Numero Quatro Katyussia Freitas e Edson Soares Martins
1. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007
NÚMERO QUATRO: AQUI JAZ O DISCURSO DISSIMULADO
DE BELAZARTE
Katyússia Freitas Ferreira
Universidade Regional do Cariri – URCA / PIBIC-CNq (AG) –
Edson Martins
Roberto Schwarz realiza um estudo sobre os três primeiros
romances de Machado de Assis publicado sob o título de Ao
vencedor as batatas. Ali ele analisa como o paternalismo está
representado em A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia. Baseados
nesse estudo é que enveredamos em uma tentativa de observar
como o narrador machadiano se posiciona em face a esta condição
a que estão submetidas as personagens.
No romance A mão e a luva, observamos Guiomar,
personagem que acaba sendo “adotada” por uma baronesa, e entre
as quais gera-se um vínculo de apadrinhamento. Guiomar é
apresentada pelo narrador como uma figura em quem está impressa
uma certa dubiedade, pois ao passo em que a personagem é a típica
heroína, está também muito clara a supervalorização do luxo
burguês. Ora, o caráter de Guiomar passa a ser duvidoso: ela serve
por afeto ou “utiliza-se da madrinha como trampolim para a
fortuna?” (SCHWARZ, 2000, p. 97). Ambas as sugestões estão
corretas, pois nesse romance elas não são necessariamente opostas,
ao contrário, se complementam. A troca de favores dentro dessa
ordem não é apresentada como degradante,e encontrar no
apadrinhamento uma forma de ascensão social, tampouco. Roberto
Schwarz contextualiza esse tipo de relação e vem afirmar sobre
que esse tipo de relação entre a madrinha e a agregada é fruto do
contexto em que o produto europeu era muito valorizado e não
afetava os traços do caráter. Na própria titulação do romance
podemos ver inferida essa questão da complementaridade entre as
classes opostas: “A mão e A luva”, um entrelaçamento de favores,
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de classes, que caminha em equilíbrio; dessa forma o paternalismo
ao passo que não compromete a dignidade dos subordinados,
também “do ponto de vista de nossas elites não era possível pedir
mais: o paternalismo é sutil, complexo, flexível, não é atrasado, as
novas formas de propriedade não são imorais e as duas esferas
não se chocam, antes se completam”. (SCHWARZ, 2000, p.105)
Pensando nessa forma de representação do paternalismo –
tal como ele é trabalhado nessa obra machadiana – como resultado
dessa ideologia que favorece o produto e o luxo burguês, somos
levados também a pensar no narrador construído dentro desse
contexto. O narrador, aqui, não almeja, propriamente, questionar
ou levar o leitor a questionar o caráter dos personagens, como pode
vir a parecer. Segundo Schwarz, o próprio narrador transita nesse
contexto, assim como Guiomar. Ele não pretende problematizar a
personagem nesse sentido, pois para ele esta relação, favorecendo
as duas esferas, a do protetor e a do agregado, se torna natural.
Em Helena, a questão do paternalismo começa a ser
problematizada. Helena passa a morar com a família do falecido
pai; é uma moça bem prendada e que possui muitos predicados,
que entretanto não são o bastante para que lhe recebam na sua nova
família sem receio e cautela. O esforço de Helena se concentra em
não desapontar os familiares. Como os favores que lhes eram
oferecidos lhe tiravam a dignidade, por parecerem, aos seus olhos,
ligados à questões estritamente materiais, restava-lhe a tentativa de
não se tornar indigna através da sensação de “não dever”, que
podia resultar da tentativa de provar a todo momento sua fidelidade
e sua servidão à família, condição esta a que a personagem se
submetia “de bom grado e cristamente”. (SCHWARZ, 2000,
p.124)
Sobre a posição do narrador, a sua realização de uma
análise, sob essa perspectiva trabalhada em Ao vencedor as
batatas, só nos abre margem a perceber que, por mais que
reconheça a renúncia material que Helena faz em nome da
manutenção de sua dignidade, e reconheça também toda a gratidão
cristã que acometia Helena, todo o seu esforço para ser aceita e não
desapontar, mesmo assim, o narrador por vezes imprime uma certa
astúcia na personagem de Helena. Astúcia essa que, mesmo se
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demonstrando na empreita da personagem em fazer tudo de forma
a satisfazer os outros, é ainda assim o elemento pelo qual ela atinge
o seu propósito de ser aceita pela família, tendo seu bom
comportamento reconhecido. O comportamento de Helena
manipula os membros da família em favor de um propósito
anteriormente traçado pela personagem.
