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PÚBLICO celebra hoje 25 anos de vida nas bancas; há
poucos meses cumpria eu as minhas bodas de prata
de emigrado em Inglaterra. Tirando esta tangencial
coincidência, há muito pouco em comum entre mim
e este jornal.
Achei pois surpreendente terem-me escolhido —
um mero cientista — para fazer de senhor director
por um dia, especialmente havendo pelo burgo tanta
gente muito mais habilitada do que eu para cagar
postas de pescada. O email de convite prometia
ainda “completa liberdade” para fazer o que me
desse na real gana com o jornal. Um sorriso maroto
deve ter-me aparecido no rosto.
Suponho que se quisesse dar à ciência mais
“protagonismo” (para usar um vocábulo à Luís
Figo) num país com mais orgulho, e com razão,
nas suas proezas futebolísticas e tauromáquicas.
Um país também onde a ciência continua a ser o
parente pobre da produção intelectual, recheada
de ilustres músicos e escritores, poetas e malucos
vários. Só que a ciência que eu faço e amo não são
telemóveis nem foguetões — é poesia. E depois tenho
um segredo vergonhoso: antes de ser cientista, tive
pretensões jornalísticas, num sentido muitíssimo
lato do termo. Ao pedirem-me um editorial acerca
das minhas relações com a imprensa senti pois um
certo déjà vu.
Recordo aqui a minha adolescência lusitana e
um certo pasquim de bênção Louçânica, onde
escrevinhávamos uns quantos sobre coisas como
a legalização do aborto (quando isso ainda era
monopólio de esquerdelhos), num estilo cheio de
parvoíces e bacoradas. Mas esses desbragamentos
foram sol de pouca dura e em breve caí no buraco
negro que é fazer ciência. O universo dá-me uma
enorme trabalheira, é uma estopada, não deixa
grande tempo para fazer outras coisas. Não admira
que tanta gente deixe os mesteres cósmicos para a
religião, Deus que se amanhe enquanto nós mortais
nos dedicamos à comunicação social.
No início dos anos 1990 mudei-me para Inglaterra,
com uma jura a pés juntos de que mulheres
portuguesas nunca mais. Enquanto por lá, perdi
completamente o respeito pela imprensa. A grande
maioria dos media ingleses é uma desgraça, e isto
vai muito para lá dos infames tablóides. A receita
é simples: aferir o que deixa o bife tradicional
indignado e seguro da sua superioridade, inventar
histórias que sirvam o ângulo, procurar factos que as
assistam, inventá-los se não os há, suprimi-los se as
contradizem... e pronto, vendas asseguradas, e tudo
com infinitas pretensões de objectividade mediática.
A generalização é injusta, claro está, aliás como
em tudo, também no jornalismo os britânicos têm
o pior e o melhor. Mas a única coisa que hoje leio
com regularidade por terras de Sua Majestade é o
Private Eye, uma espécie de Charlie Hebdo mas muito
melhor, mistura de humor cáustico e jornalismo
de investigação do mais fino. Que haver assunto
há: corrupção é o que não falta em Inglaterra.
Corrupção perfeitamente legalizada, entenda-se,
não é como em Portugal ou Itália, povos muitíssimo
inferiores à Europa Nazi-de-Espírito-do-Norte.
Quis entretanto o acaso trazer-me de regresso à
pena, desta vez em fainas de divulgação científica.
Entre coisas menos laudatórias, chamaram a um
dos meus livros uma “biografia gonzo”, de outro
disse-se que era onde “Medo e Delírio em Las Vegas
se cruza com Uma Breve História do Tempo”. Eu nem
sabia o que queria dizer o termo “gonzo” ou que
tinha a ver com jornalismo, já disse que para cagar
de alto erudição o PÚBLICO podia ter escolhido
melhor. Foi um amigo de Roma, adepto de cocaína
e alucinogénios, que me corrigiu o défice cultural,
obrigando-me a ler uma catrefada de livros de Hunter
S. Thompson e Acosta, alguns em tradução italiana.
Fiquei deslumbrado com aquilo. E se em vez de
os jornalistas fingirem que são objectivos, coisa que
nem a ciência é, exibissem os seus preconceitos
na montra, polvilhados com drogas duras? E se os
jornais ingleses dissessem abertamente “somos
uma cambada de porcos xenófobos que andam
alegremente a inventar histórias”? Não mereceriam
finalmente uma pitada de respeito? O jornalismo
gonzo certamente que me surgiu como um antídoto
a muita hipocrisia. Por isso quando me convidaram
para ser director por um dia do PÚBLICO foi isso
que me ocorreu: fazer uma edição “gonzo” do
jornal. Afinal tinham-me prometido a mais completa
liberdade no aliciante email de convite. Por um dia.
Mas é claro que isso da “liberdade completa” é
coisa que não existe. Nem em utopias nos despimos
de constrangimentos. Seria porventura razoável
exigir à redacção do PÚBLICO que passasse um
dia a tripar com LSD e a escrever sobre a situação
económica da Grécia em textos onde deveriam
misturar relatos da própria vida sexual? Talvez sim,
talvez não. Afinal é uma festa de anos.
Há uma fina linha entre ser-se uma figura
decorativa e um tirano. Um jornal bem-sucedido
é um trabalho de grupo, onde o colectivo é mais
importante do que qualquer ronáldico ponta-de-
lança. A redacção do PÚBLICO fugiu com as minhas
sugestões e fez com elas o que quis. Que festejem
bem. Que continuem assim até às bodas de ouro.
Editorial
Por João Magueijo
25 anos
sem
dormir
TEM
PO
DE
TU
DO
Quanto tempo é
que o tempo tem? O
tempo – e tudo o que
existe – tem 13.800
milhões de anos. É
a idade do próprio
Universo, o tempo
desde o Big Bang, a
grande “explosão”
criadora de tudo. Estes
13.800 milhões de anos
resultam dos cálculos
maisrecentesbaseados
em observações do
telescópio espacial
Planck, que afinou a
idade do Universo com
um nível de pormenor
que permitiu atribuir-
-lhe mais 100 milhões
de anos do que antes.
Para nos situarmos,
o nosso sistema solar,
incluindo a Terra,
formou-se há 5000
milhões de anos, tinha
então o Universo já
9000 milhões de anos
deexistência.E,depois,
a Terra ainda teria
um longo caminho
pela frente até ao
dia, há uns meros
seis milhões de anos,
em que surgiram os
primeiros hominídeos.
Começamos esta
edição de aniversário
olhando para o tempo
a grande escala. É o
tempo do espaço, é o
tempo do tempo, é o
tempo de tudo.
Dar
tempo
ao tempo
Por João Magueijo
C
elebra-se o
centenário da teoria
da relatividade
geral, neste ano
denominado “da
luz”, mas oculta-se
do pudor público
o lado negro dessa
bonita arte mágica.
A relatividade geral
pode ter dado
femininas curvas ao
espaço e ao tempo,
atribuindo-lhes
maleabilidade e vida própria, mas o que raramente
se diz é que essa nobre ciência também retirou ao
tempo o seu predicado mais óbvio: o fluir.
Ao embrulhar na mesma trouxa o espaço e o
tempo, negando-lhes natureza independente em
favor de um híbrido — o espaço-tempo —, a teoria
da relatividade roubou ao tempo o seu brotar.
Da mesma forma que o eixo do xis (esse terror
que aprendemos na escola) não “flui”, o tempo
da relatividade também não escorre. Ao longo de
uma linha espacial há ordem — há o equivalente da
organização de um presente, passado e futuro —, mas
não há nada que se assemelhe a um ponto particular
e único que vai escoando ao longo dessa linha, o
equivalente do presente. Dando direitos e deveres
iguais ao espaço e ao tempo, amalgamando-os num
ser único, a relatividade nega igualmente a existência
de um presente que flui activamente do passado para
o futuro. Ordem, sim. Fluir, não. Esse tempo, meus
amigos, morreu.
É pois singular que num ano de efemérides e de luz
nos procuremos encavalitar na teoria da relatividade,
demolidora como ela é do comum tempo. A própria
luz — esse andaime absoluto da teoria da relatividade
— só pode ter um papel orientador porque está fora
do tempo. A luz equilibra-se na fronteira entre o
espaço e o tempo, portanto o tempo está paralisado
ao longo de um raio de luz. E o pior é que analisando
a relatividade geral mais de perto encontramos
horrores ainda piores lá escondidos. Até a ordem
desse tempo que não flui pode ser destruída pela
curvatura espaciotemporal e levada a aberrantes
contradições. Maliciosas máquinas do tempo
consentem-nos dar um tiro na avozinha antes de a
nossa mãe ter nascido. Laçadas espaciotemporais
permitem-nos ser pai e mãe de nós próprios, um
exagero de minimalismo familiar e incesto. A ordem
e a lógica são ameaçadas pela curvatura do espaço-
tempo. Proteja-se de contradições: evite espaços-
tempos com um rabo demasiado ondulado.
Claro que nesta pasmaceira em que vivemos, longe
de buracos negros e Big Bangs, ninguém se deve
preocupar indevidamente com tanta patologia. Mas
o mal está feito — a nossa metafísica está minada pela
dúvida. Como funcionaria um jornal, se o tempo
acabasse amanhã? Ou se o tempo começasse a andar
para trás mais logo, quando a lua cheia nascesse
e a maré mudasse? Ou se fôssemos uma linha já
prefigurada e sem fluir, sem edições matutinas e
vespertinas? Como seria um jornal, se o tempo fosse
mais como o espaço, algo com recantos e cantinhos
por explorar? Um cataclismo narrativo, por certo. Ou
talvez não. Esta edição o dirá.
Cem
anos a
deitar
a língua
de fora
Por João Magueijo
N
ão há verdades eternas, cada
santo tem seu dia. Se, por um
lado, Einstein nos deitou uma
malcriada língua de fora, por
outro, espera-se de todos os
físicos igual pose fotográfica.
Não há teorias finais — há, sim,
coisas que vão funcionando até
ver, e nem sempre tão bem como se gostaria, se as
vamos esmiuçar melhor.
O epíteto de “Novo Einstein” (que a imprensa
sensacionalista tanto aprecia) aplicado a quem
propõe uma teoria que pretende suplantar a teoria
da relatividade é claramente ou ridículo ou um
pleonasmo.
Como cientistas somos todos novos Einsteins e
Einsteinas: é uma deformação profissional. Somos
pagos deduzidos de impostos para fazer esse papel,
não das nove às cinco em horário continuado
(porque isso não se ajeita ao perfil profissional),
mas de noite e dia, até enquanto estamos a sonhar,
eroticamente quem sabe. Ninguém duvida que a
teoria da relatividade é uma obra de génio, entenda-
-se bem, mas a maior prova de respeito que lhe
podemos oferecer é precisamente pô-la em causa.
O tempo-que-flui tem entrado e saído da
ciência, recauchutado ou modificado, ao ritmo das
revoluções que vão e vêm. Saliente-se que o tempo
que a teoria da relatividade enxovalhou é o tempo
fundamental, associado aos processos elementares,
às micropartículas puras, limpas de confusões.
Não é o tempo sentido pelos sistemas complicados
(como nós), que pela sua complexidade exigem
outras estruturas, emergentes chamamos-lhes, para
as opor a “fundamentais”. Em sistemas com tantas
partes elementares que a floresta é mais importante
do que as árvores, necessitamos de conceitos como
a entropia, esse pesa-balbúrdias tão útil quando
é tudo ao molho e fé em Deus. A entropia, como
medida da confusão que sempre aumenta, dá-nos
um tempo derivado, emergente, que sem dúvida
sentimos à flor da pele, mas que sabemos resultar
de uma ilusão criada pela multidão, pelo espírito de
rebanho do universo. É um tempo que as partículas
elementares nunca sentirão; se calhar é por isso
que lhes faltam os sentimentos. Não há electrões
apaixonados.
Mas e se esta teoria da relatividade geral
centenária fosse ela própria emergente e não-
fundamental? E se a descrição da gravidade como as
curvas e contracurvas do espaço-tempo fosse apenas
uma média estatística, uma medida aplicada a uma
multidão de entidades mais fundamentais, tal como
a entropia?
Uma das lacunas mais flagrantes da teoria
da relatividade geral é a sua incapacidade para
namorar com o resto da física. A relatividade geral
é um elemento francamente anti-social dentro da
confraria das nossas outras teorias. Não fala com a
física quântica, esse outro pilar da física do século
XX, e segrega a força da gravidade (que venera)
das outras forças da natureza: a electricidade, o
magnetismo e as forças nucleares. Tanta soberba
agasta os físicos e daí as inúmeras tentativas
de construir uma teoria de gravidade quântica,
combinando a relatividade geral com a teoria
quântica, e unificando a gravidade com as outras
forças da natureza.
A haver namoro entre a relatividade geral e a física
quântica, o espaço-tempo deveria não só ser curvo,
como existir na forma de “átomos” (no sentido
grego do termo, de peças indivisíveis ou “quanta”).
Deveria haver incertezas e flutuações quânticas no
seu tecido. Pavores quânticos, de todas as formas e
feitios, deveriam afligir os fenómenos gravitacionais,
tal como afectam os outros: deveria haver gatos de
Schrödinger a miarem em buracos negros, Big Bangs
virtuais a saltarem do vácuo, ou maradices ainda
piores. E obviamente o próprio tempo e o espaço
poderiam ficar equiparados a conceitos emergentes,
como a entropia, médias que se tornam relevantes
simplesmente porque não temos “microscópios”
suficientemente finos para sentir a natureza atómica
da realidade subjacente.
Mas a verdade é que tudo isto são quimeras. Ao
fim de várias décadas em demanda da teoria da
gravidade quântica, a realidade é que ela continua
a ser uma miragem. Ideias não faltam, mas,
sejamos honestos, cordas ou laçadas são todas uma
bela porcaria. Não há mal nenhum nisso, desde que
a busca seja honesta; censurável é apenas a auto-
importância sentida por alguns físicos: há quem
insista que estamos no caminho certo, é só uma
questão de seguir em frente a fazer contas pela
mesma receita durante 200 anos...
Que estupidez! Que rigidez de espírito! Será que
se acha mesmo que em 200 anos ninguém iria
arranjar nada melhor para fazer do que refinar as
nossas ideias? É como esperar que o fado daqui a
200 anos seja uma Gisela João de bengalinha. Daqui
a 200 anos muito provavelmente nem haverá fado,
ou se o houver, sê-lo-á insonhavelmente diferente.
Entretanto, e com menos arrogância, a
infrutífera busca continua. No reino do faz-de-
conta em que os físicos vivem tudo é possível. O
Big Bang pode ser um mero biombo que tapa um
além. As constantes universais podem ser fluidas
e variáveis. O espaço-tempo pode ser uma média
de algo mais fundamental, polvilhado de quanta,
espaço em grão, tempo em colar de pérolas. Tudo
é possível.
Tudo é possível, tudo pode é estar errado. Fica
esta sensação de que andamos a fazer literatura de
cordel ao pé do gadelhudo. Não que a relatividade
geral não tenha deficiências, mas o que temos feito
para as colmatar é bem pior. Ao longo destes 100
anos deitámos-lhe a língua de fora vezes sem conta,
e no fim acabámos aos molhadíssimos beijos na
boca ao homem.
AFP
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.
Mário de Sá-Carneiro
Não percebo porque se perde tanto
tempo a discutir o tempo, que não
é nenhuma entidade metafísica, é
apenas uma empresa de demolições.
António Lobo Antunes
Sabemos hoje que o Universo está em expansão. Que nasceu a partir de um momento zero e, desde
aí, tem evoluído. A descoberta desta expansão, do final dos anos 1920, baseou-se em observações de
que as galáxias se estavam a afastar umas das outras. Na realidade, é o espaço entre as galáxias que
está a aumentar e, em consequência disso, as galáxias estão a afastar-se entre si. Imaginemos um balão
em cuja superfície, o tecido do espaço-tempo, pintámos vários pontos: à medida que o enchemos de
ar, expandindo-o, o espaço entre os pontos vai aumentado. É isso que está a acontecer ao Universo.
Escolhemos aqui alguns momentos da sua longa existência ou, por outras palavras, da história de tudo
Ahistóriado
Universoem
13momentos
É o início do Universo, que começa com o Big Bang,
uma grande “explosão” que dá origem ao espaço e ao
tempo. É o início de tudo o que existe. E que surgiu de
uma concentração inimaginável de energia. A física
actual é incapaz de descrever as fracções de segundo
imediatamente seguintes ao Big Bang, quando o
Universo era incrivelmente denso e quente.
Teresa Firmino (texto) Cátia Mendonça (infografia)
2700º celsius -240º celsius
BIG BANG
Momento 0 10
−43
10
−36
10
−32
10
−4
0,01 3 minutos
mil anos milhões de anos milhões de anos milhões de anos
Inflaçãocósmica
Formaçãode
protõeseneutrões
Fusõesdeprotões
eneutrões
Formadosnúcleos
dosátomosleves
Formadosos
átomosleves
eosfotões
podemviajar
pelocosmos
Primeiras estrelas Primeiras galáxias O nosso sistema solar e expansão
FimdaInflação
cósmica
ERA TRANSPARENTEERA OPACA
ERA DAS TREVAS
Fonte: PÚBLICO
seg.
10-43
segundo
Este tempo é considerado
a fronteira a partir da qual a
noção de tempo (e o espaço)
tem sentido. O tempo não tem
provavelmente porções mais
pequenas do que esta. Entre
o Big Bang e os 10-43
segundo
de existência do Universo é
a chamada época de Planck,
indescritível pelas teorias
científicasactuais:atemperatura
era tão elevada que as quatro
forças fundamentais da natureza
(gravidade, electromagnetismo,
força nuclear forte e força
nuclear fraca) estavam todas
juntas numa só força. A partir dos
10-43
segundo, o Universo já se
tinha expandido e arrefecido o
suficiente – uma “bola de fogo”
com uns incríveis 1032
graus
Celsius – para que a gravidade se
separasse das outras três forças.
Criadas, e destruídas ao mesmo
tempo, surgem as primeiras
partículas e antipartículas
elementares, como quarks e
electrões ou positrões. A luz já
existia como fotões.
10-36
segundo
É o início do que se pensa ter
sido a inflação, um crescimento
brutal do Universo, que numa
fracção de segundo cresceu
enormemente. Esta expansão
exponencial permite explicar
por que é que o Universo que
vemos hoje tem um padrão
global homogéneo: há galáxias
e espaços vazios, galáxias,
espaços vazios... de uma maneira
quase uniforme por todo o lado
para onde quer que olhemos.
Nesta altura do Universo, já um
pouco menos quente, também a
força nuclear forte pôde separar-
-se da força nuclear fraca e do
electromagnetismo.
10-32
segundo
A inflação cósmica terá
terminado. Acabado um
crescimento brutal durante
uma fracção de segundo, o
Universo volta a expandir-se
mais lentamente. A inflação
cósmica terá gerado ondas
gravitacionais, perturbações
no próprio tecido do Universo,
o espaço-tempo, que podemos
imaginar como uma folha de
borracha elástica onde uma
pedra que alguém atirasse
para lá provocaria oscilações.
Até agora, ninguém conseguiu
detectar essas ondas. O Universo
ficou nesta altura povoado por
uma sopa de quarks e gluões,
que colam os quarks entre si.
Estes constituintes primordiais
da matéria vagueiam livremente
num estado desordenado (o
plasma de quarks e gluões).
10-4
segundo
Por esta altura, formam-se
os protões e os neutrões, os
constituintes dos futuros
núcleos dos átomos. Com a
continuação do arrefecimento
do Universo, os quarks, unidos
pela força nuclear forte,
puderam começar a ligar-
-se, formando os protões e os
neutrões. Cada neutrão e protão
tem três quarks. É a altura do
chamado confinamento dos
quarks. A criação dos protões
significa também a criação do
núcleo do hidrogénio, que é
composto por um único protão.
0,01segundo
Iniciam-se as fusões de protões
e neutrões, que vão depois dar
origem aos núcleos de outros
átomos.
3minutos
Criados os núcleos atómicos
de deutério (um protão e um
neutrão), de trítio (um protão e
dois neutrões) e de hélio (dois
protões e dois neutrões).
380.000anos
Formaçãodeátomosleves–
hidrogénio,deutério,trítioe
hélio.AtemperaturadoUniverso
baixaaindamais–rondaagora
os2700grausCelsius–,oque
permitequeosnúcleosatómicos
eoselectrões,atéaíseparados,
sejuntem,formandoosátomos.
Antesdisso,osfotões(aluz)
chocavamcomfrequênciacomos
núcleosatómicoseoselectrões,
oqueimpediaaluzdeviajar.
Poressarazão,entreoBigBang
eos380.000anos,oUniverso
éopaco,sendoimpossívelvê-
lodirectamente.Ajunçãodos
electrõesàvoltadonúcleodos
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paraapassagemdosfotõeseo
Universoficatransparenteàluz.
Amatériaearadiaçãoseparam-
seou,comodizemosfísicos,
desacoplam-se.Aluzdesses
tempos,amaisantigaquevemos
equesechamaradiaçãocósmica
defundo,banhatodooUniverso.
Hojenaformademicroondas,
permiteinferiralgoquesepassou
nosprimórdiosdoUniverso.É,
pois,umaradiação“fóssil”,um
ecodoBigBang.
milhões de anosmilhões de anos
Universo actualacelerada do Universo Aparecimento da vida na Terra (as primeiras células)
550milhões
deanos
Nascemasprimeirasestrelas,
iluminandooUniverso.Este,em
média,jáarrefeceubastantee
estámuitoabaixodozerousual:
temàvoltade240grausCelsius
negativos.Paratrásficoua“era
dastrevas”,aalturaemqueo
Universonãotinhaestrelas.
Análisesàsobservaçõesdo
telescópioespacialPlanck,
divulgadasemFevereirode
2015,revelaramqueasprimeiras
estrelassurgiramcercade100
milhõesdeanosmaistardedo
quesesupunha,portanto550
milhõesdeanosapósoBigBang.
Asestrelassãoessenciaisà
químicadavida:énoseuinterior,
nasreacçõesdefusãonuclear,
queseformamátomosmais
pesadoscomoocarbonoouo
ferro.Aomorrerem,háestrelas
queatiramparaoespaçoassuas
camadasexteriores,incluindo
átomosquefabricarameque
entrarãoemnovasestrelaseos
seusplanetas.NóseaTerratemos
pódeestrelas,comooferroque
transportaooxigéniononosso
sangue.
700milhões
deanos
São formadas as primeiras
galáxias do Universo – incluindo
a nossa Via Láctea, que tem
pelo menos 100.000 milhões de
estrelas, uma delas o Sol, que
fica num dos braços da espiral.
No centro da Via Láctea existe
um buraco negro monstruoso
(como, aliás, em muitas outras
galáxias), com quatro milhões
de vezes a massa do Sol. A nossa
galáxia é tão grande que a luz
demora 100 mil anos a atravessá-
-la de uma ponta à outra.
9000milhões
deanos
Forma-se o Sol a partir de
uma nuvem de gás e poeiras,
composta sobretudo por
hidrogénio e hélio, mas com
alguma contaminação por
elementos pesados criados por
gerações de estrelas anteriores.
No disco de gás e poeiras que
restou da formação do Sol
ir-se-ão formar os planetas,
incluindo a Terra, há cerca de
4500 milhões de anos, quando o
Universo tinha 9300 milhões de
anos. É também por essa altura
que no Universo em expansão
desde o Big Bang se manifesta
uma força antigravítica. Não se
sabe que força é essa – os físicos
chamam-lhe energia escura
–, mas sabe-se que contraria a
gravidade exercida pela matéria
e que provoca a expansão
acelerada do Universo.
