Este trabalho analisa a construção do perfil identitário feminino das protagonistas "Maria" no romance "As três Marias" de Rachel de Queiroz, investigando a relação entre o nome "Maria" e a personalidade fragmentada das personagens. A pesquisa busca entender como as três Marias representam possibilidades reservadas à mulher no contexto amoroso e social retratado, além de evidenciar a tendência modernista da autora
A crítica orwelliana aos regimes totalitaristas hélio pereira barreto
O sublime ser maria... marias uma construção queiroziana de mulher
1. UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS
ELIZIANE PINTO DA SILVA SIMÕES
O SUBLIME SER MARIA... MARIAS: uma construção
queiroziana de mulher
Conceição do Coité
2011
2. ELIZIANE PINTO DA SILVA SIMÕES
O SUBLIME SER MARIA... MARIAS: uma construção
queiroziana de mulher
Monografia apresentada ao Departamento de Educação
da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), curso de
Letras Vernáculas, como parte do processo avaliativo
para obtenção do grau de Licenciada em Letras.
Orientadora: Prof. Ms. Eugênia Mateus de Souza
Conceição do Coité
2011
3. MARIA, MULHER, MARIA
MARIA, MARIA, MARIA...
Tu sabes ser brejeira
Ser gentil e graciosa
E encarnas o amor
És enfim, maravilhosa!
És mulher
És Maria
Dos campos, dos montes, dos mares...
És mulher
És heroína
Dos sonhos, das lutas, dos lares...
Como todas
As marias
Das graças, das dores, dos lugares...
Como todas
As marias
Do Milton, das flores, dos bares...
Maria, Maria, Maria,
Dos poetas, dos rudes, dos místicos
Das latas, dos tronos, dos altares...
Como mãe, irmã ou filha
Pecadora, santa, rainha
Companheira, amada minha
Senhora que a vida quer
És jóia rara que brilha
Maria, Maria, Maria...
Mulher, mulher, mulher!
José Antônio Gama de Souza-Balzac
Leopoldina, MG.
Em um romance, os nomes nunca são por acaso. Sempre
significam, ainda que algo corriqueiro. Escritores cômicos,
satíricos e didáticos podem se dar ao luxo da invenção
exuberante e da alegoria óbvia ao nomear seus personagens
[...].
Autores mais realistas preferem nomes comuns que tenham a
conotação adequada [...]. O batismo dos personagens é sempre
uma parte de sua criação, que envolve muitas considerações e
dúvidas que posso ilustrar, de modo mais conveniente, a partir
da minha própria experiência como romancista (LODGE,
2009, p. 47)
4. DEDICATÓRIA
Com amor à “Maria” mais importante da minha vida:
Maria Amélia – mãe, companheira, confidente, conselheira e, sobretudo, Mulher, que me
incentivou na persistência dessa caminhada e pela força obtida nos momentos de tristeza e
alegria.
5. AGRADECIMENTOS
A Deus, meu criador, presença constante na minha vida, que me orientou por qual caminho
seguir nas horas difíceis e me deu força interior para superar as dificuldades.
Em especial, à professora Eugênia Mateus, pelo modelo exemplar de pesquisadora e
orientadora que colaborou para que essa pesquisa se tornasse possível. Pelo incentivo à arte de
escrever e por me ensinar a ser mais confiante.
Ao professor Deijair, pela orientação, apoio e pelos comentários sobre meus textos,
comentários que me valeram de estímulo.
Aos meus pais, Marcelino e Maria Amélia, pelo amor, apoio e confiança que me fizeram
acreditar que os sonhos almejados poderiam se tornar projetos para hoje chegar a uma grande
conquista.
A Gleidiane, irmã, colega, amiga. Estivemos sempre juntas em todos os momentos da nossa
vida acadêmica. Agradeço pela vibração sincera nas apresentações de trabalho e pela
paciência, incentivo, colaboração e amizade, valores que nos tornam melhores a cada dia.
A irmã Viviane, pelo carinho, pelos conselhos e pelas palavras amorosas que me ajudaram a
superar momentos de aflição nessa caminhada.
Ao meu esposo, Landulfo, pelo respeito às minhas atividades acadêmicas e pessoais, pela
presença em palavras de incentivo a que algo melhor virá!
A Hiago, o pequenino da família, pelo carinho e alegria.
A vovó Terezinha, pela bondade e oração.
A todos que contribuíram para a realização desse trabalho e acreditaram na minha capacidade
de escrita.
6. RESUMO
Este trabalho resulta da pesquisa sobre a construção do perfil identitário feminino – em
constante formação – relacionado ao nome “Maria” e seus subsequentes, bem como a
fragmentação do sujeito mulher a partir de suas vivências amorosas. Com o objetivo de
investigar a relação entre o nome “Maria” e a personalidade de sujeitos fragmentados na
construção do perfil identitário feminino nas protagonistas de As três Marias, de Rachel de
Queiroz, utilizou-se pesquisa bibliográfica pela natureza do objeto. Como aporte teórico,
Cunha (2001) e Hall (2003) discutem a posição de sujeito para as mulheres na busca de
identidades; Showalter (1992) reconhece a divisão da literatura de autoria feminina; Del
Priore (2005) trata da questão do amor; as personagens queirozianas apresentam escolhas
diferentes nas relações amorosas, dentre outras. O conceito de narrativa modernista foi
revisado a partir do ser Maria, mapeado enquanto sujeito que, pelo ato da narração, constrói
suas identidades. O ser feminino comparado ao ser Maria em versões distintas – possuem
prenomes iguais, assumem várias identidades, trilham caminhos diferentes e escolhem o
próprio destino – como representação da quebra de tabus ilustrada nas imagens da escrita
queiroziana. A autora dissolve tradição e ruptura nos perfis desenhados como discurso
histórico imbricado na narrativa literária. Tradição, sublimação e existência femininas
desfilam nas figuras de Maria da Glória, Maria José e Maria Augusta para a reflexão do ser
mulher convencionado socialmente. Marias e amores são o coração da obra ao estilo
queirosiano que rompe com a tradição literária em busca da liberdade de escrita.
PALAVRAS-CHAVE: Feminino. Identidade. Maria
7. ABSTRACT
This work results of the research on the construction of feminine identity profile - in constant
formation - related to the name “Maria” and its subsequent, as well as fragmentation of
women subject woman from their loving experiences. To investigate the relationship between
the name “Maria” and personality of fragmented subject in the construction of feminine
identity profile in the protagonists of As três Marias, Rachel de Queiroz, used bibliographic
search for the nature of the object. As theoretical contribution, Cunha (2001) and Hall (2003)
discuss the position of subject for women in search of identity; Showalter (1992) recognizes
the division of feminine authorship literature; Del Priore (2005) deals with the question of
love; the queirozianas characters present different choices in love relationships, among others.
The concept of modernist narrative was viewed from the Maria being, mapped while subject
who, by the act of narration, builds their identities. Being feminine compared to Maria being
in different versions – have equal first names, assume multiple identities and take different
paths and choose your own destiny - as representation of breaking taboos illustrated in the
images of queiroziana writing. The author dissolves tradition and rupture in profiles drawn as
historic speech presents in literary narrative. Tradition, sublimation and feminine existence
are present in figures de Maria da Glória, Maria José and Maria Augusta to the reflection of
the work of being a woman officially socially. Marias and loves are the heart of the work to
the queiroziano style that breaks with the literary tradition in search of freedom of writing.