Já no último romance antes do que conhecemos como
segunda fase da obra machadiana, Iaiá Garcia, já se observa a
sujeição ao paternalismo, pelo menos por parte dos principais
personagens da obra, como completamente degradante, o que faz
com que a busca daqueles que têm dignidade se dê na direção de
sentirem-se livres de qualquer dívida de favores. A
problematização da ordem de favores se encontra bem mais
amadurecida nesta obra, visto que, dentre outras coisas, se liberta
da explanação apenas dentro do contexto familiar e se prolonga
para uma configuração dentro da relações dos indivíduos que
permeiam o universo social como um todo. O que se teme com
relação a ser subordinado a outro indivíduo é a formulação de uma
ilusão de que as relações estão baseadas em laços afetivos e não
materiais, enquanto se cria também a ilusão de assemelhar-se aos
indivíduos da classe que domina. Claro que estamos trabalhando
aqui, a obra e o ensaio de Schwarz de forma consideravelmente
simplificada, visto que a problematização do sistema paternalista
nessa obra já tem bastante semelhança com a forma minuciosa com
que Machado de Assis observa os mecanismos da ordem social
brasileira, minúcia esta que mais tarde consagraria Machado de
Assis como um ícone no cenário da literatura mundial, mas
julgamos suficiente para o nosso propósito as informações que
colocamos em relevo.
Salientamos que, em Iaiá Garcia, apresenta-se um
paternalismo diferente daquele que se configura nos dois romances
anteriores, sobre os quais já nos debruçamos. Aqui encontra-se de
forma descarada a arbitrariedade com que os superiores agem com
os seus subordinados. As atitudes dos superiores e decisões não
obedecem qualquer lógica, a não ser a lógica da própria vontade e
vaidade da classe dominante. Justamente por causa dessa
arbitrariedade, é que se gera uma característica muito intrínseca
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dessa obra: a descontinuidade. Essa descontinuidade está
trabalhada tanto no destino das personagens, quanto na divisão do
livro em praticamente duas partes: Antes da viagem de Jorge à
Guerra do Paraguai e depois da sua chegada, viagem que só
acontece por mando de sua mãe, Valéria, que é a personagem que
parece influenciar no percurso de todos os outros personagens. O
fato é que essa arbitrariedade parece contaminar o narrador, que
passa a guiar o leitor ao seu bel prazer, ajudando também a
acentuar esse quadro de descontinuidade, e o que o narrador parece
pretender é a criação de uma atmosfera de tensão. Assim,
ressaltando, através do modo descontínuo de narrar, a inserção dos
personagens de classe pobre em uma espécie de contexto de
castração, resultado da ação arbitrária de quem ocupa uma posição
superior, no caso desse romance, Valéria, movida pelo capricho e
pala vaidade, unicamente, consegue ditar o ritmo e o resultado do
percurso dos outros personagens.
Observamos, assim, que problematizado ou não, nesses
três romances machadianos, o narrador observa o paternalismo e o
escancara. Consegue hierarquizar os personagens e traçar uma
linha limítrofe que delimita onde começa e onde termina a
possibilidade de ações de uma classe e de outra. Capta no universo
diegético os confortos e desconfortos que afetam cada uma das
duas esferas – a do patriarca e a do subordinado – quando postas
em relação uma com a outra, sem entretanto forçar o leitor a se
posicionar a favor ou contra um determinado grupo social. O
narrador consegue transitar entre as diferentes camadas, tanto das
personagens como seres individuais, como da própria organização
social, entretanto transmitindo uma certa impessoalidade. O
narrador heterodiegético explana os acontecimentos com
autoridade e onisciência, porém abrindo margem a
questionamentos que possam vir a inquietar o leitor.