10.200milhões
deanos
Surge a vida na Terra, mais
exactamente as primeiras
células. Ainda não têm núcleo,
tal como, aliás, as bactérias
actuais, mas a vida seguirá o
seu curso até chegar a nós. Os
primeiros humanos – ou seja, os
primeiros membros do género
Homo – apareceram há cerca de
dois milhões de anos apenas,
quando o Universo tinha 13.798
milhões de anos. Se pensarmos
na nossa espécie, o Homo
sapiens, só aparecemos há cerca
de 200 mil anos.
13.800milhões
deanos
É o Universo actual. A sua
temperatura, de 270 graus
Celsius negativos, está perto
do zero absoluto (menos 273,15
graus). E aqui estamos nós, a
olhar para trás no tempo, através
da luz (em todo o seu espectro,
desde os raios gama às ondas de
rádio, passando pela luz visível
aos nossos olhos) que nos chega
dos mais variados fenómenos e
objectos que povoam o cosmos.
Desde galáxias, enxames de
galáxias, supernovas, estrelas
de neutrões, buracos negros,
anãs castanhas, matéria escura,
energia escura – e planetas em
redor de outras estrelas que não
o Sol, onde talvez alguém esteja
também a perscrutar o cosmos
como nós. O futuro do Universo
parece ser o de expansão
eterna: as galáxias ficarão tão
dispersas que nem se veriam,
uma paisagem triste e fria. Mas o
nosso destino na Terra depende
do destino do Sol, que ainda vai
durar cerca de 5000 milhões de
anos.
TEM
PO
DE
AGO
RA
Chegados aos actuais
13.800 milhões de
anos da história de
tudo, aqui estamos
agora às voltas com o
tempo, humanos de
uma espécie surgida
há singelos 200 mil
anos. Neste tempo de
agora, que o nosso
calendário assinala
como 2015 d.C.,
reflectimos, vivemos
e sentimos o tempo
de muitas formas.
Podemos analisá-lo
de um ponto de vista
físico, lembrando
Einstein, do ponto
de vista da história
da ciência ou da
experiência pessoal
de uma cosmóloga
pára-quedistaabraços
com a gravidade.
Fomos ainda ver
como o contamos com
relógios atómicos e
na bolsa, em que um
milissegundo vale
milhões. Visitámos
uma loja em Lisboa
que arranja relógios
antigos, onde se
conserta o tempo
dos outros. Ouvimos
quatro centenários,
que desafiam o tempo
e, ainda, quem dá o
seu tempo aos outros.
Continuamos esta
edição olhando agora
para o tempo a uma
escala mais humana.
2015
Umminuto
sobagravidade
deEinstein
Abstracções de uma física
pára-quedista a estudar
gravidade e o tempo
em queda livre
Crónica Marina Cortês
O
s acontecimentos que
se seguem decorreram
no espaço de 3 minutos
apenas.
Na porta do avião
mesmo antes de saltar,
fazemos os exercícios
de check up. Estou em
instrução e tenho dois
instrutores comigo,
durante a primeira parte do salto. Tudo a postos:
arqueia o corpo ao máximo contra a força do ar
e... saltar! Estou no ar! Ajusta o equilíbrio, estamos
a cair a 190km/h, não balances mais, estabiliza o
corpo. Parece tudo bem. Agora os exercícios. Um dos
instrutores solta-me como previsto. Lá vai ele. Agora
o outro também me solta. Ai-ai, agora estou mesmo
por minha conta, cruzes. A voar sozinha! Argh, o
que é que é suposto fazer agora? Não há problema,
procura um ponto no horizonte para fixar direcção.
Aquelas montanhas parecem boas, vão servir. Hmm..
as montanhas estão a girar para a esquerda, acho que
vou fazer aqui uma pequena volta. Inclino o braço
na direcção oposta... Muito ligeiramente. O quê?!? O
que foi isto? Que aconteceu? Estou de pernas para o
ar, a olhar para o céu! Perdi a estabilidade. Altitude:
3,6 quilómetros. Bonito serviço. Agora estou a olhar
para o céu azul acima. Terra à vista: nada. Vejo os dois
instrutores lá no alto, altíssimos, a olhar para mim.
Credo, estão a diminuir tão depressa, quer dizer que
estou a cair muito mais rapidamente. Como perdi a
estabilidade vou a muito maior velocidade que eles.
Estou totalmente sozinha, por minha conta, a cair para
o planeta a toda a força, e a girar numa espiral. Como
estou a girar sem parar, não consigo puxar o pára-
quedas. Cada vez perco mais altitude, a velocidade
agora são 260 km/h. Cada segundo que passa menos 70
metros e começo a ver tudo lá em baixo as casinhas e as
estradas cada vez mais perto... Isto está bonito, está...
Entretanto no gabinete: quando estou a estudar
relatividade geral pergunto-me sempre se o Einstein
Sendo a física a disciplina mais ambiciosa da
descrição da Natureza, não é peculiar a falta de
explicação para a uni-direccionalidade do tempo?
Voltando à queda livre.
Continuo em espiral no ar e o planeta a aproximar-
se cada vez mais. Por um momento consigo virar-me
de costas, e tento alcançar o pára-quedas, mas perco
logo o equilíbrio. Meu Deus, estou mesmo, “mesmo”
em sarilhos. O que é que se está a passar, como é que
eu páro isto? Um dos instrutores desce disparado
para me alcançar e tenta voltar-me para baixo. Não
funciona, agora estamos os dois de barriga para o ar!
E depois eu viro-me, e agora volta-se ele. Estamos
numa dança no ar, como uma máquina de lavar,
como o “vira”. Ele perde-me de novo e lá vou eu às
cambalhotas mais uma vez. O chão a aproximar-se. Ele
consegue alcançar-me. Porque é que ele não me puxa
o pára-quedas? Por que diabo é que ele não me puxa
o pára-quedas?! “Desisto”, penso para mim, ele não
consegue, vamos morrer os dois. Estou feita, é o fim.
Adeus mundo. Olha ali o chão, já tão perto.
1500 metros. Sinto um forte puxão para cima,
as pernas para o ar, cabeça voltada para baixo. As
correias de suporte no peito a esmagar as costelas. Ele
puxou o pára-quedas! ELE PUXOU O PÁRA-QUEDAS!
Olho para cima e vejo um pára-quedas perfeito,
quadrado, abertura sem problemas! O silêncio total é
o paraíso, em contraste com o barulho ensurdecedor
da queda livre. Só oiço o bater leve da borda do pára-
quedas. Pára-quedas saudável, vou viver. Sobrevivi!
Já passou. Respira, respira. Respira, rapariga. O que é
que acabou de acontecer!?!
Bem, olha para baixo, descobre onde é que vieste
parar, ainda tens de aterrar isto. Onde está a dropzone,
onde está a pista do avião, onde é que eu estou? Lá
estão o semi-círculo da aldeia de Empuria Brava e a
praia, mesmo ao pé de Barcelona. A dropzone está
por ali algures, ao lado. 1200 metros, está tudo fixe,
respira fundo, relax, estás viva! Sobreviveste!
Excepto que...
Ao descer sinto os ventos a levantar. Meu Deus,
alguma vez terá pensado em estudar a gravidade ao
vivo! Parece-me que estudar a gravidade no gabinete
é muito diferente de estudá-la a saltar de um avião,
em queda livre! Não só isto, mas nada melhor que um
salto de pára-quedas para vivenciar a relatividade do
tempo que ele advogava. Um segundo em queda livre
parece-nos horas. O planeta lá em baixo a aproximar-
se a viva força. Nunca o tempo nos parece mais real, e
mais inevitável do que quando estamos numa situação
de vida ou morte. E no entanto, em física, a disciplina
que ambiciona descrever a natureza na sua totalidade,
não estamos muito habituados a levar o tempo a sério.
Para a generalidade das teorias em física o tempo
tanto pode avançar como recuar: a direccionalidade
do tempo é um acidente que não é explicado de
forma clara. As soluções nas quais o tempo recua são
descartadas à mão sem explicação.
Ou seja, as nossas teorias mais fundamentais da
natureza ignoram o facto de que o tempo anda sempre
para a frente! Isto é contra tudo o que observamos no
dia a dia. É como os físicos estarem de costas voltadas
para a natureza, ignorando o facto mais fundamental
do mundo que nos rodeia: o tempo nunca anda para
trás. Porque é que somos nós, os físicos, os únicos
cientistas que não incorporamos a irreversibilidade do
tempo nas nossas teorias?
A química, biologia, antropologia, climatologia,
etc., são todas ciências nas quais o tempo tem uma
direccionalidade bem definida. As reacções químicas
só ocorrem num sentido, nunca “desocorrem”
(química); os organismos só ficam mais velhos, nunca
mais novos (biologia); em antropologia estudamos
os fósseis do passado (nunca os do futuro); os
climatólogos também têm bem presente que o
tempo só tem uma direcção, eles podem olhar para o
passado mas não sabem (ou é muito difícil) prever o
futuro, por causa da teoria do caos.
Porque é que nós os físicos continuamos absorvidos
na procura de equações “congeladas” no tempo, nas
quais todo o passado e o futuro existem no mesmo
instante e a passagem do tempo é uma mera ilusão?
não estava tanto vento quando levantámos no avião.
O pára-quedas começa a abanar desenfreadamente e
a fazer o que bem lhe dá na cabeça. Agora está-me a
arrastar de lado. Vira à esquerda, depressa! Oh meu
Deus, agora estou na zona dos aviões!! Põe-te a andar
daqui! Olha à volta, há aviões a vir? Põe-te mas é a
andar! Pára-quedas dum raio vais fazer o que eu te
mando. Agora, ouviste? 500 metros. Bonito, devia
estar a começar a descida final, neste momento!
Onde é que suposto eu estar? Ah, lá está o campo
de aterragem, “só” a dois quilómetros distância. Ok,
esquece isso, improvisa, improvisa. Aquele espaço
ali terá de servir. Começo a descer tenho de ir na
direcção do vento. Mas não há direcção do vento. Só
a vento a abanar, vento a chocalhar, vento para cima,
vento para baixo, vento de lado. Devia chamar isto de
trajectória perturbativa. O meu trajecto tem incerteza
quântica! Ok, ok, vai com calma, vê o altímetro. 250
metros, estou muito alta, já devia estar a 150! Vou
chocar contra aquelas casas! Depressa, faz uma volta
360º, perde altitude. Oh que coisa, também não
funcionou, agora estou em cima da auto-estrada!! Vejo
os carros a acelerar nas duas vias. Dá outra volta, pira-
te mas é daqui. Começo a descida final, aqui mesmo
vai ter de servir. Tento domar o pára-quedas, navegar
em linha recta mas não há de quê. Esticão para a
esquerda, esticão para a direita, O pára-quedas não
reage, avança ao acaso, num caos os ventos mudam a
cada segundo. Olho para baixo, o chão a aproximar-se
vertiginosamente. Consigo ver as pedras de cascalho a
passar aceleradas, como se estivesse num carro. Meu
Deus que velocidade, tenho de abrandar, e rápido. Isto
vai doer!!! Quando é que travo? A altura de puxar os
travões é ainda mais crucial neste salto mirabolesco
com ventos descontrolados. Quando é que suposto
travar?!?! Agora? Não tenho a certeza. Será agora,
NUNO FERREIRA SANTOS
espero mais? É uma questão de segundos. Agora!!
Puxa os cabos, com toda a força, puxa, puxa! Mais
força! Tenho de puxar os cabos até às ancas e ainda
estão à altura nos ombros. Com mais força! Tenho a
cara azul do esforço, as veias a pulsar. Os ventos não
me deixam puxar os cabos. Oh meu Deus, ainda estou
demasiado alto, travei muito cedo. O que vai acontecer
agora? O impacte está perto, prepara-te rapariga isto
vai ser uma aterragem dos diabos! Crash!!!
Ligeiramente nos joelhos, caio para a frente, para
cima do pára-quedas. Estabiliza, pára. Wow! Nada mau,
que fixe. Que fixe! Cheguei ao chão. Estou no chão!
De volta ao planeta! Estou a salvo! Apetece-me beijar
a terra e saltar. Mas como os ventos estão muito fortes
tenho de puxar o pára-quedas para baixo de mim,
porque esta a inflacionar e pode levar-me no ar de
novo. Como se tivesse adivinhado, num instante o pára-
quedas inflaciona como um balão. Sinto um esticão
forte a puxar-me para trás e para cima, a arrastar pelo
chão. Está bonito, afinal ainda não é desta. Não tenho
tempo para cortar os cabos. Para onde é que isto
me está a levar? Olho à minha frente, o pára-quedas
está-me a arrastar para a pista dos aviões!! Tenho de
puxar um dos cabos para o colapso. Não funciona,
os ventos estão demasiados fortes, o resto do pára-
quedas é como um balão, a puxar-me com a força de
um gigante. Levanto-me e atiro-me para o ar, para cima
do pára-quedas. Consigo enfiar um pouco mais debaixo
de mim mas a parte inflada ainda é forte e continua a
arrastar-me. E agora reparo que estou mesmo à beira
da pista de aviões com o pára-quedas a puxar-me para
o meio. Olho para a direita horrorizada e... claro, com
a minha sorte de hoje, vem um avião no ar prestes
a aterrar, talvez a 500 metros de distância. Dentro
de segundos vai passar no centro da pista em frente
de mim, o local exacto para onde o pára-quedas me
está a arrastar. Nem consigo acreditar no que se esta
a passar?!? Isto é algum filme do Bruce Willis?! Estou a
segundos de ser atropelada por um avião, arrastada por
um pára-quedas! Muito bem, vou-te puxar para baixo
de mim, e agora!! Estou de rastos na berma da pista a
puxar o pára-quedas freneticamente e a olhar para o
avião a aproximar-se cada vez mais nítido. Puxo o mais
depressa que consigo, agora com o avião no canto do
olho. Está quase, ainda falta um bocado. VEM CÁ
PÁRA-QUEDAS DUM RAIO! Queres-me matar!
Consegui. Estou estendida sob o pára-quedas com
a cabeça enterrada no tecido. Oiço o avião disparado
passar à minha frente. O avião não me atropelou.
Estou colapsada, nem consigo pensar, totalmente
exausta. Sem energia. Oiço os ventos, assim que ouvir
um abrandar salto num ápice, agarro tanto quanto
posso, diminuo o volume e atiro-me de novo para
cima do pára-quedas. Funcionou. Algumas partes
ainda estão a voar ao vento mas nada de grave.
Apanhei-te, meu pára-quedas idiota. Pego em todo o
tecido agora entrelaçado, atiro para cima do ombro
e começo a regressar ao hangar. Olha para isto, onde
aterrei quase a 3 quilómetros de distância!
Começo o caminho de volta com passos longos
e espaçados. Respira fundo. As pernas a tremer e
os joelhos a ceder. Estou estupefacta. Não consigo
acreditar em tudo o que acabou de acontecer. Olho
para baixo e fico surpreendida por os pés acharem o
caminho de volta, um após o outro, devagar. O que é
que aconteceu?! Ando e ando, com as duas toneladas
de pára-quedas às costas, e finalmente chego à
dropzone. Há uma multidão de pessoas estupefactas,
a olhar para mim, com a boca aberta. Respiro fundo
e volto para o outro lado. Vou para o hangar, enfiar a
cabeça entre os joelhos!
Volto para a física. Equações são muito mais fáceis
de escrever do que lutar com um pára-quedas. Uma
das grandes motivações para transformar o papel do
tempo irreversível na física fundamental vem destas
experiências tão vivas. Nas quais segundos parecem
horas, e a realidade do tempo, e como avança só
numa direcção é mais berrante que nunca. Nós os
físicos que escrevemos equações em que o tempo não
é real e tanto avança como recua devíamos deixar a
secretária e vir olhar para o mundo cá fora. Pode ser
que ficássemos convencidos do contrário.
Cosmóloga,ObservatórioRealdeEdimburgo
Hubble
A 24 de Abril de 1990, a bordo do
vaivém Discovery, a NASA lança
o telescópio espacial Hubble. Foi
o primeiro telescópio espacial
que permitiu observar o Universo
tanto na mesma luz que os
nossos olhos captam, como na
radiação infravermelha. Com um
limite de vida temporal por volta
de 2020, o Hubble tem cumprido
aquilo que se lhe pede: permitir
que a relação da humanidade
com o Universo desse um salto,
já que, pela primeira vez, foi
possível ver o cosmos com uma
nitidez sem precedentes. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>
1990
Em 2015, Ano Internacional da Luz, celebra-se o centená-
rio de uma das teorias físicas mais formidáveis e também
um dos picos mais altos do intelecto humano: a teoria de
relatividade geral de Albert Einstein. A 25 de Novembro
de 1915 o sábio suíço nascido na Alemanha escrevia a
equação fundamental que junta matéria, energia, espaço
e tempo para explicar a gravitação, descrevendo não só a
queda de uma maçã e a órbita da Lua mas também os bu-
racos negros e o Big Bang. Se a sua teoria da relatividade
restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos
de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de
espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos
esses conceitos ao afirmar que a matéria-energia deforma
o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo
são distorcidos, deixando de valer a geometria euclidiana
e a mecânica newtoniana a que estamos habituados. E
os corpos caem porque o espaço é curvo.
O espaço-tempo pode acabar ou começar. Os buracos
negros são estrelas que, após violenta implosão, ficaram
reduzidas ao seu caroço extremamente duro. O espaço-
tempo à volta é tão deformado que o nosso mundo aca-
ba aí, isto é, terminam aí as nossas possibilidades de
conhecer. Tudo cai para um buraco negro, incluindo a
luz. Segundo Einstein, a luz pesa! Podemos imaginar o
inverso de um buraco negro? Sim, se um buraco negro
é o sítio para onde tudo vai, o buraco branco é o sítio
de onde tudo vem (há quem especule que, associado a
cada buraco negro, há um buraco branco, com a matéria
a ser sorvida por um lado, no nosso mundo, e a jorrar
do outro, sabe-se lá onde).
O físico Stephen Hawking, cuja biografia é o argumento
do filme A Teoria de Tudo, apostou um dia com um cole-
ga uma assinatura da Penthouse que não havia buracos
negros e perdeu (é irónico um especialista em buracos
negros ter apostado na não existência do seu objecto de
estudo.) Existirão buracos brancos? Vivemos no interior
de um: o Universo, provavelmente é infinito, o qual, de
acordo com a teoria da relatividade geral, teve o seu início
no Big Bang, há 13.800 milhões de anos. Esta grande ex-
plosão inicial pode ser imaginada como o evento em que
tudo apareceu, o espaço e o tempo, a matéria e a energia,
tendo começado tudo com a luz, que é energia.
Einstein teve que porfiar antes de chegar à fórmula
que encerra os segredos da gravitação. Cedo percebeu
que a teoria da relatividade restrita, segundo a qual as
leis da física são as mesmas para todos os observadores
em repouso ou em movimento com velocidade cons-
tante, devia também ser aplicada a observadores com
velocidade variável, isto é, acelerados. É esse o salto da
relatividade restrita para a relatividade geral. Se Newton
imaginou uma maçã a cair, Einstein imaginou-se a si pró-
prio a cair. A epifania ocorreu em 1907 quando Einstein
teve o que chamou o “pensamento mais feliz da sua vi-
da”, quando, sentado numa repartição de patentes na
Suíça, se apercebeu de que, se estivesse em queda livre,
um movimento acelerado, “não sentiria o seu próprio
peso”, uma vez que a cadeira cairia com ele. Embora a
cair, o sábio estaria parado relativamente à cadeira. O
princípio que afirma a queda idêntica de todos os corpos
tinha sido descoberto por Galileu.
Aluzde
EinsteinSe a teoria da relatividade restrita de 1905 tinha juntado a matéria à
energia (falamos de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos
de espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos esses
conceitos ao afirmar que a matéria-energia deforma o espaço-tempo.
À volta de um astro o espaço e o tempo são distorcidos
Por Carlos Fiolhais
Em 1971, um astronauta deixou cair na Lua um mar-
telo e uma pena para mostrar que os dois objectos che-
gavam ao solo ao mesmo tempo. Se tudo cai do mesmo
modo, podemos intuir que a força gravitacional é uma
propriedade do espaço: nas vizinhanças de um astro, o
espaço possui certas propriedades. Só faltava saber que
propriedades são essas. Uma consequência imediata da
generalização do princípio da relatividade era que um
raio de luz vindo do espaço longínquo encurvaria ao
passar perto do Sol. O efeito era minúsculo e não pôde
ser logo confirmado. E ainda bem, pois o primeiro valor
calculado por Einstein para o encurvamento dos raios
de luz estava errado. Não admira que a matemática da
relatividade geral seja incompreensível para um leigo,
pois o próprio autor demorou uma década a lá chegar.
Precisou de uma geometria curva em vez da geometria
plana de Euclides. Geometrias ditas não euclidianas já
existiam nos livros de matemática, dando razão a Galileu,
que tinha dito que “o Livro da Natureza está escrito em
caracteres matemáticos”. No longo caminho para a equa-
ção que descreve a gravitação, Einstein, melhorando a
matemática, chegou finalmente a um valor para o ângulo
de deflexão da luz que era o dobro do anterior. A equação
era bela, mas faltava saber se era verdadeira.
A Primeira Grande Guerra impediu a realização de ex-
pedições de observação de eclipses, ocasiões favoráveis
para medir deflexões de raios de estrelas por trás do Sol.
Uma observação de um eclipse total do Sol só pôde ser
realizada no pós-guerra. Foi em 29 de Maio de 1919 que
uma expedição inglesa, dirigida por Arthur Eddington,
se deslocou à ilha do Príncipe para fotografar um desses
eclipses. Os astrónomos obtiveram algumas imagens do
Sol, numa aberta de um aguaceiro tropical. Einstein em
breve recebeu um telegrama de um colega, felicitando-o
pela previsão certeira. Nunca temeu estar errado. Chegou
até a dizer que teria pena de Deus se a realidade fosse
diferente do previsto (Deus para ele, esclareça-se, era a
harmonia universal e não o autor do Fiat Lux). Nenhum
cientista português participou na expedição a um terri-
tório sob administração lusa. Os portugueses estavam
tão afastados da ciência que, em 1925, Einstein, já nobe-
lizado, passou por Lisboa sem ser reconhecido.
A 6 de Novembro de 1919, numa sessão da Royal Socie-
ty e da Royal Astronomical Society em Londres, com a
presença das maiores sumidades da ciência (na parede
Newton assistiu impávido, pois só estava em retrato), os
resultados da observação solar foram anunciados e Eins-
tein foi aclamado. O Times de Londres titulou Revolução
naCiência. Newton tinha dito: “Se consegui ver mais lon-
ge foi porque estava aos ombros de gigantes.” A revolução
significava que Einstein tinha subido para os ombros de
Newton, conseguindo ver ainda mais longe.
A fama mundial obtida num ápice facilitaria a sua
mudança para Princeton, nos EUA. Em 1932, Einstein,
pressionado pela perseguição nazi aos judeus, disse em
Berlim à sua mulher: “Olha bem para a tua casa. Não
mais a voltarás a ver.” E assim foi. Transposto o Atlân-
tico, nunca mais voltaria à Europa. Foi simbolicamente
a passagem da ciência do Velho para o Novo Mundo.