KEY-WORDS: Feminine. Identity. Maria
8. SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 08
1 MARIA COMO NARRATIVA MODERNISTA .................................................. 12
1.1 Narrar: um mapeamento do sujeito ............................................................................ 13
1.2 Narrativa e identidade: um tecer continuado .............................................................. 16
1.3 Narrativa e identidade feminina ................................................................................. 21
2 AS TRÊS MARIAS E A ESCRITA QUEIROZIANA: quebra de tabus ............ 25
2.1 Escrever ou não escrever: um desafio feminino ......................................................... 26
2.2 Mulher e escrita: a conquista de liberdade ................................................................. 29
2.3 Até tu, Maria: tradição e ruptura ................................................................................ 32
3 MARIA... MARIAS: amores em construção ......................................................... 36
3.1 Maria José: a sublimação do ser ................................................................................. 37
3.2 Maria da Glória: o retrato da tradição ........................................................................ 41
3.3 Maria Augusta: símbolo do existir feminino .............................................................. 44
.....................................................................................................................................
.....................................................................................................................................
CONCLUSÃO .................................................................................................................... 48
................................
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 50
9. 8
INTRODUÇÃO
A discussão sobre a temática mulher na literatura ganha mais espaço significativo
a partir da década de 1960 com a terceira onda do movimento feminista. A mulher, desde o
século XIX, buscava maior reconhecimento e desempenho nos papéis sociais, porém, sua
função, sob ótica eminentemente patriarcalista, restringia-se ao espaço privado.
Nesse sentido, através do reconhecimento e autonomia vigentes, esse momento
histórico fez com que a escrita feminina desenvolvesse maior visibilidade por meio de
narrativas que revelavam a visão e a experiência da mulher. Retrata-se, portanto, com voz
ativa, o comportamento da mulher através de produções literárias, com abordagem de temas
que discutem, do ponto de vista feminino, o contexto sociopolíticoeconômico, para o desenho
de identidades femininas de acordo às propostas de abertura do espaço social antes,
unicamente, patriarcalista.
A escrita de autoria feminina envolve tanto temas universais como reflete sobre a
importância da história da mulher, com base no seu olhar sobre fatos e experiências
particularizadas de acontecimentos sempre marcados por lutas. Numa sociedade onde a leitura
é considerada via de inclusão social vê-se, como medida importante, este reconhecimento da
voz feminina, assinalado por grandes nomes na literatura.
Rachel de Queiroz – uma das mais significativas autoras brasileiras – é marcada
por ser a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras. Nome que reflete uma
pessoa de índole pacífica, a qual cria em seu universo literário uma imensa paixão pela vida.
Nessa vertente, pode-se constatar que As Três Marias, obra que representa uma tomada de
posição e transformação na temática dos romances que a antecederam, buscam refletir sobre a
posição da mulher no plano amorosossocial.
A leitura da obra de Rachel de Queiroz é de suma importância para a sociedade,
cujo espaço, conhecimento e reflexão sobre as relações profundas das mulheres, completam
seu (de Rachel de Queiroz) objetivo literário: representação do real. Durante as leituras,
observa-se que, através das experiências pessoais de personagens femininas encontradas no
romance, evidenciam-se as possíveis representações reservadas à mulher no contexto social e,
sob a ótica dessa reflexão, reforça-se nesse processo identitário, que cada mulher escolhe e
determina seu destino afetivo, profissional, político e literário.
Este trabalho insere-se nestas discussões e analisa a temática da construção do
perfil identitário feminino mariano nas protagonistas de As três Marias, de Rachel de Queiroz,
10. 9
com o objetivo de investigar a relação entre o nome “Maria” e a personalidade de sujeitos
fragmentados na construção do perfil identitário feminino nas protagonistas desse romance.
Os resultados da pesquisa além de ampliar a fortuna crítica da autora, abrem
discussões enriquecedoras para novas análises sobre a identidade feminina, adicionam
entendimentos sobre a história das mulheres, suas vivências e, posteriormente, podem
expandir esse objeto de estudo para outros trabalhos acadêmicos, mediante nome/perfil
identitário. Além disso, servirá de estímulo para os futuros pesquisadores no campus,
colaborando para a formação discente na graduação e pós-graduação em Letras.
Em As Três Marias (1939), sobressai a construção do perfil de mulheres de nome
“Maria” – significado nobre, consagrado pela Virgem. Uma combinação de nomes que, além
de justificar o título da obra, tem a função de representar vários aspectos da condição
feminina. É o quarto romance de Queiroz (1939) cujo aprofundamento tende a dimensionar o
papel das mulheres na sociedade, através da representação da experiência pessoal das
personagens e da formação das jovens desde a adolescência à fase adulta e as dificuldades do
ser mulher, repercutidas no plano amoroso e social.
De fato, esse romance representa uma mudança profunda no universo literário da
autora, haja vista a figura feminina ser o centro da discussão. Essa inovação revela-se uma
temática fundamental à compreensão de questões identitárias, visto que as relações de gênero
se encontram presentes.
Assim, ao configurar as três personagens: Maria Augusta, Maria da Glória e
Maria José, compondo a tríade que dá nome ao romance, o narrador não estaria trazendo à
discussão questões relacionadas à fragmentação do sujeito mulher, para ressaltar os perfis
identitários femininos a partir da construção relacional nome/personalidade? O percurso
utilizado pelas personagens, na obra, deixa evidentes as possibilidades reservadas à autonomia
da mulher de acordo às suas vivências amorosas? O fato de a escritora ser mulher e escrever
sobre a própria mulher, já não seria um mecanismo para mostrar a tendência modernista que
traz à luta o reconhecimento da escrita feminina? E ainda, qual o sentido de tantas
personagens “Maria” na obra queiroziana? Estes questionamentos guiaram a pesquisa em
busca da confirmação ou refutação de algumas hipóteses.
Desse modo, quando o narrador apresenta as três personagens de nome “Maria”,
possivelmente, elas viriam representar a fragmentação do sujeito mulher, pelo fato de
trilharem caminhos diferentes. Ao observar as suas trajetórias, cogitou-se que elas
representassem três possibilidades reservadas à mulher no contexto amorosossocial retratado
11. 10
na obra. Mediante tais colocações, supôs-se que as personagens apresentadas, configurassem
o universo feminino pela escolha de ser mãe, ser freira, ser livre e ser mulher. Provavelmente
Queiroz (1939), ao escrever As Três Marias, estivesse evidenciando a tendência modernista:
retratar a luta das mulheres pelo reconhecimento do trabalho de escrita feminina frente a uma
sociedade ainda regida por parâmetros patriarcalistas, os quais depositam no homem a função
de único sujeito pensante. E mais, quando Rachel de Queiroz constrói suas narrativas, talvez,
utilize-se de elementos lingüísticos como o nome próprio “Maria” para fortalecer tanto a
feminilidade na construção de identidade feminina, como também para mostrar o poder de
referência que a Virgem exerce no meio social.