Em Túmulo, túmulo, túmulo, conto de Mário de Andrade
publicado no livro Os contos de Belazarte, através da construção
de um narrador homodiegético, o paternalismo e a relação de
propriedade que se estabelece entre as esferas do superior e do
subordinado, nos é apresentada de uma maneira inusitada pelo
narrador (ou melhor, nos é omitida de uma maneira inusitada pelo
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narrador). A posição hierárquica ocupada pelo “proprietário” quer-
se parecer aos olhos do leitor, alternada entre as personagens,
resultado da artimanha de um narrador cujo propósito está, de
antemão, bem definido. Vejamos:
Sabemos que do narrador e do ponto de vista adotado por
este – do seu ângulo de visão, por assim dizer – acerca dos
episódios de uma narrativa, depende a compreensão e
profundidade que o leitor atinge no se refere à contemplação da
narração e dos seus elementos. Assim sendo, a figura do narrador
possui o poder de mostrar ou omitir, dissimular, moderar a
percepção do leitor, e consequentemente, dispõe de uma
ferramenta muito eficaz no processo de alienação e manipulação: a
voz do discurso.
Este poder manipulatório, entretanto, pode variar em força,
tanto de acordo com a espécie de narrador com o qual lidamos,
quanto com o domínio do próprio autor na construção da voz
narrativa agente na sua ficção. Para tanto, basta que observemos a
influência que um narrador homodiegético exerce no leitor,
sutilmente ou não, levando-o a tomadas de partido por um ou outro
personagem, e comparar-mos com a abertura a questionamentos
para os quais o narrador heterodiegético ainda abre margem. Esse
evento se dá, talvez porque o primeiro transmita ao narratário a
impressão de que, por estar mais próximo dos acontecimentos e
dos personagens, e de ser ele próprio um personagem capaz de
agir, transformar, concentra visualização e interpretação mais
amplas acerca das ações e dos agentes, ou seja, está apto a relatar
com mais profundidade e precisão o que de fato aconteceu. O
segundo, porém, por ocupar uma posição mais distante, por não
possuir qualquer vínculo aproximativo com os episódios e com os
personagens, confere ao leitor um espaço para questionar, para
duvidar. Enquanto o homodiegético vivencia, o heterodiegético é
apenas um mero observador. Beth Brait, em um estudo sobre as
personagens, realiza um recorte no qual explicita esse papel do
narrador: “Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possíveis
de caracterização de personagens esbarra necessariamente na
questão do narrador, esta instância narrativa que vai conduzindo
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o leitor por um mundo que parece estar se criando à sua frente”.
(BRAIT, 1999, p.52-53)
Influencia ainda nesse jogo, a instância narrativa. Com
isso, uma narrativa homodiegética centrada no próprio narrador,
que, passando a narrar episódios da sua própria vida, adotando a
posição de protagonista (tornando-se autodiegético), através de um
ângulo retrospectivo, desta forma, capacitado a relembrar o
passado e predizer o futuro, demonstrando exímio conhecimento
acerca dos fatos, consegue atingir um domínio tão complexo sobre
as idéias do leitor, que não se torna tarefa difícil condicioná-lo a
aceitar o que lhe seja dito, sem que este sinta a necessidade de
traçar um caminho reflexivo, que venha a lhe permitir uma
percepção mais crítica acerca da veracidade ou completude do que
lhe chega através da voz narrativa. Yves Reuter afirma acerca
desse tipo de construção narrativa: “Esta combinação é bastante
poderosa, mesmo se a ubiqüidade e o conhecimento interno das
outras personagens estejam ausentes”. (REUTER, 1996, p.77).
