1. votar
Texto de Raquel de Queiroz
Revista O Cruzeiro, 11 de janeiro de 1947
2. Não sei se vocês têm meditado como
devem no funcionamento do complexo
maquinismo político que se chama govêrno
democrático, ou govêrno do povo. Em
política a gente se desabitua de tomar as
palavras no seu sentido imediato.
3. No entanto, talvez não exista, mais do que
esta, expressão nenhuma nas línguas
vivas que deva ser tomada no seu sentido
mais literal: govêrno do povo.
Porque, numa democracia, o ato de votar
representa o ato de FAZER O GOVÊRNO.
4. Pelo voto não se serve a um amigo, não se
combate um inimigo, não se presta ato de
obediência a um chefe, não se satisfaz uma
simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira
definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo
de indivíduos que nos vão governar por
determinado prazo de tempo.
5. Escolhem-se pelo voto aquêles que vão
modificar as leis velhas e fazer leis novas -
e quão profundamente nos interessa essa
manufatura de leis! A lei nos pode dar e
nos pode tirar tudo, até o ar que se
respira e a luz que nos alumia, até os sete
palmos de terra da derradeira moradia.
6. Escolhemos igualmente pelo voto aquêles que
nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aquêles
que irão estipular a quantidade dêsses
impostos. Vejam como é grave a escolha dêsses
“cobradores”. Uma vez lá em cima podem nos
arrastar à penúria, nos chupar a última gôta de
sangue do corpo, nos arrancar o último vintém
do bôlso.
7. E, por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se
não só aquêles que vão receber, guardar e gerir
a fazenda pública, mas também se escolhem
aquêles que vão “fabricar” o dinheiro. Esta é
uma das missões mais delicadas que os
votantes confiam aos seus escolhidos.
8. Pois, se a função emissora cai em mãos
desonestas, é o mesmo que ficar o país
entregue a uma quadrilha de falsários. Êles
desandam a emitir sem conta nem limite, o
dinheiro se multiplica tanto que vira papel
sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale
mais zero.
9. Não preciso explicar muito êste
capítulo, já que nós ainda nadamos
em plena inflação e sabemos à custa
da nossa fome o que é ter moedeiros
falsos no poder.
10. Escolhem-se nas eleições aquêles que têm
direito de demitir e nomear funcionários, e
presidir a existência de todo o organismo
burocrático.
E, circunstância mais grave e digna de todo o
interêsse: dá-se aos representantes do povo
que exercem o poder executivo o comando de
tôdas as fôrças armadas: o exército, a
marinha, a aviação, as polícias.
11. E assim, amigos, quando vocês forem
levianamente levar um voto para o Sr.
Fulaninho que lhes fêz um favor, ou para o Sr.
Sicrano que tem tanta vontade de ser
governador, coitadinho, ou para Beltrano que é
tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma
carona e depois solicitou o seu sufrágio -
lembrem-se de que não vão proporcionar a
êsses sujeitos um simples emprêgo bem
remunerado.
12. Vão lhes entregar um poder enorme e
temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar
soldados para êles comandarem - e soldados
são homens cuja principal virtude é a cega
obediência às ordens dos chefes que lhe dá o
povo. Votando, fazemos dos votados nossos
representantes legítimos, passando-lhes
procuração para agirem em nosso lugar, como
se nós próprios fôssem.
13. Entregamos a êsses homens
tanques, metralhadoras, canhões, granad
as, aviões, submarinos, navios de guerra -
e a flor da nossa mocidade, a êles prêsa
por um juramento de fidelidade. E tudo
isso pode se virar contra nós e nos
destruir, como o monstro Frankenstein se
virou contra o seu amo e criador.
14. Votem, irmãos, votem. Mas pensem bem
antes. Votar não é assunto indiferente, é
questão pessoal, e quanto! Escolham com
calma, pesem e meçam os candidatos,
com muito mais paciência e desconfiança
do que se estivessem escolhendo uma
noiva.
15. Porque, afinal, a mulher quando é ruim, briga-
se com ela, devolve-se ao pai, pede-se
desquite. E o govêrno, quando é ruim, êle é
quem briga conosco, êle é que nos põe na
rua, tira o último pedaço de pão da bôca dos
nossos filhos e nos faz aprodecer na cadeia. E
quando a gente não se conforma, nos intitula
de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e fogo.
16. E agora um conselho final, que pode parecer um
mau conselho, mas no fundo é muito honesto.
Meu amigo e leitor, se você estiver
comprometido a votar com alguém, se sofrer
pressão de algum poderoso para sufragar êste
ou aquêle candidato, não se preocupe. Não se
prenda infantilmente a uma promessa arrancada
à sua pobreza, à sua dependência ou à sua
timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.
17. Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem
mêdo de dizer não, diga sim. O crime não é
seu, mas de quem tenta violar a sua livre
escolha. Se, do lado de fora da seção
eleitoral, você depende e tem mêdo, não se
esqueça de que DENTRO DA CABINE
INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM LIVRE.
Falte com a palavra dada à fôrça, e escute
apenas a sua consciência. Palavras o vento
leva, mas a consciência não muda
nunca, acompanha a gente até o inferno”.