1) O governo federal propôs importar 6000 médicos cubanos para trabalhar em áreas carentes do Brasil, sem necessidade de revalidação do diploma. Isso gerou revolta entre estudantes e profissionais de medicina.
2) O autor analisa que esta proposta faz parte de um projeto mais amplo do governo de enfraquecer o SUS e fortalecer a participação do setor privado na saúde, por meio de políticas como as Fundações Estatais de Direito Privado.
3) Os estudantes de medicina planejam um protesto nacional
1. A “IMPORTAÇÃO DE MÉDICOS” – CONTRIBUIÇÃO PARA DEBATE
Hudson Valente
Estudante de medicina da Universidade Federal do Piauí
Militante do coletivo nacional de juventude e movimento estudantil Rompendo Amarras
1. Introdução
A notícia de que o governo federal está negociando com alguns países,
como Portugal e Espanha, e, especialmente a notícia da vinda de 6000 médicos cubanos
para o Brasil tem suscitado revolta e indignação em todos e todas os/as ligados à área
médica, estudantes e profissionais. As entidades dos/as profissionais médicos/as já
publicizaram sua posição. Entretanto, entendo que esta questão não deve ser
simplesmente agitada por nós, estudantes, e sim debatida, por mais óbvia que possa
parecer a posição da imensa maioria de nós.
Sendo marxista, procuro trazer, com este texto, elementos e informações
para o debate nacional desta questão, através de uma análise da totalidade e do caminho
percorrido pela política de saúde do governo, até o atual decreto que tem mobilizado
estudantes de medicina de todo o Brasil.
2. Um pouco de conjuntura
Para entendermos o porquê de essa “importação” de médicos/as estar sendo
proposta (ou outorgada, como provavelmente o será) como política de saúde para suprir
o déficit desses profissionais nas cidades de interior, proponho uma análise da política
de saúde do atual governo. A importância de começar com a análise de conjuntura, se
não já clara, ficará óbvia posteriormente.
PRIMEIRO MANDATO DE LULA: A vitória eleitoral de Lula em 2002 foi resultado
da reação da população contra o projeto neoliberal privatista em curso desde 1990,
assim, mesmo que não se esperassem transformações estruturais profundas na
sociedade, havia uma expectativa, por parte dos movimentos sociais, que o projeto de
Reforma Sanitária na saúde fosse grandemente fortalecido, o que, infelizmente não
ocorreu. Embora alguns avanços tenham ocorrido em relação aos governos anteriores
(maior valorização da atenção básica em detrimento do complexo médico-industrial,
fortalecimento do vínculo dos HUs com o SUS, convocação da 12ª CNS, etc), alguns
pontos do projeto privatista foram mantidos e, devido a popularidade do governo,
reforçados. A tese central acerca do desmantelamento do SUS continuou sendo a
focalização dos gastos, ao invés da ampliação do financiamento (a velha polêmica
problema de gestão x subfinanciamento), assim mantiveram-se as terceirizações, o
subfinanciamento e o não fortalecimento da concepção de seguridade social (o que
significa que os três componentes da seguridade social – saúde, previdência e
assistência social – continuaram fragmentados entre si). Foi também no primeiro
2. mandato que as primeiras movimentações no sentido de criação das chamadas “novas
formas de gestão” privatizantes do SUS (atuais OSs, OSCIPs, parceria público-privadas
e EBSERH) foram feitas. Ao final do primeiro mandato, a avaliação é que o projeto
privatista saiu fortalecido, apesar dos avanços na área da saúde pública e atenção básica.
SEGUNDO MANDATO DE LULA: No segundo mandato, o plano de governo
apresentado sequer mostra compromisso com a reforma sanitária, pois não menciona
eixos centrais, como controle dos planos de saúde, financiamento efetivo e
investimentos, ação intersetorial e política de gestão do trabalho. O então ministro da
Saúde, José Gomes Temporão, apesar de ter “enfrentado” questões polêmicas, como a
legalização do aborto, a restrição às propagandas de bebidas alcoólicas e a fiscalização
das farmácias, avanços tímidos foram feitos nessas áreas. Sua ação mais progressista foi
a quebra da patente do medicamento Efavirenz, feito elogiado pelas entidades de
combate à AIDS.