Outra instância narrativa que também pode ser muito eficaz nesse
processo manipulatório é a narrativa heterodiegética centrada no
narrador, sobre a qual, Reuter vem ainda dizer:
Ela abre o máximo de possibilidades. O
narrador pode controlar todo o saber ( ele
sabe mais que as personagens), sem
limitações de profundidade externa ou
interna, em todos os lugares e em todos os
tempos, o que lhe permite flash-backs e
antecipações certas. Fala-se dele como um
narrador onisciente, na medida em que sua
visão pode ser ilimitada e que ela não está
ligada à focalização através desta ou daquela
personagem. Ele certamente pode assumir
todas as funções do narrador. Esta
combinação foi muito utilizada na tradição
clássica e realizada pelos autores do
romance-folhetim. Ela pode ser empregada
de maneira paródica para ressaltar poder
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7. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007
absoluto do narrador. (REUTER, 1996,
p.75-76)
Além dessa instâncias narrativas propriamente
ditas, a própria “figura” de quem nos fala, tal como ela é descrita
no próprio corpo textual ou captada através de pistas que a ficção
nos oferece, é de mister importância para nossa apreensão do
mundo fictício da narrativa, e desta forma, participa também
ativamente no exercício de influência sobre o leitor, isso se deve à
questões relacionadas à formação cultural na qual está inserido o
sistema literário e à diferença entre classes, que evidencia as idéias
de um determinado grupo em detrimento das idéias das classes
ditas subalternizadas , o que, no caso da literatura, encontramos as
manifestações mais evidentes desse fenômeno na forma de como
se estrutura o discurso do narrador. Como contribuição nessa
perspectiva de análise encontramos alguns artigos do Roberto
Schwarz, entre os quais destacamos “A Poesia envenenada de Dom
Casmurro”, que embora direcionado à análise da obra machadiana,
nos serve também como modelo direcionador para a realização dos
estudos acerca do narrador Belazarte na obra Os Contos de
Belazarte1, de Mário de Andrade, na tentativa de estabelecer essa
relação entre autor-narrador-discurso-leitor inseridos em um
sistema literário, produto das manifestações sociais.
No conto Túmulo, túmulo, túmulo temos duas instâncias
narrativas. Na primeira, o narrador é homodiegético; entretanto,
não ocupa a posição de protagonista. Aliás, trata-se de uma
passagem muito curta, na qual enfatiza que contará o lhe já lhe fora
relatado por outro (Belazarte). Mário de Andrade reivindica essa
primeira instância narrativa, na qual sua voz inicia e termina da
seguinte forma: “Belazarte me contou:”. A segunda instância
estende-se a partir daí até o encerramento do conto, é a transcrição
feita por Mário, do que lhe foi dito por são postas em relevo pelo
nosso próprio narrador, construída através de um discurso direto,
1
As citações referentes ao livro serão indicadas no próprio corpo do
texto, pela indicação da página, entre parênteses. Ex: (p. 87).
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acerca de um episódio que aconteceu consigo, daí apontarmos o
próprio Belazarte como a voz narrativa (e não mais o Mário de
Andrade) e conferirmos a este, ainda, a posição autodiegética com
narrativa centrada em si. A opção que o primeiro narrador faz em
transmitir o que foi dito, tal como foi dito, comprovado pelo uso do
discurso direto, lhe exime de qualquer responsabilidade e a
transpõe para o segundo narrador, como se dissesse: “vou contar
apenas o que ele disse, da forma como ele disse. A
responsabilidade pela veracidade ou não com relação aos episódios
e os personagens é de inteira responsabilidade de quem assim me
falou!”; e começa o discurso de Belazarte.