A investigação para as respostas ao estudo sobre As três Marias foi aplicada com
procedimento metodológico fundamentado na pesquisa bibliográfica, já que o objeto de
pesquisa exige esse critério. Nessa perspectiva, a leitura de textos críticos e teóricos tornara-se
prática constante para fichamentos, comparações e análises das diferentes concepções e,
conseqüente, escrita do texto que destacou aspectos relevantes das personagens femininas,
inseridas na obra, objeto de estudo da pesquisa.
A leitura de As três Marias neste trabalho está dividida em três capítulos
subdivididos em três secções, como fios condutores das protagonistas na sua tentativa de
afirmação e autorrealização.
No primeiro capítulo, são apresentados conceitos sobre narrativa modernista, o
contexto relacionando a obra em análise; aspectos referentes à estrutura narrativa e o sujeito
moderno; de que maneira narrativa e identidade estão sempre imbricadas com a construção do
sujeito e como a narrativa constrói imagens e afirmam a construção feminina.
No segundo capítulo, são abordados alguns aspectos da escrita de Rachel de
Queiroz, a questão da mulher que rompe paradigmas literários e sociais e chega à conquista
da liberdade: a escrita feminina.
Por último, são analisadas as três protagonistas do romance As três Marias, a fim
de apontar aspectos repercutidos nos planos amoroso e social, haja vista as três personagens,
embora possuam prenomes iguais, apresentam personalidades distintas e assumem, portanto,
diferentes identidades.
Ao observar a vida das protagonistas, os seus papéis, suas práticas de sujeição e
até mesmo de recusa, a trajetória feminina é estabelecida a partir da visão de mundo de cada
uma das personagens. Queiroz (1939) utilizou-se do encontro de arquétipos religiosos,
12. 11
tradicionais e transgressores que se tornaram grandes estereótipos, para reconstruir o universo
feminino de sua época.
Na verdade, quando a autora constrói suas personagens não mostra somente como
era a forma de vida delas, mas demonstra que, através da escrita, as mulheres tornam-se
sujeitos de sua história construindo a sua própria identidade. Além disso, são personagens que
representam perfis de mulheres que se destacam no mundo de dominação masculina, uma vez
que, cada uma conserva e/ou rompe, ao seu modo, as convenções vigentes da época.
13. 12
1 MARIA COMO NARRATIVA MODERNISTA
O Modernismo surge como uma categoria artística carregada de textos
diferenciados e condicionados pelas mudanças revolucionárias do início do século XX. O
triunfo e a afirmação desse período se deram em termos mundiais entre as décadas de 20 e 30.
O novo e a inovação registram um caminho com percurso diverso daquele até então seguido,
determinando variações estéticas e temáticas, com a inclusão da urbe nas discussões. Embora
mostrem o desapego às raízes, representam sentimentos de desconforto, alienação, náusea
existencial.
No plano do romance, substitui a maturação orgânica pela representação
alegórica, subjetividade profunda, epifanias oriundas de uma formação social de consciência.
O homem, um ser solitário, um herói limitado às suas experiências.
A inegável queda da burguesia, como classe, encontra-se representada num
mundo agora fragmentado. A literatura modernista situa-se em um momento de
racionalização, no mundo acelerado pela máquina, pelos ferros – lembrança de jaula,
portanto. Abandono do carisma seja individual ou comunitário.
Modernismo, pois, tornara-se tendência à multiplicidade da personalidade, ao
paradoxo de emoções e sentimentos, ao abandono das forças subconscientes e ao domínio da
intelectualidade na arte. Arte da modernização, um cataclismo cultural, o modernismo é a
autorrealização da literatura na sua natureza como forma; uma experimentação contínua;
novas formas de narrativização.
Este processo aponta a narração como enunciação da narrativa, isto é, a sua
realização. Vale ressaltar atenção à dinâmica da narrativa na relação descrição/narração. A
apresentação dos fatos, dada pela narração, dá-se a partir do tempo e do espaço, com a ação
de uma ou mais personagens. Uma expressão da prosa de ficção, acompanhada por processos
descritivos, dialógicos e dissertativos.
A narrativa, realização estética do gênero narrativo literário, apresenta-se na
literatura como uma das partes da epopeia; um modo do discurso interposto entre o lírico e o
dramático. Torna-se discurso pela voz do narrador. Portanto, narrar é um ato para o
mapeamento do sujeito cujas referências são enunciadas por uma voz com delimitação
espaciotemporal que “co-manda” a narrativa aos olhos de um leitor atento e curvado para a
situação a fim de desvendar identidades que, por um tecer continuado, atendem ou não à
expectativa de uma sociedade historicamente organizada.
14. 13
No caso de As três Marias, de Queiroz (1939), encontram-se demarcadas três
mulheres de personalidades diversas, nomes aproximados, possivelmente, escolhidos
propositadamente para definir perfis femininos emoldurados pela narrativa para descarregar
singularidades e destinos, assim como determinam os escritos modernistas que buscaram
revolucionar os caminhos da literatura e dos olhos da sociedade sobre as condições impostas
aos sujeitos mais fragilizados.
1.1 Narrar: um mapeamento do sujeito
A literatura, na sua condição de arte, tem uma dimensão vasta no que se refere à
totalidade do fenômeno artístico, assim como a variedade de conteúdo e forma entre os textos.
A narrativa literária, por seu caráter universal, está fortemente ligada ao discurso que
apresente uma história imaginária, determinada por um tempo e um espaço, constituída por
uma pluralidade de personagens, e que resulta, portanto, na representação da arte de narrar.
Nesse sentido, a possibilidade de constituição de tais narrativas está fortemente atrelada a um
sujeito da criação, cuja existência proporciona a produção autêntica desse discurso.
A predominância da narrativa tornou-se uma constante nos estudos literários
desde os anos 60, já que em outrora, a literatura constituía-se apenas de poesia e, somente no
século XX, o romance torna-se o centro das produções. A escrita narrativa passa a dominar e
proporciona prazer ao traçar os enredos da trajetória humana, oferecendo formas aos
acontecimentos para transformá-los em história e textos únicos. Esse prazer de narrar se
vincula ao desejo. Os enredos falam do desejo e do que acontece com ele, mas o movimento
da própria narrativa é impulsionado pela vontade de saber e querer descobrir segredos, saber o
final e encontrar a verdade (CULLER, 1999, p. 92). Nesse contexto, o conceito de narrativa
abrange uma variedade de formas de literatura, desde o conto até poemas mais curtos, não se
restringindo, portanto, ao romance.
Diante das múltiplas possibilidades de criação literária que rege a narratividade, é
preciso destacar as ideias de Barthes (apud D‟ONOFRIO, 1999, p.53) quando afirmam que
são inumeráveis as narrativas do mundo e que, por sua vez, podem ser sustentadas pela
linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, distribuída entre substâncias diferentes,
presentes no mito, na fábula, no conto, no romance, na novela, na lenda, na pintura, na
15. 14
história, na conversação, enfim, em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as
sociedades.
