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Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007



NÚMERO QUATRO: AQUI JAZ O DISCURSO DISSIMULADO
                DE BELAZARTE




                                                     Katyússia Freitas Ferreira
     Universidade Regional do Cariri – URCA / PIBIC-CNq (AG) –
                                                  Edson Martins


        Roberto Schwarz realiza um estudo sobre os três primeiros
romances de Machado de Assis publicado sob o título de Ao
vencedor as batatas. Ali ele analisa como o paternalismo está
representado em A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia. Baseados
nesse estudo é que enveredamos em uma tentativa de observar
como o narrador machadiano se posiciona em face a esta condição
a que estão submetidas as personagens.
        No romance A mão e a luva, observamos Guiomar,
personagem que acaba sendo “adotada” por uma baronesa, e entre
as quais gera-se um vínculo de apadrinhamento. Guiomar é
apresentada pelo narrador como uma figura em quem está impressa
uma certa dubiedade, pois ao passo em que a personagem é a típica
heroína, está também muito clara a supervalorização do luxo
burguês. Ora, o caráter de Guiomar passa a ser duvidoso: ela serve
por afeto ou “utiliza-se da madrinha como trampolim para a
fortuna?” (SCHWARZ, 2000, p. 97). Ambas as sugestões estão
corretas, pois nesse romance elas não são necessariamente opostas,
ao contrário, se complementam. A troca de favores dentro dessa
ordem não é apresentada como degradante,e encontrar no
apadrinhamento uma forma de ascensão social, tampouco. Roberto
Schwarz contextualiza esse tipo de relação e vem afirmar sobre
que esse tipo de relação entre a madrinha e a agregada é fruto do
contexto em que o produto europeu era muito valorizado e não
afetava os traços do caráter. Na própria titulação do romance
podemos ver inferida essa questão da complementaridade entre as
classes opostas: “A mão e A luva”, um entrelaçamento de favores,

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João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
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de classes, que caminha em equilíbrio; dessa forma o paternalismo
ao passo que não compromete a dignidade dos subordinados,
também “do ponto de vista de nossas elites não era possível pedir
mais: o paternalismo é sutil, complexo, flexível, não é atrasado, as
novas formas de propriedade não são imorais e as duas esferas
não se chocam, antes se completam”. (SCHWARZ, 2000, p.105)
         Pensando nessa forma de representação do paternalismo –
tal como ele é trabalhado nessa obra machadiana – como resultado
dessa ideologia que favorece o produto e o luxo burguês, somos
levados também a pensar no narrador construído dentro desse
contexto. O narrador, aqui, não almeja, propriamente, questionar
ou levar o leitor a questionar o caráter dos personagens, como pode
vir a parecer. Segundo Schwarz, o próprio narrador transita nesse
contexto, assim como Guiomar. Ele não pretende problematizar a
personagem nesse sentido, pois para ele esta relação, favorecendo
as duas esferas, a do protetor e a do agregado, se torna natural.
         Em Helena, a questão do paternalismo começa a ser
problematizada. Helena passa a morar com a família do falecido
pai; é uma moça bem prendada e que possui muitos predicados,
que entretanto não são o bastante para que lhe recebam na sua nova
família sem receio e cautela. O esforço de Helena se concentra em
não desapontar os familiares. Como os favores que lhes eram
oferecidos lhe tiravam a dignidade, por parecerem, aos seus olhos,
ligados à questões estritamente materiais, restava-lhe a tentativa de
não se tornar indigna através da sensação de “não dever”, que
podia resultar da tentativa de provar a todo momento sua fidelidade
e sua servidão à família, condição esta a que a personagem se
submetia “de bom grado e cristamente”. (SCHWARZ, 2000,
p.124)
         Sobre a posição do narrador, a sua realização de uma
análise, sob essa perspectiva trabalhada em Ao vencedor as
batatas, só nos abre margem a perceber que, por mais que
reconheça a renúncia material que Helena faz em nome da
manutenção de sua dignidade, e reconheça também toda a gratidão
cristã que acometia Helena, todo o seu esforço para ser aceita e não
desapontar, mesmo assim, o narrador por vezes imprime uma certa
astúcia na personagem de Helena. Astúcia essa que, mesmo se

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demonstrando na empreita da personagem em fazer tudo de forma
a satisfazer os outros, é ainda assim o elemento pelo qual ela atinge
o seu propósito de ser aceita pela família, tendo seu bom
comportamento reconhecido. O comportamento de Helena
manipula os membros da família em favor de um propósito
anteriormente traçado pela personagem.
         Já no último romance antes do que conhecemos como
segunda fase da obra machadiana, Iaiá Garcia, já se observa a
sujeição ao paternalismo, pelo menos por parte dos principais
personagens da obra, como completamente degradante, o que faz
com que a busca daqueles que têm dignidade se dê na direção de
sentirem-se livres de qualquer dívida de favores. A
problematização da ordem de favores se encontra bem mais
amadurecida nesta obra, visto que, dentre outras coisas, se liberta
da explanação apenas dentro do contexto familiar e se prolonga
para uma configuração dentro da relações dos indivíduos que
permeiam o universo social como um todo. O que se teme com
relação a ser subordinado a outro indivíduo é a formulação de uma
ilusão de que as relações estão baseadas em laços afetivos e não
materiais, enquanto se cria também a ilusão de assemelhar-se aos
indivíduos da classe que domina. Claro que estamos trabalhando
aqui, a obra e o ensaio de Schwarz de forma consideravelmente
simplificada, visto que a problematização do sistema paternalista
nessa obra já tem bastante semelhança com a forma minuciosa com
que Machado de Assis observa os mecanismos da ordem social
brasileira, minúcia esta que mais tarde consagraria Machado de
Assis como um ícone no cenário da literatura mundial, mas
julgamos suficiente para o nosso propósito as informações que
colocamos em relevo.
         Salientamos que, em Iaiá Garcia, apresenta-se um
paternalismo diferente daquele que se configura nos dois romances
anteriores, sobre os quais já nos debruçamos. Aqui encontra-se de
forma descarada a arbitrariedade com que os superiores agem com
os seus subordinados. As atitudes dos superiores e decisões não
obedecem qualquer lógica, a não ser a lógica da própria vontade e
vaidade da classe dominante. Justamente por causa dessa
arbitrariedade, é que se gera uma característica muito intrínseca

