despeito da inexistência de evidências que comprovassem
ser aquela nova tecnologia eficaz, efetiva ou eficiente. Como técnica, eu sofria ao ver que
algumas incorporações eram feitas, apesar de minhas recomendações terem sido em
contrário. Pensava: Tanto trabalho de pesquisa, coleta de dados, tradução, compilação,
elaboração de parecer, para quê? O tempo passou e hoje compreendo que essas decisões no
mundo real são complexas e envolvem algo mais (considerações sociais, comerciais e éticas),
que não tenho como ignorar.

Diversas decisões contrárias às evidências são tomadas diariamente. Por conta do fenômeno
da “Judicialização da Medicina”, encontramos uma larga fatia de situações que se enquadram
nessa categoria. Nessas ocasiões, não há considerações comercias ou políticas que justifiquem
a inobservância de evidências científicas. Mas, ao liberar uma liminar ou uma antecipação de
tutela, o juiz leva em consideração outros fatores, essencialmente sociais, como o direito
fundamental à vida e à saúde e a existência de periculum in mora e fumus boni iuris1. Ordens
judiciais podem ser acordadas para a provisão de novas tecnologias ao(s) paciente(s) que
recebe(m) ou solicita(m) sua prescrição médica e recorre(m), ignorando evidências científicas,
planejamento e até mesmo sem considerar as legislações dos sistemas nacionais (Trindade,
2008). Isso ocorre tanto na saúde pública quanto na suplementar.

Entretanto, como bem colocou o Professor de Direito Luís Roberto Barroso: “O Judiciário não
pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser
promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer ser mais do que pode ser,


1
  O Fumus boni juris significa fumaça de bom direito. É utilizado para quando há fortes indícios de que se
tem um determinado direito alegado, mas cuja situação de fato ainda precisa ser comprovada. Nos
casos de antecipação de tutela, a fumaça do bom direito aparece como requisito.
O periculum in mora se liga à questão de perigo iminente; o requerente encontra-se frente a
circunstância tal que, pelo simples fato de esperar o procedimento normal da jurisdição, o processo
principal já não terá mais o resultado útil desejado, sofrendo a parte com lesão grave, muitas vezes de
difícil ou até mesmo impossível reparação.
presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns,
causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos.” (Barroso, 2008).

Mas toda essa onda de ações judiciais na saúde representa um modelo perverso e entrar nessa
discussão renderia uma tese de Doutorado. Então, retornando à reflexão inicial, cito algumas
circunstâncias dignas de nota.

Na primeira delas, mesmo que existam evidências científicas que apontam para a efetividade
de uma determinada tecnologia, o sistema de saúde pode não ter verba suficiente para
incorporá-la. Isso acontece muitas vezes no nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Os gestores
públicos têm que se decidir pela alocação de uma verba, que é limitada, em situações
prioritárias e de acordo com as necessidades da população. É o eterno dilema do gestor de
saúde que lida com escassez de recursos num mundo repleto de pressões por incorporações
tecnológicas. Aqui devem ser levadas em conta as necessidades de justiça e equidade. Por
mais recursos que se destinem à saúde, nunca será possível atender a todas as necessidades
de saúde de uma população, esteja ela em um país economicamente desenvolvido ou em
desenvolvimento como o Brasil. Sempre haverá necessidade de se fazer escolhas, e estas são
muitas vezes difíceis na área da saúde (Maynard & Bloor, 1998).

Por outro lado, em outra situação bastante corriqueira tanto na saúde pública quanto na
privada, são solicitadas tecnologias sem evidências comprovadas de efetividade. Isso ocorre
frequentemente em casos de quimioterapias antineoplásicas aplicadas como last chance
treatments. Estas tecnologias se referem a tratamentos promissores em estudos preliminares
que poderiam em teoria, salvar, prolongar e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, mas
que ainda não estariam comprovados cientificamente. Na empresa em que trabalho
atualmente, que atende a um grande número de clientes, são inúmeros os pedidos de
medicamentos off label2 analisados por nossa equipe de auditores. Segundo o rol de
procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), as operadoras não são
obrigadas a dar cobertura a tecnologias experimentais e /ou off label. Além disso, tais
coberturas não são consideradas no cálculo atuarial dos planos. O médico auditor, cuja função
precípua é técnica, deve sempre procurar o controle dos custos com qualidade. Sua função
neste caso é recomendar a negativa de cobertura.