Apesar da multiplicidade de formas quase infinita, o enfoque deste trabalho volta-
se à narrativa literária, especificamente, o romance, a fim de perceber os elementos
constitutivos do fato narrado bem como questionar, senão buscar a posição do sujeito na
produção de narrativas modernistas. Nesse caso, torna-se de grande importância o modo de
apresentar o narrador dentro da história. Segundo D‟Onofrio (1999, p.54), “na arte da
narrativa, o narrador nunca é o autor, mas um papel por este inventado: é uma personagem de
ficção em que o autor se metamorfoseia”. Independentemente, pois, de se conhecer o autor,
qualquer produção literária pode ser estudada e analisada, haja vista narrador e escritor
possuírem papéis distintos.
Além do narrador, há os personagens que, normalmente, assumem posições
constituídas de conflitos a serem assumidos diante da vida – uma relação que necessita de
leitores determinados a buscarem laços ou estilhaços que tecem o clímax de uma narração.
Estas rápidas considerações propõem dizer que, os valores e conflitos assumidos
pelos personagens e o discurso apresentado, constituem a base de uma narrativa literária, visto
que essas etapas sustentam-se a partir de um narrador que traz uma tomada de posição e,
consequentemente, uma ideologia que marcará o final do texto. E é exatamente por isso que o
leitor deverá ter o máximo de cuidado para não ser manipulado pelo próprio narrador.
Estas relações intrínsecas às criações literárias da tradição se mantêm século XX
afora. Nessa perspectiva, é necessário apontar para a ficção moderna, já que uma das grandes
características do romance modernista é o tema da arte do próprio romance, pois leva o leitor,
“obrigatoriamente”, a ir além do conteúdo narrado, envolvendo o receptor em sua ordem de
significações. De acordo a Lodge,
[...] um romance moderno não tem um verdadeiro “começo”, visto que nos
faz mergulhar num fluxo constante de experiência, com o qual nos
familiarizamos progressivamente por um processo de inferência e
associação; o final geralmente é “aberto” ou ambíguo, deixando o leitor em
dúvida quanto ao destino final das personagens (apud BRADBURY;
McFARLANE 1989, p. 394).
A partir das reflexões e das mudanças drásticas na vida do homem surge o
Modernismo com a Semana de Arte Moderna de 1922 e, posteriormente, a noção de
intertextualidade ganha um impulso. No início do século XX, os artistas passaram a utilizar
16. 15
técnicas como a paródia, a paráfrase, a colagem etc. De fato, a intenção naquele momento
seria abolir todas as regras, nada de modelos a seguir, uma busca pelo novo sem perder
originalidade ou autenticidade. O Modernismo chega ao Brasil através das Vanguardas, abre
novos horizontes e repudia o passado e suas artes. A partir de 1928, o Modernismo Literário
Brasileiro expõe inovadores e irreverentes princípios marcados por Oswald de Andrade, que
lança o Manifesto Antropófago como propostas de renovação cultural. Bosi confirma estas
ideias quando escreve sobre a Semana de 22: “a emergência do novo é sempre um ponto
nevrálgico para a história da literatura [...] como a tônica do grupo foi a modernização da
linguagem, [...] a semana pretendeu ser a abolição da República Velha das Letras (2003, p.
209-10).
Desse modo, a linguagem da ficção moderna traz muitas características
relacionadas às questões apontadas até então, como por exemplo, a forma experimental ou
inovadora e grande preocupação com a consciência, a fim de ceder espaço à introspecção, ao
que David Lodge afirma:
[...] a ficção moderna evita o ordenamento cronológico linear em seu
material, e abstém-se de empregar um narrador confiável, onisciente e
intervencionista. No seu lugar, ela emprega um único ponto de vista limitado
ou múltiplas perspectivas, todas mais ou menos limitadas e falíveis [...]
(LODGE apud BRADBURY; McFARLANE 1989, p. 394).
A reflexão empreendida até aqui sobre o espaço da literatura na modernidade
permite identificar os nomes de alguns romancistas classificados como modernos que
mostram praticamente todas as características apresentadas anteriormente ou mostram apenas
algumas, ou ainda pertencem a uma fase inicial do modernismo e conservam alguns ajustes da
ficção tradicional como Manuel Bandeira, por exemplo. A partir dos romancistas dos anos 30,
é possível destacar Graciliano Ramos, Jorge Amado, Marques Rebelo, José Lins do Rego,
Érico Veríssimo e, em especial, Rachel de Queiroz – escritora que, embora usasse dos pontos
mais altos de sua preocupação humanista, a terra e a tradição nordestinas, utilizou-se da
introspecção (característica marcante da ficção moderna) para escrever As três Marias
(19391), uma vez que opta pelo ponto de vista interno e, naturalmente, surge uma maior
preocupação com a análise psicológica das personagens. Sobre seu ponto de vista como
1
Ano da publicação da obra.
17. 16
sujeito da narrativa, Rachel de Queiroz parece ser a identificação profunda do universo
feminino com o universo de um poder regional quase histórico.
É possível afirmar que a literatura moderna, mais especificamente o romance,
tenha uma função determinante na constituição dos sujeitos que, por sua vez, também
modernos, apresentam características por um lado, de indivíduo único e singular, por outro, de
um ser psicológico, voltado à fragmentação. Hall (2003, p. 13) define como um sujeito que
não possui uma identidade essencial ou permanente, ela é formada e transformada de acordo
ao sistema cultural que o indivíduo está inserido.
Em relação ao sujeito moderno como personagem da narrativa, importa observar o
ângulo em que são voltados os protagonistas da obra de Rachel. São protagonistas femininos
que desenham o perfil de mulheres – senhoras –, um modelo matriarcal em escala menor,
porém, extremamente poderosas ou, em determinadas circunstâncias, tipos rebeldes.
As obras podem ser consideradas constitutivas do sujeito moderno; são
exatamente aquelas representantes de romances que explicam o funcionamento da sociedade
capitalista nascente. Elas produzem sentidos aos sujeitos leitores, principalmente, pela
possibilidade de ativar mecanismos identificadores, responsáveis pela formação dos padrões
subjetivos próprios ao individualismo moderno entre leitores e personagens.
Desse modo, entende-se que o ato de narrar mapeia incontinenti os sujeitos e a
literatura se utiliza de conteúdos e formas várias, mas com o propósito de processar através do
fenômeno artístico textos verossímeis de uma verdade factual. Narrativa e discurso
adicionados ao imaginário somatizam a representação dos sujeitos e, por conseqüência, das
identidades.
1.2 Narrativa e identidade: um tecer continuado
A relação entre narrativa e identidade está sempre imbricada com a construção do
sujeito. Desta maneira, a criação de um texto representa um ato de construção da identidade,
pois o sujeito, ao escrever, adota certas práticas discursivas. É a partir do diálogo com
diferentes discursos existentes no meio social, da reflexão sobre os diferentes papéis
assumidos nesses diálogos que se constitui o processo identitário.
Nesse caso, é por meio da narrativa que o sujeito atribui sentido às suas
experiências sociais, àquilo que vivencia e que pretende alcançar e, por consequencia,
18. 17
constrói a sua identidade em relação ao grupo social a que pertence, já que se utiliza da escrita
para representar a realidade através de suas experiências e imaginação.