Os génios também têm vida privada. No início de 1915
Einstein deixou Zurique para ocupar uma cátedra em
Berlim. Nessa altura deixou também a primeira mulher,
Mileva (ela ainda fez o gesto de se mudar para Berlim,
mas já não havia força de atracção entre eles). Einstein
logo encontrou afecto numa prima berlinense, Elsa, com
quem se viria a casar pouco depois do eclipse de 1919.
Foi Elsa que o acompanhou para Princeton.
O Nobel da Física Richard Feynman afirmou um dia
que a descoberta, há 150 anos, das equações de Maxwell,
que unificam a electricidade e o magnetismo, esclare-
cendo que a luz é uma onda electromagnética, serão
lembradas daqui a dez mil anos como o acontecimento
mais relevante do século XIX. Na mesma linha, atrevo-me
a conjecturar que, daqui a dez mil anos (uma insignifi-
cância quando comparada com a idade do Universo),
a descoberta da equação da relatividade geral feita por
Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis
do século XX. E só não a singularizo mais porque, uma
década volvida, ficou pronta a teoria quântica, a espan-
tosa teoria dos átomos e partículas atómicas. As duas são
expressões máximas do pensamento humano. Arrisco
esta profecia apesar de recear que pouca gente a entenda.
Atrevo-me a conjecturar que,
daqui a dez mil anos, a descoberta
da equação da relatividade geral
feita por Einstein há cem anos
será um dos marcos mais notáveis
do século XX
Pode ser que mais gente a procure entender.
Por ter alcançado uma fórmula “mágica” com o poder
de explicar os mistérios do cosmos, o cérebro de Einstein
tornou-se um mito para o homem comum, que sem con-
seguir ver a beleza das equações não poderá mais do que
vislumbrar esses mistérios. Roland Barthes no seu livro
Mitologias escreveu sobre esse cérebro: “Quanto mais o
génio do homem era materializado sob a espécie do seu
cérebro tanto mais o produto da sua invenção assumia
uma condição mágica, reincarnava a velha imagem eso-
térica de uma ciência inteiramente encerrada nalgumas
letras. Há um único segredo no mundo, e esse segredo
condensa-se numa palavra, o Universo é um cofre-forte
de que a humanidade procura a cifra.” E acrescenta:
“É esse o mito de Einstein; aí se nos deparam de novo
todos os temas gnósticos: a unidade da Natureza, a pos-
sibilidade de uma redução fundamental do mundo, o
poder de abertura da palavra, a luta ancestral entre um
segredo e uma linguagem, a ideia de que o saber total
não pode descobrir-se senão de um só golpe, como uma
fechadura que cede bruscamente depois de mil tactea-
mentos infrutuosos.”
O cérebro de Einstein simboliza a capacidade humana
de compreender a natureza. Todas as observações e ex-
periências realizadas nos últimos cem anos confirmaram
a teoria da gravitação einsteiniana, que concorda com
a teoria de Newton no limite de forças gravitacionais
pequenas. Até há aplicações tecnológicas, como o GPS.
Resta um problema, cuja solução espera por um novo
gigante. A teoria da gravitação ainda não foi satisfato-
riamente unida à teoria quântica, a outra grande teoria
física do século XX (uma teoria em relação à qual Eins-
tein sentiu algumas dificuldades). Passaram 228 anos de
Newton a Einstein e não sabemos quanto vai demorar até
surgir um génio comparável. Se Einstein fez luz sobre as
questões da gravidade, incluindo o magno problema do
início do mundo, um novo Einstein acabará, mais cedo
ou mais tarde, por fazer mais luz sobre o Universo.
ProfessordeFísicadaUniversidadedeCoimbra
(tcarlos@uc.pt)
WWW
São três letras cuja real
importância ninguém podia
perceber de início, mas
representam uma das maiores
revoluções no que é a dimensão
de espaço e de tempo: WWW.
As três letras significam World
Wide Web e foram e são a chave
para abrir o que se convencionou
chamar “auto-estradas da
comunicação” — ou seja, são o
suporte tecnológico que, com
a sua linguagem informática
própria, constrói uma rede ou
uma teia (web) que permite
“navegar na Net” e chegar aqui e
agora a todo o lado, quebrando
as barreiras do espaço e do
tempo. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>
1990
DR
Vítor
Cardoso
Houve
umdia
emque
não
houve
ontemDesafiámos o físico português a fazer um passeio pelo Universo
e pela forma como a nossa visão sobre ele se alterou ao longo do último
século. “Passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição,
elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre”
Entrevista Teresa Firmino Fotos Miguel Manso
FimdaURSS
A 19 de Agosto de 1991, a
tentativa de golpe de Estado
na URSS ameaça fazer
regredir o tempo e anular a
acção libertadora que levara
à Perestroika de Mikhail
Gorbatchov. O presidente é
preso na sua datcha de Verão
na Crimeia. A reacção nas
ruas, liderada em Moscovo
por Boris Ieltsin, faz falhar
a tentativa de regressão à
ditadura comunista. Daí ao fim
da URSS foi um instante. A 25 de
Dezembro, Gorbatchov assinava
a dissolução da União Soviética e
demitia-se, pondo fim a 70 anos
do mais emblemático regime
comunista. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>
1991
Polar está onde sempre esteve desde que nascemos.
O que quero dizer com isto é que as observações
de Hubble, que são sofisticadas e precisam de
telescópios poderosos, nos dizem algo que é difícil
de “ver” e representam um choque com aquilo em
que acreditávamos há milénios. Ora, quando Einstein
soube disto, percebeu logo a asneira que fez, e
percebeu que a realidade o veio desmascarar. Nessa
altura afirmou que o maior erro da sua vida foi tentar
mudar as equações para se adaptarem ao que ele
pensava... E, realmente, é um erro histórico!
As implicações da expansão do Universo são muitas.
Não só destroem por completo a ideia de que está
tudo parado, mas também nos permitem fazer um
jogo interessante: se o Universo está em expansão,
significa que à medida que fica mais velho é também
maior. O que significa que o Universo jovem é cada vez
mais pequeno, e portanto o Universo teve uma data de
nascimento. Depois de Hubble, estas e outras coisas
fantásticas puseram todos a mexer e a querer saber ao
certo de que forma é que o Universo se expande. Um
dos melhores instrumentos que orbitam a Terra desde
1990 é o telescópio Hubble. Graças a essas e outras
observações, sabemos que o Universo nasceu há quase
14.000 milhões de anos. Em menos de 100 anos,
passámos de um Universo parado para um Universo
em ebulição, onde estrelas nascem, morrem, chocam
umas com outras e onde o próprio Universo é elástico
e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre.
A partir do momento em que se percebeu que o
Universo se expandia, então, se andássemos para
trás no tempo, houve uma altura em que tudo
esteve junto. Não havia estrelas ou galáxias...
... Não havia nada, o Universo era um ponto. Nessa
altura, a matéria como a conhecemos hoje não
existia. Não existiam átomos nem sequer protões ou
electrões, que estavam completamente desintegrados.
Claro que isto é extremamente difícil de comunicar
ou compreender, já que foge à experiência do dia-
a-dia. Na realidade, nem sequer temos uma teoria
suficientemente forte para compreender o nascimento
do Universo. A teoria da relatividade geral falha e não
temos forma de pensar nesse “Universo-embrião”.
Ainda antes das observações de Edwin Hubble, já
tinha havido teorias que sugeriam a existência de
um início do Universo, não é?
Desde há muito tempo que um Universo estático
causava incómodos. Não havia teoria nenhuma,
propriamente dita, que sugerisse o nascimento do
Universo. Contudo, um meteorologista e matemático
russo, Alexander Friedmann, tinha descoberto em
1922 uma solução da teoria de Einstein que descrevia
um Universo em expansão. Em 1927, o padre e
astrofísico belga Georges Lemaître chegou também a
um modelo de um Universo em expansão. Lemaître
compreendeu até as implicações dessa descoberta,
quando afirmou que “houve um dia em que não houve
ontem”, isto é, que o Universo teve um início.
E, contudo, o trabalho de ambos foi praticamente
ignorado na altura: não eram cientistas de renome no
local certo, e em ciência, por vezes, isto é importante:
há que lutar pelas ideias persistentemente, até serem
aceites pela comunidade. Até os resultados de Hubble
encontraram resistência e durante décadas muitos
não acreditaram neles. A primeira reacção de um
cientista a uma descoberta é tentar mostrar que está
errada. Talvez seja por isso que a ciência funciona tão
bem: duas partes disputam com argumentos lógicos
e lutam pela verdade até o assunto ficar esclarecido.
Infelizmente, Friedmann não pôde lutar pela sua
ideia, já que morreu pouco depois, aos 37 anos.
A grande descoberta de Einstein foi que o espaço
e o tempo são uma entidade única — o espaço-
tempo —, que é deformada pela presença da
matéria e da energia. Como é que isso mudou a
nossa visão do tempo?
Em 1905, Einstein entendeu que o tempo não é
absoluto, e que relógios iguais podem ter tiquetaques
diferentes conforme a velocidade a que eles se
movam: não é problema nenhum com o relógio, é o
próprio tempo que flui de forma diferente... Isto vai
até à raiz da nossa existência: afinal de contas, o que é
o tempo?! O tempo é relativo, pode “mover-se” mais
ou menos rapidamente. Todos os dias no CERN
A
“Cientificamente,terhavidoum
pontodepartidaélibertador.
Nãonascemosescravosdeum
Universoquejácáestava.Pelo
contrário,evoluímoscomele”
os 40 anos, Vítor Cardoso é professor e investigador
do Centro Multidisciplinar de Astrofísica e Gravitação
(Centra) do Instituto Superior Técnico, em Lisboa.
Também é professor na Universidade do Mississípi,
nos Estados Unidos, e investigador do Instituto
Perimeter, no Canadá. Nos últimos cinco anos, ganhou
duas superbolsas no valor total de 2,5 milhões de
euros, que tem utilizado na investigação das equações
de Einstein, com a ajuda de um supercomputador
chamado Baltasar Sete Sóis. Dedica-se à física teórica,
nomeadamente à compreensão dos buracos negros,
da matéria escura e das ondas gravitacionais.
Toda a gente aceita hoje a ideia de que o Universo
teve um início — o Big Bang — e que, desde então,
o Universo está em expansão. Por que é que
Einstein se recusou a aceitar esta realidade, que,
aliás, uma das suas próprias equações da teoria
da relatividade geral lhe indicava?
Temos de tentar perceber o que ele fez com as
mesmas barreiras psicológicas que imagino que
existissem na altura: o Universo era simplesmente
pensado como algo imutável, que sempre foi e sempre
será. Einstein acreditava, portanto, num Universo
estático. Ora, a física tem esta coisa extraordinária de
prever coisas que nunca tínhamos imaginado quando
a construímos, isto é, quando a passamos para a
linguagem matemática. E os resultados de Einstein
diziam-lhe que o Universo não devia ser estático. Mas
até Einstein, que já tinha derrubado a barreira do
tempo imutável, sucumbiu e se recusou a deixar isto
acontecer: mudou um pouquinho a matemática para
que as equações se adaptassem à sua interpretação da
realidade. Fez batota para satisfazer o seu preconceito.
Este tipo de actos, o de tentar subjugar a realidade aos
nossos preconceitos, acontece não só em ciência, mas
na política, na economia e no dia-a-dia. Na ciência, a
realidade fala sempre mais alto e acaba por ganhar.
Quando se fala de um Universo estacionário, isso
quer dizer que se pensava que as estrelas não
morriam? Que o nosso Sol se mantinha igual?
As estrelas não nasciam nem morriam e não evoluíam.
De alguma forma, isso dava-nos uma certa paz de
espírito: o Universo era assim no tempo dos nossos
avós e vai continuar assim no tempo dos nossos netos.
Mas, por outro lado, o que aceitamos hoje é ainda
mais bonito: as estrelas nascem, morrem e algumas
explodem. O resto de algumas destas explosões de
estrelas mortas forma planetas, alguns dos quais vão
ter vida, como a Terra. Portanto, a vida resulta da
morte, e é muito mais interessante pensarmos que já
fomos estrelas e que provavelmente vamos voltar a ser
daqui a muitos milhões de anos...
O momento-chave da mudança na nossa visão do
Universo foi quando o astrónomo Edwin Hubble
descobriu, em 1929, que as galáxias se estavam a
afastar umas das outras?
Edwin Hubble descobriu que, em geral, todas as
galáxias se estão a afastar de nós e que quanto mais
longe de nós está uma galáxia, mais rapidamente
ela se afasta. Portanto, o Universo está em expansão
no verdadeiro sentido da palavra. Hoje é tão normal
ouvirmos estas palavras que até parecem dizer algo
fácil de entender. Mas não é. Quando olhamos para
os céus, vemos sempre a mesma coisa, a Estrela
Do momento zero do Universo até aos 10-43
segundo, podemos dizer que há tempo?
Do zero até aos 10-43
segundo não se pode dizer que
não haja tempo. Há tempo, mas talvez seja de natureza
diferente. Não se pode dizer mais nada. É um tempo
diferente. Há efeitos de mecânica quântica que não
conhecemos. Talvez o tempo flutue e dê saltos, talvez
não ande sempre para a frente... Julga-se que nestas
alturas o espaço-tempo é como espuma, tudo se
mistura. É a partir de 10-43
segundo que a teoria de
Einstein é aplicável.
E antes do Big Bang?
É o campo da especulação e da metafísica. A ciência
pára aí.
Em 1999, João Magueijo propôs uma alternativa
ao modelo da inflação cósmica para explicar a
homogeneidade do Universo a grandes escalas.
Teriam sido os fotões (a luz) que puseram todo o
Universo primordial em contacto e o tornaram
uniforme. Para isso a luz teria de ter sido mais
rápida no passado, o que questionava a constância
da sua velocidade. Há hoje alguma observação
astronómica que fundamente esta proposta?
Ele tentou mudar as regras do jogo, para encontrar
uma alternativa ao processo de inflação, que, como
já disse, sugere que o Universo passou por uma fase
de crescimento muito rápido, quando era criança.
Em vez de ser a velocidade de expansão do Universo
que mudava, era a própria velocidade intrínseca das
coisas, neste caso da luz, que mudava ao longo da
história do Universo. A luz punha tudo em contacto
e a homogeneidade ficava mais ou menos explicada.
Do ponto de vista teórico, nada proíbe que isso tenha
acontecido. Mas Einstein acreditava que a velocidade
da luz era constante, é um postulado da teoria dele. É
assim que a física funciona: propõem-se alternativas
para resolver problemas e fazem-se observações para
ver qual é a que o Universo escolheu. Parece hoje que
o Universo escolheu a inflação e que a velocidade da
luz é mais ou menos constante ao longo da sua história.
Portanto, a proposta de João Magueijo é interessante,
mas a natureza não optou por ela. Contudo, ao
explorar essa possibilidade, ficamos a saber algo mais
sobre o Universo. Fazer ciência é testar hipóteses.
A descoberta das ondas gravitacionais dos
primórdios do Universo, anunciada em 2014,
teria sido a prova final de que o modelo da
inflação cósmica estava certo. Mas esse anúncio
foi desmentido este ano por análises posteriores
das observações, nomeadamente do telescópio
espacial europeu Planck. Ficou muito desiludido?
As ondas gravitacionais são distorções do espaço-
tempo que transportam informação sobre a gravidade.
Viajam à velocidade da luz e foram previstas por
Einstein há 100 anos, mas nunca foram detectadas
directamente na Terra. O anúncio da descoberta
matava dois ou três coelhos de uma cajadada: se estas
ondas tivessem mesmo sido vistas, significava que
a gravidade também tem natureza quântica, já que
estas ondas seriam geradas por efeitos quânticos no
início do Universo; significava também a verificação
do mecanismo que mencionei, a inflação, já que só
através da inflação é que as ondas gravitacionais são
suficientemente fortes. Finalmente, a detecção das
ondas significa que elas existem.
Quanto ao episódio do anúncio da (falsa)
descoberta em si, é uma ilustração perfeita de como
a ciência (e o ser humano) funciona. Um grupo, da
experiência BICEP2 no Pólo Sul, afirmou [em 2014] ter
descoberto as ondas gravitacionais, talvez um pouco
precipitadamente, para ficar com a fama e o proveito
que adviriam se estivessem correctos. A reacção da
maior parte de nós ao anúncio de qualquer descoberta
é tentar provar que está errada. E, realmente, há cerca
de um mês, a equipa do Planck, em colaboração com
o BICEP2, mostrou que o anúncio foi precipitado.
Mas repare: há agora um consenso entre os cientistas,
portanto o método científico está a funcionar bem.
Pode explicar um pouco mais o que são as ondas
gravitacionais? E acha que vamos detectá-las?
A teoria da relatividade de Einstein diz que espaço
e tempo são um único tecido, e que as ondas
gravitacionais são flutuações desta entidade à medida
que o tempo passa. As ondas na superfície de
[Laboratório Europeu de Física de Partículas, em
Genebra] se verificam estas previsões, é algo já aceite
por todos nós e que até passou para a cultura popular,
mas era uma barreira imensa.
Em 1916, Einstein percebeu que o tempo e o espaço
são elásticos e duas faces de uma mesma entidade: o
espaço-tempo. Pela primeira vez, o tempo não é uma
entidade imóvel, é algo que pode ser distorcido. Isto
permitiu-nos trabalhar a noção de tempo: o tempo
pode fluir mais devagar ou mais depressa. A teoria da
relatividade foi importante para termos até uma noção
do início do tempo, tínhamos de quebrar primeiro a
noção de que o tempo é uma coisa estática e imóvel
e eterna. Creio que a noção do Big Bang só é possível
depois de termos quebrado a barreira do tempo e de
sabermos que podemos mexer no tempo.
Que implicações filosóficas e religiosas teve o
facto de sabermos da existência do Big Bang?
Imagino que deve ter sido um grande choque saber
que o Universo está a evoluir e que nós, enquanto
parte do Universo, estamos a caminhar para algum
ponto enquanto espécie e enquanto ser vivo no
cosmos. Qual o nosso papel no Universo? Há algum
propósito na nossa existência? Qual o futuro da
humanidade? Quem criou o Universo? Estas perguntas
devem ter ganho nova relevância.
Mas, cientificamente, ter havido um ponto de
partida é libertador. Não nascemos escravos de um
Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos
com ele. Se o Universo não é estático e está a mudar,
então talvez possamos compreender as estrelas,
como deitam tanta luz cá para fora, o que acontece
no interior delas... Como é que se formaram, como
morrem, como é que a vida nasceu... tudo isto! Tem
de ter sido uma coisa bonita saber que, afinal, há
alguma dinâmica no sítio onde vivemos.
Em 1965, descobriu-se uma radiação “fóssil”,
que é a luz mais antiga que conseguimos ver dos
primórdios do Universo, quando tinha só 380 mil
anos, e que se chama radiação cósmica de fundo.
Esta foi a derradeira prova do Big Bang?
A teoria de um Universo estático ou estacionário
prevê que o Universo é hoje como foi há milhões de
anos. Por outro lado, a teoria de que o Universo teve
um início prevê muitas outras coisas: toda a matéria
estava concentrada inicialmente num único ponto e
toda a matéria estava esmagada porque a temperatura
era enorme. Mas, à medida que o Universo expande,
arrefece e permite a criação de estrutura. Quando
o Universo celebrou um segundo de vida, estava
suficientemente frio para núcleos de átomos. E aos
380 mil anos a luz conseguiu finalmente “libertar-se”
da matéria: é esta luz a que chamamos a radiação
cósmica de fundo, um eco do Big Bang. Mas é um
eco que tem toda esta evolução subjacente. É uma
fotografia lindíssima do Universo jovem-adulto, só
possível num cenário em que existe Big Bang.
E um pormenor interessante é que esta “fotografia”
foi descoberta por acaso por Penzias e Wilson em
1964. Enquanto instalavam antenas muito sensíveis,
detectaram um ruído que atribuíram a... cocó de
pombos. E que se verificou ser radiação cósmica de
fundo existente em todo o lado e em todas as antenas.
Hoje vemos galáxias pelo Universo todo. O que
mais nos disse a radiação cósmica de fundo sobre
o Universo que vemos hoje? O que permite saber
sobre os primeiros 380 mil anos do Universo, que
não vemos directamente?
A radiação cósmica de fundo é quase isotrópica, isto
é, a mesma em todas as direcções para onde olhemos.
Isto faz sentido, dado que o Universo era o mesmo
em todas as direcções quando esta luz foi libertada.
Mas esta luz é antiga, está a viajar há muitos milhões
de anos e já viu muita coisa. Desde os quase 14.000
milhões de anos que passaram desde que a radiação
cósmica de fundo foi criada, muita coisa aconteceu:
a gravidade atrai tudo o que pode, e a tendência é
começar a formar “coágulos” de matéria, que são
as sementes das futuras galáxias, estrelas ou mesmo
buracos negros. Ora como esta luz viaja há tanto
tempo, foi afectada por todos estes acontecimentos.
Por isso, quando olhamos para a radiação cósmica
de fundo, vamos ver todo este passado da luz como
pequenos desvios em diferentes direcções.
Outro marco da nossa compreensão do Universo
foi o modelo da inflação cósmica. Por que foi
preciso introduzir na teoria do Big Bang uma
expansão vertiginosa do Universo nas primeiras
fracções de segundo da sua existência?
O Universo nasceu homogéneo e isotrópico, o mesmo
em todo o lado e direcção e continua mais ou menos
assim ainda hoje. No cômputo geral, é mais ou menos
homogéneo. Se olharmos para o céu, há sempre uma
estrela algures no caminho do nosso telescópio. Isto
significa que a direcção do Pólo Sul no céu parece-
se, com uma precisão de uma parte em 10.000,
com a direcção do Pólo Norte. Mas quando olhamos
nestas diferentes direcções, estamos a ver luz que
veio de partes completamente diferentes e que nem
sequer deveriam saber da existência uma da outra.
Então, como é possível que sejam tão semelhantes?
Bem, uma explicação é que seja uma coincidência,
mas tem de ser uma coincidência tão grande que é
como ganhar a lotaria várias vezes seguidas... Parece
batota! Pensamos que isto aconteceu porque houve
uma inflação, isto é, um crescimento muito rápido,
que dissolveu qualquer “coágulo” e imperfeição
que existisse, um alisamento muito rápido do tecido
onde estavam estes coágulos, e tudo ficou muito
uniformemente distribuído. A inflação procura
explicar por que é que o Universo é assim.
Ainda antes da inflação, houve o Big Bang, o
momento zero. Depois, houve a primeira fracção
de segundo a partir da qual o conceito de tempo
tem sentido: 10-43
segundo. Mas entre o Big Bang e
os 10-43
segundo, o que é o tempo?
Não sabemos. O 10-43
segundo é o que chamamos a
escala de Planck (em homenagem a Max Planck, o
físico que iniciou o estudo da mecânica quântica). Que
é a escala da nossa ignorância. Diz-nos que daí para
trás a mecânica quântica (que explica a existência de
átomos, moléculas, etc.) é tão ou mais importante do
que a gravidade. Quando o campo gravítico é muito
forte — e era no início do Universo, porque estava
tudo junto e era extremamente denso —, há efeitos de
mecânica quântica que não podemos prever. Sabemos
que têm de estar lá, mas não os sabemos calcular.
Como não conseguimos casar a teoria quântica e a da
relatividade geral, não sabemos o que acontece.
“[Antesdo
BigBang]é
ocampoda
especulaçãoe
dametafísica.
Aciênciapára
aí.”
um lago são uma boa analogia. Outra boa analogia
é imaginarmos que o Universo em que vivemos é o
tecido de uma camisola. E que nós e tudo o que existe
no Universo somos os desenhos pintados na camisola.