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dessa obra: a descontinuidade. Essa descontinuidade está
trabalhada tanto no destino das personagens, quanto na divisão do
livro em praticamente duas partes: Antes da viagem de Jorge à
Guerra do Paraguai e depois da sua chegada, viagem que só
acontece por mando de sua mãe, Valéria, que é a personagem que
parece influenciar no percurso de todos os outros personagens. O
fato é que essa arbitrariedade parece contaminar o narrador, que
passa a guiar o leitor ao seu bel prazer, ajudando também a
acentuar esse quadro de descontinuidade, e o que o narrador parece
pretender é a criação de uma atmosfera de tensão. Assim,
ressaltando, através do modo descontínuo de narrar, a inserção dos
personagens de classe pobre em uma espécie de contexto de
castração, resultado da ação arbitrária de quem ocupa uma posição
superior, no caso desse romance, Valéria, movida pelo capricho e
pala vaidade, unicamente, consegue ditar o ritmo e o resultado do
percurso dos outros personagens.
        Observamos, assim, que problematizado ou não, nesses
três romances machadianos, o narrador observa o paternalismo e o
escancara. Consegue hierarquizar os personagens e traçar uma
linha limítrofe que delimita onde começa e onde termina a
possibilidade de ações de uma classe e de outra. Capta no universo
diegético os confortos e desconfortos que afetam cada uma das
duas esferas – a do patriarca e a do subordinado – quando postas
em relação uma com a outra, sem entretanto forçar o leitor a se
posicionar a favor ou contra um determinado grupo social. O
narrador consegue transitar entre as diferentes camadas, tanto das
personagens como seres individuais, como da própria organização
social, entretanto transmitindo uma certa impessoalidade. O
narrador heterodiegético explana os acontecimentos com
autoridade e onisciência, porém abrindo margem a
questionamentos que possam vir a inquietar o leitor.
        Em Túmulo, túmulo, túmulo, conto de Mário de Andrade
publicado no livro Os contos de Belazarte, através da construção
de um narrador homodiegético, o paternalismo e a relação de
propriedade que se estabelece entre as esferas do superior e do
subordinado, nos é apresentada de uma maneira inusitada pelo
narrador (ou melhor, nos é omitida de uma maneira inusitada pelo

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narrador). A posição hierárquica ocupada pelo “proprietário” quer-
se parecer aos olhos do leitor, alternada entre as personagens,
resultado da artimanha de um narrador cujo propósito está, de
antemão, bem definido. Vejamos:
        Sabemos que do narrador e do ponto de vista adotado por
este – do seu ângulo de visão, por assim dizer – acerca dos
episódios de uma narrativa, depende a compreensão e
profundidade que o leitor atinge no se refere à contemplação da
narração e dos seus elementos. Assim sendo, a figura do narrador
possui o poder de mostrar ou omitir, dissimular, moderar a
percepção do leitor, e consequentemente, dispõe de uma
ferramenta muito eficaz no processo de alienação e manipulação: a
voz do discurso.
        Este poder manipulatório, entretanto, pode variar em força,
tanto de acordo com a espécie de narrador com o qual lidamos,
quanto com o domínio do próprio autor na construção da voz
narrativa agente na sua ficção. Para tanto, basta que observemos a
influência que um narrador homodiegético exerce no leitor,
sutilmente ou não, levando-o a tomadas de partido por um ou outro
personagem, e comparar-mos com a abertura a questionamentos
para os quais o narrador heterodiegético ainda abre margem. Esse
evento se dá, talvez porque o primeiro transmita ao narratário a
impressão de que, por estar mais próximo dos acontecimentos e
dos personagens, e de ser ele próprio um personagem capaz de
agir, transformar, concentra visualização e interpretação mais
amplas acerca das ações e dos agentes, ou seja, está apto a relatar
com mais profundidade e precisão o que de fato aconteceu. O
segundo, porém, por ocupar uma posição mais distante, por não
possuir qualquer vínculo aproximativo com os episódios e com os
personagens, confere ao leitor um espaço para questionar, para
duvidar. Enquanto o homodiegético vivencia, o heterodiegético é
apenas um mero observador. Beth Brait, em um estudo sobre as
personagens, realiza um recorte no qual explicita esse papel do
narrador: “Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possíveis
de caracterização de personagens esbarra necessariamente na
questão do narrador, esta instância narrativa que vai conduzindo


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o leitor por um mundo que parece estar se criando à sua frente”.
(BRAIT, 1999, p.52-53)
         Influencia ainda nesse jogo, a instância narrativa. Com
isso, uma narrativa homodiegética centrada no próprio narrador,
que, passando a narrar episódios da sua própria vida, adotando a
posição de protagonista (tornando-se autodiegético), através de um
ângulo retrospectivo, desta forma, capacitado a relembrar o
passado e predizer o futuro, demonstrando exímio conhecimento
acerca dos fatos, consegue atingir um domínio tão complexo sobre
as idéias do leitor, que não se torna tarefa difícil condicioná-lo a
aceitar o que lhe seja dito, sem que este sinta a necessidade de
traçar um caminho reflexivo, que venha a lhe permitir uma
percepção mais crítica acerca da veracidade ou completude do que
lhe chega através da voz narrativa. Yves Reuter afirma acerca
desse tipo de construção narrativa: “Esta combinação é bastante
poderosa, mesmo se a ubiqüidade e o conhecimento interno das
outras personagens estejam ausentes”. (REUTER, 1996, p.77).
Outra instância narrativa que também pode ser muito eficaz nesse
processo manipulatório é a narrativa heterodiegética centrada no
narrador, sobre a qual, Reuter vem ainda dizer:


                                        Ela abre o máximo de possibilidades. O
                                        narrador pode controlar todo o saber ( ele
                                        sabe mais que as personagens), sem
                                        limitações de profundidade externa ou
                                        interna, em todos os lugares e em todos os
                                        tempos, o que lhe permite flash-backs e
                                        antecipações certas. Fala-se dele como um
                                        narrador onisciente, na medida em que sua
                                        visão pode ser ilimitada e que ela não está
                                        ligada à focalização através desta ou daquela
                                        personagem. Ele certamente pode assumir
                                        todas as funções do narrador. Esta
                                        combinação foi muito utilizada na tradição
                                        clássica e realizada pelos autores do
                                        romance-folhetim. Ela pode ser empregada
                                        de maneira paródica para ressaltar poder


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                                        absoluto do narrador. (REUTER, 1996,
                                        p.75-76)


                 Além dessa instâncias narrativas propriamente
ditas, a própria “figura” de quem nos fala, tal como ela é descrita
no próprio corpo textual ou captada através de pistas que a ficção
nos oferece, é de mister importância para nossa apreensão do
mundo fictício da narrativa, e desta forma, participa também
ativamente no exercício de influência sobre o leitor, isso se deve à
questões relacionadas à formação cultural na qual está inserido o
sistema literário e à diferença entre classes, que evidencia as idéias
de um determinado grupo em detrimento das idéias das classes
ditas subalternizadas , o que, no caso da literatura, encontramos as
manifestações mais evidentes desse fenômeno na forma de como
se estrutura o discurso do narrador. Como contribuição nessa
perspectiva de análise encontramos alguns artigos do Roberto
Schwarz, entre os quais destacamos “A Poesia envenenada de Dom
Casmurro”, que embora direcionado à análise da obra machadiana,
nos serve também como modelo direcionador para a realização dos
estudos acerca do narrador Belazarte na obra Os Contos de
Belazarte1, de Mário de Andrade, na tentativa de estabelecer essa
relação entre autor-narrador-discurso-leitor inseridos em um
sistema literário, produto das manifestações sociais.
        No conto Túmulo, túmulo, túmulo temos duas instâncias
narrativas. Na primeira, o narrador é homodiegético; entretanto,
não ocupa a posição de protagonista. Aliás, trata-se de uma
passagem muito curta, na qual enfatiza que contará o lhe já lhe fora
relatado por outro (Belazarte). Mário de Andrade reivindica essa
primeira instância narrativa, na qual sua voz inicia e termina da
seguinte forma: “Belazarte me contou:”. A segunda instância
estende-se a partir daí até o encerramento do conto, é a transcrição
feita por Mário, do que lhe foi dito por são postas em relevo pelo
nosso próprio narrador, construída através de um discurso direto,