Na modernidade, a figura do autor traz uma representação simbólica que o coloca
em evidência, haja vista, a obra exija necessariamente da presença do artista criador, sem
subestimar narrador, personagem e/ou leitor – elementos também fundamentais da
comunicação artística. Há uma inegável rotatividade nessa representação da figura do autor,
pois, no período medieval e antigo o sujeito, enquanto autor, não era reconhecido
completamente pelas suas produções. A oralidade era o veículo responsável pela divulgação
das narrativas. A existência do alto índice de analfabetismo facilitava o processo não
questionado, reforçando a desimportância do autor.
No período moderno com a cristalização da figura do autor como uma
necessidade da existência de um indivíduo que caracterizasse certo modo de ser do discurso,
que assumisse o sujeito criador do texto e, principalmente, atribuísse suas marcas identitárias,
importa ressaltar que na modernidade, conforme afirmação de Santos (2003, p. 135), as
“identidades são, pois, identificações em curso”. As identidades culturais, mesmo as mais
sólidas como a de mulher, por exemplo, são resultados transitórios que estão em constante
processo de transformação.
Essa questão, extremamente conflitiva, pode ser acompanhada na obra de Rachel
de Queiroz nas personagens do romance As três Marias. Nela se observam vários caminhos
trilhados pelas protagonistas em busca de afirmação pessoal: Maria da Glória encontrou seu
destino no casamento e na maternidade; Maria José, o protótipo da solteirona, dedicou a
maior parte de seu tempo a orações, ainda que trabalhasse como professora primária e vivesse
angustiada por dúvidas religiosas e pelo medo de fraquejar ao poder da carne; Maria Augusta,
a Guta, também solteira, vivia um mundo de conflitos e sua trajetória existencial complexa, ao
deixar o colégio, levou-a a recomeçar a sua vida longe da família fato que obrigou a buscar
um trabalho como a única maneira de tornar-se independente: “Comecei a trabalhar. E
parecia-me que a felicidade começava. Viver sozinha, viver de mim, viver por mim, livrar-me
da família, livrar-me das raízes, ser só, ser livre!” (QUEIROZ, 2009, p. 82). Entretanto,
mesmo com o emprego se vê cansada e o trabalho a decepciona. Além dessas desilusões,
ainda vive atormentada pela experiência sexual fora do casamento, já que essa conduta era
incompatível às normas impostas pela sociedade da época, isto é, aquelas que lhe foram
impostas também.
19. 18
Esse trânsito de papéis vivido por cada uma das personagens confirma as ideias
estabelecidas anteriormente por Santos (2003), que lembra que cada sujeito é identificado a
partir de suas vivências e constantes processos de transformações. Essa teoria integra-se ao
conceito de Hall (2003, p. 38) quando salienta que “a identidade é realmente algo formado ao
longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência
no momento do nascimento”. Nesse sentido, a literatura tematiza a busca de construção de
identidade nas narrativas de autoria feminina dos anos 70 e 80 de forma dramática, já que essa
geração viveu todo o processo de luta contra o que estava estabelecido na época.
A partir dos aspectos abordados, o nome de autor passa a ter uma função mais
classificativa, a qual o caracteriza pelo funcionamento de determinado discurso, como ser
proprietário de sua obra. Segundo Foucault (apud DORIGATTI, 2004, p.02), “a noção de
autor constitui o momento forte da individualização na história das ideias, dos conhecimentos,
das literaturas, na história da filosofia também e na das ciências”. Dessa forma, para Foucault
a questão do autor está fortemente ligada ao agrupamento do discurso que delimita
determinados textos e que traz o valor dessa produção com coerência e unidade.
De fato, ao escrever, o autor coloca as suas marcas na composição da sua obra,
justamente porque cada um tem sua lógica, sua tônica para falar do mundo, seja este
psicológico, romântico, moderno. Rachel de Queiroz, através da escrita, representa em suas
obras, conflitos e situações que dizem respeito à condição feminina, haja vista a mulher ser o
elemento acionador de sua ficção.
Nos romances As Três Marias, Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura,
observa-se, por exemplo, todas as protagonistas buscam o mesmo objetivo: a identidade
existencial, procurando uma resposta para seus questionamentos a respeito do que fazer com a
existência, cuja resposta vai surgindo ao longo da trajetória de cada uma. “[...] para que ser
afinal uma mulher, se a vida continuava a mesma e o crescimento não me libertara da
infância?” (QUEIROZ, 2009, p.82).
As Três Marias, tratado sobre a emancipação feminina, segundo a própria autora,
é o romance mais autobiográfico. Essa declaração pode ser comprovada a partir de
experiências vivenciadas pela autora que “fez coisas diferentes do que se espera, diferente do
que os outros fazem, sem aceitar conselhos, sem ligar para a opinião de ninguém” 2. Maria
Augusta - personagem e narradora de As três Marias é um exemplo claro para demonstrar
2
Palavras de Maria Luiza, ao referir-se à irmã famosa, no livro de memórias Tantos anos, que ambas assinam.
Essa declaração está expressa na orelha do livro As três Marias.
20. 19
essa situação, haja vista escritora e personagem viverem sob as sombras de uma sociedade
patriarcalista.
Guta, protagonista da história, assume o relato de suas próprias experiências e a
dos demais personagens – caracterização do narrador autodiegético 3 -, embora escolhesse um
caminho em busca de independência e mais tarde tivesse que voltar à casa dos pais
decepcionada, mas por decisão pessoal. Rachel de Queiroz fez coisas diferentes, porém, foi
uma escritora de sucesso desde o seu primeiro livro O Quinze e ao longo dos tempos deixou
entrever sua preferência pelos temas que tratam de mulher.
Logo, se o destino da obra está ligado a esta circunstância, fruto da iniciativa
individual, isso quer dizer que narrativa e identidade surgem como algo indissoluvelmente
ligado: a obra só existe porque alguém a faz. Sobre esse aspecto, Candido ressalta que:
O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o
seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o
seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele
combina e cria ao devolver a realidade (2002, p. 18).
Partindo do pressuposto de que a produção escrita depende de posição social e de
papéis definidos em função dela, verifica-se que toda obra literária depende do efeito que
causa no público e da estética da recepção, uma vez que o discurso narrativo exige intensa
participação do leitor para a sua decodificação, o que faz manter uma relação intrínseca entre
obra, autor e leitor.
Nenhuma obra pode ser dissociada do contexto sociocultural, visto que a realidade
dela não se desliga. Essa relação - obra e realidade - compreende, portanto, mundo interno e
mundo externo, respectivamente. Este aspecto justifica essa diferença na constituição
estrutural, pois obra existe porque leitor visualiza uma perspectiva do mundo externo. Em As
três Marias, a autora, ao descrever suas personagens, traz indícios da sociedade vivenciada e
traça perfis diversos para mostrar tanto a transgressão da mulher, como representar o reflexo
da figura feminina num contexto sociocultural regido por uma sociedade patriarcal, na qual a
submissão ao marido e aos afazeres do lar faziam-se presentes: “Pois não é uma virtude
defender os seus filhos, o seu marido, a sua enteada, a sua louça? Ah, ver minha madrasta
3
Designação usada por Genette (apud BARBOSA, 1999) para o estudo do ponto de vista da narrativa: o
narrador responsável é agente (protagonista ou comparsa) da história; quando ele é o próprio protagonista, a
focalização recebe o nome de autodiegética.