Se eu tocar com o dedo na camisola, ela vai oscilar. E
se eu puxar o tecido da camisola, os desenhos ficam
mais ou menos esticados. Puxões que viajam no tecido
são as ondas gravitacionais. Esta analogia mostra-nos
o efeito de uma onda gravitacional sobre nós. Se uma
onda gravitacional estiver a passar aqui entre nós, é
o mesmo que eu puxar o tecido de uma camisola e o
que veria é que ficaríamos sucessivamente esticados e
comprimidos. A minha altura iria variar muito pouco,
mas iria variar. O problema é que varia muito pouco, o
que é bastante complicado de detectar.
Estas ondas têm uma história interessante. Einstein
previu a sua existência em 1916, mas 20 anos depois
negou-a num artigo com [Nathan] Rosen. Einstein
também errava, e bastante, e isto foi mostrado por
[Howard] Robertson, que se apercebeu de que ele
interpretou mal a solução. Mas Einstein era Einstein
e o que perdurou foi a sua opinião... até 1955, quando
[Richard] Feynman, [Hermann] Bondi e outros
mostraram que as ondas têm de existir e transportar
energia. A partir de 1960, começa-se a tentar detectar
estas ondas na Terra, com barras de alumínio. Joseph
Weber foi um pioneiro, construindo os detectores
mais avançados. Infelizmente, alegou ter detectado
dezenas de acontecimentos, mas mostrou-se mais
tarde que resultaram de erros de software e hardware.
Resumindo, a história da detecção destas ondas,
chamadas “mensageiros de Einstein”, não começou
muito bem, e havia algum receio de investir uma
carreira no assunto. Nos anos 1980, o famoso físico Kip
Thorne decidiu recomeçar todo o esforço com o LIGO,
um observatório norte-americano. Acreditamos que a
primeira detecção directa destas ondas vai acontecer
daqui a um ou dois anos. Se não detectarmos nada em
2017... mau... Então, ou o Universo é completamente
diferente da forma como hoje o entendemos, ou a
teoria de Einstein está seriamente errada.
Pensa-se que os buracos negros também geram
ondas gravitacionais, duas coisas estudadas por
si. Que mistérios procura desvendar?
Bom, dado que vamos todos acabar dentro de um
grupo de grande qualidade sem preocupações quanto
aos cortes ou à política de contratações, durante os
próximos cinco anos. E vai permitir-me actualizar o
nosso supercomputador, que usamos intensamente
para resolver as equações de Einstein.
Esse supercomputador chama-se Baltasar Sete
Sóis, nome inspirado em Baltasar Mateus, o Sete-
Sóis, personagem de José Saramago em Memorial
do Convento. Por que deu esse nome à máquina?
O nome foi discutido com a minha mulher, queria
que fosse algo com significado. Ora o Baltasar Sete
Sóis é um personagem que ajuda o padre Bartolomeu
Lourenço a construir o seu sonho, que é a Passarola,
uma máquina voadora. Gostámos desta ideia, de o
Baltasar ajudar a construir um sonho, especialmente
da forma apaixonada com que as personagens do
livro o faziam. Posso dizer, ao fim de cinco anos, que o
Baltasar já construiu muitos sonhos!
Neste passeio que estamos a fazer, houve mais
um abalo, em 1998, na nossa visão do Universo.
Não só o Universo se está a expandir como o está
a fazer cada vez mais depressa. Por que é que isto
surpreendeu tanto os cientistas?
Bom, por várias razões, a começar pelo facto de que a
expansão acelerada não estava no “menu”. E porque
a descrição mais simples desta aceleração é uma
energia escura, ou constante cosmológica (a mesma
que o Einstein tinha introduzido por preconceito), que
ainda hoje não sabemos bem explicar. Já agora, esta
“reciclagem” da constante cosmológica não significa
que Einstein estava, afinal de contas, certo. Isso é
apenas uma coincidência, mas mostra que o homem
tinha uma intuição danada para resolver problemas.
O cenário mais consensual é o da expansão
eterna do Universo. Como será o Universo com
26.600 milhões de anos, ou seja, com o dobro da
sua idade actual? Esse futuro é negro?
O futuro é escuro e frio! Essa pergunta é tramada,
porque exige fazer alguns cálculos complicados.
Mas deixe-me descrever o que vai acontecer, e como
vamos ficar cada vez mais sós.
Daqui a cerca de 500 milhões de anos, o Sol estará
tão luminoso que a temperatura na Terra vai subir
cerca de dez graus. O homem vai provavelmente
começar a pensar, a sério, em mudar-se para outros
planetas no sistema solar ou na galáxia antes disto.
De qualquer forma, daqui a cerca de 4000 milhões
de anos a nossa galáxia, a Via Láctea, vai colidir com
outra, a de Andrómeda. Durante este processo, que
levará muito tempo, algumas simulações mostram que
a Terra vai passar muito perto do centro desta galáxia
combinada, antes de ser ejectada para fora. Vamos
perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a
Terra já não terá humanidade [o Sol estará a morrer
daqui a 5000 milhões de anos].
Daqui a 100.000 milhões de anos, todo o Grupo
Local [umas 40 galáxias, incluindo a nossa] será
uma única galáxia e o Universo já terá arrefecido e
expandido de tal forma que esta única galáxia estará
isolada do resto do Universo. Lentamente, estrelas
deixarão de se formar. Algum tempo depois, os
protões e neutrões desintegrar-se-ão. Qualquer vida
que pudesse existir morre. Como puro exercício
especulativo, podemos continuar: a matéria que existe
vai cair para dentro dos buracos negros, e o Universo
vai ter apenas buracos negros gigantes. Finalmente,
estes vão-se evaporando lentamente. Não faço ideia
do que acontece a seguir neste Universo. Dito assim,
parece um cenário desolador. Poderemos pensar em
nós como aquela luzinha trémula que surgiu no meio
da noite e se apagou, mas foi bonito enquanto durou.
Esta altura onde estamos agora é a melhor para
estudar o Universo, agora já evoluiu bastante?
É. Se fosse mais cedo, era impossível, porque não teria
o tipo de estrutura que tem. Não haveria planetas do
tipo da Terra a orbitar estrelas. Nem nós estaríamos
cá nem alguma forma de vida vagamente semelhante
à nossa. A questão é: há mais alguém a observá-lo e há
ligeiramente mais tempo?
Acha que há?
Acho que sim. A probabilidade de haver vida nalguma
ponta do Universo é imensa. O que não quer dizer que
esses seres vivos sejam necessariamente parecidos
connosco, física ou intelectualmente.
buraco negro, é bom sabermos como estas bestas
nasceram e cresceram. Buracos negros nascem
quando uma estrela muito grande morre, e cai sobre
si mesma, pois já não consegue suportar a atracção
gravítica. Para um buraco negro, crescer é a única
opção: eles comem tudo o que puderem. Os buracos
negros são muito comuns em todas as galáxias: a
nossa tem milhões de buracos negros “pequenos”,
isto é, com cerca de 15 quilómetros de raio, mas
um milhão de vezes mais pesados do que a Terra.
Além disso, descobrimos nas últimas décadas que
quase todas as galáxias têm no centro um buraco
negro supergigante. No caso da Via Láctea, o centro
é ocupado por um monstro gigante quatro milhões
de vezes mais pesado do que o nosso Sol. Estes
gigantes, apesar de muito mais pequenos do que a
galáxia, controlam toda a sua actividade, incluindo
o nascimento de novas estrelas. Estes gigantes nos
centros das galáxias estão sempre acompanhados
por outro gigante invisível, a que chamamos matéria
escura. E que forma a maior parte da matéria do
Universo e não fazemos ideia do que seja (por isso
lhe chamamos “escura”, quando soubermos o
que é, talvez mudemos o nome!). Ora, os buracos
negros emitem quantidades prodigiosas de ondas
gravitacionais. Procuro perceber esta emissão e a sua
importância. Será que através das ondas gravitacionais
podemos saber algo sobre a matéria escura?
Como é que o acelerador LHC — onde se detectou
o bosão de Higgs em 2012 e vai agora reabrir
quase com a sua potência máxima — pode ajudar
a descobrir o que é a matéria escura?
O LHC tem tentado procurar também matéria
escura, mas estamos sempre limitados pela energia
necessária. No estado actual da física, a parte mais
excitante está no Universo para lá do nosso sistema
solar. Há pouco tempo, o CERN deu-nos provas mais
ou menos conclusivas da existência do bosão de
Higgs. Mas receio que daqui para a frente a física de
partículas vá passar um mau bocado. Sempre precisou
de mais e mais energia [para se colidirem partículas
nos aceleradores], mas haverá uma altura em que, no
planeta, é impossível dar essa energia toda. Teremos
de olhar lá para fora e dar atenção a outro tipo de
“aceleradores”. Creio que a física deste século está nos
astros e na física gravitacional. Há muito por entender
e muitas fontes de energia onde procurar informação.
Precisamos de telescópios bons e mentes brilhantes.
Os buracos negros estão entre os objectos
mais exóticos do Universo? Ou nem por isso, e
despertam é curiosidade nas pessoas?...
São, sem dúvida, exóticos para a nossa experiência
do dia-a-dia. São um “nada” que consegue curvar de
tal forma o tiquetaque dos relógios que nada sai de
dentro deles. Creio que o que desperta a curiosidade
é o facto de desafiarem os nossos conceitos de
tempo e espaço, e o facto de representarem um fim
quase definitivo para tudo que engolem. E é preciso
relembrar que eles existem.
Teve duas superbolsas do Conselho Europeu de
Investigação (ERC), em 2010 e 2015, para estudar
as equações na teoria da relatividade geral. O que
quer dizer estudar as equações de Einstein?
O meu trabalho é pensar sobre o que nos rodeia,
para percebermos, todos nós, o nosso Universo um
pouco melhor. A minha investigação consiste em
perceber a teoria de Einstein e o que ela prevê. É fácil
de enunciar, é difícil de fazer, porque as equações
de Einstein descrevem muita coisa: buracos negros,
ondas gravitacionais, estrelas de neutrões, etc.
As equações da relatividade são tremendamente
complicadas de resolver e têm muitas soluções — tal
como a “fórmula” da biologia dá origem a muitos seres
vivos diferentes. Tome-se o exemplo do buraco negro
no centro da nossa galáxia, que é fundamental para a
vida da galáxia, para a formação de estrelas e até para
o futuro longínquo da galáxia. Dedico-me a tentar
perceber estes buracos negros, como crescem e como
nos podem ensinar algo acerca da sua vizinhança.
E estas superbolsas são fulcrais. A importância e
a qualidade da ciência em Portugal tem crescido,
muito rapidamente, nas duas últimas décadas. Os
cortes orçamentais fizeram regredir a situação. A
última bolsa do ERC vai permitir-me manter um
“Daquiacerca
de4000
milhõesde
anosaVia
Lácteavai
colidircom
Andrómeda.
Vamosperder
anossa
querida
galáxia,mas
poressa
alturaaTerra
jánãoterá
humanidade”
ste ano, no último dia de Junho ou no primeiro de Julho
(dependendo do fuso horário do local), os relógios do
mundo inteiro — e em particular os dos computadores —
vão ter de parar durante um segundo. Tal foi a decisão,
tornada pública há dias, dos “guardiões da hora” a nível
mundial: o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas,
com sede em Sèvres, nos arredores de Paris.
Porquê? Porque a hora é hoje dada por relógios muito
precisos e estáveis, ao passo que a rotação da Terra é
irregular e está a ficar cada vez mais lenta. Isso obriga,
de vez em quando, a fazer acertos.
No início, havia a noite e o dia, a meia-noite e o meio-
dia. E as horas contavam-se partindo esse ciclo natural
em intervalos regulares: horas, minutos e segundos.
A partir de observações astronómicas, os astróno-
mos árabes tinham subdividido, já na Idade Média, o
dia solar em 24 horas, as horas em 60 minutos e os
minutos em 60 segundos. E, com base nisso, em 1874,
o segundo fora cientificamente definido como um se-
xagésimo de sexagésimo de vigésimo quarto da dura-
ção média do dia solar. Um dia “civil” durava portanto
86.400 segundos.
Só que, pouco depois, descobriu-se que o período de
rotação da Terra não é assim tão regular: varia de forma
imprevisível sob o efeito das marés, dos ventos, dos
terramotos. Seguiram-se então definições do segundo
com base no ano solar, que também não se adequaram
à crescente necessidade de medir o tempo de forma
cada vez mais precisa.
Em 1955, foram inventados os relógios atómicos e,
uns anos mais tarde, redefiniu-se o segundo com base
na frequência da radiação electromagnética emitida por
certos átomos. Este segundo “atómico” tinha a vanta-
gem de ser bastante próximo do segundo oficial “natu-
ral” (baseado no dia solar) definido em 1874.
Hoje em dia, os segundos atómicos servem para de-
terminar a “hora atómica internacional” (TAI) graças a
uma rede de centenas de relógios atómicos, espalhados
pelo mundo — e entre os quais o Gabinete Internacional
de Pesos e Medidas calcula uma hora média.
Graças a diversos avanços técnicos, as “batidas” des-
tes relógios atómicos têm-se tornado cada vez mais re-
gulares, com os de última geração a demorarem milhões
de anos a derivar alguns segundos. E o aperfeiçoamento
não pára aí: em Fevereiro, cientistas japoneses anun-
ciaram na revista Nature Photonics ter obtido relógios
atómicos que teriam derivado menos de um segundo
desde o Big Bang, há 13.800 milhões de anos.
Em 1972, como os relógios atómicos respondiam de
facto à necessidade de precisão no cálculo da hora glo-
bal (nomeadamente nas redes de telecomunicações), a
hora oficial na Terra, que até lá tinha sido medida em
segundos “solares”, passou a ser medida em segundos
“atómicos”. Entrou assim em vigor a escala horária UTC
(Tempo Universal Coordenado).
Mas surgiu então um outro problema: é que a rotação
da Terra não tem parado de abrandar — em cerca de 1,7
milissegundos por século nos últimos séculos — e, se
nada fosse feito, a hora UTC, agora medida em segundos
atómicos, iria afastar-se cada vez mais da hora solar “re-
al”. Na altura, ninguém desejava, por assim dizer, que
acabasse um dia por “estar sol em plena noite” (mesmo
que isso acontecesse daqui a milhares de anos).
A hora UTC, que é de facto a norma através da qual o
mundo acerta hoje os relógios e a hora civil, encontra-se
sob a alçada da União Internacional de Telecomunica-
ções. E, face ao problema do abrandamento da rotação
E
Por Ana Gerschenfeld
Este ano,
o último
dia de
Junho
vai ter
mais um
segundo
A1
Em 1991, Portugal fica mais
pequeno e mais rapidamente
transitável: é finalmente
concluída a construção da
Auto-estrada entre Lisboa e o
Porto, que tinha sido iniciada
ainda em 1961 com o troço
Lisboa Vila Franca — ou seja, 30
anos para acelerar o percurso
de 330 quilómetros. Onze
anos depois (2002), o país
tornou-se ainda mais pequeno
com a inauguração dos 240
quilómetros da A2 entre Lisboa
e Albufeira, iniciada em 1996.
S.J.A.
>>>>>>>>>>>>
1991
terrestre, aquela entidade recomendou então que a hora
“oficial” dada pelos relógios — a hora UTC —, nunca se
poderia afastar em mais de 0,9 segundos da hora dada
pelo “relógio” natural da rotação da Terra.
Foi justamente por essa razão que começou a ser pre-
ciso acrescentar segundos adicionais de vez em quando
à hora UTC. Desde 1972, 25 destes “segundos intercala-
res” foram assim acrescentados. E este ano, mais uma
vez, vai ser preciso fazer o acerto dos relógios. Diga-se,
já agora, que a hora atómica internacional TAI está actu-
almente 35 segundos adiantada em relação à hora solar,
uma vez que este tipo de acertos entre a hora atómica
e a hora solar já tinha começado a ser feito nos anos
1960, antes da instituição da actual hora UTC.
Parar um segundo
Como é que o salto de um segundo se vai processar? A
30 de Junho, quando forem 00:59:59 horas (hora UTC),
todos os relógios do mundo que usam o sistema UTC
terão de parar por um segundo — ou de marcar um se-
gundo a mais (um sexagésimo primeiro segundo, com
os relógios a dar 00:59:60 horas) — antes de passar para
a hora seguinte. Isto acontecerá antes da meia-noite
nas Américas, após a meia-noite na Europa — e mesmo
depois do nascer do sol de 1 de Julho em países como o
Japão ou a Austrália.
Simples? Nem por isso. Acontece que os grandes
sistemas informáticos — como os serviços de reservas
das companhias aéreas ou os servidores das grandes
empresas da Internet — vão ter de marcar o passo. Ora,
em 2012, quando da introdução do último segundo in-
tercalar, vários destes sistemas tiveram problemas para
“digerir” o segundo e acabaram por ir abaixo, alguns
durante várias horas.
“Vamos ter de obrigar os nossos relógios a aceitar
um segundo a mais num dado minuto”, explicava em
finais de 2011 à revista New Scientist Felicitas Arias, as-
trónoma argentina e directora do Departamento do
Tempo no Gabinete Internacional de Pesos e Medidas.
E acrescentava: “Estamos a usar um sistema [horário]
que interrompe o tempo, quando a característica do
tempo é, pelo contrário, a continuidade.”
A seguir ao segundo intercalar de 2012, servidores da
companhia aérea australiana Qantas ou de sites como
Linkedin, Mozilla, FourSquare ou Reddit foram atin-
gidos por um bug de programação, que até lá tinha
permanecido latente (e que portanto ninguém tinha
detectado), no sistema operativo Linux utilizado por
aqueles computadores. Outros servidores, que utiliza-
vam Java (o célebre software da Oracle), também foram
afectados.
Pode isto tornar a acontecer? Ninguém sabe ao certo.
Mas na sequência dos problemas com que se defrontou
por ocasião do segundo intercalar introduzido em 2005,
o gigante online Google divulgou uma forma de contor-
nar o problema, como explicava há dias a CNN online.
Trata-se de ir acrescentando alguns milissegundos aos
relógios dos seus servidores ao longo do dia fatídico —
“o suficiente para evitar o desastre no fim do dia, mas
que [por serem apenas uns milissegundos] não fazem
disparar os alarmes.” Porém, isso também não evita
todos os incidentes.
Há anos que a União Internacional de Telecomuni-
cações está a considerar a hipótese de acabar, pura e
simplesmente, com os segundos intercalares, deixando
a hora UTC afastar-se da hora solar. Em Novembro des-
te ano, a questão tornará a ser abordada no congresso
desta organização em Genebra. Mas o facto é que não há
consenso entre os especialistas. Por um lado, há quem
argumente que, com o passar dos séculos, a frequência
de introdução de segundos intercalares vai aumentar
até se tornar incomportável. Por outro, há quem alerte
para o facto que abolir os segundos intercalares fará
com que a hora civil acabe por perder a sua ligação
com o tempo solar.
Ainda segundo a New Scientist, este último argumento
apresenta uma visão exagerada das coisas, uma vez que
a hora legal em vigor nos diversos países já se encontra
desfasada, por vezes de várias horas, em relação à hora
solar — o que significa que o Sol não está nem perto do
zénite quando os relógios assinalam o meio-dia. Por
comparação, a abolição do segundo intercalar levaria,
daqui por cem anos, a uma diferença de apenas um
minuto entre a hora atómica e a hora solar.
YULIA DARASHKEVICH/REUTERS
SalvaraTerra
Em 1992, o Rio de Janeiro é o
palco da Cimeira da Terra, a
segunda conferência mundial
sobre meio ambiente. A primeira
realizara-se em Estocolmo
em 1972. No Rio, 108 países
comprometeram-se em travar
a degradação do planeta e o
consumo de recursos naturais,
assim como encontrar modelos
de desenvolvimento sustentável,
ecologicamente equilibrados.
Do Rio saíram convenções sobre
biodiversidade, desertificação
e clima. Esta última conduziu,
em 1997, ao Protocolo de
Quioto, no Japão, em que os
países concordam em reduzir as
emissões de gases com efeito
estufa, evitando o aquecimento
global. S.J.A.
>>>>>>>>>>>>
1992
A
o contrário dos humanos, os computa-
dores não têm esperança, aquela dispo-
sição de espírito que leva a crer que algo
acontecerá (ou deixará de acontecer),
mesmo quando a informação dispo-
nível aponta em sentido contrário. Os
algoritmos desenvolvidos para analisar uma imensa
quantidade de dados e tomar uma decisão de compra
ou venda de um produto financeiro não foram progra-
mados para cruzar os dedos e esperar que o pior passe.
Os computadores seguem à risca as instruções com
que foram programados e fazem-no em minúsculas
fracções de segundo. Por vezes, isto leva a situações
inesperadas.
Um mini-crash dos mercados em 2010 ficou na histó-
ria como um exemplo dos riscos colocados pelas tran-
sacções feitas por algoritmos, em particular por aquilo
a que se chama high frequency trading (transacções de
elevada frequência). É uma prática que envolve gran-
des quantidades de transacções automatizadas, feitas
em curtíssimos períodos de tempo e onde a estratégia
é normalmente ter um pequeno ganho em cada uma
das múltiplas compras e vendas.
A 6 de Maio daquele ano, o Dow Jones (o índice bolsis-
ta que agrega as cotações de grandes empresas como a
Microsoft, a Coca-cola e a IBM) estava às 14h47 minutos
de Nova Iorque a perder mais de 9%. A maior parte desta
queda, invulgarmente grande, acontecera nos minutos
anteriores. Ainda antes das 15h, as cotações já tinham
recuperado boa parte das perdas.
Foram precisos meses para que as autoridades regu-
latórias conseguissem explicar o que se passara: o crash
tinha sido causado por computadores a comprarem e
venderem uns aos outros, numa sucessão imprevisível
de eventos. A bola de neve começou com uma empresa
que usou um programa de computador para vender
4,1 mil milhões de dólares de contratos de futuros, in-
dependentemente do preço de venda. A maior parte
foi rapidamente comprada por computadores de hi-
gh frequency trading. Quando os algoritmos daqueles
computadores consideraram que já tinham comprado
demasiado, começaram a vender muito rapidamente.
Em escassos 14 segundos, os contratos trocaram de
mãos 27 mil vezes.
Com uma venda maciça a decorrer, outros investido-
res começaram a comprar os contratos a preços redu-
zidos, mas a vender acções que tinham em mercados
como a Bolsa de Nova Iorque. Por seu turno, alguns
algoritmos detectaram a rápida sucessão de compras
e vendas e pararam de transaccionar. O resultado foi
um crash de alguns minutos, que terminou quando um
algoritmo, desta vez do mercado onde eram trocados
os contratos de futuros, interveio e suspendeu as ne-
gociações durante cinco segundos.
Ser o primeiro
Nas rapidíssimas transacções algorítmicas de alta fre-
quência, ser o primeiro a ter acesso a informação re-
levante é uma vantagem que se mede em milésimos
de segundo (ou, às vezes, até menos). A proximidade
física às fontes de informação e aos mercados onde as
acções e demais instrumentos são transaccionados é
um bem cobiçado, já que permite encurtar o tempo
que os dados e as ordens de compra e venda demoram
a percorrer (normalmente através de cabos de fibra
óptica) a distância entre computadores.
“Cada microssegundo de vantagem conta. Ligações
mais rápidas de dados entre bolsas minimizam o tem-
po que se demora a fazer uma transacção; as empre-
sas lutam para ver qual é o computador que pode ser
colocado mais próximo”, explica, num artigo recente
para a revista Nature, o físico Mark Buchanan, autor do
livro Forecast: What Physics, Meteorology and the Natural
Sciences Can Teach Us About Economics.