Durante todo o conto, o narrador-personagem se empenha
em cair nas graças do leitor, de conquistar sua confiança através da
imagem que traça de si mesmo. No primeiro parágrafo, define-se
como um homem enérgico, paciente, cheio de força de vontade e
coragem na busca pela conquista de seus objetivos, mas ao mesmo
tempo admite que algumas vezes, mesmo todos esses requisitos
não são suficientes para lidar com uma determinada situação;
atribuindo ao destino as desgraças que acontecem, iguala-se ao
narratário em suas limitações e transmite-lhe a idéia de que sua
humildade ultrapassa o enaltecimento que faz sobre si, quando
trata do seu poder de acreditar e buscar sempre o melhor: “Eu
sempre falo que a gente tem que ser enérgico, nunca desanimar,
que se entregar é covardia, porém, quando a coisa desanda
mesmo, não tem vontade não tem paciência que faça desgraça
parar”. (p.87)
No segundo parágrafo, põe em evidencia a sua imagem de
homem trabalhador, insinuando que, não se contentando com o
ócio que um bom emprego lhe era capaz de proporcionar - talvez
por tratar-se de um horário de trabalho reduzido - arranjava sempre
outros serviços para fazer: “Um tempo andei mais endinheirado,
com emprego bom e inda por cima arranjando sempre uns biscates
por aí”. (p.87)
Depois envereda por um enaltecimento contínuo da etnia
negra tão marginalizada no contexto da narrativa, e critica os
brancos que não prezam pelos princípios éticos do bom
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9. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007
comportamento, quando apertando a mão de Ellis, um negro que
acabara de conhecer, convida-o para ser o seu criado e transmite o
seguinte pensamento ao leitor: “A gente se punha matutando que
havia de ser bom passar a mão naquela cor humilde, mão que
andou todo o dia apertando passe bem de muito branco emproado
e filho da mãe”. (p.88-89)
E a partir de então descreve o carinho que tinha por Ellis, a
relação que se formou entre os dois e as caridades que fizera por
este até o último dia da sua vida.
Ora, é difícil para o leitor questionar a integridade de uma
figura desse tipo! Um homem íntegro, humilde, trabalhador, que vê
na figura de um negro, mesmo com todo o preconceito vigente na
estrutura social brasileira, a figura de um amigo, e que ainda tanto
se doa ao exercício da generosidade...
O discurso produzido por Belazarte, impede que o
narratário verifique neste o modelo do patriarca, que constata o seu
poder sobre os indivíduos, dissimula o seu caráter autoritário
inflado pela vaidade e subalterniza o outro (que passa a ser sentido
como sua propriedade), que assim o permite por conseqüência de
um processo alienatório gerado pelo discurso cordial direcionado
do subalternizador ao subalternizado.
Porém uma análise crítica um tanto mais cuidadosa, que
pode se desenvolver a partir do momento em que o leitor fuja ao
deslumbre das falas do nosso “bom senhor”, nos permite verificar
os traços dessa vaidade exacerbada de Belazarte logo nas primeiras
linhas do conto: que ele era um homem de certo prestígio por ser
branco e por possuir um emprego, isso é indiscutível, mas por
conta disso, partir para uma tentativa de imitação do modelo
burguês europeu ao contratar um mordomo, “como no cinema” não
parece ser um costume dos indivíduos que moram em meio ao
contexto miserável no qual Belazarte estava inserido. Através da
própria criação do nome “Belazarte”, o autor visa remeter à idéia
de uma suposta erudição, certamente discutível, que serviria como
mais um ponto no qual identificamos a inclinação do nosso
narrador para a auto-inserção no universo burguês.
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Contratando Ellis como seu mordomo, o narrador investe
na tentativa de implantar no leitor dúvidas sobre até que ponto
Ellis era merecedor dos cuidados que o narrador lhe concedia.
Nada além da mais pura bondade do narrador era motivo para agir
com o criado da maneira como ele agia, pois o negro, de acordo
com o narrador, apesar de boa pessoa, era preguiçoso como fica
claro na fala: “Moleza chegou ali, parou” (p.89) e não queria mais
parar em casa “E depois deu de sair muito, não tinha noite que
ficasse em casa”. Mais tarde, quando já muito doente, Ellis é o
desocupado que se aproveita da boa vontade do patrão para
conseguir regalias.