Pois bem, apesar de os médicos auditores conseguirem demonstrar, por meio de estudos
baseados na mais pura evidência científica, que uma determinada tecnologia não trará
benefício algum a um determinado paciente, muitas vezes o cliente decide prover cobertura,
de forma excepcional. Justo? Não. Compreensível? Sim.

Considero não ser justo, pelo fato de que um dos elementos essenciais dos planos de saúde é
o mutualismo ou a solidariedade. Mutualismo se baseia na solidariedade entre os
participantes, ou seja, todos contribuem para o grupo. Ou seja, quando o cliente decide


2
  Uso não aprovado de uma tecnologia; indicações que não constam da bula de um medicamento. A
classificação de uma indicação como off label pode, pois, variar temporalmente e de lugar para lugar. O
uso off label é, por definição, não autorizado por uma agência reguladora, mas isso não implica que seja
incorreto.
abonar um medicamento de alto custo em uma indicação duvidosa, ele decide utilizar a verba
de um grupo de participantes em uma aplicação incerta.

E por que seria compreensível então? Acontece que, nestes casos, fica difícil para o cliente
enfrentar o dilema moral que a situação traz. Quando se solicitam procedimentos ainda sem
comprovação de efetividade, se o tratamento for efetivo para o paciente, não oferecê-lo pode
provocar dano prematuro e infringir os princípios bioéticos da beneficência/não maleficência.
Mas, por outro lado, se o tratamento não for efetivo, oferecê-lo implica em gastar recursos
finitos que poderiam ser mais efetivos em outros procedimentos, infringindo o princípio da
justiça distributiva (Schramm & Escosteguy, 2000). O tomador de decisão precisa considerar as
questões técnicas, mas não pode fechar os olhos às questões éticas, que devem ser
ponderadas. Aqui a questão transcende o técnico e envolve o pagador em uma difícil decisão.
Gregory Pence, docente do Departamento de Filosofia da Universidade do Alabama, afirma
que os custos médicos estão incontroláveis porque falta um acordo moral sobre quando negar
tratamento. Decidir quando dizer "não" e dizer de forma honesta e integra é, talvez, a mais
difícil questão moral que a nossa sociedade se defrontará nos próximos anos (Goldin, 2004).

Concluindo a minha reflexão, avaliações de tecnologias em saúde devem ser eminentemente
técnicas, para terem credibilidade. Os médicos auditores devem se basear nestes estudos e
fazer recomendações de caráter técnico aos clientes / pagadores. Já as decisões por
incorporação tecnológica não são exclusivamente técnicas, e sim técnicas-políticas, levando
em consideração aspectos éticos, econômicos, comerciais e sociais. Não se trata de
desvalorização do trabalho técnico, mas de um olhar holístico necessário à decisão.



Referências:

       1. CORTINA, A., 1998. Ética, tecnología y salud. In: Ética y Salud (M. M. García-
           Calvente, org.), pp. 25-38, Granada: Escuela Andaluza de Salud Pública.

       2. TRINDADE, E. A incorporação de novas tecnologias nos serviços de saúde: o
           desafio da análise dos fatores em jogo. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24,
           n. 5, May 2008.
       3. BARROSO L R. Da falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde,
           Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. R.
           Jur. UNIJUS, Uberaba-MG, V.11, n. 15, p.13-38 novembro, 2008
       4. MAYNARD, A. & BLOOR, K. Our certain fate: rationing in health care. London,
           Office of Health economics. 1998.
       5. SCHRAMM, F. R. & ESCOSTEGUY, C. C. Bioética e avaliação tecnológica em saúde.
           Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(4):951-961, out-dez, 2000.
6. GOLDIN                J              R.             Ética           Aplicada
   à    Alocação    de       Recursos   Escassos.   2004.      Disponível   em
   http://www.ufrgs.br/bioetica/aloca.htm.