Buchanan argumenta que as transacções ultra-rápidas
tem algumas vantagens. Por um lado, diz, tornou-se
mais barato investir, já que as comissões cobradas aos
investidores caíram com esta prática. Por outro, os pre-
ços dos diferentes instrumentos financeiros ajustam-
se mais rapidamente. “Em 2000, eram precisos, em
média, minutos para que a mudança de preço num
instrumento se repercutisse nos outros. Agora, demora
menos de dez segundos. Nem toda a gente gosta disto:
uma sincronização rápida elimina as oportunidades de
lucro das empresas que fazem dinheiro por conhecerem
os desequilíbrios momentâneos de preços”.
Associada às transacções de alta frequência está tam-
bém a prática de colocar no mercado sucessivas ordens
de venda, a preços progressivamente mais altos, com o
objectivo de descobrir que ordens são aceites e assim
saber o preço máximo que alguém está disposto a pa-
gar — estas ordens são dadas e canceladas em fracções
de segundo.
O prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz está no
campo dos detractores deste tipo de práticas. Num dis-
curso no ano passado, apelou a um maior escrutínio,
disse ser céptico quanto ao “valor social” das transac-
ções de elevada frequência e classificou-as como um
jogo de soma negativa. “Porque o retorno privado pode
exceder o retorno social, haverá um excessivo inves-
timento na velocidade de aquisição de informação”,
observou o economista.
Em 2013, foi tornado público que a agência Reuters
vendia, a um grupo restrito de investidores, um indi-
cador sobre o consumo nos EUA dois segundos antes
de o divulgar à generalidade dos seus clientes (que, por
sua vez, o recebiam cinco minutos antes do público em
geral). A vantagem podia chegar a dois segundos e meio,
já que o contrato previa uma margem de erro de meio
segundo. Aquele indicador, que influencia mercados,
é elaborado pela Universidade do Michigan. Para ter
acesso antecipado à informação e a poder revender,
a Reuters pagava então à universidade um milhão de
dólares por ano, mais comissões.
Milissegundos
quevalem
milhões
No mundo de alta velocidade
dos algoritmos financeiros,
pouco tempo significa muito dinheiro
Por João Pedro Pereira
20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)
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20150305 publico, seleccao de artigos (fisica etc.)

  • 1. PÚBLICO celebra hoje 25 anos de vida nas bancas; há poucos meses cumpria eu as minhas bodas de prata de emigrado em Inglaterra. Tirando esta tangencial coincidência, há muito pouco em comum entre mim e este jornal. Achei pois surpreendente terem-me escolhido — um mero cientista — para fazer de senhor director por um dia, especialmente havendo pelo burgo tanta gente muito mais habilitada do que eu para cagar postas de pescada. O email de convite prometia ainda “completa liberdade” para fazer o que me desse na real gana com o jornal. Um sorriso maroto deve ter-me aparecido no rosto. Suponho que se quisesse dar à ciência mais “protagonismo” (para usar um vocábulo à Luís Figo) num país com mais orgulho, e com razão, nas suas proezas futebolísticas e tauromáquicas. Um país também onde a ciência continua a ser o parente pobre da produção intelectual, recheada de ilustres músicos e escritores, poetas e malucos vários. Só que a ciência que eu faço e amo não são telemóveis nem foguetões — é poesia. E depois tenho um segredo vergonhoso: antes de ser cientista, tive pretensões jornalísticas, num sentido muitíssimo lato do termo. Ao pedirem-me um editorial acerca das minhas relações com a imprensa senti pois um certo déjà vu. Recordo aqui a minha adolescência lusitana e um certo pasquim de bênção Louçânica, onde escrevinhávamos uns quantos sobre coisas como a legalização do aborto (quando isso ainda era monopólio de esquerdelhos), num estilo cheio de parvoíces e bacoradas. Mas esses desbragamentos foram sol de pouca dura e em breve caí no buraco negro que é fazer ciência. O universo dá-me uma enorme trabalheira, é uma estopada, não deixa grande tempo para fazer outras coisas. Não admira que tanta gente deixe os mesteres cósmicos para a religião, Deus que se amanhe enquanto nós mortais nos dedicamos à comunicação social. No início dos anos 1990 mudei-me para Inglaterra, com uma jura a pés juntos de que mulheres portuguesas nunca mais. Enquanto por lá, perdi completamente o respeito pela imprensa. A grande maioria dos media ingleses é uma desgraça, e isto vai muito para lá dos infames tablóides. A receita é simples: aferir o que deixa o bife tradicional indignado e seguro da sua superioridade, inventar histórias que sirvam o ângulo, procurar factos que as assistam, inventá-los se não os há, suprimi-los se as contradizem... e pronto, vendas asseguradas, e tudo com infinitas pretensões de objectividade mediática. A generalização é injusta, claro está, aliás como em tudo, também no jornalismo os britânicos têm o pior e o melhor. Mas a única coisa que hoje leio com regularidade por terras de Sua Majestade é o Private Eye, uma espécie de Charlie Hebdo mas muito melhor, mistura de humor cáustico e jornalismo de investigação do mais fino. Que haver assunto há: corrupção é o que não falta em Inglaterra. Corrupção perfeitamente legalizada, entenda-se, não é como em Portugal ou Itália, povos muitíssimo inferiores à Europa Nazi-de-Espírito-do-Norte. Quis entretanto o acaso trazer-me de regresso à pena, desta vez em fainas de divulgação científica. Entre coisas menos laudatórias, chamaram a um dos meus livros uma “biografia gonzo”, de outro disse-se que era onde “Medo e Delírio em Las Vegas se cruza com Uma Breve História do Tempo”. Eu nem sabia o que queria dizer o termo “gonzo” ou que tinha a ver com jornalismo, já disse que para cagar de alto erudição o PÚBLICO podia ter escolhido melhor. Foi um amigo de Roma, adepto de cocaína e alucinogénios, que me corrigiu o défice cultural, obrigando-me a ler uma catrefada de livros de Hunter S. Thompson e Acosta, alguns em tradução italiana. Fiquei deslumbrado com aquilo. E se em vez de os jornalistas fingirem que são objectivos, coisa que nem a ciência é, exibissem os seus preconceitos na montra, polvilhados com drogas duras? E se os jornais ingleses dissessem abertamente “somos uma cambada de porcos xenófobos que andam alegremente a inventar histórias”? Não mereceriam finalmente uma pitada de respeito? O jornalismo gonzo certamente que me surgiu como um antídoto a muita hipocrisia. Por isso quando me convidaram para ser director por um dia do PÚBLICO foi isso que me ocorreu: fazer uma edição “gonzo” do jornal. Afinal tinham-me prometido a mais completa liberdade no aliciante email de convite. Por um dia. Mas é claro que isso da “liberdade completa” é coisa que não existe. Nem em utopias nos despimos de constrangimentos. Seria porventura razoável exigir à redacção do PÚBLICO que passasse um dia a tripar com LSD e a escrever sobre a situação económica da Grécia em textos onde deveriam misturar relatos da própria vida sexual? Talvez sim, talvez não. Afinal é uma festa de anos. Há uma fina linha entre ser-se uma figura decorativa e um tirano. Um jornal bem-sucedido é um trabalho de grupo, onde o colectivo é mais importante do que qualquer ronáldico ponta-de- lança. A redacção do PÚBLICO fugiu com as minhas sugestões e fez com elas o que quis. Que festejem bem. Que continuem assim até às bodas de ouro. Editorial Por João Magueijo 25 anos sem dormir
  • 2. TEM PO DE TU DO Quanto tempo é que o tempo tem? O tempo – e tudo o que existe – tem 13.800 milhões de anos. É a idade do próprio Universo, o tempo desde o Big Bang, a grande “explosão” criadora de tudo. Estes 13.800 milhões de anos resultam dos cálculos maisrecentesbaseados em observações do telescópio espacial Planck, que afinou a idade do Universo com um nível de pormenor que permitiu atribuir- -lhe mais 100 milhões de anos do que antes. Para nos situarmos, o nosso sistema solar, incluindo a Terra, formou-se há 5000 milhões de anos, tinha então o Universo já 9000 milhões de anos deexistência.E,depois, a Terra ainda teria um longo caminho pela frente até ao dia, há uns meros seis milhões de anos, em que surgiram os primeiros hominídeos. Começamos esta edição de aniversário olhando para o tempo a grande escala. É o tempo do espaço, é o tempo do tempo, é o tempo de tudo.
  • 3. Dar tempo ao tempo Por João Magueijo C elebra-se o centenário da teoria da relatividade geral, neste ano denominado “da luz”, mas oculta-se do pudor público o lado negro dessa bonita arte mágica. A relatividade geral pode ter dado femininas curvas ao espaço e ao tempo, atribuindo-lhes maleabilidade e vida própria, mas o que raramente se diz é que essa nobre ciência também retirou ao tempo o seu predicado mais óbvio: o fluir. Ao embrulhar na mesma trouxa o espaço e o tempo, negando-lhes natureza independente em favor de um híbrido — o espaço-tempo —, a teoria da relatividade roubou ao tempo o seu brotar. Da mesma forma que o eixo do xis (esse terror que aprendemos na escola) não “flui”, o tempo da relatividade também não escorre. Ao longo de uma linha espacial há ordem — há o equivalente da organização de um presente, passado e futuro —, mas não há nada que se assemelhe a um ponto particular e único que vai escoando ao longo dessa linha, o equivalente do presente. Dando direitos e deveres iguais ao espaço e ao tempo, amalgamando-os num ser único, a relatividade nega igualmente a existência de um presente que flui activamente do passado para o futuro. Ordem, sim. Fluir, não. Esse tempo, meus amigos, morreu. É pois singular que num ano de efemérides e de luz nos procuremos encavalitar na teoria da relatividade, demolidora como ela é do comum tempo. A própria luz — esse andaime absoluto da teoria da relatividade — só pode ter um papel orientador porque está fora do tempo. A luz equilibra-se na fronteira entre o espaço e o tempo, portanto o tempo está paralisado ao longo de um raio de luz. E o pior é que analisando a relatividade geral mais de perto encontramos horrores ainda piores lá escondidos. Até a ordem desse tempo que não flui pode ser destruída pela curvatura espaciotemporal e levada a aberrantes contradições. Maliciosas máquinas do tempo consentem-nos dar um tiro na avozinha antes de a nossa mãe ter nascido. Laçadas espaciotemporais permitem-nos ser pai e mãe de nós próprios, um exagero de minimalismo familiar e incesto. A ordem e a lógica são ameaçadas pela curvatura do espaço- tempo. Proteja-se de contradições: evite espaços- tempos com um rabo demasiado ondulado. Claro que nesta pasmaceira em que vivemos, longe de buracos negros e Big Bangs, ninguém se deve preocupar indevidamente com tanta patologia. Mas o mal está feito — a nossa metafísica está minada pela dúvida. Como funcionaria um jornal, se o tempo acabasse amanhã? Ou se o tempo começasse a andar para trás mais logo, quando a lua cheia nascesse e a maré mudasse? Ou se fôssemos uma linha já prefigurada e sem fluir, sem edições matutinas e vespertinas? Como seria um jornal, se o tempo fosse mais como o espaço, algo com recantos e cantinhos por explorar? Um cataclismo narrativo, por certo. Ou talvez não. Esta edição o dirá.
  • 4. Cem anos a deitar a língua de fora Por João Magueijo N ão há verdades eternas, cada santo tem seu dia. Se, por um lado, Einstein nos deitou uma malcriada língua de fora, por outro, espera-se de todos os físicos igual pose fotográfica. Não há teorias finais — há, sim, coisas que vão funcionando até ver, e nem sempre tão bem como se gostaria, se as vamos esmiuçar melhor. O epíteto de “Novo Einstein” (que a imprensa sensacionalista tanto aprecia) aplicado a quem propõe uma teoria que pretende suplantar a teoria da relatividade é claramente ou ridículo ou um pleonasmo. Como cientistas somos todos novos Einsteins e Einsteinas: é uma deformação profissional. Somos pagos deduzidos de impostos para fazer esse papel, não das nove às cinco em horário continuado (porque isso não se ajeita ao perfil profissional), mas de noite e dia, até enquanto estamos a sonhar, eroticamente quem sabe. Ninguém duvida que a teoria da relatividade é uma obra de génio, entenda- -se bem, mas a maior prova de respeito que lhe podemos oferecer é precisamente pô-la em causa. O tempo-que-flui tem entrado e saído da ciência, recauchutado ou modificado, ao ritmo das revoluções que vão e vêm. Saliente-se que o tempo que a teoria da relatividade enxovalhou é o tempo fundamental, associado aos processos elementares, às micropartículas puras, limpas de confusões. Não é o tempo sentido pelos sistemas complicados (como nós), que pela sua complexidade exigem outras estruturas, emergentes chamamos-lhes, para as opor a “fundamentais”. Em sistemas com tantas partes elementares que a floresta é mais importante do que as árvores, necessitamos de conceitos como a entropia, esse pesa-balbúrdias tão útil quando é tudo ao molho e fé em Deus. A entropia, como medida da confusão que sempre aumenta, dá-nos um tempo derivado, emergente, que sem dúvida sentimos à flor da pele, mas que sabemos resultar de uma ilusão criada pela multidão, pelo espírito de rebanho do universo. É um tempo que as partículas elementares nunca sentirão; se calhar é por isso que lhes faltam os sentimentos. Não há electrões apaixonados. Mas e se esta teoria da relatividade geral centenária fosse ela própria emergente e não- fundamental? E se a descrição da gravidade como as curvas e contracurvas do espaço-tempo fosse apenas uma média estatística, uma medida aplicada a uma multidão de entidades mais fundamentais, tal como a entropia? Uma das lacunas mais flagrantes da teoria da relatividade geral é a sua incapacidade para namorar com o resto da física. A relatividade geral é um elemento francamente anti-social dentro da confraria das nossas outras teorias. Não fala com a física quântica, esse outro pilar da física do século XX, e segrega a força da gravidade (que venera) das outras forças da natureza: a electricidade, o magnetismo e as forças nucleares. Tanta soberba agasta os físicos e daí as inúmeras tentativas de construir uma teoria de gravidade quântica, combinando a relatividade geral com a teoria quântica, e unificando a gravidade com as outras forças da natureza. A haver namoro entre a relatividade geral e a física quântica, o espaço-tempo deveria não só ser curvo, como existir na forma de “átomos” (no sentido grego do termo, de peças indivisíveis ou “quanta”). Deveria haver incertezas e flutuações quânticas no seu tecido. Pavores quânticos, de todas as formas e feitios, deveriam afligir os fenómenos gravitacionais, tal como afectam os outros: deveria haver gatos de Schrödinger a miarem em buracos negros, Big Bangs virtuais a saltarem do vácuo, ou maradices ainda piores. E obviamente o próprio tempo e o espaço poderiam ficar equiparados a conceitos emergentes, como a entropia, médias que se tornam relevantes simplesmente porque não temos “microscópios” suficientemente finos para sentir a natureza atómica da realidade subjacente. Mas a verdade é que tudo isto são quimeras. Ao fim de várias décadas em demanda da teoria da gravidade quântica, a realidade é que ela continua a ser uma miragem. Ideias não faltam, mas, sejamos honestos, cordas ou laçadas são todas uma bela porcaria. Não há mal nenhum nisso, desde que a busca seja honesta; censurável é apenas a auto- importância sentida por alguns físicos: há quem insista que estamos no caminho certo, é só uma questão de seguir em frente a fazer contas pela mesma receita durante 200 anos... Que estupidez! Que rigidez de espírito! Será que se acha mesmo que em 200 anos ninguém iria arranjar nada melhor para fazer do que refinar as nossas ideias? É como esperar que o fado daqui a 200 anos seja uma Gisela João de bengalinha. Daqui a 200 anos muito provavelmente nem haverá fado, ou se o houver, sê-lo-á insonhavelmente diferente. Entretanto, e com menos arrogância, a infrutífera busca continua. No reino do faz-de- conta em que os físicos vivem tudo é possível. O Big Bang pode ser um mero biombo que tapa um além. As constantes universais podem ser fluidas e variáveis. O espaço-tempo pode ser uma média de algo mais fundamental, polvilhado de quanta, espaço em grão, tempo em colar de pérolas. Tudo é possível. Tudo é possível, tudo pode é estar errado. Fica esta sensação de que andamos a fazer literatura de cordel ao pé do gadelhudo. Não que a relatividade geral não tenha deficiências, mas o que temos feito para as colmatar é bem pior. Ao longo destes 100 anos deitámos-lhe a língua de fora vezes sem conta, e no fim acabámos aos molhadíssimos beijos na boca ao homem. AFP Ao ver escoar-se a vida humanamente Em suas águas certas, eu hesito, E detenho-me às vezes na torrente Das coisas geniais em que medito. Mário de Sá-Carneiro Não percebo porque se perde tanto tempo a discutir o tempo, que não é nenhuma entidade metafísica, é apenas uma empresa de demolições. António Lobo Antunes
  • 5. Sabemos hoje que o Universo está em expansão. Que nasceu a partir de um momento zero e, desde aí, tem evoluído. A descoberta desta expansão, do final dos anos 1920, baseou-se em observações de que as galáxias se estavam a afastar umas das outras. Na realidade, é o espaço entre as galáxias que está a aumentar e, em consequência disso, as galáxias estão a afastar-se entre si. Imaginemos um balão em cuja superfície, o tecido do espaço-tempo, pintámos vários pontos: à medida que o enchemos de ar, expandindo-o, o espaço entre os pontos vai aumentado. É isso que está a acontecer ao Universo. Escolhemos aqui alguns momentos da sua longa existência ou, por outras palavras, da história de tudo Ahistóriado Universoem 13momentos É o início do Universo, que começa com o Big Bang, uma grande “explosão” que dá origem ao espaço e ao tempo. É o início de tudo o que existe. E que surgiu de uma concentração inimaginável de energia. A física actual é incapaz de descrever as fracções de segundo imediatamente seguintes ao Big Bang, quando o Universo era incrivelmente denso e quente. Teresa Firmino (texto) Cátia Mendonça (infografia)
  • 6. 2700º celsius -240º celsius BIG BANG Momento 0 10 −43 10 −36 10 −32 10 −4 0,01 3 minutos mil anos milhões de anos milhões de anos milhões de anos Inflaçãocósmica Formaçãode protõeseneutrões Fusõesdeprotões eneutrões Formadosnúcleos dosátomosleves Formadosos átomosleves eosfotões podemviajar pelocosmos Primeiras estrelas Primeiras galáxias O nosso sistema solar e expansão FimdaInflação cósmica ERA TRANSPARENTEERA OPACA ERA DAS TREVAS Fonte: PÚBLICO seg. 10-43 segundo Este tempo é considerado a fronteira a partir da qual a noção de tempo (e o espaço) tem sentido. O tempo não tem provavelmente porções mais pequenas do que esta. Entre o Big Bang e os 10-43 segundo de existência do Universo é a chamada época de Planck, indescritível pelas teorias científicasactuais:atemperatura era tão elevada que as quatro forças fundamentais da natureza (gravidade, electromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear fraca) estavam todas juntas numa só força. A partir dos 10-43 segundo, o Universo já se tinha expandido e arrefecido o suficiente – uma “bola de fogo” com uns incríveis 1032 graus Celsius – para que a gravidade se separasse das outras três forças. Criadas, e destruídas ao mesmo tempo, surgem as primeiras partículas e antipartículas elementares, como quarks e electrões ou positrões. A luz já existia como fotões. 10-36 segundo É o início do que se pensa ter sido a inflação, um crescimento brutal do Universo, que numa fracção de segundo cresceu enormemente. Esta expansão exponencial permite explicar por que é que o Universo que vemos hoje tem um padrão global homogéneo: há galáxias e espaços vazios, galáxias, espaços vazios... de uma maneira quase uniforme por todo o lado para onde quer que olhemos. Nesta altura do Universo, já um pouco menos quente, também a força nuclear forte pôde separar- -se da força nuclear fraca e do electromagnetismo. 10-32 segundo A inflação cósmica terá terminado. Acabado um crescimento brutal durante uma fracção de segundo, o Universo volta a expandir-se mais lentamente. A inflação cósmica terá gerado ondas gravitacionais, perturbações no próprio tecido do Universo, o espaço-tempo, que podemos imaginar como uma folha de borracha elástica onde uma pedra que alguém atirasse para lá provocaria oscilações. Até agora, ninguém conseguiu detectar essas ondas. O Universo ficou nesta altura povoado por uma sopa de quarks e gluões, que colam os quarks entre si. Estes constituintes primordiais da matéria vagueiam livremente num estado desordenado (o plasma de quarks e gluões). 10-4 segundo Por esta altura, formam-se os protões e os neutrões, os constituintes dos futuros núcleos dos átomos. Com a continuação do arrefecimento do Universo, os quarks, unidos pela força nuclear forte, puderam começar a ligar- -se, formando os protões e os neutrões. Cada neutrão e protão tem três quarks. É a altura do chamado confinamento dos quarks. A criação dos protões significa também a criação do núcleo do hidrogénio, que é composto por um único protão. 0,01segundo Iniciam-se as fusões de protões e neutrões, que vão depois dar origem aos núcleos de outros átomos. 3minutos Criados os núcleos atómicos de deutério (um protão e um neutrão), de trítio (um protão e dois neutrões) e de hélio (dois protões e dois neutrões). 380.000anos Formaçãodeátomosleves– hidrogénio,deutério,trítioe hélio.AtemperaturadoUniverso baixaaindamais–rondaagora os2700grausCelsius–,oque permitequeosnúcleosatómicos eoselectrões,atéaíseparados, sejuntem,formandoosátomos. Antesdisso,osfotões(aluz) chocavamcomfrequênciacomos núcleosatómicoseoselectrões, oqueimpediaaluzdeviajar. Poressarazão,entreoBigBang eos380.000anos,oUniverso éopaco,sendoimpossívelvê- lodirectamente.Ajunçãodos electrõesàvoltadonúcleodos átomosdeixaocaminholivre paraapassagemdosfotõeseo Universoficatransparenteàluz. Amatériaearadiaçãoseparam- seou,comodizemosfísicos, desacoplam-se.Aluzdesses tempos,amaisantigaquevemos equesechamaradiaçãocósmica defundo,banhatodooUniverso. Hojenaformademicroondas, permiteinferiralgoquesepassou nosprimórdiosdoUniverso.É, pois,umaradiação“fóssil”,um ecodoBigBang.