1
  As citações referentes ao livro serão indicadas no próprio corpo do
texto, pela indicação da página, entre parênteses. Ex: (p. 87).
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acerca de um episódio que aconteceu consigo, daí apontarmos o
próprio Belazarte como a voz narrativa (e não mais o Mário de
Andrade) e conferirmos a este, ainda, a posição autodiegética com
narrativa centrada em si. A opção que o primeiro narrador faz em
transmitir o que foi dito, tal como foi dito, comprovado pelo uso do
discurso direto, lhe exime de qualquer responsabilidade e a
transpõe para o segundo narrador, como se dissesse: “vou contar
apenas o que ele disse, da forma como ele disse. A
responsabilidade pela veracidade ou não com relação aos episódios
e os personagens é de inteira responsabilidade de quem assim me
falou!”; e começa o discurso de Belazarte.
        Durante todo o conto, o narrador-personagem se empenha
em cair nas graças do leitor, de conquistar sua confiança através da
imagem que traça de si mesmo. No primeiro parágrafo, define-se
como um homem enérgico, paciente, cheio de força de vontade e
coragem na busca pela conquista de seus objetivos, mas ao mesmo
tempo admite que algumas vezes, mesmo todos esses requisitos
não são suficientes para lidar com uma determinada situação;
atribuindo ao destino as desgraças que acontecem, iguala-se ao
narratário em suas limitações e transmite-lhe a idéia de que sua
humildade ultrapassa o enaltecimento que faz sobre si, quando
trata do seu poder de acreditar e buscar sempre o melhor: “Eu
sempre falo que a gente tem que ser enérgico, nunca desanimar,
que se entregar é covardia, porém, quando a coisa desanda
mesmo, não tem vontade não tem paciência que faça desgraça
parar”. (p.87)
         No segundo parágrafo, põe em evidencia a sua imagem de
homem trabalhador, insinuando que, não se contentando com o
ócio que um bom emprego lhe era capaz de proporcionar - talvez
por tratar-se de um horário de trabalho reduzido - arranjava sempre
outros serviços para fazer: “Um tempo andei mais endinheirado,
com emprego bom e inda por cima arranjando sempre uns biscates
por aí”. (p.87)
       Depois envereda por um enaltecimento contínuo da etnia
negra tão marginalizada no contexto da narrativa, e critica os
brancos que não prezam pelos princípios éticos do bom
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comportamento, quando apertando a mão de Ellis, um negro que
acabara de conhecer, convida-o para ser o seu criado e transmite o
seguinte pensamento ao leitor: “A gente se punha matutando que
havia de ser bom passar a mão naquela cor humilde, mão que
andou todo o dia apertando passe bem de muito branco emproado
e filho da mãe”. (p.88-89)
         E a partir de então descreve o carinho que tinha por Ellis, a
relação que se formou entre os dois e as caridades que fizera por
este até o último dia da sua vida.
        Ora, é difícil para o leitor questionar a integridade de uma
figura desse tipo! Um homem íntegro, humilde, trabalhador, que vê
na figura de um negro, mesmo com todo o preconceito vigente na
estrutura social brasileira, a figura de um amigo, e que ainda tanto
se doa ao exercício da generosidade...
        O discurso produzido por Belazarte, impede que o
narratário verifique neste o modelo do patriarca, que constata o seu
poder sobre os indivíduos, dissimula o seu caráter autoritário
inflado pela vaidade e subalterniza o outro (que passa a ser sentido
como sua propriedade), que assim o permite por conseqüência de
um processo alienatório gerado pelo discurso cordial direcionado
do subalternizador ao subalternizado.
        Porém uma análise crítica um tanto mais cuidadosa, que
pode se desenvolver a partir do momento em que o leitor fuja ao
deslumbre das falas do nosso “bom senhor”, nos permite verificar
os traços dessa vaidade exacerbada de Belazarte logo nas primeiras
linhas do conto: que ele era um homem de certo prestígio por ser
branco e por possuir um emprego, isso é indiscutível, mas por
conta disso, partir para uma tentativa de imitação do modelo
burguês europeu ao contratar um mordomo, “como no cinema” não
parece ser um costume dos indivíduos que moram em meio ao
contexto miserável no qual Belazarte estava inserido. Através da
própria criação do nome “Belazarte”, o autor visa remeter à idéia
de uma suposta erudição, certamente discutível, que serviria como
mais um ponto no qual identificamos a inclinação do nosso
narrador para a auto-inserção no universo burguês.

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        Contratando Ellis como seu mordomo, o narrador investe
na tentativa de implantar no leitor dúvidas sobre até que ponto
Ellis era merecedor dos cuidados que o narrador lhe concedia.
Nada além da mais pura bondade do narrador era motivo para agir
com o criado da maneira como ele agia, pois o negro, de acordo
com o narrador, apesar de boa pessoa, era preguiçoso como fica
claro na fala: “Moleza chegou ali, parou” (p.89) e não queria mais
parar em casa “E depois deu de sair muito, não tinha noite que
ficasse em casa”. Mais tarde, quando já muito doente, Ellis é o
desocupado que se aproveita da boa vontade do patrão para
conseguir regalias.
         Valeria ao leitor observar a busca constante em que
Belazarte envereda pela dominação frente à subalternização de
Ellis, a qual se torna mais impiedosa tanto mais ele constata que o
criado é seu dependente. Ellis vive uma constante busca pela
legitimação do patrão no que se refere aos seus projetos
individuais, os quais são anunciados com o cuidado e a sutileza
com que se busca o mínimo de individualização no sistema
patriarcal. A passagem em que Ellis confessa ao seu superior,
hesitante, sua pretensão de ser chofer, visando o casamento que
marcara com Dora, e mesmo aquela que trata do momento em que
tem que deixar a casa, ilustra essa individualização sempre
limitada pela figura paternal: “Mas... seu Belazarte... eu quero sair
por bem da casa do senhor... até a Dora me falou que... me falou
que decerto o senhor aceitava ser o nosso padrinho”. (p.93)
        Belazarte quer ainda o direito de nomear o filho de Ellis,
mesmo ignorando o nome que a mãe do menino, então falecida,
propusera. Quer que se chame Benedito – nome abençoado de
todos os escravos sinceros – depois de muita discussão sobre a
vontade da defunta, a mãe de Ellis opina e cede apenas em parte ao
gosto do senhor.
       O patrão não vê no seu criado a figura de um indivíduo, é
posse sua, objeto seu, devedor de gratidão. O criado, ante o
deslumbre provocado pela ilusão de ser amigo daquele –
conseqüência do discurso do nosso narrador – perde a capacidade