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  • 1. Quando a Evidência Não é o Bastante Dra.Isabella V. de Oliveira isaoli@terra.com.br 28/03/2011 Embora historicamente “razão técnica” e “razão moral” tenham sido vistas como opostas, esta idéia é enganosa “porque uma razão técnica, para ser uma verdadeira razão humana, deve ter em conta valores morais”, e “uma razão ética que não tem em devida conta a eficácia e a eficiência é sem dúvida injusta” (Cortina, 1998). Em minha carreira de médica auditora e gestora de saúde tenho vivenciado diversas situações que comprovam que nem sempre as evidências científicas são o bastante. Confesso que inicialmente, eu não concordava com as decisões políticas e comerciais tomadas por algumas empresas (ou não as entendia), a despeito da inexistência de evidências que comprovassem ser aquela nova tecnologia eficaz, efetiva ou eficiente. Como técnica, eu sofria ao ver que algumas incorporações eram feitas, apesar de minhas recomendações terem sido em contrário. Pensava: Tanto trabalho de pesquisa, coleta de dados, tradução, compilação, elaboração de parecer, para quê? O tempo passou e hoje compreendo que essas decisões no mundo real são complexas e envolvem algo mais (considerações sociais, comerciais e éticas), que não tenho como ignorar. Diversas decisões contrárias às evidências são tomadas diariamente. Por conta do fenômeno da “Judicialização da Medicina”, encontramos uma larga fatia de situações que se enquadram nessa categoria. Nessas ocasiões, não há considerações comercias ou políticas que justifiquem a inobservância de evidências científicas. Mas, ao liberar uma liminar ou uma antecipação de tutela, o juiz leva em consideração outros fatores, essencialmente sociais, como o direito fundamental à vida e à saúde e a existência de periculum in mora e fumus boni iuris1. Ordens judiciais podem ser acordadas para a provisão de novas tecnologias ao(s) paciente(s) que recebe(m) ou solicita(m) sua prescrição médica e recorre(m), ignorando evidências científicas, planejamento e até mesmo sem considerar as legislações dos sistemas nacionais (Trindade, 2008). Isso ocorre tanto na saúde pública quanto na suplementar. Entretanto, como bem colocou o Professor de Direito Luís Roberto Barroso: “O Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer ser mais do que pode ser, 1 O Fumus boni juris significa fumaça de bom direito. É utilizado para quando há fortes indícios de que se tem um determinado direito alegado, mas cuja situação de fato ainda precisa ser comprovada. Nos casos de antecipação de tutela, a fumaça do bom direito aparece como requisito. O periculum in mora se liga à questão de perigo iminente; o requerente encontra-se frente a circunstância tal que, pelo simples fato de esperar o procedimento normal da jurisdição, o processo principal já não terá mais o resultado útil desejado, sofrendo a parte com lesão grave, muitas vezes de difícil ou até mesmo impossível reparação.
  • 2. presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos.” (Barroso, 2008). Mas toda essa onda de ações judiciais na saúde representa um modelo perverso e entrar nessa discussão renderia uma tese de Doutorado. Então, retornando à reflexão inicial, cito algumas circunstâncias dignas de nota. Na primeira delas, mesmo que existam evidências científicas que apontam para a efetividade de uma determinada tecnologia, o sistema de saúde pode não ter verba suficiente para incorporá-la. Isso acontece muitas vezes no nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Os gestores públicos têm que se decidir pela alocação de uma verba, que é limitada, em situações prioritárias e de acordo com as necessidades da população. É o eterno dilema do gestor de saúde que lida com escassez de recursos num mundo repleto de pressões por incorporações tecnológicas. Aqui devem ser levadas em conta as necessidades de justiça e equidade. Por mais recursos que se destinem à saúde, nunca será possível atender a todas as necessidades de saúde de uma população, esteja ela em um país economicamente desenvolvido ou em desenvolvimento como o Brasil. Sempre haverá necessidade de se fazer escolhas, e estas são muitas vezes difíceis na área da saúde (Maynard & Bloor, 1998). Por outro lado, em outra situação bastante corriqueira tanto na saúde pública quanto na privada, são solicitadas tecnologias sem evidências comprovadas de efetividade. Isso ocorre frequentemente em casos de quimioterapias antineoplásicas