O ministro, entretanto, não tocou em questões centrais apontadas pelos
movimentos de reforma sanitária. Pelo contrário: ao invés de reforçar a participação
popular e democracia real, pautas históricas da reforma sanitária de 1980 (que tinha um
projeto claro de sociedade numa perspectiva de totalidade, não era apenas um
movimento pró-saúde descolado da realidade), apresenta a adoção de um novo modelo
jurídico para a saúde pública. É quando entra na agenda de debates nacionais as
Fundações Estatais de Direito Privado (fundações).
Desde então, a principal linha de polarização com o governo no âmbito da
gestão do SUS têm sido as fundações. Conhecidas como “novas formas de gestão”
privatizantes do SUS, as fundações são regidas pelo direito privado, têm seu marco na
contra-reforma do Estado de Fernando Henrique Cardoso (fortalecendo a ideia de que o
PT de fato não rompeu com o modelo de desenvolvimento privatista anterior),
contratação de pessoal por CLT, não enfatiza e até desencoraja o controle social (basta
ver o Estatuto Social da EBSERH), entre outros ataques ao ideário da Reforma
Sanitária.
Os movimentos sociais reagiram utilizando-se principalmente dos poucos
instrumentos de controle social que ainda restavam. Instrumentos estes já enfraquecidos
pelo clima de desmobilização e cooptação das antigas lideranças (antigos movimentos
que lutavam em prol da saúde pública se “venderam” ao governo, acreditando ainda que
este representava o velho projeto pelo qual foi eleito, isso é cooptação). Neste ano
(2007), o próprio Conselho Nacional de Saúde se posicionou contra a proposta das
fundações. Todas as conferências estaduais de saúde rejeitaram a proposta, assim como
na 13ª Conferência Nacional de Saúde. A despeito disso, o projeto foi implantado e
ainda hoje convivemos com essas “novas formas de gestão”. O ministro Temporão
ignorou o maior espaço deliberativo das políticas de saúde do Brasil, onde está a
democracia? Onde está o controle social?
GOVERNO DILMA: A despeito de melhoras pontuais, os dois primeiros anos do
governo Dilma têm sido não menos que catastróficos para a saúde pública e para a
3. Reforma Sanitária. Em seu discurso de posse, Dilma já afirma que irá estabelecer
parcerias com o setor privado na área da saúde, o que vai na contramão da defesa do
SUS como foi pensado nos anos 1980. Para não alongar ainda mais esta seção do texto,
listarei as principais políticas e projetos aplicados com potencial de desmantelar a saúde
pública.
A contrarreforma do Estado (personificada aqui pelas políticas privatistas,
fundações, etc), iniciada no Governo Lula foi aprofundada ainda mais no governo
Dilma. As farmácias populares (que utilizam-se de laboratórios oficiais, mas financiam
as redes privadas com desoneração de impostos e a população ainda paga parte dos
medicamentos) foram ampliadas; Implantou-se as UPAS, desviando ainda mais o foco
da ESF (fato que representa o fortalecimento do modelo hospitalocêntrico, também
combatido pela Reforma Sanitária); a implantação da EBSERH, acabando com a
autonomia das Universidades em relação aos HUs, além de perda do tripé ensino-
pesquisa-extensão e muitos outros pontos negativos (ver pequena bibliografia); o
financiamento através de desoneração de operadoras de planos de saúde privados
ao invés do fortalecimento e financiamento do SUS; e recentemente, as medidas que
inflamaram os ânimos dos estudantes de medicina do Brasil: o PROVAB e a proposta
de “importação” de médicos sem revalidação.
3. A proposta de “importação” dos médicos
No dia 6 de maio, o ministro de relações exteriores Antônio Patriota
anunciou que o governo federal estuda uma parceria Brasil-Cuba para a importação de
6000 médicos para atuarem nas áreas desassistidas. O atual ministro da saúde,
Alexandre Padilha, descarta a possibilidade de revalidação automática e contratação de
médicos de países com menos profissionais que o Brasil. A proposta preliminar é que
esses médicos recebam um registro CRM temporário, com validade de três anos,
período no qual o médico pode tentar a validação de seu diploma. Cada médico
contratado receberia uma “bolsa” no valor de R$ 8000,00.