21. 20
ralhar com a copeira porque quebrou um prato! E aquilo não é uma investida contra o
patrimônio familiar, um roubo „ao suor do marido‟” (QUEIROZ, 2009, p.53-54).
A dialética entre o social e o literário registra-se a partir da influência exercida
pelo meio social sobre a obra ou pela obra de arte sobre o meio. Essa questão pode ser
explicada: a primeira tem a função de definir a posição e o papel do escritor - que dependerá
da ação de fatores do meio para expressar na obra, enquanto a segunda produz sobre o
indivíduo um efeito que pode modificar sua conduta reforçando valores sociais
correspondentes à realidade.
Nessa perspectiva, cabe à literatura investigar as influências exercidas pelos
fatores socioculturais, pois o foco de estudo numa obra não é a sua superficialidade, mas toda
a complexidade do sujeito para chegar a sua grandeza. As três Marias mostram a insatisfação
da mulher com seu lugar de submissão e questionam o leitor sobre os valores cristalizados no
imaginário social e o conflito que se instaura entre o desejo de emancipação e o de liberdade
doméstica a que era destinada.
Da interação, autor, obra e leitor, depende a escrita narrativa. Candido comenta a
ação recíproca de ambos:
[...] a arte é [...] um sistema simbólico de comunicação inter-humana, ela
pressupõe o jogo permanente de relação entre os três, que formam uma
tríade indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor
não se realiza, pois ele é de certo modo espelho que reflete a sua imagem
enquanto escritor. Os artistas incompreendidos, ou desconhecidos em seu
tempo, passam realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu
valor. Deste modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua própria
obra (2000, p. 38).
Por meio da escrita, o leitor busca, nos textos que lê, a presença do sujeito criador
quem concede liberdade para interpretá-lo. O exercício leitor permite a busca das
características presentes e que mostram o diferencial entre cada autor.
É visível na narrativa, o comportamento, os costumes de uma época. Queiroz
define parcialmente um sentido para suas relações sociais na literatura e para sua identidade
como escritora. Leva em consideração a intimidade da obra, observa os fatores atuantes na
organização, através de um processo de entrelace entre aspectos de suas experiências sociais e
elementos de sua imaginação: sua relação com a sociedade, sua identificação de feminino
com o pessoal – sinalização de sua principal estratégia no campo literário e na vida pública.
22. 21
Vale salientar, portanto, que os conceitos de narrativa e identidade estão
entrelaçados. A estrutura narrativa está fortemente ligada à formação identitária daquele que a
faz e, consequentemente, o papel exercido pelos personagens em diferentes situações na busca
por sua identidade.
1.3 Narrativa e identidade feminina
A literatura, como representação da realidade apresentou alguns conceitos
patriarcalistas no que diz respeito à figura feminina. A mulher, como protagonista das
narrativas foi descrita a partir de normas impostas por uma sociedade tradicional, na qual era
determinada a obedecer aos padrões estabelecidos por pais e/ou maridos. Ao narrar a
trajetória feminina numa busca pela afirmação da identidade, esse conceito de mulher
enquanto papel de submissão permaneceu impregnado no pensamento intelectual brasileiro,
no qual o homem sempre fora visto como o único ser pensante, capaz de descrever e
direcionar o comportamento feminino em narrativas literárias.
Entre as escritoras que aparecem no final do século XIX e início do século XX,
Rachel de Queiroz, apresenta-se em destaque, já que as questões que envolvem a escrita de
autoria feminina e a construção do eu feminino constituem-se presentes em suas obras. Em As
três Marias, a autora expõe temas que refletem com intensidade o papel da mulher na
sociedade, haja vista o narrador apresente as jovens Marias morando em um colégio interno
de orientação católica. Nesse espaço, percebem-se as limitações apregoadas pelos modelos de
submissão vinculados aos paradigmas de identidade feminina construídos pelas tradições
patriarcalistas.
O colégio era grande como uma cidade, todo fechado como uma cidadela,
todo fechado em muros altos. [...] De um lado vivíamos nós [...] tocando
piano, vestindo uniforme de seda e flanela branca. [...] rodeando outros
pátios, abrigando outras vidas antípodas, lá estavam meninas silenciosas,
vestidas de xadrez humilde, aprendiam a trabalhar, coser, a tecer as rendas
dos enxovais de noivas que nós vestiríamos mais tarde, a bordar as
camisinhas dos filhos que nós teríamos [...] (QUEIROZ, 2009, p.25).
O regime patriarcal não permitia à mulher questionar os valores de sua cultura,
nem as deixava livrar-se do estereótipo de inferioridade. Ao descrever a figura feminina, o
homem baseava-se em um discurso para atender aos próprios interesses e aos da sociedade
23. 22
onde estava inserido. Diante dessas concepções, tornam-se de grande relevância as ideias de
Cunha, quando expõe:
[...] que a identidade feminina forjada pelo regime patriarcalista não admitia
questionamentos nem contestações, já que as desigualdades pareciam
justificadas sob a alegação de fazerem parte da essência do masculino
(superior e dominador) e feminino (inferior e subordinado). Uma vez
considerados naturais e inatos, esses valores da cultura eram tidos por
imutáveis e, portanto, inquestionáveis (2001, p. 24).
Os homens, para construir posição de sujeito para as mulheres, tomam a si
próprios como referência. Elas são mencionadas nas narrativas somente como significantes de
uma identidade masculina partilhada por meio de um discurso que revela a acomodação das
mulheres enquanto sujeito incapaz de fundar uma identidade plena. Contudo, a identidade
pode mudar de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a
identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida (HALL, 2003, p.21).
No entanto, diante de uma sociedade marcada pela competitividade através de
uma busca desenfreada por melhorias na condição de vida humana, essa mulher submissa não
cabe mais nesse contexto. Na busca pela construção de uma identidade feminina, a mulher
tentou romper o silêncio com o qual sofreu ao ser representada nos romances de autoria
masculina. Esse processo de rompimento se deu através da escrita, uma vez que a
representação da mulher seria descrita de maneira diferente daquelas representadas por
escritores.
A mulher buscava a construção identitária e, apesar do contexto literário e social
onde vivia, começou a desprender-se dos paradigmas impostos pela sociedade patriarcal.
Embora Queiroz, ao escrever seus textos, apresentasse a imagem de um protótipo de mulher
enquadrado no modelo de esposa e mãe, muito bem retratada na figura de Maria da Glória,
não se deixa silenciar, pois cria outros arquétipos de mulher. Maria Augusta, apresentada na
mesma obra, acaba rompendo com alguns valores tradicionais convencionados socialmente.
Nesse percurso de análise, observa-se que diante de todas as personagens criadas
pela autora, Rachel traz ao público Memorial de Maria Moura (1992) com uma protagonista,
símbolo do protótipo de mulher guerreira que, assim como Guta, vive segundo as suas
expectativas e não as da sociedade. Entretanto, a primeira, capaz das maiores transgressões,
não se sentia culpada, o contrário de Guta que, às vezes, vivia abatida por suas próprias ações.