Valeria ao leitor observar a busca constante em que
Belazarte envereda pela dominação frente à subalternização de
Ellis, a qual se torna mais impiedosa tanto mais ele constata que o
criado é seu dependente. Ellis vive uma constante busca pela
legitimação do patrão no que se refere aos seus projetos
individuais, os quais são anunciados com o cuidado e a sutileza
com que se busca o mínimo de individualização no sistema
patriarcal. A passagem em que Ellis confessa ao seu superior,
hesitante, sua pretensão de ser chofer, visando o casamento que
marcara com Dora, e mesmo aquela que trata do momento em que
tem que deixar a casa, ilustra essa individualização sempre
limitada pela figura paternal: “Mas... seu Belazarte... eu quero sair
por bem da casa do senhor... até a Dora me falou que... me falou
que decerto o senhor aceitava ser o nosso padrinho”. (p.93)
Belazarte quer ainda o direito de nomear o filho de Ellis,
mesmo ignorando o nome que a mãe do menino, então falecida,
propusera. Quer que se chame Benedito – nome abençoado de
todos os escravos sinceros – depois de muita discussão sobre a
vontade da defunta, a mãe de Ellis opina e cede apenas em parte ao
gosto do senhor.
O patrão não vê no seu criado a figura de um indivíduo, é
posse sua, objeto seu, devedor de gratidão. O criado, ante o
deslumbre provocado pela ilusão de ser amigo daquele –
conseqüência do discurso do nosso narrador – perde a capacidade
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crítico-reflexiva e gradativamente é imerso na posição
subalternizada imposta pelo patrão.
Um dos pontos mais interessantes de se perceber é a forma
como o discurso do narrador sofre gradativamente uma
contradição, talvez obscura aos olhos leigos, mas indispensável ao
raciocínio que traçamos neste artigo. Belazarte se diz muito amigo
de Ellis e define-se dependente da presença do criado, sofre de
ciúmes quando sabe do casamento marcado, chega a ser mesmo
duro com Ellis. Amizade ou pura vaidade, quando consideramos:
“Meio que me despeitava também, isso do Ellis gostar de mais
outra pessoa que do patrão” (p.92); e ainda apadrinhando o
casamento “Cheguei do casamento com uma felicidade artística
dentro de mim” (p.94); e principalmente, destacando a seguinte
confissão: “Ellis desapareceu uns meses e me esqueci dele. A vida
é tão bondosa que nunca senti falta de ninguém” (p.94).
Mais tarde, essa falha na construção do seu discurso se
mostra mais relevante, e por vezes, deixa escapar um tanto do seu
egocentrismo nas linhas textuais. Essa decadência começa a ser
observada na passagem em que o narrador fala sobre a noiva do
amigo pela primeira vez, desejando-a e descrevendo-a por meio da
utilização de um linguajar muito erótico e um tanto
preconceituoso:
Que gostosura a Dora! Era uma pretarana de
cabelo acolchoado e corpo de potranquinha
independente. Tinha um jeito de não querer,
muito fiteiro, um dengue meio fatigado
oscilando na brisa, tinha uma fineza de S
espichado, que fazia ela parecer maior do
que era, uma graça flexível... nem sei bem o
que é que o corpo dela tinha, só sei que
espantava tanto o desejo da gente, que
desejo ficava de boca aberta, extasiado, sem
gesto, deixando respeitosamente ela passar
por entre toda a Cristandade... Dora linda!.
(p. 94)
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Depois, a partir da morte de Dora, enumera: “número um”
(p. 96) fazendo referência às sucessivas mortes que ocorrem a
partir de então naquela família, que serão, com a mesma frieza,
também enumeradas, aliás, é justamente na contagem das três
mortes que reside a origem da titulação do conto “túmulo, túmulo,
túmulo”. Ressaltamos aqui ainda a opinião de Belazarte ao tentar
descrever o que Ellis sentira com a morte da sua mulher. Para ele,
o criado não sentiria falta de Dora, da pessoa que ela era, do
companheirismo, da amizade; isso deveria ser buscado e
encontrado apenas no nosso narrador que “sabia das coisas”
(p.98); o que seria difícil a partir de então era a lida com os
desejos, a não constância do ato sexual, e nada além, como se o
amigo fosse incapaz de desprender sentimentos e se igualasse aos
animais, nos quais tudo é apenas instinto.