  • 7. milhões de anosmilhões de anos Universo actualacelerada do Universo Aparecimento da vida na Terra (as primeiras células) 550milhões deanos Nascemasprimeirasestrelas, iluminandooUniverso.Este,em média,jáarrefeceubastantee estámuitoabaixodozerousual: temàvoltade240grausCelsius negativos.Paratrásficoua“era dastrevas”,aalturaemqueo Universonãotinhaestrelas. Análisesàsobservaçõesdo telescópioespacialPlanck, divulgadasemFevereirode 2015,revelaramqueasprimeiras estrelassurgiramcercade100 milhõesdeanosmaistardedo quesesupunha,portanto550 milhõesdeanosapósoBigBang. Asestrelassãoessenciaisà químicadavida:énoseuinterior, nasreacçõesdefusãonuclear, queseformamátomosmais pesadoscomoocarbonoouo ferro.Aomorrerem,háestrelas queatiramparaoespaçoassuas camadasexteriores,incluindo átomosquefabricarameque entrarãoemnovasestrelaseos seusplanetas.NóseaTerratemos pódeestrelas,comooferroque transportaooxigéniononosso sangue. 700milhões deanos São formadas as primeiras galáxias do Universo – incluindo a nossa Via Láctea, que tem pelo menos 100.000 milhões de estrelas, uma delas o Sol, que fica num dos braços da espiral. No centro da Via Láctea existe um buraco negro monstruoso (como, aliás, em muitas outras galáxias), com quatro milhões de vezes a massa do Sol. A nossa galáxia é tão grande que a luz demora 100 mil anos a atravessá- -la de uma ponta à outra. 9000milhões deanos Forma-se o Sol a partir de uma nuvem de gás e poeiras, composta sobretudo por hidrogénio e hélio, mas com alguma contaminação por elementos pesados criados por gerações de estrelas anteriores. No disco de gás e poeiras que restou da formação do Sol ir-se-ão formar os planetas, incluindo a Terra, há cerca de 4500 milhões de anos, quando o Universo tinha 9300 milhões de anos. É também por essa altura que no Universo em expansão desde o Big Bang se manifesta uma força antigravítica. Não se sabe que força é essa – os físicos chamam-lhe energia escura –, mas sabe-se que contraria a gravidade exercida pela matéria e que provoca a expansão acelerada do Universo. 10.200milhões deanos Surge a vida na Terra, mais exactamente as primeiras células. Ainda não têm núcleo, tal como, aliás, as bactérias actuais, mas a vida seguirá o seu curso até chegar a nós. Os primeiros humanos – ou seja, os primeiros membros do género Homo – apareceram há cerca de dois milhões de anos apenas, quando o Universo tinha 13.798 milhões de anos. Se pensarmos na nossa espécie, o Homo sapiens, só aparecemos há cerca de 200 mil anos. 13.800milhões deanos É o Universo actual. A sua temperatura, de 270 graus Celsius negativos, está perto do zero absoluto (menos 273,15 graus). E aqui estamos nós, a olhar para trás no tempo, através da luz (em todo o seu espectro, desde os raios gama às ondas de rádio, passando pela luz visível aos nossos olhos) que nos chega dos mais variados fenómenos e objectos que povoam o cosmos. Desde galáxias, enxames de galáxias, supernovas, estrelas de neutrões, buracos negros, anãs castanhas, matéria escura, energia escura – e planetas em redor de outras estrelas que não o Sol, onde talvez alguém esteja também a perscrutar o cosmos como nós. O futuro do Universo parece ser o de expansão eterna: as galáxias ficarão tão dispersas que nem se veriam, uma paisagem triste e fria. Mas o nosso destino na Terra depende do destino do Sol, que ainda vai durar cerca de 5000 milhões de anos.
  • 8. TEM PO DE AGO RA Chegados aos actuais 13.800 milhões de anos da história de tudo, aqui estamos agora às voltas com o tempo, humanos de uma espécie surgida há singelos 200 mil anos. Neste tempo de agora, que o nosso calendário assinala como 2015 d.C., reflectimos, vivemos e sentimos o tempo de muitas formas. Podemos analisá-lo de um ponto de vista físico, lembrando Einstein, do ponto de vista da história da ciência ou da experiência pessoal de uma cosmóloga pára-quedistaabraços com a gravidade. Fomos ainda ver como o contamos com relógios atómicos e na bolsa, em que um milissegundo vale milhões. Visitámos uma loja em Lisboa que arranja relógios antigos, onde se conserta o tempo dos outros. Ouvimos quatro centenários, que desafiam o tempo e, ainda, quem dá o seu tempo aos outros. Continuamos esta edição olhando agora para o tempo a uma escala mais humana. 2015
  • 9. Umminuto sobagravidade deEinstein Abstracções de uma física pára-quedista a estudar gravidade e o tempo em queda livre Crónica Marina Cortês
  • 10. O s acontecimentos que se seguem decorreram no espaço de 3 minutos apenas. Na porta do avião mesmo antes de saltar, fazemos os exercícios de check up. Estou em instrução e tenho dois instrutores comigo, durante a primeira parte do salto. Tudo a postos: arqueia o corpo ao máximo contra a força do ar e... saltar! Estou no ar! Ajusta o equilíbrio, estamos a cair a 190km/h, não balances mais, estabiliza o corpo. Parece tudo bem. Agora os exercícios. Um dos instrutores solta-me como previsto. Lá vai ele. Agora o outro também me solta. Ai-ai, agora estou mesmo por minha conta, cruzes. A voar sozinha! Argh, o que é que é suposto fazer agora? Não há problema, procura um ponto no horizonte para fixar direcção. Aquelas montanhas parecem boas, vão servir. Hmm.. as montanhas estão a girar para a esquerda, acho que vou fazer aqui uma pequena volta. Inclino o braço na direcção oposta... Muito ligeiramente. O quê?!? O que foi isto? Que aconteceu? Estou de pernas para o ar, a olhar para o céu! Perdi a estabilidade. Altitude: 3,6 quilómetros. Bonito serviço. Agora estou a olhar para o céu azul acima. Terra à vista: nada. Vejo os dois instrutores lá no alto, altíssimos, a olhar para mim. Credo, estão a diminuir tão depressa, quer dizer que estou a cair muito mais rapidamente. Como perdi a estabilidade vou a muito maior velocidade que eles. Estou totalmente sozinha, por minha conta, a cair para o planeta a toda a força, e a girar numa espiral. Como estou a girar sem parar, não consigo puxar o pára- quedas. Cada vez perco mais altitude, a velocidade agora são 260 km/h. Cada segundo que passa menos 70 metros e começo a ver tudo lá em baixo as casinhas e as estradas cada vez mais perto... Isto está bonito, está... Entretanto no gabinete: quando estou a estudar relatividade geral pergunto-me sempre se o Einstein Sendo a física a disciplina mais ambiciosa da descrição da Natureza, não é peculiar a falta de explicação para a uni-direccionalidade do tempo? Voltando à queda livre. Continuo em espiral no ar e o planeta a aproximar- se cada vez mais. Por um momento consigo virar-me de costas, e tento alcançar o pára-quedas, mas perco logo o equilíbrio. Meu Deus, estou mesmo, “mesmo” em sarilhos. O que é que se está a passar, como é que eu páro isto? Um dos instrutores desce disparado para me alcançar e tenta voltar-me para baixo. Não funciona, agora estamos os dois de barriga para o ar! E depois eu viro-me, e agora volta-se ele. Estamos numa dança no ar, como uma máquina de lavar, como o “vira”. Ele perde-me de novo e lá vou eu às cambalhotas mais uma vez. O chão a aproximar-se. Ele consegue alcançar-me. Porque é que ele não me puxa o pára-quedas? Por que diabo é que ele não me puxa o pára-quedas?! “Desisto”, penso para mim, ele não consegue, vamos morrer os dois. Estou feita, é o fim. Adeus mundo. Olha ali o chão, já tão perto. 1500 metros. Sinto um forte puxão para cima, as pernas para o ar, cabeça voltada para baixo. As correias de suporte no peito a esmagar as costelas. Ele puxou o pára-quedas! ELE PUXOU O PÁRA-QUEDAS! Olho para cima e vejo um pára-quedas perfeito, quadrado, abertura sem problemas! O silêncio total é o paraíso, em contraste com o barulho ensurdecedor da queda livre. Só oiço o bater leve da borda do pára- quedas. Pára-quedas saudável, vou viver. Sobrevivi! Já passou. Respira, respira. Respira, rapariga. O que é que acabou de acontecer!?! Bem, olha para baixo, descobre onde é que vieste parar, ainda tens de aterrar isto. Onde está a dropzone, onde está a pista do avião, onde é que eu estou? Lá estão o semi-círculo da aldeia de Empuria Brava e a praia, mesmo ao pé de Barcelona. A dropzone está por ali algures, ao lado. 1200 metros, está tudo fixe, respira fundo, relax, estás viva! Sobreviveste! Excepto que... Ao descer sinto os ventos a levantar. Meu Deus, alguma vez terá pensado em estudar a gravidade ao vivo! Parece-me que estudar a gravidade no gabinete é muito diferente de estudá-la a saltar de um avião, em queda livre! Não só isto, mas nada melhor que um salto de pára-quedas para vivenciar a relatividade do tempo que ele advogava. Um segundo em queda livre parece-nos horas. O planeta lá em baixo a aproximar- se a viva força. Nunca o tempo nos parece mais real, e mais inevitável do que quando estamos numa situação de vida ou morte. E no entanto, em física, a disciplina que ambiciona descrever a natureza na sua totalidade, não estamos muito habituados a levar o tempo a sério. Para a generalidade das teorias em física o tempo tanto pode avançar como recuar: a direccionalidade do tempo é um acidente que não é explicado de forma clara. As soluções nas quais o tempo recua são descartadas à mão sem explicação. Ou seja, as nossas teorias mais fundamentais da natureza ignoram o facto de que o tempo anda sempre para a frente! Isto é contra tudo o que observamos no dia a dia. É como os físicos estarem de costas voltadas para a natureza, ignorando o facto mais fundamental do mundo que nos rodeia: o tempo nunca anda para trás. Porque é que somos nós, os físicos, os únicos cientistas que não incorporamos a irreversibilidade do tempo nas nossas teorias? A química, biologia, antropologia, climatologia, etc., são todas ciências nas quais o tempo tem uma direccionalidade bem definida. As reacções químicas só ocorrem num sentido, nunca “desocorrem” (química); os organismos só ficam mais velhos, nunca mais novos (biologia); em antropologia estudamos os fósseis do passado (nunca os do futuro); os climatólogos também têm bem presente que o tempo só tem uma direcção, eles podem olhar para o passado mas não sabem (ou é muito difícil) prever o futuro, por causa da teoria do caos. Porque é que nós os físicos continuamos absorvidos na procura de equações “congeladas” no tempo, nas quais todo o passado e o futuro existem no mesmo instante e a passagem do tempo é uma mera ilusão?
  • 11. não estava tanto vento quando levantámos no avião. O pára-quedas começa a abanar desenfreadamente e a fazer o que bem lhe dá na cabeça. Agora está-me a arrastar de lado. Vira à esquerda, depressa! Oh meu Deus, agora estou na zona dos aviões!! Põe-te a andar daqui! Olha à volta, há aviões a vir? Põe-te mas é a andar! Pára-quedas dum raio vais fazer o que eu te mando. Agora, ouviste? 500 metros. Bonito, devia estar a começar a descida final, neste momento! Onde é que suposto eu estar? Ah, lá está o campo de aterragem, “só” a dois quilómetros distância. Ok, esquece isso, improvisa, improvisa. Aquele espaço ali terá de servir. Começo a descer tenho de ir na direcção do vento. Mas não há direcção do vento. Só a vento a abanar, vento a chocalhar, vento para cima, vento para baixo, vento de lado. Devia chamar isto de trajectória perturbativa. O meu trajecto tem incerteza quântica! Ok, ok, vai com calma, vê o altímetro. 250 metros, estou muito alta, já devia estar a 150! Vou chocar contra aquelas casas! Depressa, faz uma volta 360º, perde altitude. Oh que coisa, também não funcionou, agora estou em cima da auto-estrada!! Vejo os carros a acelerar nas duas vias. Dá outra volta, pira- te mas é daqui. Começo a descida final, aqui mesmo vai ter de servir. Tento domar o pára-quedas, navegar em linha recta mas não há de quê. Esticão para a esquerda, esticão para a direita, O pára-quedas não reage, avança ao acaso, num caos os ventos mudam a cada segundo. Olho para baixo, o chão a aproximar-se vertiginosamente. Consigo ver as pedras de cascalho a passar aceleradas, como se estivesse num carro. Meu Deus que velocidade, tenho de abrandar, e rápido. Isto vai doer!!! Quando é que travo? A altura de puxar os travões é ainda mais crucial neste salto mirabolesco com ventos descontrolados. Quando é que suposto travar?!?! Agora? Não tenho a certeza. Será agora, NUNO FERREIRA SANTOS espero mais? É uma questão de segundos. Agora!! Puxa os cabos, com toda a força, puxa, puxa! Mais força! Tenho de puxar os cabos até às ancas e ainda estão à altura nos ombros. Com mais força! Tenho a cara azul do esforço, as veias a pulsar. Os ventos não me deixam puxar os cabos. Oh meu Deus, ainda estou demasiado alto, travei muito cedo. O que vai acontecer agora? O impacte está perto, prepara-te rapariga isto vai ser uma aterragem dos diabos! Crash!!! Ligeiramente nos joelhos, caio para a frente, para cima do pára-quedas. Estabiliza, pára. Wow! Nada mau, que fixe. Que fixe! Cheguei ao chão. Estou no chão! De volta ao planeta! Estou a salvo! Apetece-me beijar a terra e saltar. Mas como os ventos estão muito fortes tenho de puxar o pára-quedas para baixo de mim, porque esta a inflacionar e pode levar-me no ar de novo. Como se tivesse adivinhado, num instante o pára- quedas inflaciona como um balão. Sinto um esticão forte a puxar-me para trás e para cima, a arrastar pelo chão. Está bonito, afinal ainda não é desta. Não tenho tempo para cortar os cabos. Para onde é que isto me está a levar? Olho à minha frente, o pára-quedas está-me a arrastar para a pista dos aviões!! Tenho de puxar um dos cabos para o colapso. Não funciona, os ventos estão demasiados fortes, o resto do pára- quedas é como um balão, a puxar-me com a força de um gigante. Levanto-me e atiro-me para o ar, para cima do pára-quedas. Consigo enfiar um pouco mais debaixo de mim mas a parte inflada ainda é forte e continua a arrastar-me. E agora reparo que estou mesmo à beira da pista de aviões com o pára-quedas a puxar-me para o meio. Olho para a direita horrorizada e... claro, com a minha sorte de hoje, vem um avião no ar prestes a aterrar, talvez a 500 metros de distância. Dentro de segundos vai passar no centro da pista em frente de mim, o local exacto para onde o pára-quedas me está a arrastar. Nem consigo acreditar no que se esta a passar?!? Isto é algum filme do Bruce Willis?! Estou a segundos de ser atropelada por um avião, arrastada por um pára-quedas! Muito bem, vou-te puxar para baixo de mim, e agora!! Estou de rastos na berma da pista a puxar o pára-quedas freneticamente e a olhar para o avião a aproximar-se cada vez mais nítido. Puxo o mais depressa que consigo, agora com o avião no canto do olho. Está quase, ainda falta um bocado. VEM CÁ PÁRA-QUEDAS DUM RAIO! Queres-me matar! Consegui. Estou estendida sob o pára-quedas com a cabeça enterrada no tecido. Oiço o avião disparado passar à minha frente. O avião não me atropelou. Estou colapsada, nem consigo pensar, totalmente exausta. Sem energia. Oiço os ventos, assim que ouvir um abrandar salto num ápice, agarro tanto quanto posso, diminuo o volume e atiro-me de novo para cima do pára-quedas. Funcionou. Algumas partes ainda estão a voar ao vento mas nada de grave. Apanhei-te, meu pára-quedas idiota. Pego em todo o tecido agora entrelaçado, atiro para cima do ombro e começo a regressar ao hangar. Olha para isto, onde aterrei quase a 3 quilómetros de distância! Começo o caminho de volta com passos longos e espaçados. Respira fundo. As pernas a tremer e os joelhos a ceder. Estou estupefacta. Não consigo acreditar em tudo o que acabou de acontecer. Olho para baixo e fico surpreendida por os pés acharem o caminho de volta, um após o outro, devagar. O que é que aconteceu?! Ando e ando, com as duas toneladas de pára-quedas às costas, e finalmente chego à dropzone. Há uma multidão de pessoas estupefactas, a olhar para mim, com a boca aberta. Respiro fundo e volto para o outro lado. Vou para o hangar, enfiar a cabeça entre os joelhos! Volto para a física. Equações são muito mais fáceis de escrever do que lutar com um pára-quedas. Uma das grandes motivações para transformar o papel do tempo irreversível na física fundamental vem destas experiências tão vivas. Nas quais segundos parecem horas, e a realidade do tempo, e como avança só numa direcção é mais berrante que nunca. Nós os físicos que escrevemos equações em que o tempo não é real e tanto avança como recua devíamos deixar a secretária e vir olhar para o mundo cá fora. Pode ser que ficássemos convencidos do contrário. Cosmóloga,ObservatórioRealdeEdimburgo Hubble A 24 de Abril de 1990, a bordo do vaivém Discovery, a NASA lança o telescópio espacial Hubble. Foi o primeiro telescópio espacial que permitiu observar o Universo tanto na mesma luz que os nossos olhos captam, como na radiação infravermelha. Com um limite de vida temporal por volta de 2020, o Hubble tem cumprido aquilo que se lhe pede: permitir que a relação da humanidade com o Universo desse um salto, já que, pela primeira vez, foi possível ver o cosmos com uma nitidez sem precedentes. S.J.A. >>>>>>>>>>>> 1990
  • 12. Em 2015, Ano Internacional da Luz, celebra-se o centená- rio de uma das teorias físicas mais formidáveis e também um dos picos mais altos do intelecto humano: a teoria de relatividade geral de Albert Einstein. A 25 de Novembro de 1915 o sábio suíço nascido na Alemanha escrevia a equação fundamental que junta matéria, energia, espaço e tempo para explicar a gravitação, descrevendo não só a queda de uma maçã e a órbita da Lua mas também os bu- racos negros e o Big Bang. Se a sua teoria da relatividade restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos esses conceitos ao afirmar que a matéria-energia deforma o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo são distorcidos, deixando de valer a geometria euclidiana e a mecânica newtoniana a que estamos habituados. E os corpos caem porque o espaço é curvo. O espaço-tempo pode acabar ou começar. Os buracos negros são estrelas que, após violenta implosão, ficaram reduzidas ao seu caroço extremamente duro. O espaço- tempo à volta é tão deformado que o nosso mundo aca- ba aí, isto é, terminam aí as nossas possibilidades de conhecer. Tudo cai para um buraco negro, incluindo a luz. Segundo Einstein, a luz pesa! Podemos imaginar o inverso de um buraco negro? Sim, se um buraco negro é o sítio para onde tudo vai, o buraco branco é o sítio de onde tudo vem (há quem especule que, associado a cada buraco negro, há um buraco branco, com a matéria a ser sorvida por um lado, no nosso mundo, e a jorrar do outro, sabe-se lá onde). O físico Stephen Hawking, cuja biografia é o argumento do filme A Teoria de Tudo, apostou um dia com um cole- ga uma assinatura da Penthouse que não havia buracos negros e perdeu (é irónico um especialista em buracos negros ter apostado na não existência do seu objecto de estudo.) Existirão buracos brancos? Vivemos no interior de um: o Universo, provavelmente é infinito, o qual, de acordo com a teoria da relatividade geral, teve o seu início no Big Bang, há 13.800 milhões de anos. Esta grande ex- plosão inicial pode ser imaginada como o evento em que tudo apareceu, o espaço e o tempo, a matéria e a energia, tendo começado tudo com a luz, que é energia. Einstein teve que porfiar antes de chegar à fórmula que encerra os segredos da gravitação. Cedo percebeu que a teoria da relatividade restrita, segundo a qual as leis da física são as mesmas para todos os observadores em repouso ou em movimento com velocidade cons- tante, devia também ser aplicada a observadores com velocidade variável, isto é, acelerados. É esse o salto da relatividade restrita para a relatividade geral. Se Newton imaginou uma maçã a cair, Einstein imaginou-se a si pró- prio a cair. A epifania ocorreu em 1907 quando Einstein teve o que chamou o “pensamento mais feliz da sua vi- da”, quando, sentado numa repartição de patentes na Suíça, se apercebeu de que, se estivesse em queda livre, um movimento acelerado, “não sentiria o seu próprio peso”, uma vez que a cadeira cairia com ele. Embora a cair, o sábio estaria parado relativamente à cadeira. O princípio que afirma a queda idêntica de todos os corpos tinha sido descoberto por Galileu. Aluzde EinsteinSe a teoria da relatividade restrita de 1905 tinha juntado a matéria à energia (falamos de matéria-energia) e o espaço ao tempo (falamos de espaço-tempo), a teoria da relatividade geral reúne todos esses conceitos ao afirmar que a matéria-energia deforma o espaço-tempo. À volta de um astro o espaço e o tempo são distorcidos Por Carlos Fiolhais
  • 13. Em 1971, um astronauta deixou cair na Lua um mar- telo e uma pena para mostrar que os dois objectos che- gavam ao solo ao mesmo tempo. Se tudo cai do mesmo modo, podemos intuir que a força gravitacional é uma propriedade do espaço: nas vizinhanças de um astro, o espaço possui certas propriedades. Só faltava saber que propriedades são essas. Uma consequência imediata da generalização do princípio da relatividade era que um raio de luz vindo do espaço longínquo encurvaria ao passar perto do Sol. O efeito era minúsculo e não pôde ser logo confirmado. E ainda bem, pois o primeiro valor calculado por Einstein para o encurvamento dos raios de luz estava errado. Não admira que a matemática da relatividade geral seja incompreensível para um leigo, pois o próprio autor demorou uma década a lá chegar. Precisou de uma geometria curva em vez da geometria plana de Euclides. Geometrias ditas não euclidianas já existiam nos livros de matemática, dando razão a Galileu, que tinha dito que “o Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”. No longo caminho para a equa- ção que descreve a gravitação, Einstein, melhorando a matemática, chegou finalmente a um valor para o ângulo de deflexão da luz que era o dobro do anterior. A equação era bela, mas faltava saber se era verdadeira. A Primeira Grande Guerra impediu a realização de ex- pedições de observação de eclipses, ocasiões favoráveis para medir deflexões de raios de estrelas por trás do Sol. Uma observação de um eclipse total do Sol só pôde ser realizada no pós-guerra. Foi em 29 de Maio de 1919 que uma expedição inglesa, dirigida por Arthur Eddington, se deslocou à ilha do Príncipe para fotografar um desses eclipses. Os astrónomos obtiveram algumas imagens do Sol, numa aberta de um aguaceiro tropical. Einstein em breve recebeu um telegrama de um colega, felicitando-o pela previsão certeira. Nunca temeu estar errado. Chegou até a dizer que teria pena de Deus se a realidade fosse diferente do previsto (Deus para ele, esclareça-se, era a harmonia universal e não o autor do Fiat Lux). Nenhum cientista português participou na expedição a um terri- tório sob administração lusa. Os portugueses estavam tão afastados da ciência que, em 1925, Einstein, já nobe- lizado, passou por Lisboa sem ser reconhecido. A 6 de Novembro de 1919, numa sessão da Royal Socie- ty e da Royal Astronomical Society em Londres, com a presença das maiores sumidades da ciência (na parede Newton assistiu impávido, pois só estava em retrato), os resultados da observação solar foram anunciados e Eins- tein foi aclamado. O Times de Londres titulou Revolução naCiência. Newton tinha dito: “Se consegui ver mais lon- ge foi porque estava aos ombros de gigantes.” A revolução significava que Einstein tinha subido para os ombros de Newton, conseguindo ver ainda mais longe. A fama mundial obtida num ápice facilitaria a sua mudança para Princeton, nos EUA. Em 1932, Einstein, pressionado pela perseguição nazi aos judeus, disse em Berlim à sua mulher: “Olha bem para a tua casa. Não mais a voltarás a ver.” E assim foi. Transposto o Atlân- tico, nunca mais voltaria à Europa. Foi simbolicamente a passagem da ciência do Velho para o Novo Mundo. Os génios também têm vida privada. No início de 1915 Einstein deixou Zurique para ocupar uma cátedra em Berlim. Nessa altura deixou também a primeira mulher, Mileva (ela ainda fez o gesto de se mudar para Berlim, mas já não havia força de atracção entre eles). Einstein logo encontrou afecto numa prima berlinense, Elsa, com quem se viria a casar pouco depois do eclipse de 1919. Foi Elsa que o acompanhou para Princeton. O Nobel da Física Richard Feynman afirmou um dia que a descoberta, há 150 anos, das equações de Maxwell, que unificam a electricidade e o magnetismo, esclare- cendo que a luz é uma onda electromagnética, serão lembradas daqui a dez mil anos como o acontecimento mais relevante do século XIX. Na mesma linha, atrevo-me a conjecturar que, daqui a dez mil anos (uma insignifi- cância quando comparada com a idade do Universo), a descoberta da equação da relatividade geral feita por Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis do século XX. E só não a singularizo mais porque, uma década volvida, ficou pronta a teoria quântica, a espan- tosa teoria dos átomos e partículas atómicas. As duas são expressões máximas do pensamento humano. Arrisco esta profecia apesar de recear que pouca gente a entenda. Atrevo-me a conjecturar que, daqui a dez mil anos, a descoberta da equação da relatividade geral feita por Einstein há cem anos será um dos marcos mais notáveis do século XX