Algumas considerações podem ser feitas. Primeiro que o sistema de saúde
cubano é referência mundial. Os médicos cubanos são reconhecidos internacionalmente
devido às missões enviadas a várias partes do mundo (quando do terremoto no Haiti,
enquanto vários países mandavam soldados – sobre os quais existem relatos de toda
sorte de abuso contra a população local, Cuba mandou médicos/as, enfermeiros/as e
outros profissionais de saúde). Isso se dá pelas relações sociais de produção da
sociedade cubana, como exposto em artigo de Asa Cristina Laurell (ver pequena
bibliografia). O próprio perfil epidemiológico de Cuba assemelha-se ao de países
desenvolvidos. Cuba, portanto, definitivamente não é o paraíso, mas tampouco é o
inferno que a mídia hegemônica faz acreditar. Uma parceria semelhante existe entre
Venezuela e Cuba (Missión Barrio Adentro) que já dura 10 anos e realizou mais de 500
milhões de atendimentos.
4. Qual o problema com a vinda de médicos cubanos, então? Como visto no
tópico anterior, e isto é de fundamental importância para o objetivo deste texto, a
importação de 6000 médicos cubanos não é uma medida pensada por uma pessoa “do
mal” que teve a ideia de provocar os médicos e médicas e estudantes de medicina por
puro capricho. É parte de um projeto pensado para a saúde como um todo. É fundado
em uma concepção de saúde e de sociedade que abrange todos os sujeitos sociais
(médicos/as, estudantes, trabalhadores/as, população carente pobre, etc), mas que tem
um objetivo claro: ao passo que ganha popularidade, com uma medida imediatista e
populista, o governo deixa de investir em soluções que a longo prazo solucionariam
a má distribuição dos médicos (60% nas grandes cidades, 42% só no estado de São
Paulo, ao passo que cidades do interior Piauí têm apenas 0,19 médico por 1000
habitantes) e da falta de estrutura da saúde em geral.
Quem foi consultado acerca dessa parceria? O Conselho Nacional de Saúde
participou da formulação dessa proposta? Quem foi consultado acerca desse número de
6000 médicos (ou se deveria de fato vir algum médico)? O CFM, FENAM, ABM ? A
DENEM foi? Novamente, onde está a democracia? Onde está o controle social?
4. A oposição
Vários CRMs e o CFM já se posicionaram sobre esse fato, entretanto aqui
quero me ater nas movimentações entre estudantes.
Diante deste novo ataque à saúde pública, os estudantes de medicina do
Brasil todo estão mobilizados de uma forma como poucas vezes aconteceu. Ao que
parece, representantes estudantes de todos os estados se reuniram em torno dessa pauta
para pensar uma manifestação que acontecerá nacionalmente no dia 25/05, com a pauta
de defesa do Revalida.
Sobre isso, algumas considerações: o Revalida é uma prova em duas etapas,
uma teórica, com oito horas de duração, e uma prática, ambas eliminativas. Meu
entendimento é de que um simples teste, de caráter nacional, nos moldes positivistas
que conhecemos, é ótimo para testar a proficiência em responder questões calmamente
em uma sala, mas insuficiente para provar a capacidade de um médico em praticar
medicina, principalmente no âmbito da atenção primária. É extremamente necessário
que os médicos estrangeiros que venham para o Brasil, ou brasileiros que foram cursar
medicina no exterior sejam avaliados em sua formação médica antes de praticarem
medicina no Brasil. Entretanto, essa avaliação deve contar com a participação de todos
os segmentos da sociedade interessados. É a mesma questão de legitimidade: quem
participou da elaboração das provas do Revalida? É elaborada pelo mesmo Ministério
da Saúde que ignorou a maior deliberação da 13ª Conferência? Mas, obviamente, não
me coloco contra todo o movimento criado em torno da pauta, apenas que o exercício da
crítica deve ser feito sempre.