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crítico-reflexiva e gradativamente                            é      imerso        na      posição
subalternizada imposta pelo patrão.
        Um dos pontos mais interessantes de se perceber é a forma
como o discurso do narrador sofre gradativamente uma
contradição, talvez obscura aos olhos leigos, mas indispensável ao
raciocínio que traçamos neste artigo. Belazarte se diz muito amigo
de Ellis e define-se dependente da presença do criado, sofre de
ciúmes quando sabe do casamento marcado, chega a ser mesmo
duro com Ellis. Amizade ou pura vaidade, quando consideramos:
“Meio que me despeitava também, isso do Ellis gostar de mais
outra pessoa que do patrão” (p.92); e ainda apadrinhando o
casamento “Cheguei do casamento com uma felicidade artística
dentro de mim” (p.94); e principalmente, destacando a seguinte
confissão: “Ellis desapareceu uns meses e me esqueci dele. A vida
é tão bondosa que nunca senti falta de ninguém” (p.94).
         Mais tarde, essa falha na construção do seu discurso se
mostra mais relevante, e por vezes, deixa escapar um tanto do seu
egocentrismo nas linhas textuais. Essa decadência começa a ser
observada na passagem em que o narrador fala sobre a noiva do
amigo pela primeira vez, desejando-a e descrevendo-a por meio da
utilização de um linguajar muito erótico e um tanto
preconceituoso:


                                        Que gostosura a Dora! Era uma pretarana de
                                        cabelo acolchoado e corpo de potranquinha
                                        independente. Tinha um jeito de não querer,
                                        muito fiteiro, um dengue meio fatigado
                                        oscilando na brisa, tinha uma fineza de S
                                        espichado, que fazia ela parecer maior do
                                        que era, uma graça flexível... nem sei bem o
                                        que é que o corpo dela tinha, só sei que
                                        espantava tanto o desejo da gente, que
                                        desejo ficava de boca aberta, extasiado, sem
                                        gesto, deixando respeitosamente ela passar
                                        por entre toda a Cristandade... Dora linda!.
                                        (p. 94)

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João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007




        Depois, a partir da morte de Dora, enumera: “número um”
(p. 96) fazendo referência às sucessivas mortes que ocorrem a
partir de então naquela família, que serão, com a mesma frieza,
também enumeradas, aliás, é justamente na contagem das três
mortes que reside a origem da titulação do conto “túmulo, túmulo,
túmulo”. Ressaltamos aqui ainda a opinião de Belazarte ao tentar
descrever o que Ellis sentira com a morte da sua mulher. Para ele,
o criado não sentiria falta de Dora, da pessoa que ela era, do
companheirismo, da amizade; isso deveria ser buscado e
encontrado apenas no nosso narrador que “sabia das coisas”
(p.98); o que seria difícil a partir de então era a lida com os
desejos, a não constância do ato sexual, e nada além, como se o
amigo fosse incapaz de desprender sentimentos e se igualasse aos
animais, nos quais tudo é apenas instinto.
        Poucos parágrafos depois, mais uma vez: “número dois”,
desta vez ao tratar da morte do filho de Ellis e Dora, o qual
apadrinhou, valendo-nos considerar ainda o episódio do próprio
batizado, momento no qual as diferenças entre o patrão e o
empregado, o superior e o subalternizado, são postas em relevo
pelo nosso próprio narrador; e o homem de classe média (à qual
Belazarte parece julgar pertencer), por mais se assemelhar ao
modelo burguês, esteja à vista para ser imitado:


                                        Não paga a pena a gente imaginar que todos
                                       somos iguais, besteira! Mamãe, por causa da
                                       muita religião, imagina que somos. Inventou
                                       de convidar Ellis, mãe e “tutti quanti” para
                                       comer um doce em nossa casa, vieram. Foi
                                       um ridículo oprimente para nós os superiores,
                                       e deprimente para eles os desinfelizes.
                                       Estavam esquerdos, cheios de mãos, não
                                       sabendo pegar na xícara. E eu então!
                                       Qualquer gesto que a gente faz, pegar no pão,
                                       na bolacha, pronto: já é diferente por classe
                                       da maneira, igualzinha muitas vezes, com

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João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
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                                       que pobre pega nessas coisas. Parece lição.
                                       (p.99).


         Nosso narrador ainda assume que as caridades prestadas à
família de Ellis já não eram mais obras suas, e sim da sua mãe,
entretanto, para não deixar escapar de si a admiração do leitor
ressalta: “mantimento, remédios, roupa, tudo minha mãe é que
providenciava para ele, “conforme desejo meu” ” (p.100, grifo
nosso).
         O ápice da contradição entre a imagem que Belazarte traça
de si mesmo e aquela que pudemos constatar aqui, e também da
condição submissa que se dá entre o agregado e o patriarca, pode
ser observado nos últimos episódios do conto, que culmina na
morte de Ellis. Diante do seu inevitável falecimento, a
superioridade do outro é demonstrada pelo descaso com que atua,
enquanto a dependência do doente em relação ao seu “amigo” é
ressaltada pela sua insistência em vê-lo, descaso este que é
ilustrado pelas palavras do nosso narrador: “Da minha parte era
tudo agora gestos mecânicos de protetor, meu Deus! [...] Ellis creio
que não, mas eu á fazia muito que estava acostumado a sentir Ellis
morto [...]. No que se agarraria aquele morto em férias?” (p.100-
101); e ainda na sua vaidade que não deixa de ser manifestada nem
mesmo diante do “amigo” morto: “Ellis me obedecia ainda com
esse olhar. Fosse por amizade, fosse por servilismo, obedeceu”
(p.104); “ Pesei a mão no corpo dele pra que me sentisse bem. Ao
menos assim, Ellis ficava seguro de que tinha ao pé dele o amigo
que sabia as coisas. Então não o deixaria sofrer. Porque sabia as
coisas...” (p.104). E mais, a mesma frieza imposta na já tão
conhecida enumeração: “número três” (p. 104).
        Nosso conto, portanto, encontra-se permeado por uma
cruel dramaticidade, um contexto de subalternização impiedosa,
entretanto, dissimulado e escondido nas palavras destramente
articuladas com o propósito manipulatório e alienador, de um
homem branco, trabalhador, generoso, apenas um pouco cansado
de um negro empregado aproveitador, mas mesmo assim

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João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007



considerado como amigo e ao qual erroneamente costumamos
conferir o caráter santificado, acima de qualquer suspeita, até
porque a mesma não encontra espaço para se manifestar.




REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Mário de. (1973). Os contos de Belazarte. São Paulo:
Livraria Martins.
BRAIT, Beth. (1999). A personagem. 7 ed. São Paulo: Ática.
REUTER, Yves. (1996). Introdução à análise do Romance. São
Paulo: Martins Fontes.
SCHWARZ, Roberto. (s/d). A poesia envenenada de Dom
Casmurro. In:______. Surgimento da narrativa moderna. São
Paulo: Livraria Martins.
SCHWARZ, Roberto. (2000). Ao Vencedor as batatas. São Paulo:
Duas Cidades.




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  • 1. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 NÚMERO QUATRO: AQUI JAZ O DISCURSO DISSIMULADO DE BELAZARTE Katyússia Freitas Ferreira Universidade Regional do Cariri – URCA / PIBIC-CNq (AG) – Edson Martins Roberto Schwarz realiza um estudo sobre os três primeiros romances de Machado de Assis publicado sob o título de Ao vencedor as batatas. Ali ele analisa como o paternalismo está representado em A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia. Baseados nesse estudo é que enveredamos em uma tentativa de observar como o narrador machadiano se posiciona em face a esta condição a que estão submetidas as personagens. No romance A mão e a luva, observamos Guiomar, personagem que acaba sendo “adotada” por uma baronesa, e entre as quais gera-se um vínculo de apadrinhamento. Guiomar é apresentada pelo narrador como uma figura em quem está impressa uma certa dubiedade, pois ao passo em que a personagem é a típica heroína, está também muito clara a supervalorização do luxo burguês. Ora, o caráter de Guiomar passa a ser duvidoso: ela serve por afeto ou “utiliza-se da madrinha como trampolim para a fortuna?” (SCHWARZ, 2000, p. 97). Ambas as sugestões estão corretas, pois nesse romance elas não são necessariamente opostas, ao contrário, se complementam. A troca de favores dentro dessa ordem não é apresentada como degradante,e encontrar no apadrinhamento uma forma de ascensão social, tampouco. Roberto Schwarz contextualiza esse tipo de relação e vem afirmar sobre que esse tipo de relação entre a madrinha e a agregada é fruto do contexto em que o produto europeu era muito valorizado e não afetava os traços do caráter. Na própria titulação do romance podemos ver inferida essa questão da complementaridade entre as classes opostas: “A mão e A luva”, um entrelaçamento de favores, _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 2. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 de classes, que caminha em equilíbrio; dessa forma o paternalismo ao passo que não compromete a dignidade dos subordinados, também “do ponto de vista de nossas elites não era possível pedir mais: o paternalismo é sutil, complexo, flexível, não é atrasado, as novas formas de propriedade não são imorais e as duas esferas não se chocam, antes se completam”. (SCHWARZ, 2000, p.105) Pensando nessa forma de representação do paternalismo – tal como ele é trabalhado nessa obra machadiana – como resultado dessa ideologia que favorece o produto e o luxo burguês, somos levados também a pensar no narrador construído dentro desse contexto. O narrador, aqui, não almeja, propriamente, questionar ou levar o leitor a questionar o caráter dos personagens, como pode vir a parecer. Segundo Schwarz, o próprio narrador transita nesse contexto, assim como Guiomar. Ele não pretende problematizar a personagem nesse sentido, pois para ele esta relação, favorecendo as duas esferas, a do protetor e a do agregado, se torna natural. Em Helena, a questão do paternalismo começa a ser problematizada. Helena passa a morar com a família do falecido pai; é uma moça bem prendada e que possui muitos predicados, que entretanto não são o bastante para que lhe recebam na sua nova família sem receio e cautela. O esforço de Helena se concentra em não desapontar os familiares. Como os favores que lhes eram oferecidos lhe tiravam a dignidade, por parecerem, aos seus olhos, ligados à questões estritamente materiais, restava-lhe a tentativa de não se tornar indigna através da sensação de “não dever”, que podia resultar da tentativa de provar a todo momento sua fidelidade e sua servidão à família, condição esta a que a personagem se submetia “de bom grado e cristamente”. (SCHWARZ, 2000, p.124) Sobre a posição do narrador, a sua realização de uma análise, sob essa perspectiva trabalhada em Ao vencedor as batatas, só nos abre margem a perceber que, por mais que reconheça a renúncia material que Helena faz em nome da manutenção de sua dignidade, e reconheça também toda a gratidão cristã que acometia Helena, todo o seu esforço para ser aceita e não desapontar, mesmo assim, o narrador por vezes imprime uma certa astúcia na personagem de Helena. Astúcia essa que, mesmo se _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 3. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 demonstrando na empreita da personagem em fazer tudo de forma a satisfazer os outros, é ainda assim o elemento pelo qual ela atinge o seu propósito de ser aceita pela família, tendo seu bom comportamento reconhecido. O comportamento de Helena manipula os membros da família em favor de um propósito anteriormente traçado pela personagem. Já no último romance antes do que conhecemos como segunda fase da obra machadiana, Iaiá Garcia, já se observa a sujeição ao paternalismo, pelo menos por parte dos principais personagens da obra, como completamente degradante, o que faz com que a busca daqueles que têm dignidade se dê na direção de sentirem-se livres de qualquer dívida de favores. A problematização da ordem de favores se encontra bem mais amadurecida nesta obra, visto que, dentre outras coisas, se liberta da explanação apenas dentro do contexto familiar e se prolonga para uma configuração dentro da relações dos indivíduos que permeiam o universo social como um todo. O que se teme com relação a ser subordinado a outro indivíduo é a formulação de uma ilusão de que as relações estão baseadas em laços afetivos e não materiais, enquanto se cria também a ilusão de assemelhar-se aos indivíduos da classe que domina. Claro que estamos trabalhando aqui, a obra e o ensaio de Schwarz de forma consideravelmente simplificada, visto que a problematização do sistema paternalista nessa obra já tem bastante semelhança com a forma minuciosa com que Machado de Assis observa os mecanismos da ordem social brasileira, minúcia esta que mais tarde consagraria Machado de Assis como um ícone no cenário da literatura mundial, mas julgamos suficiente para o nosso propósito as informações que colocamos em relevo. Salientamos que, em Iaiá Garcia, apresenta-se um paternalismo diferente daquele que se configura nos dois romances anteriores, sobre os quais já nos debruçamos. Aqui encontra-se de forma descarada a arbitrariedade com que os superiores agem com os seus subordinados. As atitudes dos superiores e decisões não obedecem qualquer lógica, a não ser a lógica da própria vontade e vaidade da classe dominante. Justamente por causa dessa arbitrariedade, é que se gera uma característica muito intrínseca _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 4. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 dessa obra: a descontinuidade. Essa descontinuidade está trabalhada tanto no destino das personagens, quanto na divisão do livro em praticamente duas partes: Antes da viagem de Jorge à Guerra do Paraguai e depois da sua chegada, viagem que só acontece por mando de sua mãe, Valéria, que é a personagem que parece influenciar no percurso de todos os outros personagens. O fato é que essa arbitrariedade parece contaminar o narrador, que passa a guiar o leitor ao seu bel prazer, ajudando também a acentuar esse quadro de descontinuidade, e o que o narrador parece pretender é a criação de uma atmosfera de tensão. Assim, ressaltando, através do modo descontínuo de narrar, a inserção dos personagens de classe pobre em uma espécie de contexto de castração, resultado da ação arbitrária de quem ocupa uma posição superior, no caso desse romance, Valéria, movida pelo capricho e pala vaidade, unicamente, consegue ditar o ritmo e o resultado do percurso dos outros personagens. Observamos, assim, que problematizado ou não, nesses três romances machadianos, o narrador observa o paternalismo e o escancara. Consegue hierarquizar os personagens e traçar uma linha limítrofe que delimita onde começa e onde termina a possibilidade de ações de uma classe e de outra. Capta no universo diegético os confortos e desconfortos que afetam cada uma das duas esferas – a do patriarca e a do subordinado – quando postas em relação uma com a outra, sem entretanto forçar o leitor a se posicionar a favor ou contra um determinado grupo social. O narrador consegue transitar entre as diferentes camadas, tanto das personagens como seres individuais, como da própria organização social, entretanto transmitindo uma certa impessoalidade. O narrador heterodiegético explana os acontecimentos com autoridade e onisciência, porém abrindo margem a questionamentos que possam vir a inquietar o leitor. Em Túmulo, túmulo, túmulo, conto de Mário de Andrade publicado no livro Os contos de Belazarte, através da construção de um narrador homodiegético, o paternalismo e a relação de propriedade que se estabelece entre as esferas do superior e do subordinado, nos é apresentada de uma maneira inusitada pelo narrador (ou melhor, nos é omitida de uma maneira inusitada pelo _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 5. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 narrador). A posição hierárquica ocupada pelo “proprietário” quer- se parecer aos olhos do leitor, alternada entre as personagens, resultado da artimanha de um narrador cujo propósito está, de antemão, bem definido. Vejamos: Sabemos que do narrador e do ponto de vista adotado por este – do seu ângulo de visão, por assim dizer – acerca dos episódios de uma narrativa, depende a compreensão e profundidade que o leitor atinge no se refere à contemplação da narração e dos seus elementos. Assim sendo, a figura do narrador possui o poder de mostrar ou omitir, dissimular, moderar a percepção do leitor, e consequentemente, dispõe de uma ferramenta muito eficaz no processo de alienação e manipulação: a voz do discurso. Este poder manipulatório, entretanto, pode variar em força, tanto de acordo com a espécie de narrador com o qual lidamos, quanto com o domínio do próprio autor na construção da voz narrativa agente na sua ficção. Para tanto, basta que observemos a influência que um narrador homodiegético exerce no leitor, sutilmente ou não, levando-o a tomadas de partido por um ou outro personagem, e comparar-mos com a abertura a questionamentos para os quais o narrador heterodiegético ainda abre margem. Esse evento se dá, talvez porque o primeiro transmita ao narratário a impressão de que, por estar mais próximo dos acontecimentos e dos personagens, e de ser ele próprio um personagem capaz de agir, transformar, concentra visualização e interpretação mais amplas acerca das ações e dos agentes, ou seja, está apto a relatar com mais profundidade e precisão o que de fato aconteceu. O segundo, porém, por ocupar uma posição mais distante, por não possuir qualquer vínculo aproximativo com os episódios e com os personagens, confere ao leitor um espaço para questionar, para duvidar. Enquanto o homodiegético vivencia, o heterodiegético é apenas um mero observador. Beth Brait, em um estudo sobre as personagens, realiza um recorte no qual explicita esse papel do narrador: “Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possíveis de caracterização de personagens esbarra necessariamente na questão do narrador, esta instância narrativa que vai conduzindo _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 6. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 o leitor por um mundo que parece estar se criando à sua frente”. (BRAIT, 1999, p.52-53) Influencia ainda nesse jogo, a instância narrativa. Com isso, uma narrativa homodiegética centrada no próprio narrador, que, passando a narrar episódios da sua própria vida, adotando a posição de protagonista (tornando-se autodiegético), através de um ângulo retrospectivo, desta forma, capacitado a relembrar o passado e predizer o futuro, demonstrando exímio conhecimento acerca dos fatos, consegue atingir um domínio tão complexo sobre as idéias do leitor, que não se torna tarefa difícil condicioná-lo a aceitar o que lhe seja dito, sem que este sinta a necessidade de traçar um caminho reflexivo, que venha a lhe permitir uma percepção mais crítica acerca da veracidade ou completude do que lhe chega através da voz narrativa. Yves Reuter afirma acerca desse tipo de construção narrativa: “Esta combinação é bastante poderosa, mesmo se a ubiqüidade e o conhecimento interno das outras personagens estejam ausentes”. (REUTER, 1996, p.77). Outra instância narrativa que também pode ser muito eficaz nesse processo manipulatório é a narrativa heterodiegética centrada no narrador, sobre a qual, Reuter vem ainda dizer: Ela abre o máximo de possibilidades. O narrador pode controlar todo o saber ( ele sabe mais que as personagens), sem limitações de profundidade externa ou interna, em todos os lugares e em todos os tempos, o que lhe permite flash-backs e antecipações certas. Fala-se dele como um narrador onisciente, na medida em que sua visão pode ser ilimitada e que ela não está ligada à focalização através desta ou daquela personagem. Ele certamente pode assumir todas as funções do narrador. Esta combinação foi muito utilizada na tradição clássica e realizada pelos autores do romance-folhetim. Ela pode ser empregada de maneira paródica para ressaltar poder _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 7. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 absoluto do narrador. (REUTER, 1996, p.75-76) Além dessa instâncias narrativas propriamente ditas, a própria “figura” de quem nos fala, tal como ela é descrita no próprio corpo textual ou captada através de pistas que a ficção nos oferece, é de mister importância para nossa apreensão do mundo fictício da narrativa, e desta forma, participa também ativamente no exercício de influência sobre o leitor, isso se deve à questões relacionadas à formação cultural na qual está inserido o sistema literário e à diferença entre classes, que evidencia as idéias de um determinado grupo em detrimento das idéias das classes ditas subalternizadas , o que, no caso da literatura, encontramos as manifestações mais evidentes desse fenômeno na forma de como se estrutura o discurso do narrador. Como contribuição nessa perspectiva de análise encontramos alguns artigos do Roberto Schwarz, entre os quais destacamos “A Poesia envenenada de Dom Casmurro”, que embora direcionado à análise da obra machadiana, nos serve também como modelo direcionador para a realização dos estudos acerca do narrador Belazarte na obra Os Contos de Belazarte1, de Mário de Andrade, na tentativa de estabelecer essa relação entre autor-narrador-discurso-leitor inseridos em um sistema literário, produto das manifestações sociais. No conto Túmulo, túmulo, túmulo temos duas instâncias narrativas. Na primeira, o narrador é homodiegético; entretanto, não ocupa a posição de protagonista. Aliás, trata-se de uma passagem muito curta, na qual enfatiza que contará o lhe já lhe fora relatado por outro (Belazarte). Mário de Andrade reivindica essa primeira instância narrativa, na qual sua voz inicia e termina da seguinte forma: “Belazarte me contou:”. A segunda instância estende-se a partir daí até o encerramento do conto, é a transcrição feita por Mário, do que lhe foi dito por são postas em relevo pelo nosso próprio narrador, construída através de um discurso direto, 1 As citações referentes ao livro serão indicadas no próprio corpo do texto, pela indicação da página, entre parênteses. Ex: (p. 87). _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 8. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 acerca de um episódio que aconteceu consigo, daí apontarmos o próprio Belazarte como a voz narrativa (e não mais o Mário de Andrade) e conferirmos a este, ainda, a posição autodiegética com narrativa centrada em si. A opção que o primeiro narrador faz em transmitir o que foi dito, tal como foi dito, comprovado pelo uso do discurso direto, lhe exime de qualquer responsabilidade e a transpõe para o segundo narrador, como se dissesse: “vou contar apenas o que ele disse, da forma como ele disse. A responsabilidade pela veracidade ou não com relação aos episódios e os personagens é de inteira responsabilidade de quem assim me falou!”; e começa o discurso de Belazarte. Durante todo o conto, o narrador-personagem se empenha em cair nas graças do leitor, de conquistar sua confiança através da imagem que traça de si mesmo. No primeiro parágrafo, define-se como um homem enérgico, paciente, cheio de força de vontade e coragem na busca pela conquista de seus objetivos, mas ao mesmo tempo admite que algumas vezes, mesmo todos esses requisitos não são suficientes para lidar com uma determinada situação; atribuindo ao destino as desgraças que acontecem, iguala-se ao narratário em suas limitações e transmite-lhe a idéia de que sua humildade ultrapassa o enaltecimento que faz sobre si, quando trata do seu poder de acreditar e buscar sempre o melhor: “Eu sempre falo que a gente tem que ser enérgico, nunca desanimar, que se entregar é covardia, porém, quando a coisa desanda mesmo, não tem vontade não tem paciência que faça desgraça parar”. (p.87) No segundo parágrafo, põe em evidencia a sua imagem de homem trabalhador, insinuando que, não se contentando com o ócio que um bom emprego lhe era capaz de proporcionar - talvez por tratar-se de um horário de trabalho reduzido - arranjava sempre outros serviços para fazer: “Um tempo andei mais endinheirado, com emprego bom e inda por cima arranjando sempre uns biscates por aí”. (p.87) Depois envereda por um enaltecimento contínuo da etnia negra tão marginalizada no contexto da narrativa, e critica os brancos que não prezam pelos princípios éticos do bom _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 9. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 comportamento, quando apertando a mão de Ellis, um negro que acabara de conhecer, convida-o para ser o seu criado e transmite o seguinte pensamento ao leitor: “A gente se punha matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor humilde, mão que andou todo o dia apertando passe bem de muito branco emproado e filho da mãe”. (p.88-89) E a partir de então descreve o carinho que tinha por Ellis, a relação que se formou entre os dois e as caridades que fizera por este até o último dia da sua vida. Ora, é difícil para o leitor questionar a integridade de uma figura desse tipo! Um homem íntegro, humilde, trabalhador, que vê na figura de um negro, mesmo com todo o preconceito vigente na estrutura social brasileira, a figura de um amigo, e que ainda tanto se doa ao exercício da generosidade... O discurso produzido por Belazarte, impede que o narratário verifique neste o modelo do patriarca, que constata o seu poder sobre os indivíduos, dissimula o seu caráter autoritário inflado pela vaidade e subalterniza o outro (que passa a ser sentido como sua propriedade), que assim o permite por conseqüência de um processo alienatório gerado pelo discurso cordial direcionado do subalternizador ao subalternizado. Porém uma análise crítica um tanto mais cuidadosa, que pode se desenvolver a partir do momento em que o leitor fuja ao deslumbre das falas do nosso “bom senhor”, nos permite verificar os traços dessa vaidade exacerbada de Belazarte logo nas primeiras linhas do conto: que ele era um homem de certo prestígio por ser branco e por possuir um emprego, isso é indiscutível, mas por conta disso, partir para uma tentativa de imitação do modelo burguês europeu ao contratar um mordomo, “como no cinema” não parece ser um costume dos indivíduos que moram em meio ao contexto miserável no qual Belazarte estava inserido. Através da própria criação do nome “Belazarte”, o autor visa remeter à idéia de uma suposta erudição, certamente discutível, que serviria como mais um ponto no qual identificamos a inclinação do nosso narrador para a auto-inserção no universo burguês. _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 10. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 Contratando Ellis como seu mordomo, o narrador investe na tentativa de implantar no leitor dúvidas sobre até que ponto Ellis era merecedor dos cuidados que o narrador lhe concedia. Nada além da mais pura bondade do narrador era motivo para agir com o criado da maneira como ele agia, pois o negro, de acordo com o narrador, apesar de boa pessoa, era preguiçoso como fica claro na fala: “Moleza chegou ali, parou” (p.89) e não queria mais parar em casa “E depois deu de sair muito, não tinha noite que ficasse em casa”. Mais tarde, quando já muito doente, Ellis é o desocupado que se aproveita da boa vontade do patrão para conseguir regalias. Valeria ao leitor observar a busca constante em que Belazarte envereda pela dominação frente à subalternização de Ellis, a qual se torna mais impiedosa tanto mais ele constata que o criado é seu dependente. Ellis vive uma constante busca pela legitimação do patrão no que se refere aos seus projetos individuais, os quais são anunciados com o cuidado e a sutileza com que se busca o mínimo de individualização no sistema patriarcal. A passagem em que Ellis confessa ao seu superior, hesitante, sua pretensão de ser chofer, visando o casamento que marcara com Dora, e mesmo aquela que trata do momento em que tem que deixar a casa, ilustra essa individualização sempre limitada pela figura paternal: “Mas... seu Belazarte... eu quero sair por bem da casa do senhor... até a Dora me falou que... me falou que decerto o senhor aceitava ser o nosso padrinho”. (p.93) Belazarte quer ainda o direito de nomear o filho de Ellis, mesmo ignorando o nome que a mãe do menino, então falecida, propusera. Quer que se chame Benedito – nome abençoado de todos os escravos sinceros – depois de muita discussão sobre a vontade da defunta, a mãe de Ellis opina e cede apenas em parte ao gosto do senhor. O patrão não vê no seu criado a figura de um indivíduo, é posse sua, objeto seu, devedor de gratidão. O criado, ante o deslumbre provocado pela ilusão de ser amigo daquele – conseqüência do discurso do nosso narrador – perde a capacidade _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 11. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 crítico-reflexiva e gradativamente é imerso na posição subalternizada imposta pelo patrão. Um dos pontos mais interessantes de se perceber é a forma como o discurso do narrador sofre gradativamente uma contradição, talvez obscura aos olhos leigos, mas indispensável ao raciocínio que traçamos neste artigo. Belazarte se diz muito amigo de Ellis e define-se dependente da presença do criado, sofre de ciúmes quando sabe do casamento marcado, chega a ser mesmo duro com Ellis. Amizade ou pura vaidade, quando consideramos: “Meio que me despeitava também, isso do Ellis gostar de mais outra pessoa que do patrão” (p.92); e ainda apadrinhando o casamento “Cheguei do casamento com uma felicidade artística dentro de mim” (p.94); e principalmente, destacando a seguinte confissão: “Ellis desapareceu uns meses e me esqueci dele. A vida é tão bondosa que nunca senti falta de ninguém” (p.94). Mais tarde, essa falha na construção do seu discurso se mostra mais relevante, e por vezes, deixa escapar um tanto do seu egocentrismo nas linhas textuais. Essa decadência começa a ser observada na passagem em que o narrador fala sobre a noiva do amigo pela primeira vez, desejando-a e descrevendo-a por meio da utilização de um linguajar muito erótico e um tanto preconceituoso: Que gostosura a Dora! Era uma pretarana de cabelo acolchoado e corpo de potranquinha independente. Tinha um jeito de não querer, muito fiteiro, um dengue meio fatigado oscilando na brisa, tinha uma fineza de S espichado, que fazia ela parecer maior do que era, uma graça flexível... nem sei bem o que é que o corpo dela tinha, só sei que espantava tanto o desejo da gente, que desejo ficava de boca aberta, extasiado, sem gesto, deixando respeitosamente ela passar por entre toda a Cristandade... Dora linda!. (p. 94) _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 12. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 Depois, a partir da morte de Dora, enumera: “número um” (p. 96) fazendo referência às sucessivas mortes que ocorrem a partir de então naquela família, que serão, com a mesma frieza, também enumeradas, aliás, é justamente na contagem das três mortes que reside a origem da titulação do conto “túmulo, túmulo, túmulo”. Ressaltamos aqui ainda a opinião de Belazarte ao tentar descrever o que Ellis sentira com a morte da sua mulher. Para ele, o criado não sentiria falta de Dora, da pessoa que ela era, do companheirismo, da amizade; isso deveria ser buscado e encontrado apenas no nosso narrador que “sabia das coisas” (p.98); o que seria difícil a partir de então era a lida com os desejos, a não constância do ato sexual, e nada além, como se o amigo fosse incapaz de desprender sentimentos e se igualasse aos animais, nos quais tudo é apenas instinto. Poucos parágrafos depois, mais uma vez: “número dois”, desta vez ao tratar da morte do filho de Ellis e Dora, o qual apadrinhou, valendo-nos considerar ainda o episódio do próprio batizado, momento no qual as diferenças entre o patrão e o empregado, o superior e o subalternizado, são postas em relevo pelo nosso próprio narrador; e o homem de classe média (à qual Belazarte parece julgar pertencer), por mais se assemelhar ao modelo burguês, esteja à vista para ser imitado: Não paga a pena a gente imaginar que todos somos iguais, besteira! Mamãe, por causa da muita religião, imagina que somos. Inventou de convidar Ellis, mãe e “tutti quanti” para comer um doce em nossa casa, vieram. Foi um ridículo oprimente para nós os superiores, e deprimente para eles os desinfelizes. Estavam esquerdos, cheios de mãos, não sabendo pegar na xícara. E eu então! Qualquer gesto que a gente faz, pegar no pão, na bolacha, pronto: já é diferente por classe da maneira, igualzinha muitas vezes, com _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 13. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 que pobre pega nessas coisas. Parece lição. (p.99). Nosso narrador ainda assume que as caridades prestadas à família de Ellis já não eram mais obras suas, e sim da sua mãe, entretanto, para não deixar escapar de si a admiração do leitor ressalta: “mantimento, remédios, roupa, tudo minha mãe é que providenciava para ele, “conforme desejo meu” ” (p.100, grifo nosso). O ápice da contradição entre a imagem que Belazarte traça de si mesmo e aquela que pudemos constatar aqui, e também da condição submissa que se dá entre o agregado e o patriarca, pode ser observado nos últimos episódios do conto, que culmina na morte de Ellis. Diante do seu inevitável falecimento, a superioridade do outro é demonstrada pelo descaso com que atua, enquanto a dependência do doente em relação ao seu “amigo” é ressaltada pela sua insistência em vê-lo, descaso este que é ilustrado pelas palavras do nosso narrador: “Da minha parte era tudo agora gestos mecânicos de protetor, meu Deus! [...] Ellis creio que não, mas eu á fazia muito que estava acostumado a sentir Ellis morto [...]. No que se agarraria aquele morto em férias?” (p.100- 101); e ainda na sua vaidade que não deixa de ser manifestada nem mesmo diante do “amigo” morto: “Ellis me obedecia ainda com esse olhar. Fosse por amizade, fosse por servilismo, obedeceu” (p.104); “ Pesei a mão no corpo dele pra que me sentisse bem. Ao menos assim, Ellis ficava seguro de que tinha ao pé dele o amigo que sabia as coisas. Então não o deixaria sofrer. Porque sabia as coisas...” (p.104). E mais, a mesma frieza imposta na já tão conhecida enumeração: “número três” (p. 104). Nosso conto, portanto, encontra-se permeado por uma cruel dramaticidade, um contexto de subalternização impiedosa, entretanto, dissimulado e escondido nas palavras destramente articuladas com o propósito manipulatório e alienador, de um homem branco, trabalhador, generoso, apenas um pouco cansado de um negro empregado aproveitador, mas mesmo assim _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0
  • 14. Anais do I Simpósio Nacional Linguagens e Gêneros Textuais – de 28 a 30 de março de 2007 considerado como amigo e ao qual erroneamente costumamos conferir o caráter santificado, acima de qualquer suspeita, até porque a mesma não encontra espaço para se manifestar. REFERÊNCIAS: ANDRADE, Mário de. (1973). Os contos de Belazarte. São Paulo: Livraria Martins. BRAIT, Beth. (1999). A personagem. 7 ed. São Paulo: Ática. REUTER, Yves. (1996). Introdução à análise do Romance. São Paulo: Martins Fontes. SCHWARZ, Roberto. (s/d). A poesia envenenada de Dom Casmurro. In:______. Surgimento da narrativa moderna. São Paulo: Livraria Martins. SCHWARZ, Roberto. (2000). Ao Vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades. _______________________________________________________________________________ João Pessoa, Editora Universitária/EDUFPB, 2007 – ISBN 978-85-7745-074-0