  • 14. Pode ser que mais gente a procure entender. Por ter alcançado uma fórmula “mágica” com o poder de explicar os mistérios do cosmos, o cérebro de Einstein tornou-se um mito para o homem comum, que sem con- seguir ver a beleza das equações não poderá mais do que vislumbrar esses mistérios. Roland Barthes no seu livro Mitologias escreveu sobre esse cérebro: “Quanto mais o génio do homem era materializado sob a espécie do seu cérebro tanto mais o produto da sua invenção assumia uma condição mágica, reincarnava a velha imagem eso- térica de uma ciência inteiramente encerrada nalgumas letras. Há um único segredo no mundo, e esse segredo condensa-se numa palavra, o Universo é um cofre-forte de que a humanidade procura a cifra.” E acrescenta: “É esse o mito de Einstein; aí se nos deparam de novo todos os temas gnósticos: a unidade da Natureza, a pos- sibilidade de uma redução fundamental do mundo, o poder de abertura da palavra, a luta ancestral entre um segredo e uma linguagem, a ideia de que o saber total não pode descobrir-se senão de um só golpe, como uma fechadura que cede bruscamente depois de mil tactea- mentos infrutuosos.” O cérebro de Einstein simboliza a capacidade humana de compreender a natureza. Todas as observações e ex- periências realizadas nos últimos cem anos confirmaram a teoria da gravitação einsteiniana, que concorda com a teoria de Newton no limite de forças gravitacionais pequenas. Até há aplicações tecnológicas, como o GPS. Resta um problema, cuja solução espera por um novo gigante. A teoria da gravitação ainda não foi satisfato- riamente unida à teoria quântica, a outra grande teoria física do século XX (uma teoria em relação à qual Eins- tein sentiu algumas dificuldades). Passaram 228 anos de Newton a Einstein e não sabemos quanto vai demorar até surgir um génio comparável. Se Einstein fez luz sobre as questões da gravidade, incluindo o magno problema do início do mundo, um novo Einstein acabará, mais cedo ou mais tarde, por fazer mais luz sobre o Universo. ProfessordeFísicadaUniversidadedeCoimbra (tcarlos@uc.pt) WWW São três letras cuja real importância ninguém podia perceber de início, mas representam uma das maiores revoluções no que é a dimensão de espaço e de tempo: WWW. As três letras significam World Wide Web e foram e são a chave para abrir o que se convencionou chamar “auto-estradas da comunicação” — ou seja, são o suporte tecnológico que, com a sua linguagem informática própria, constrói uma rede ou uma teia (web) que permite “navegar na Net” e chegar aqui e agora a todo o lado, quebrando as barreiras do espaço e do tempo. S.J.A. >>>>>>>>>>>> 1990 DR
  • 15. Vítor Cardoso Houve umdia emque não houve ontemDesafiámos o físico português a fazer um passeio pelo Universo e pela forma como a nossa visão sobre ele se alterou ao longo do último século. “Passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição, elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre” Entrevista Teresa Firmino Fotos Miguel Manso FimdaURSS A 19 de Agosto de 1991, a tentativa de golpe de Estado na URSS ameaça fazer regredir o tempo e anular a acção libertadora que levara à Perestroika de Mikhail Gorbatchov. O presidente é preso na sua datcha de Verão na Crimeia. A reacção nas ruas, liderada em Moscovo por Boris Ieltsin, faz falhar a tentativa de regressão à ditadura comunista. Daí ao fim da URSS foi um instante. A 25 de Dezembro, Gorbatchov assinava a dissolução da União Soviética e demitia-se, pondo fim a 70 anos do mais emblemático regime comunista. S.J.A. >>>>>>>>>>>> 1991
  • 16. Polar está onde sempre esteve desde que nascemos. O que quero dizer com isto é que as observações de Hubble, que são sofisticadas e precisam de telescópios poderosos, nos dizem algo que é difícil de “ver” e representam um choque com aquilo em que acreditávamos há milénios. Ora, quando Einstein soube disto, percebeu logo a asneira que fez, e percebeu que a realidade o veio desmascarar. Nessa altura afirmou que o maior erro da sua vida foi tentar mudar as equações para se adaptarem ao que ele pensava... E, realmente, é um erro histórico! As implicações da expansão do Universo são muitas. Não só destroem por completo a ideia de que está tudo parado, mas também nos permitem fazer um jogo interessante: se o Universo está em expansão, significa que à medida que fica mais velho é também maior. O que significa que o Universo jovem é cada vez mais pequeno, e portanto o Universo teve uma data de nascimento. Depois de Hubble, estas e outras coisas fantásticas puseram todos a mexer e a querer saber ao certo de que forma é que o Universo se expande. Um dos melhores instrumentos que orbitam a Terra desde 1990 é o telescópio Hubble. Graças a essas e outras observações, sabemos que o Universo nasceu há quase 14.000 milhões de anos. Em menos de 100 anos, passámos de um Universo parado para um Universo em ebulição, onde estrelas nascem, morrem, chocam umas com outras e onde o próprio Universo é elástico e humano: nasce, cresce e, quem sabe, morre. A partir do momento em que se percebeu que o Universo se expandia, então, se andássemos para trás no tempo, houve uma altura em que tudo esteve junto. Não havia estrelas ou galáxias... ... Não havia nada, o Universo era um ponto. Nessa altura, a matéria como a conhecemos hoje não existia. Não existiam átomos nem sequer protões ou electrões, que estavam completamente desintegrados. Claro que isto é extremamente difícil de comunicar ou compreender, já que foge à experiência do dia- a-dia. Na realidade, nem sequer temos uma teoria suficientemente forte para compreender o nascimento do Universo. A teoria da relatividade geral falha e não temos forma de pensar nesse “Universo-embrião”. Ainda antes das observações de Edwin Hubble, já tinha havido teorias que sugeriam a existência de um início do Universo, não é? Desde há muito tempo que um Universo estático causava incómodos. Não havia teoria nenhuma, propriamente dita, que sugerisse o nascimento do Universo. Contudo, um meteorologista e matemático russo, Alexander Friedmann, tinha descoberto em 1922 uma solução da teoria de Einstein que descrevia um Universo em expansão. Em 1927, o padre e astrofísico belga Georges Lemaître chegou também a um modelo de um Universo em expansão. Lemaître compreendeu até as implicações dessa descoberta, quando afirmou que “houve um dia em que não houve ontem”, isto é, que o Universo teve um início. E, contudo, o trabalho de ambos foi praticamente ignorado na altura: não eram cientistas de renome no local certo, e em ciência, por vezes, isto é importante: há que lutar pelas ideias persistentemente, até serem aceites pela comunidade. Até os resultados de Hubble encontraram resistência e durante décadas muitos não acreditaram neles. A primeira reacção de um cientista a uma descoberta é tentar mostrar que está errada. Talvez seja por isso que a ciência funciona tão bem: duas partes disputam com argumentos lógicos e lutam pela verdade até o assunto ficar esclarecido. Infelizmente, Friedmann não pôde lutar pela sua ideia, já que morreu pouco depois, aos 37 anos. A grande descoberta de Einstein foi que o espaço e o tempo são uma entidade única — o espaço- tempo —, que é deformada pela presença da matéria e da energia. Como é que isso mudou a nossa visão do tempo? Em 1905, Einstein entendeu que o tempo não é absoluto, e que relógios iguais podem ter tiquetaques diferentes conforme a velocidade a que eles se movam: não é problema nenhum com o relógio, é o próprio tempo que flui de forma diferente... Isto vai até à raiz da nossa existência: afinal de contas, o que é o tempo?! O tempo é relativo, pode “mover-se” mais ou menos rapidamente. Todos os dias no CERN A “Cientificamente,terhavidoum pontodepartidaélibertador. Nãonascemosescravosdeum Universoquejácáestava.Pelo contrário,evoluímoscomele” os 40 anos, Vítor Cardoso é professor e investigador do Centro Multidisciplinar de Astrofísica e Gravitação (Centra) do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Também é professor na Universidade do Mississípi, nos Estados Unidos, e investigador do Instituto Perimeter, no Canadá. Nos últimos cinco anos, ganhou duas superbolsas no valor total de 2,5 milhões de euros, que tem utilizado na investigação das equações de Einstein, com a ajuda de um supercomputador chamado Baltasar Sete Sóis. Dedica-se à física teórica, nomeadamente à compreensão dos buracos negros, da matéria escura e das ondas gravitacionais. Toda a gente aceita hoje a ideia de que o Universo teve um início — o Big Bang — e que, desde então, o Universo está em expansão. Por que é que Einstein se recusou a aceitar esta realidade, que, aliás, uma das suas próprias equações da teoria da relatividade geral lhe indicava? Temos de tentar perceber o que ele fez com as mesmas barreiras psicológicas que imagino que existissem na altura: o Universo era simplesmente pensado como algo imutável, que sempre foi e sempre será. Einstein acreditava, portanto, num Universo estático. Ora, a física tem esta coisa extraordinária de prever coisas que nunca tínhamos imaginado quando a construímos, isto é, quando a passamos para a linguagem matemática. E os resultados de Einstein diziam-lhe que o Universo não devia ser estático. Mas até Einstein, que já tinha derrubado a barreira do tempo imutável, sucumbiu e se recusou a deixar isto acontecer: mudou um pouquinho a matemática para que as equações se adaptassem à sua interpretação da realidade. Fez batota para satisfazer o seu preconceito. Este tipo de actos, o de tentar subjugar a realidade aos nossos preconceitos, acontece não só em ciência, mas na política, na economia e no dia-a-dia. Na ciência, a realidade fala sempre mais alto e acaba por ganhar. Quando se fala de um Universo estacionário, isso quer dizer que se pensava que as estrelas não morriam? Que o nosso Sol se mantinha igual? As estrelas não nasciam nem morriam e não evoluíam. De alguma forma, isso dava-nos uma certa paz de espírito: o Universo era assim no tempo dos nossos avós e vai continuar assim no tempo dos nossos netos. Mas, por outro lado, o que aceitamos hoje é ainda mais bonito: as estrelas nascem, morrem e algumas explodem. O resto de algumas destas explosões de estrelas mortas forma planetas, alguns dos quais vão ter vida, como a Terra. Portanto, a vida resulta da morte, e é muito mais interessante pensarmos que já fomos estrelas e que provavelmente vamos voltar a ser daqui a muitos milhões de anos... O momento-chave da mudança na nossa visão do Universo foi quando o astrónomo Edwin Hubble descobriu, em 1929, que as galáxias se estavam a afastar umas das outras? Edwin Hubble descobriu que, em geral, todas as galáxias se estão a afastar de nós e que quanto mais longe de nós está uma galáxia, mais rapidamente ela se afasta. Portanto, o Universo está em expansão no verdadeiro sentido da palavra. Hoje é tão normal ouvirmos estas palavras que até parecem dizer algo fácil de entender. Mas não é. Quando olhamos para os céus, vemos sempre a mesma coisa, a Estrela
  • 17. Do momento zero do Universo até aos 10-43 segundo, podemos dizer que há tempo? Do zero até aos 10-43 segundo não se pode dizer que não haja tempo. Há tempo, mas talvez seja de natureza diferente. Não se pode dizer mais nada. É um tempo diferente. Há efeitos de mecânica quântica que não conhecemos. Talvez o tempo flutue e dê saltos, talvez não ande sempre para a frente... Julga-se que nestas alturas o espaço-tempo é como espuma, tudo se mistura. É a partir de 10-43 segundo que a teoria de Einstein é aplicável. E antes do Big Bang? É o campo da especulação e da metafísica. A ciência pára aí. Em 1999, João Magueijo propôs uma alternativa ao modelo da inflação cósmica para explicar a homogeneidade do Universo a grandes escalas. Teriam sido os fotões (a luz) que puseram todo o Universo primordial em contacto e o tornaram uniforme. Para isso a luz teria de ter sido mais rápida no passado, o que questionava a constância da sua velocidade. Há hoje alguma observação astronómica que fundamente esta proposta? Ele tentou mudar as regras do jogo, para encontrar uma alternativa ao processo de inflação, que, como já disse, sugere que o Universo passou por uma fase de crescimento muito rápido, quando era criança. Em vez de ser a velocidade de expansão do Universo que mudava, era a própria velocidade intrínseca das coisas, neste caso da luz, que mudava ao longo da história do Universo. A luz punha tudo em contacto e a homogeneidade ficava mais ou menos explicada. Do ponto de vista teórico, nada proíbe que isso tenha acontecido. Mas Einstein acreditava que a velocidade da luz era constante, é um postulado da teoria dele. É assim que a física funciona: propõem-se alternativas para resolver problemas e fazem-se observações para ver qual é a que o Universo escolheu. Parece hoje que o Universo escolheu a inflação e que a velocidade da luz é mais ou menos constante ao longo da sua história. Portanto, a proposta de João Magueijo é interessante, mas a natureza não optou por ela. Contudo, ao explorar essa possibilidade, ficamos a saber algo mais sobre o Universo. Fazer ciência é testar hipóteses. A descoberta das ondas gravitacionais dos primórdios do Universo, anunciada em 2014, teria sido a prova final de que o modelo da inflação cósmica estava certo. Mas esse anúncio foi desmentido este ano por análises posteriores das observações, nomeadamente do telescópio espacial europeu Planck. Ficou muito desiludido? As ondas gravitacionais são distorções do espaço- tempo que transportam informação sobre a gravidade. Viajam à velocidade da luz e foram previstas por Einstein há 100 anos, mas nunca foram detectadas directamente na Terra. O anúncio da descoberta matava dois ou três coelhos de uma cajadada: se estas ondas tivessem mesmo sido vistas, significava que a gravidade também tem natureza quântica, já que estas ondas seriam geradas por efeitos quânticos no início do Universo; significava também a verificação do mecanismo que mencionei, a inflação, já que só através da inflação é que as ondas gravitacionais são suficientemente fortes. Finalmente, a detecção das ondas significa que elas existem. Quanto ao episódio do anúncio da (falsa) descoberta em si, é uma ilustração perfeita de como a ciência (e o ser humano) funciona. Um grupo, da experiência BICEP2 no Pólo Sul, afirmou [em 2014] ter descoberto as ondas gravitacionais, talvez um pouco precipitadamente, para ficar com a fama e o proveito que adviriam se estivessem correctos. A reacção da maior parte de nós ao anúncio de qualquer descoberta é tentar provar que está errada. E, realmente, há cerca de um mês, a equipa do Planck, em colaboração com o BICEP2, mostrou que o anúncio foi precipitado. Mas repare: há agora um consenso entre os cientistas, portanto o método científico está a funcionar bem. Pode explicar um pouco mais o que são as ondas gravitacionais? E acha que vamos detectá-las? A teoria da relatividade de Einstein diz que espaço e tempo são um único tecido, e que as ondas gravitacionais são flutuações desta entidade à medida que o tempo passa. As ondas na superfície de [Laboratório Europeu de Física de Partículas, em Genebra] se verificam estas previsões, é algo já aceite por todos nós e que até passou para a cultura popular, mas era uma barreira imensa. Em 1916, Einstein percebeu que o tempo e o espaço são elásticos e duas faces de uma mesma entidade: o espaço-tempo. Pela primeira vez, o tempo não é uma entidade imóvel, é algo que pode ser distorcido. Isto permitiu-nos trabalhar a noção de tempo: o tempo pode fluir mais devagar ou mais depressa. A teoria da relatividade foi importante para termos até uma noção do início do tempo, tínhamos de quebrar primeiro a noção de que o tempo é uma coisa estática e imóvel e eterna. Creio que a noção do Big Bang só é possível depois de termos quebrado a barreira do tempo e de sabermos que podemos mexer no tempo. Que implicações filosóficas e religiosas teve o facto de sabermos da existência do Big Bang? Imagino que deve ter sido um grande choque saber que o Universo está a evoluir e que nós, enquanto parte do Universo, estamos a caminhar para algum ponto enquanto espécie e enquanto ser vivo no cosmos. Qual o nosso papel no Universo? Há algum propósito na nossa existência? Qual o futuro da humanidade? Quem criou o Universo? Estas perguntas devem ter ganho nova relevância. Mas, cientificamente, ter havido um ponto de partida é libertador. Não nascemos escravos de um Universo que já cá estava. Pelo contrário, evoluímos com ele. Se o Universo não é estático e está a mudar, então talvez possamos compreender as estrelas, como deitam tanta luz cá para fora, o que acontece no interior delas... Como é que se formaram, como morrem, como é que a vida nasceu... tudo isto! Tem de ter sido uma coisa bonita saber que, afinal, há alguma dinâmica no sítio onde vivemos. Em 1965, descobriu-se uma radiação “fóssil”, que é a luz mais antiga que conseguimos ver dos primórdios do Universo, quando tinha só 380 mil anos, e que se chama radiação cósmica de fundo. Esta foi a derradeira prova do Big Bang? A teoria de um Universo estático ou estacionário prevê que o Universo é hoje como foi há milhões de anos. Por outro lado, a teoria de que o Universo teve um início prevê muitas outras coisas: toda a matéria estava concentrada inicialmente num único ponto e toda a matéria estava esmagada porque a temperatura era enorme. Mas, à medida que o Universo expande, arrefece e permite a criação de estrutura. Quando o Universo celebrou um segundo de vida, estava suficientemente frio para núcleos de átomos. E aos 380 mil anos a luz conseguiu finalmente “libertar-se” da matéria: é esta luz a que chamamos a radiação cósmica de fundo, um eco do Big Bang. Mas é um eco que tem toda esta evolução subjacente. É uma fotografia lindíssima do Universo jovem-adulto, só possível num cenário em que existe Big Bang. E um pormenor interessante é que esta “fotografia” foi descoberta por acaso por Penzias e Wilson em 1964. Enquanto instalavam antenas muito sensíveis, detectaram um ruído que atribuíram a... cocó de pombos. E que se verificou ser radiação cósmica de fundo existente em todo o lado e em todas as antenas. Hoje vemos galáxias pelo Universo todo. O que mais nos disse a radiação cósmica de fundo sobre o Universo que vemos hoje? O que permite saber sobre os primeiros 380 mil anos do Universo, que não vemos directamente? A radiação cósmica de fundo é quase isotrópica, isto é, a mesma em todas as direcções para onde olhemos. Isto faz sentido, dado que o Universo era o mesmo em todas as direcções quando esta luz foi libertada. Mas esta luz é antiga, está a viajar há muitos milhões de anos e já viu muita coisa. Desde os quase 14.000 milhões de anos que passaram desde que a radiação cósmica de fundo foi criada, muita coisa aconteceu: a gravidade atrai tudo o que pode, e a tendência é começar a formar “coágulos” de matéria, que são as sementes das futuras galáxias, estrelas ou mesmo buracos negros. Ora como esta luz viaja há tanto tempo, foi afectada por todos estes acontecimentos. Por isso, quando olhamos para a radiação cósmica de fundo, vamos ver todo este passado da luz como pequenos desvios em diferentes direcções. Outro marco da nossa compreensão do Universo foi o modelo da inflação cósmica. Por que foi preciso introduzir na teoria do Big Bang uma expansão vertiginosa do Universo nas primeiras fracções de segundo da sua existência? O Universo nasceu homogéneo e isotrópico, o mesmo em todo o lado e direcção e continua mais ou menos assim ainda hoje. No cômputo geral, é mais ou menos homogéneo. Se olharmos para o céu, há sempre uma estrela algures no caminho do nosso telescópio. Isto significa que a direcção do Pólo Sul no céu parece- se, com uma precisão de uma parte em 10.000, com a direcção do Pólo Norte. Mas quando olhamos nestas diferentes direcções, estamos a ver luz que veio de partes completamente diferentes e que nem sequer deveriam saber da existência uma da outra. Então, como é possível que sejam tão semelhantes? Bem, uma explicação é que seja uma coincidência, mas tem de ser uma coincidência tão grande que é como ganhar a lotaria várias vezes seguidas... Parece batota! Pensamos que isto aconteceu porque houve uma inflação, isto é, um crescimento muito rápido, que dissolveu qualquer “coágulo” e imperfeição que existisse, um alisamento muito rápido do tecido onde estavam estes coágulos, e tudo ficou muito uniformemente distribuído. A inflação procura explicar por que é que o Universo é assim. Ainda antes da inflação, houve o Big Bang, o momento zero. Depois, houve a primeira fracção de segundo a partir da qual o conceito de tempo tem sentido: 10-43 segundo. Mas entre o Big Bang e os 10-43 segundo, o que é o tempo? Não sabemos. O 10-43 segundo é o que chamamos a escala de Planck (em homenagem a Max Planck, o físico que iniciou o estudo da mecânica quântica). Que é a escala da nossa ignorância. Diz-nos que daí para trás a mecânica quântica (que explica a existência de átomos, moléculas, etc.) é tão ou mais importante do que a gravidade. Quando o campo gravítico é muito forte — e era no início do Universo, porque estava tudo junto e era extremamente denso —, há efeitos de mecânica quântica que não podemos prever. Sabemos que têm de estar lá, mas não os sabemos calcular. Como não conseguimos casar a teoria quântica e a da relatividade geral, não sabemos o que acontece. “[Antesdo BigBang]é ocampoda especulaçãoe dametafísica. Aciênciapára aí.”