5. A DENEM. A DENEM é a Diretoria Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina.
É a entidade que representa os estudantes de medicina do Brasil, fundada em 1986, em
Fortaleza, com estudantes de medicina que se organizavam politicamente mesmo na
época da ditadura militar. Em sua história recente, a DENEM tem tido importância
central em tocar as pautas específicas do movimento estudantil de Medicina, como
campanhas pela regulamentação do ensino superior e contra o aumento indiscriminado
das mensalidades, manifestações em defesa dos HUs, manifestações contra o exame de
ordem (acerca da argumentação desse posicionamento, procurem se informar, há várias
notas e manifestos lançados), além de apoio a várias movimentações locais de
estudantes de medicina. A executiva, portanto, cumpre papel central de instrumento
legítimo para a mobilização e organização de estudantes. Seus posicionamentos são
tirados em espaços de deliberação abertos e encontros, como o ECEM, EREM’s,
COBREM, ROEx, etc. Esse é o momento ideal para o fortalecimento da executiva e
aproximação de estudantes que, infelizmente, sequer ouviram falar da DENEM. Por
isso, é importante que os estudantes mobilizados ocupem também sua executiva,
sua entidade representativa nacional, e tentem participar do espaço deliberativo
mais próximo, a II ROEx (reunião de órgãos executivos), enviando ao menos um
representante por CA (após a devida discussão a ser feita no próprio centro
acadêmico). O encontro acontecerá em Brasília, entre os dias 17 e 19 de maio.
5. Considerações finais
Uma mobilização dos estudantes de medicina do porte como está
acontecendo é definitivamente um fato importante na história, algo bonito de ver. A
participação popular e ação direta (principalmente em oposição ao governo), por muito
tempo nos negada, não será dada de presente. Entretanto, é preciso que pensemos e
formulemos a cada momento sobre nossas ações, escutando a todos os posicionamentos
e buscando sempre a síntese entre eles. Como diz Paulo Freire, “A teoria sem a prática
vira 'verbalismo', assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se
une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade”.
Nunca perdendo de vista, claro, que a defesa é sempre de um SUS público, gratuito,
estatal, de qualidade, socialmente referenciado e democrático.
É preciso também uma visão de totalidade contra a fragmentação a que
estamos sujeitos nos tempos modernos. Isso adquire importância fundamental aqui,
porque sem isso, corremos o risco de estarmos lutando simplesmente pela manutenção
do status quo. Se for assim, caso tenhamos êxito em nossa reivindicação, como vamos
explicar pras pessoas que sofrem com falta de médicos que fomos nós que impedimos a
vinda dos médicos que atenderia nas áreas desassistidas? E se falharmos e nossos
temores se provarem verdade, como explicaremos a essas mesmas pessoas que a
epidemia de iatrogenias é devido a “importação” de médicos de má qualidade e nós não
fizemos nada a respeito?
6. Em nossas faixas, bandeiras e palavras de ordem, devemos sim, defender o
Revalida (ou ainda melhor, uma avaliação de qualidade e também socialmente
referenciada). Mas essas bandeiras, faixas e palavras de ordem devem também clamar
pela defesa da saúde pública! Contra a privatização do SUS! Pelo financiamento justo e
adequado do SUS! Pela valorização das profissões de saúde! Pelo aparelhamento das
unidades e postos de saúde do interior! Pelos 10% do PIB para a saúde (pública, e não
seguindo o modelo de saúde vigente nessa conjuntura)! Enfim, devemos impedir a
vinda indicriminada de médicos, mas temos que reivindicar, exigir, conquistar, uma
alternativa para pôr no lugar!
Vamos discutir em nossos Centros Acadêmicos
Vamos discutir na DENEM
Vamos ao ROEx
E NOS VEMOS NA MANIFESTAÇÃO NACIONAL UNIFICADA, DIA 25 DE
MAIO!
HÁ BRAÇOS, MENTES E CORAÇÕES, TODOS PELA SAÚDE PÚBLICA DE
QUALIDADE!