aplicadas como last chance treatments. Estas tecnologias se referem a tratamentos promissores em estudos preliminares que poderiam em teoria, salvar, prolongar e melhorar a qualidade de vida dos pacientes, mas que ainda não estariam comprovados cientificamente. Na empresa em que trabalho atualmente, que atende a um grande número de clientes, são inúmeros os pedidos de medicamentos off label2 analisados por nossa equipe de auditores. Segundo o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), as operadoras não são obrigadas a dar cobertura a tecnologias experimentais e /ou off label. Além disso, tais coberturas não são consideradas no cálculo atuarial dos planos. O médico auditor, cuja função precípua é técnica, deve sempre procurar o controle dos custos com qualidade. Sua função neste caso é recomendar a negativa de cobertura. Pois bem, apesar de os médicos auditores conseguirem demonstrar, por meio de estudos baseados na mais pura evidência científica, que uma determinada tecnologia não trará benefício algum a um determinado paciente, muitas vezes o cliente decide prover cobertura, de forma excepcional. Justo? Não. Compreensível? Sim. Considero não ser justo, pelo fato de que um dos elementos essenciais dos planos de saúde é o mutualismo ou a solidariedade. Mutualismo se baseia na solidariedade entre os participantes, ou seja, todos contribuem para o grupo. Ou seja, quando o cliente decide 2 Uso não aprovado de uma tecnologia; indicações que não constam da bula de um medicamento. A classificação de uma indicação como off label pode, pois, variar temporalmente e de lugar para lugar. O uso off label é, por definição, não autorizado por uma agência reguladora, mas isso não implica que seja incorreto.
  • 3. abonar um medicamento de alto custo em uma indicação duvidosa, ele decide utilizar a verba de um grupo de participantes em uma aplicação incerta. E por que seria compreensível então? Acontece que, nestes casos, fica difícil para o cliente enfrentar o dilema moral que a situação traz. Quando se solicitam procedimentos ainda sem comprovação de efetividade, se o tratamento for efetivo para o paciente, não oferecê-lo pode provocar dano prematuro e infringir os princípios bioéticos da beneficência/não maleficência. Mas, por outro lado, se o tratamento não for efetivo, oferecê-lo implica em gastar recursos finitos que poderiam ser mais efetivos em outros procedimentos, infringindo o princípio da justiça distributiva (Schramm & Escosteguy, 2000). O tomador de decisão precisa considerar as questões técnicas, mas não pode fechar os olhos às questões éticas, que devem ser ponderadas. Aqui a questão transcende o técnico e envolve o pagador em uma difícil decisão. Gregory Pence, docente do Departamento de Filosofia da Universidade do Alabama, afirma que os custos médicos estão incontroláveis porque falta um acordo moral sobre quando negar tratamento. Decidir quando dizer "não" e dizer de forma honesta e integra é, talvez, a mais difícil questão moral que a nossa sociedade se defrontará nos próximos anos (Goldin, 2004). Concluindo a minha reflexão, avaliações de tecnologias em saúde devem ser eminentemente técnicas, para terem credibilidade. Os médicos auditores devem se basear nestes estudos e fazer recomendações de caráter técnico aos clientes / pagadores. Já as decisões por incorporação tecnológica não são exclusivamente técnicas, e sim técnicas-políticas, levando em consideração aspectos éticos, econômicos, comerciais e sociais. Não se trata de desvalorização do trabalho técnico, mas de um olhar holístico necessário à decisão. Referências: 1. CORTINA, A., 1998. Ética, tecnología y salud. In: Ética y Salud (M. M. García- Calvente, org.), pp. 25-38, Granada: Escuela Andaluza de Salud Pública. 2. TRINDADE, E. A incorporação de novas tecnologias nos serviços de saúde: o desafio da análise dos fatores em jogo. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 5, May 2008. 3. BARROSO L R. Da falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. R. Jur. UNIJUS, Uberaba-MG, V.11, n. 15, p.13-38 novembro, 2008 4. MAYNARD, A. & BLOOR, K. Our certain fate: rationing in health care. London, Office of Health economics. 1998. 5. SCHRAMM, F. R. & ESCOSTEGUY, C. C. Bioética e avaliação tecnológica em saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(4):951-961, out-dez, 2000.
  • 4. 6. GOLDIN J R. Ética Aplicada à Alocação de Recursos Escassos. 2004. Disponível em http://www.ufrgs.br/bioetica/aloca.htm.