  • 18. um lago são uma boa analogia. Outra boa analogia é imaginarmos que o Universo em que vivemos é o tecido de uma camisola. E que nós e tudo o que existe no Universo somos os desenhos pintados na camisola. Se eu tocar com o dedo na camisola, ela vai oscilar. E se eu puxar o tecido da camisola, os desenhos ficam mais ou menos esticados. Puxões que viajam no tecido são as ondas gravitacionais. Esta analogia mostra-nos o efeito de uma onda gravitacional sobre nós. Se uma onda gravitacional estiver a passar aqui entre nós, é o mesmo que eu puxar o tecido de uma camisola e o que veria é que ficaríamos sucessivamente esticados e comprimidos. A minha altura iria variar muito pouco, mas iria variar. O problema é que varia muito pouco, o que é bastante complicado de detectar. Estas ondas têm uma história interessante. Einstein previu a sua existência em 1916, mas 20 anos depois negou-a num artigo com [Nathan] Rosen. Einstein também errava, e bastante, e isto foi mostrado por [Howard] Robertson, que se apercebeu de que ele interpretou mal a solução. Mas Einstein era Einstein e o que perdurou foi a sua opinião... até 1955, quando [Richard] Feynman, [Hermann] Bondi e outros mostraram que as ondas têm de existir e transportar energia. A partir de 1960, começa-se a tentar detectar estas ondas na Terra, com barras de alumínio. Joseph Weber foi um pioneiro, construindo os detectores mais avançados. Infelizmente, alegou ter detectado dezenas de acontecimentos, mas mostrou-se mais tarde que resultaram de erros de software e hardware. Resumindo, a história da detecção destas ondas, chamadas “mensageiros de Einstein”, não começou muito bem, e havia algum receio de investir uma carreira no assunto. Nos anos 1980, o famoso físico Kip Thorne decidiu recomeçar todo o esforço com o LIGO, um observatório norte-americano. Acreditamos que a primeira detecção directa destas ondas vai acontecer daqui a um ou dois anos. Se não detectarmos nada em 2017... mau... Então, ou o Universo é completamente diferente da forma como hoje o entendemos, ou a teoria de Einstein está seriamente errada. Pensa-se que os buracos negros também geram ondas gravitacionais, duas coisas estudadas por si. Que mistérios procura desvendar? Bom, dado que vamos todos acabar dentro de um grupo de grande qualidade sem preocupações quanto aos cortes ou à política de contratações, durante os próximos cinco anos. E vai permitir-me actualizar o nosso supercomputador, que usamos intensamente para resolver as equações de Einstein. Esse supercomputador chama-se Baltasar Sete Sóis, nome inspirado em Baltasar Mateus, o Sete- Sóis, personagem de José Saramago em Memorial do Convento. Por que deu esse nome à máquina? O nome foi discutido com a minha mulher, queria que fosse algo com significado. Ora o Baltasar Sete Sóis é um personagem que ajuda o padre Bartolomeu Lourenço a construir o seu sonho, que é a Passarola, uma máquina voadora. Gostámos desta ideia, de o Baltasar ajudar a construir um sonho, especialmente da forma apaixonada com que as personagens do livro o faziam. Posso dizer, ao fim de cinco anos, que o Baltasar já construiu muitos sonhos! Neste passeio que estamos a fazer, houve mais um abalo, em 1998, na nossa visão do Universo. Não só o Universo se está a expandir como o está a fazer cada vez mais depressa. Por que é que isto surpreendeu tanto os cientistas? Bom, por várias razões, a começar pelo facto de que a expansão acelerada não estava no “menu”. E porque a descrição mais simples desta aceleração é uma energia escura, ou constante cosmológica (a mesma que o Einstein tinha introduzido por preconceito), que ainda hoje não sabemos bem explicar. Já agora, esta “reciclagem” da constante cosmológica não significa que Einstein estava, afinal de contas, certo. Isso é apenas uma coincidência, mas mostra que o homem tinha uma intuição danada para resolver problemas. O cenário mais consensual é o da expansão eterna do Universo. Como será o Universo com 26.600 milhões de anos, ou seja, com o dobro da sua idade actual? Esse futuro é negro? O futuro é escuro e frio! Essa pergunta é tramada, porque exige fazer alguns cálculos complicados. Mas deixe-me descrever o que vai acontecer, e como vamos ficar cada vez mais sós. Daqui a cerca de 500 milhões de anos, o Sol estará tão luminoso que a temperatura na Terra vai subir cerca de dez graus. O homem vai provavelmente começar a pensar, a sério, em mudar-se para outros planetas no sistema solar ou na galáxia antes disto. De qualquer forma, daqui a cerca de 4000 milhões de anos a nossa galáxia, a Via Láctea, vai colidir com outra, a de Andrómeda. Durante este processo, que levará muito tempo, algumas simulações mostram que a Terra vai passar muito perto do centro desta galáxia combinada, antes de ser ejectada para fora. Vamos perder a nossa querida galáxia, mas por essa altura a Terra já não terá humanidade [o Sol estará a morrer daqui a 5000 milhões de anos]. Daqui a 100.000 milhões de anos, todo o Grupo Local [umas 40 galáxias, incluindo a nossa] será uma única galáxia e o Universo já terá arrefecido e expandido de tal forma que esta única galáxia estará isolada do resto do Universo. Lentamente, estrelas deixarão de se formar. Algum tempo depois, os protões e neutrões desintegrar-se-ão. Qualquer vida que pudesse existir morre. Como puro exercício especulativo, podemos continuar: a matéria que existe vai cair para dentro dos buracos negros, e o Universo vai ter apenas buracos negros gigantes. Finalmente, estes vão-se evaporando lentamente. Não faço ideia do que acontece a seguir neste Universo. Dito assim, parece um cenário desolador. Poderemos pensar em nós como aquela luzinha trémula que surgiu no meio da noite e se apagou, mas foi bonito enquanto durou. Esta altura onde estamos agora é a melhor para estudar o Universo, agora já evoluiu bastante? É. Se fosse mais cedo, era impossível, porque não teria o tipo de estrutura que tem. Não haveria planetas do tipo da Terra a orbitar estrelas. Nem nós estaríamos cá nem alguma forma de vida vagamente semelhante à nossa. A questão é: há mais alguém a observá-lo e há ligeiramente mais tempo? Acha que há? Acho que sim. A probabilidade de haver vida nalguma ponta do Universo é imensa. O que não quer dizer que esses seres vivos sejam necessariamente parecidos connosco, física ou intelectualmente. buraco negro, é bom sabermos como estas bestas nasceram e cresceram. Buracos negros nascem quando uma estrela muito grande morre, e cai sobre si mesma, pois já não consegue suportar a atracção gravítica. Para um buraco negro, crescer é a única opção: eles comem tudo o que puderem. Os buracos negros são muito comuns em todas as galáxias: a nossa tem milhões de buracos negros “pequenos”, isto é, com cerca de 15 quilómetros de raio, mas um milhão de vezes mais pesados do que a Terra. Além disso, descobrimos nas últimas décadas que quase todas as galáxias têm no centro um buraco negro supergigante. No caso da Via Láctea, o centro é ocupado por um monstro gigante quatro milhões de vezes mais pesado do que o nosso Sol. Estes gigantes, apesar de muito mais pequenos do que a galáxia, controlam toda a sua actividade, incluindo o nascimento de novas estrelas. Estes gigantes nos centros das galáxias estão sempre acompanhados por outro gigante invisível, a que chamamos matéria escura. E que forma a maior parte da matéria do Universo e não fazemos ideia do que seja (por isso lhe chamamos “escura”, quando soubermos o que é, talvez mudemos o nome!). Ora, os buracos negros emitem quantidades prodigiosas de ondas gravitacionais. Procuro perceber esta emissão e a sua importância. Será que através das ondas gravitacionais podemos saber algo sobre a matéria escura? Como é que o acelerador LHC — onde se detectou o bosão de Higgs em 2012 e vai agora reabrir quase com a sua potência máxima — pode ajudar a descobrir o que é a matéria escura? O LHC tem tentado procurar também matéria escura, mas estamos sempre limitados pela energia necessária. No estado actual da física, a parte mais excitante está no Universo para lá do nosso sistema solar. Há pouco tempo, o CERN deu-nos provas mais ou menos conclusivas da existência do bosão de Higgs. Mas receio que daqui para a frente a física de partículas vá passar um mau bocado. Sempre precisou de mais e mais energia [para se colidirem partículas nos aceleradores], mas haverá uma altura em que, no planeta, é impossível dar essa energia toda. Teremos de olhar lá para fora e dar atenção a outro tipo de “aceleradores”. Creio que a física deste século está nos astros e na física gravitacional. Há muito por entender e muitas fontes de energia onde procurar informação. Precisamos de telescópios bons e mentes brilhantes. Os buracos negros estão entre os objectos mais exóticos do Universo? Ou nem por isso, e despertam é curiosidade nas pessoas?... São, sem dúvida, exóticos para a nossa experiência do dia-a-dia. São um “nada” que consegue curvar de tal forma o tiquetaque dos relógios que nada sai de dentro deles. Creio que o que desperta a curiosidade é o facto de desafiarem os nossos conceitos de tempo e espaço, e o facto de representarem um fim quase definitivo para tudo que engolem. E é preciso relembrar que eles existem. Teve duas superbolsas do Conselho Europeu de Investigação (ERC), em 2010 e 2015, para estudar as equações na teoria da relatividade geral. O que quer dizer estudar as equações de Einstein? O meu trabalho é pensar sobre o que nos rodeia, para percebermos, todos nós, o nosso Universo um pouco melhor. A minha investigação consiste em perceber a teoria de Einstein e o que ela prevê. É fácil de enunciar, é difícil de fazer, porque as equações de Einstein descrevem muita coisa: buracos negros, ondas gravitacionais, estrelas de neutrões, etc. As equações da relatividade são tremendamente complicadas de resolver e têm muitas soluções — tal como a “fórmula” da biologia dá origem a muitos seres vivos diferentes. Tome-se o exemplo do buraco negro no centro da nossa galáxia, que é fundamental para a vida da galáxia, para a formação de estrelas e até para o futuro longínquo da galáxia. Dedico-me a tentar perceber estes buracos negros, como crescem e como nos podem ensinar algo acerca da sua vizinhança. E estas superbolsas são fulcrais. A importância e a qualidade da ciência em Portugal tem crescido, muito rapidamente, nas duas últimas décadas. Os cortes orçamentais fizeram regredir a situação. A última bolsa do ERC vai permitir-me manter um “Daquiacerca de4000 milhõesde anosaVia Lácteavai colidircom Andrómeda. Vamosperder anossa querida galáxia,mas poressa alturaaTerra jánãoterá humanidade”
  • 19. ste ano, no último dia de Junho ou no primeiro de Julho (dependendo do fuso horário do local), os relógios do mundo inteiro — e em particular os dos computadores — vão ter de parar durante um segundo. Tal foi a decisão, tornada pública há dias, dos “guardiões da hora” a nível mundial: o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas, com sede em Sèvres, nos arredores de Paris. Porquê? Porque a hora é hoje dada por relógios muito precisos e estáveis, ao passo que a rotação da Terra é irregular e está a ficar cada vez mais lenta. Isso obriga, de vez em quando, a fazer acertos. No início, havia a noite e o dia, a meia-noite e o meio- dia. E as horas contavam-se partindo esse ciclo natural em intervalos regulares: horas, minutos e segundos. A partir de observações astronómicas, os astróno- mos árabes tinham subdividido, já na Idade Média, o dia solar em 24 horas, as horas em 60 minutos e os minutos em 60 segundos. E, com base nisso, em 1874, o segundo fora cientificamente definido como um se- xagésimo de sexagésimo de vigésimo quarto da dura- ção média do dia solar. Um dia “civil” durava portanto 86.400 segundos. Só que, pouco depois, descobriu-se que o período de rotação da Terra não é assim tão regular: varia de forma imprevisível sob o efeito das marés, dos ventos, dos terramotos. Seguiram-se então definições do segundo com base no ano solar, que também não se adequaram à crescente necessidade de medir o tempo de forma cada vez mais precisa. Em 1955, foram inventados os relógios atómicos e, uns anos mais tarde, redefiniu-se o segundo com base na frequência da radiação electromagnética emitida por certos átomos. Este segundo “atómico” tinha a vanta- gem de ser bastante próximo do segundo oficial “natu- ral” (baseado no dia solar) definido em 1874. Hoje em dia, os segundos atómicos servem para de- terminar a “hora atómica internacional” (TAI) graças a uma rede de centenas de relógios atómicos, espalhados pelo mundo — e entre os quais o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas calcula uma hora média. Graças a diversos avanços técnicos, as “batidas” des- tes relógios atómicos têm-se tornado cada vez mais re- gulares, com os de última geração a demorarem milhões de anos a derivar alguns segundos. E o aperfeiçoamento não pára aí: em Fevereiro, cientistas japoneses anun- ciaram na revista Nature Photonics ter obtido relógios atómicos que teriam derivado menos de um segundo desde o Big Bang, há 13.800 milhões de anos. Em 1972, como os relógios atómicos respondiam de facto à necessidade de precisão no cálculo da hora glo- bal (nomeadamente nas redes de telecomunicações), a hora oficial na Terra, que até lá tinha sido medida em segundos “solares”, passou a ser medida em segundos “atómicos”. Entrou assim em vigor a escala horária UTC (Tempo Universal Coordenado). Mas surgiu então um outro problema: é que a rotação da Terra não tem parado de abrandar — em cerca de 1,7 milissegundos por século nos últimos séculos — e, se nada fosse feito, a hora UTC, agora medida em segundos atómicos, iria afastar-se cada vez mais da hora solar “re- al”. Na altura, ninguém desejava, por assim dizer, que acabasse um dia por “estar sol em plena noite” (mesmo que isso acontecesse daqui a milhares de anos). A hora UTC, que é de facto a norma através da qual o mundo acerta hoje os relógios e a hora civil, encontra-se sob a alçada da União Internacional de Telecomunica- ções. E, face ao problema do abrandamento da rotação E Por Ana Gerschenfeld Este ano, o último dia de Junho vai ter mais um segundo A1 Em 1991, Portugal fica mais pequeno e mais rapidamente transitável: é finalmente concluída a construção da Auto-estrada entre Lisboa e o Porto, que tinha sido iniciada ainda em 1961 com o troço Lisboa Vila Franca — ou seja, 30 anos para acelerar o percurso de 330 quilómetros. Onze anos depois (2002), o país tornou-se ainda mais pequeno com a inauguração dos 240 quilómetros da A2 entre Lisboa e Albufeira, iniciada em 1996. S.J.A. >>>>>>>>>>>> 1991
  • 20. terrestre, aquela entidade recomendou então que a hora “oficial” dada pelos relógios — a hora UTC —, nunca se poderia afastar em mais de 0,9 segundos da hora dada pelo “relógio” natural da rotação da Terra. Foi justamente por essa razão que começou a ser pre- ciso acrescentar segundos adicionais de vez em quando à hora UTC. Desde 1972, 25 destes “segundos intercala- res” foram assim acrescentados. E este ano, mais uma vez, vai ser preciso fazer o acerto dos relógios. Diga-se, já agora, que a hora atómica internacional TAI está actu- almente 35 segundos adiantada em relação à hora solar, uma vez que este tipo de acertos entre a hora atómica e a hora solar já tinha começado a ser feito nos anos 1960, antes da instituição da actual hora UTC. Parar um segundo Como é que o salto de um segundo se vai processar? A 30 de Junho, quando forem 00:59:59 horas (hora UTC), todos os relógios do mundo que usam o sistema UTC terão de parar por um segundo — ou de marcar um se- gundo a mais (um sexagésimo primeiro segundo, com os relógios a dar 00:59:60 horas) — antes de passar para a hora seguinte. Isto acontecerá antes da meia-noite nas Américas, após a meia-noite na Europa — e mesmo depois do nascer do sol de 1 de Julho em países como o Japão ou a Austrália. Simples? Nem por isso. Acontece que os grandes sistemas informáticos — como os serviços de reservas das companhias aéreas ou os servidores das grandes empresas da Internet — vão ter de marcar o passo. Ora, em 2012, quando da introdução do último segundo in- tercalar, vários destes sistemas tiveram problemas para “digerir” o segundo e acabaram por ir abaixo, alguns durante várias horas. “Vamos ter de obrigar os nossos relógios a aceitar um segundo a mais num dado minuto”, explicava em finais de 2011 à revista New Scientist Felicitas Arias, as- trónoma argentina e directora do Departamento do Tempo no Gabinete Internacional de Pesos e Medidas. E acrescentava: “Estamos a usar um sistema [horário] que interrompe o tempo, quando a característica do tempo é, pelo contrário, a continuidade.” A seguir ao segundo intercalar de 2012, servidores da companhia aérea australiana Qantas ou de sites como Linkedin, Mozilla, FourSquare ou Reddit foram atin- gidos por um bug de programação, que até lá tinha permanecido latente (e que portanto ninguém tinha detectado), no sistema operativo Linux utilizado por aqueles computadores. Outros servidores, que utiliza- vam Java (o célebre software da Oracle), também foram afectados. Pode isto tornar a acontecer? Ninguém sabe ao certo. Mas na sequência dos problemas com que se defrontou por ocasião do segundo intercalar introduzido em 2005, o gigante online Google divulgou uma forma de contor- nar o problema, como explicava há dias a CNN online. Trata-se de ir acrescentando alguns milissegundos aos relógios dos seus servidores ao longo do dia fatídico — “o suficiente para evitar o desastre no fim do dia, mas que [por serem apenas uns milissegundos] não fazem disparar os alarmes.” Porém, isso também não evita todos os incidentes. Há anos que a União Internacional de Telecomuni- cações está a considerar a hipótese de acabar, pura e simplesmente, com os segundos intercalares, deixando a hora UTC afastar-se da hora solar. Em Novembro des- te ano, a questão tornará a ser abordada no congresso desta organização em Genebra. Mas o facto é que não há consenso entre os especialistas. Por um lado, há quem argumente que, com o passar dos séculos, a frequência de introdução de segundos intercalares vai aumentar até se tornar incomportável. Por outro, há quem alerte para o facto que abolir os segundos intercalares fará com que a hora civil acabe por perder a sua ligação com o tempo solar. Ainda segundo a New Scientist, este último argumento apresenta uma visão exagerada das coisas, uma vez que a hora legal em vigor nos diversos países já se encontra desfasada, por vezes de várias horas, em relação à hora solar — o que significa que o Sol não está nem perto do zénite quando os relógios assinalam o meio-dia. Por comparação, a abolição do segundo intercalar levaria, daqui por cem anos, a uma diferença de apenas um minuto entre a hora atómica e a hora solar. YULIA DARASHKEVICH/REUTERS
  • 21. SalvaraTerra Em 1992, o Rio de Janeiro é o palco da Cimeira da Terra, a segunda conferência mundial sobre meio ambiente. A primeira realizara-se em Estocolmo em 1972. No Rio, 108 países comprometeram-se em travar a degradação do planeta e o consumo de recursos naturais, assim como encontrar modelos de desenvolvimento sustentável, ecologicamente equilibrados. Do Rio saíram convenções sobre biodiversidade, desertificação e clima. Esta última conduziu, em 1997, ao Protocolo de Quioto, no Japão, em que os países concordam em reduzir as emissões de gases com efeito estufa, evitando o aquecimento global. S.J.A. >>>>>>>>>>>> 1992 A o contrário dos humanos, os computa- dores não têm esperança, aquela dispo- sição de espírito que leva a crer que algo acontecerá (ou deixará de acontecer), mesmo quando a informação dispo- nível aponta em sentido contrário. Os algoritmos desenvolvidos para analisar uma imensa quantidade de dados e tomar uma decisão de compra ou venda de um produto financeiro não foram progra- mados para cruzar os dedos e esperar que o pior passe. Os computadores seguem à risca as instruções com que foram programados e fazem-no em minúsculas fracções de segundo. Por vezes, isto leva a situações inesperadas. Um mini-crash dos mercados em 2010 ficou na histó- ria como um exemplo dos riscos colocados pelas tran- sacções feitas por algoritmos, em particular por aquilo a que se chama high frequency trading (transacções de elevada frequência). É uma prática que envolve gran- des quantidades de transacções automatizadas, feitas em curtíssimos períodos de tempo e onde a estratégia é normalmente ter um pequeno ganho em cada uma das múltiplas compras e vendas. A 6 de Maio daquele ano, o Dow Jones (o índice bolsis- ta que agrega as cotações de grandes empresas como a Microsoft, a Coca-cola e a IBM) estava às 14h47 minutos de Nova Iorque a perder mais de 9%. A maior parte desta queda, invulgarmente grande, acontecera nos minutos anteriores. Ainda antes das 15h, as cotações já tinham recuperado boa parte das perdas. Foram precisos meses para que as autoridades regu- latórias conseguissem explicar o que se passara: o crash tinha sido causado por computadores a comprarem e venderem uns aos outros, numa sucessão imprevisível de eventos. A bola de neve começou com uma empresa que usou um programa de computador para vender 4,1 mil milhões de dólares de contratos de futuros, in- dependentemente do preço de venda. A maior parte foi rapidamente comprada por computadores de hi- gh frequency trading. Quando os algoritmos daqueles computadores consideraram que já tinham comprado demasiado, começaram a vender muito rapidamente. Em escassos 14 segundos, os contratos trocaram de mãos 27 mil vezes. Com uma venda maciça a decorrer, outros investido- res começaram a comprar os contratos a preços redu- zidos, mas a vender acções que tinham em mercados como a Bolsa de Nova Iorque. Por seu turno, alguns algoritmos detectaram a rápida sucessão de compras e vendas e pararam de transaccionar. O resultado foi um crash de alguns minutos, que terminou quando um algoritmo, desta vez do mercado onde eram trocados os contratos de futuros, interveio e suspendeu as ne- gociações durante cinco segundos. Ser o primeiro Nas rapidíssimas transacções algorítmicas de alta fre- quência, ser o primeiro a ter acesso a informação re- levante é uma vantagem que se mede em milésimos de segundo (ou, às vezes, até menos). A proximidade física às fontes de informação e aos mercados onde as acções e demais instrumentos são transaccionados é um bem cobiçado, já que permite encurtar o tempo que os dados e as ordens de compra e venda demoram a percorrer (normalmente através de cabos de fibra óptica) a distância entre computadores. “Cada microssegundo de vantagem conta. Ligações mais rápidas de dados entre bolsas minimizam o tem- po que se demora a fazer uma transacção; as empre- sas lutam para ver qual é o computador que pode ser colocado mais próximo”, explica, num artigo recente para a revista Nature, o físico Mark Buchanan, autor do livro Forecast: What Physics, Meteorology and the Natural Sciences Can Teach Us About Economics. Buchanan argumenta que as transacções ultra-rápidas tem algumas vantagens. Por um lado, diz, tornou-se mais barato investir, já que as comissões cobradas aos investidores caíram com esta prática. Por outro, os pre- ços dos diferentes instrumentos financeiros ajustam- se mais rapidamente. “Em 2000, eram precisos, em média, minutos para que a mudança de preço num instrumento se repercutisse nos outros. Agora, demora menos de dez segundos. Nem toda a gente gosta disto: uma sincronização rápida elimina as oportunidades de lucro das empresas que fazem dinheiro por conhecerem os desequilíbrios momentâneos de preços”. Associada às transacções de alta frequência está tam- bém a prática de colocar no mercado sucessivas ordens de venda, a preços progressivamente mais altos, com o objectivo de descobrir que ordens são aceites e assim saber o preço máximo que alguém está disposto a pa- gar — estas ordens são dadas e canceladas em fracções de segundo. O prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz está no campo dos detractores deste tipo de práticas. Num dis- curso no ano passado, apelou a um maior escrutínio, disse ser céptico quanto ao “valor social” das transac- ções de elevada frequência e classificou-as como um jogo de soma negativa. “Porque o retorno privado pode exceder o retorno social, haverá um excessivo inves- timento na velocidade de aquisição de informação”, observou o economista. Em 2013, foi tornado público que a agência Reuters vendia, a um grupo restrito de investidores, um indi- cador sobre o consumo nos EUA dois segundos antes de o divulgar à generalidade dos seus clientes (que, por sua vez, o recebiam cinco minutos antes do público em geral). A vantagem podia chegar a dois segundos e meio, já que o contrato previa uma margem de erro de meio segundo. Aquele indicador, que influencia mercados, é elaborado pela Universidade do Michigan. Para ter acesso antecipado à informação e a poder revender, a Reuters pagava então à universidade um milhão de dólares por ano, mais comissões. Milissegundos quevalem milhões No mundo de alta velocidade dos algoritmos financeiros, pouco tempo significa muito dinheiro Por João Pedro Pereira