24. 23
“Você vive tão deprimida, Guta, tão triste! Sempre foi precoce; [...]” (QUEIROZ, 2009,
p.159).
Ao se tornar sujeito do discurso, a mulher questionou a diferença que marcara sua
inferioridade, seu lugar social, seu autorreconhecimento e seus valores considerados até então
perdidos ou escondidos. A partir dos anos 70 e 80, um novo quadro se inseriu na história da
mulher. Houve mudança no seu lugar social enquanto autoria feminina, porque, em suas
narrativas, a mulher passou a sujeito do processo de criação e protagonista na história da
realidade - enquanto sujeito que lutou contra o que se estabelecera desde séculos -, os
momentos reivindicatórios do período em questão. Todos esses aspectos mostram a
reconstrução identitária que rege o universo literário feminino e a possibilidade de expressão
da mulher, já que,
[...] a identidade não pode evitar uma referência aos gestos que modulam o
cotidiano e que situam o olhar feminino sobre a vida em um ponto de vista
específico, balizado por uma acumulação de experiências, por um estar no
mundo que lhe é próprio. A identidade feminina é tributária de uma espécie
de cultura das mulheres que como tradição, marca a experiência existencial
de todas elas (PAULA apud CUNHA, 1999, p. 89-90).
No que se refere à identidade feminina, enquanto personagem das narrativas,
verifica-se que o modelo da mulher do lar veio se modificando a partir da escrita de autoria
feminina. A atividade profissional da mulher que era considerada sem valor próprio, em
várias narrativas aparece como uma exigência individual e identitária, como uma busca para
se realizar e autoafirmar-se. Essa busca pela afirmação pode ser relacionada às figuras de
Maria José e Guta, em As três Marias, quando a primeira resolve trabalhar fora de casa para
ajudar também a família: “ensinava numa escola de arrabalde” (QUEIROZ, 2009, p. 85). A
segunda decide morar “sozinha” e trabalhar para a sua independência na luta por afirmar-se
como protagonista de sua própria vida. “Primeiro fui morar em pensão, na casa de uma
parenta de papai. Mas o quarto era pequeno e caro; o ordenado do emprego ficava todo ali [...]
Depois fui morar com Maria José [...]” (p. 85).
Portanto, a partir de As três Marias, a autora apresenta personagens que apesar de
viverem juntas desde a adolescência à idade adulta e possuírem iguais prenomes, buscam
caminhos diferentes com a possibilidade de escolha de seu próprio destino. Maria Augusta e
Maria José são exemplos que demonstram esse pensamento: “Criadas juntas, vivendo juntas,
identificadas nas mesmas afeições. Entretanto, éramos como duas mulheres diferentes e
25. 24
língua estranha” (p. 193). Deste modo, essas personagens exercem na narrativa diferentes
papéis em diferentes situações: são filhas, estudantes, amigas, amantes, profissionais, não
desempenhando, portanto, uma identidade definida, fixa. Essa questão é julgada como algo
extremamente complexo, uma vez que, de acordo com Stuart Hall, “A identidade plenamente
unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2003, p. 13).
Sem dúvida, a obra em questão esboça várias alternativas para a vida da mulher.
Uma narrativa literária constituída de conflitos entre personagens que apontam tanto para a
questão das relações familiares quanto os relacionamentos afetivos. Rachel de Queiroz
construiu o romance no qual o eixo central não está no casamento – como é predestinada a
mulher do século XIX, que é restrita também a casa e interditada para a vida pública, mas na
busca de uma identidade feminina, que investe na vida profissional e rejeita uma identidade
apoiada quase que exclusivamente nos papéis domésticos e nas convenções patriarcalistas.
26. 25
2 AS TRÊS MARIAS E A ESCRITA QUEIROZIANA: quebra de tabus
A escritora Raquel de Queiroz traceja um estilo sóbrio, simples, elegante e na
exata medida. Uma riqueza de uniformidade de escrita que provocara polêmicas no meio
literário. Torna-se, pois, inegável seu estilo voltado à documentação em romance de lutas
sociais sem artifícios, mas de modo direto e objetivo seus diálogos e ações são demonstrações
realistas.
Destacou-se na ficção social nordestina. Marcou a história da literatura brasileira
e, com o romance O Quinze, renovou a ficção brasileira, com base nas raízes populares. A
escrita queiroziana representa espírito de justiça, graça, alegria, leveza, rigor e esperança.
Não só a arte, mas a mulher também atingiu maiores níveis nos segmentos sociais
com o trabalho de Raquel de Queiroz. A escrita enquanto desafio feminino tornara-se
respeitada. A mulher já se manifestava na luta por espaço público, a obra da autora, no
entanto, deu abertura maior às discussões, isto é, o significado de sua escrita surtira efeito em
ampla dimensão. Este fato despertou desconforto para o clube de autores já consagrados.
Mulher e escrita inscreveram-se numa mesma perspectiva em favor de uma
retomada de vida e de uma ressignificação de papéis e funções sociais. A maestria dos jogos
das sentenças, na obra, desliza e desfere encantamentos para um novo pronunciamento: pela
voz feminina, desenha-se a mulher como ela mesma se vê, se entende, se sente e deseja ser.
O desafio inicialmente jocoso deslumbra os pensadores da época e começam
aparecer as fissuras nas ideias patriarcais. Quem são, afinal, as mulheres que se revelam?
Quaisquer delas desejavam saciar a curiosidade sobre a vida pública, emitir opiniões,
desempenhar funções, declinar sua competência e elencar motivos absolutos que justificassem
o movimento em detrimento dos pensamentos obsoletos.
Dentre todos os nomes, um passeia frequentemente pela obra de Raquel de
Queiroz: Maria. Insuficiente uma só, escreve As três Marias. Algum sentido muito forte traz
tantas Marias para se cruzarem em seus destinos e revelarem em suas diversidades. Maria
sempre aparecera na literatura seja na tradição seja na ruptura.
Maria, Maria, Marias... Até tu? Com descrição de tantas Marias de vidas nada
iguais nem mesmo severinas (O reverso da obra Morte e vida Severina), esse prenome vem
seguido de outros distintos marcadores de destinos distantes e próximos. São mulheres, fato
insignificante diante de vidas desiguais. É a vida de cada uma que se retrata diversa e
27. 26
necessitada de compreensão e espaço de revisitação social, como símbolo de novo tempo,
novos conceitos, novos pensamentos.
Enfim, Raquel de Queiroz cria a imagem da sociedade patriarcalista que se vê
através das páginas-espelho as quais refletem a representação do real e abre-se ao
redimensionamento do olhar sobre a mulher e a escrita original.
2.1 Escrever ou não escrever: um desafio feminino
O século XIX foi marcado por constantes mudanças sociais, principalmente, no
que diz respeito à condição feminina. A partir dessa época surgiram os movimentos sociais
que redefiniam o papel da mulher na sociedade.
O período também fora considerado como o século do romance. Embora surgido
no século XVIII, o romance moderno passa a empregar em seus enredos, contextos
individuais para cada época, ao invés de mitologias e lendas.