Poucos parágrafos depois, mais uma vez: “número dois”,
desta vez ao tratar da morte do filho de Ellis e Dora, o qual
apadrinhou, valendo-nos considerar ainda o episódio do próprio
batizado, momento no qual as diferenças entre o patrão e o
empregado, o superior e o subalternizado, são postas em relevo
pelo nosso próprio narrador; e o homem de classe média (à qual
Belazarte parece julgar pertencer), por mais se assemelhar ao
modelo burguês, esteja à vista para ser imitado:
Não paga a pena a gente imaginar que todos
somos iguais, besteira! Mamãe, por causa da
muita religião, imagina que somos. Inventou
de convidar Ellis, mãe e “tutti quanti” para
comer um doce em nossa casa, vieram. Foi
um ridículo oprimente para nós os superiores,
e deprimente para eles os desinfelizes.
Estavam esquerdos, cheios de mãos, não
sabendo pegar na xícara. E eu então!
Qualquer gesto que a gente faz, pegar no pão,
na bolacha, pronto: já é diferente por classe
da maneira, igualzinha muitas vezes, com
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que pobre pega nessas coisas. Parece lição.
(p.99).
Nosso narrador ainda assume que as caridades prestadas à
família de Ellis já não eram mais obras suas, e sim da sua mãe,
entretanto, para não deixar escapar de si a admiração do leitor
ressalta: “mantimento, remédios, roupa, tudo minha mãe é que
providenciava para ele, “conforme desejo meu” ” (p.100, grifo
nosso).
O ápice da contradição entre a imagem que Belazarte traça
de si mesmo e aquela que pudemos constatar aqui, e também da
condição submissa que se dá entre o agregado e o patriarca, pode
ser observado nos últimos episódios do conto, que culmina na
morte de Ellis. Diante do seu inevitável falecimento, a
superioridade do outro é demonstrada pelo descaso com que atua,
enquanto a dependência do doente em relação ao seu “amigo” é
ressaltada pela sua insistência em vê-lo, descaso este que é
ilustrado pelas palavras do nosso narrador: “Da minha parte era
tudo agora gestos mecânicos de protetor, meu Deus! [...] Ellis creio
que não, mas eu á fazia muito que estava acostumado a sentir Ellis
morto [...]. No que se agarraria aquele morto em férias?” (p.100-
101); e ainda na sua vaidade que não deixa de ser manifestada nem
mesmo diante do “amigo” morto: “Ellis me obedecia ainda com
esse olhar. Fosse por amizade, fosse por servilismo, obedeceu”
(p.104); “ Pesei a mão no corpo dele pra que me sentisse bem. Ao
menos assim, Ellis ficava seguro de que tinha ao pé dele o amigo
que sabia as coisas. Então não o deixaria sofrer. Porque sabia as
coisas...” (p.104). E mais, a mesma frieza imposta na já tão
conhecida enumeração: “número três” (p. 104).
Nosso conto, portanto, encontra-se permeado por uma
cruel dramaticidade, um contexto de subalternização impiedosa,
entretanto, dissimulado e escondido nas palavras destramente
articuladas com o propósito manipulatório e alienador, de um
homem branco, trabalhador, generoso, apenas um pouco cansado
de um negro empregado aproveitador, mas mesmo assim
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João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
14. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007
considerado como amigo e ao qual erroneamente costumamos
conferir o caráter santificado, acima de qualquer suspeita, até
porque a mesma não encontra espaço para se manifestar.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Mário de. (1973). Os contos de Belazarte. São Paulo:
Livraria Martins.
BRAIT, Beth. (1999). A personagem. 7 ed. São Paulo: Ática.
REUTER, Yves. (1996). Introdução à análise do Romance. São
Paulo: Martins Fontes.
SCHWARZ, Roberto. (s/d). A poesia envenenada de Dom
Casmurro. In:______. Surgimento da narrativa moderna. São
Paulo: Livraria Martins.
SCHWARZ, Roberto. (2000). Ao Vencedor as batatas. São Paulo:
Duas Cidades.
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João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0