A escrita e a leitura constituíam-se nesse período como formas de dominação;
eram poucas as pessoas que sabiam o exercício da leitura. Entretanto, no século XIX, o
público leitor torna-se mais crescente, sobretudo de mulheres, ainda que burguesas, mas que
ocupavam a maior parte.
Desse modo, o discurso foi apresentado no século XVIII sobre a mulher
definindo-a, “quando maternal e delicada como força do bem, mas, quando „usurpadora‟ de
atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal” (TELLES,
2007, p. 403). O discurso formulado pelos homens deixa entrever a situação em que era
predestinada à mulher desse período: casar para ajudar o marido, ter filhos para educá-los e
como chama Woolf (1989) ser “A Fada do Lar 4”.
De fato, era-lhe negado o poder da criação, contudo, a mulher não desistiu. A
partir do século XVIII muitas delas começaram a escrever e até publicar na Europa e nas
Américas. Ensinadas exclusivamente a exercer habilidades domésticas, eram excluídas de
participarem da vida pública e até do acesso à educação superior. Liam, portanto, apenas o
que eram escritos nos livros e romances sobre elas, presas pela ficção masculina, o que
tornava difícil a sua formação identitária e expressão ficcional.
4
“Era extremamente compreensiva, de um encanto enorme. Não tinha o menor egoísmo. Excedia-se nas artes
difíceis da vida familial. Sacrificava-se diariamente. [...] numa palavra, constituía-se de uma maneira tal que não
tinha jamais um pensamento ou um desejo próprio, preferindo sempre agasalhar os pensamentos ou os desejos
do outro” (WOOLF, 1989).
28. 27
Os textos de autoria masculina traziam personagens femininas sujeitas a se
adequar aos modelos patriarcais, emolduradas para ser o reflexo da figura do homem. Esse
aspecto se confirma a partir das ideias de Telles (2007, p. 408) quando apresenta que a mulher
serviu de espelho mágico entre o artista e o desconhecido, tornando-se Musa inspiradora e
criatura.
Para as mulheres do século XIX que buscavam ser mais do que personagens
literárias, tornou-se uma tarefa um tanto difícil já que, impedidas de participar da esfera
pública, viviam trancadas em casa. Era preciso, no entanto, que a mulher avançasse outras
experiências e começasse pelas carreiras profissionais. Antes de exercer outras profissões a
mulher começou a engajar-se na literatura. Segundo Woolf (1989), uma das primeiras
profissões da mulher foi a de escritora, haja vista o papel custar um preço baixo e acessível
para a sociedade da época:
Escrever era uma ocupação honrada e sem perigo. A paz familial não se
quebrava com o rangido da pena. Não se exigia demais da carreira paterna
[...] Digamos que o preço modesto do papel é a razão pela qual as mulheres
começaram a triunfar em literatura antes de triunfar em outras profissões.
No Brasil, a escrita feita por mulheres surgiu como uma conquista longa e difícil
em decorrência dos movimentos em prol da causa feminina. Mesmo com o poder da escrita
em mãos, a mulher que sempre esteve sob a ordem do homem, inicialmente se sentiu receosa
em expressar-se livremente e assumir a condição de escrita que afrontasse o meio literário
masculino. Adotou, pois, em seus textos, temas que a posicionassem como produtora de um
discurso entrelaçado a cotidianos realistas da mulher na época.
Em compensação, a escrita de Rachel de Queiroz trouxe em seu primeiro romance
um tema bastante explorado pelos escritores da época: a seca nordestina. Traçou um perfil de
protagonista como uma espécie de plano de fundo que motivou a sua escrita e que fez elevar a
figura feminina nas narrativas. A escritora ganhou força no cenário literário. Muitos escritores
duvidaram da capacidade de uma mulher de um estado do Nordeste, aos 19 anos, ter escrito
um livro com caráter de excepcionalidade como O quinze. De fato, esses escritores não
aceitavam uma mulher como concorrente. Sobre esse aspecto Castello Branco comenta: “o
que é curioso é que o feminino, de uma forma ou de outra, acaba por incomodar, por se fazer
questão, por produzir polêmica” (1991, p. 17).
29. 28
O território de escrita ocupado por Rachel de Queiroz na literatura brasileira deixa
entrever temas que tratam da questão feminina. Vale ressaltar que, ao voltar ao cenário do
século XIX, atualmente, observa-se que, no romance As três Marias (1939), a escritora
escolheu uma temática que retrata personagens femininas ligadas tanto ao discurso modelado
pelo sistema patriarcal, a partir de uma espécie de texto que não contrariaria os críticos e
outros escritores da época, quanto personagem que revelaria a escrita da nova mulher da
ficção e que, por sua vez, traz o modelo de uma personagem feminina Maria Augusta - a
Guta, que questiona os modelos de submissão herdados de uma sociedade tradicional. Essa
questão da escrita pode ser observada como um desafio feminino na literatura: apresentar as
experiências das mulheres escritores de um período que procurava matar a “Fada do Lar” –
expressão muito utilizada por Virgínia Woolf quando menciona sobre sua carreira profissional
diante do campo literário.
Qualquer romancista tem ideia própria, já possui definidas as relações humanas
que prevalecerão em seu discurso. Nesse ponto de vista, os temas são variados para cada
autor. A escrita das primeiras escritoras, por exemplo, traziam temas que falavam muito da
maternidade, da infância, da casa. Constata-se, portanto, que esses temas memorialísticos ou
autobiográficos são frutos do conhecimento que se tem do próprio lar e do eu.
Para a explicação desse fato, as teorias de Castelo Branco tornam-se relevantes,
quando expõe que “as mulheres costumam preferir as escritas autobiográficas porque,
historicamente confinadas ao universo do lar, ao interior da casa, elas teriam encontrado nesse
tipo de escrita o veículo ideal para a expressão de sua vida íntima, seus desejos, suas
fantasias” (1991, p. 30).
Quanto a essa questão, importa mencionar As três Marias, o típico romance de
formação feminino que, para a autora, é o seu romance mais autobiográfico e como é descrito
na orelha do próprio livro: “essas quase memórias de uma moça „quase‟ bem comportada, o
romance As três Marias, centrando sua fabulação em personagens femininas, dava
continuidade à galeria de mulheres integradas na vida nordestina que a ficção de Rachel de
Queiroz vinha construindo” (GOMES, 2009). No entanto, essa narrativa além de apresentar
um discurso ligado à criação de uma escrita intimista, possui também traços do mundo
exterior ao eu, sobre a vida urbana que é bastante relatada no romance:
Em breve, eu que me dispersava infatigavelmente pelos passeios clássicos –
Quinta, Pão de Açúcar, Tijuca, Corcovado – fui centralizando minhas
preferências em torno de Isaac, e ele acabou resumindo para mim todo o
30. 29
interesse da cidade, da manhã que começava, do meio dia luminoso, das
noites em que vagávamos a sós, desconhecidos e felizes, por entre ruas,
praças e árvores que para nós não tínhamos nomes (QUEIROZ, 2009, p.
167).
Desse modo, a mulher para se definir como escritora teve de lutar contra as
influências impostas pelo modelo masculino/patriarcal. Na busca de apagar o medo de criar e
desempenhar o seu ofício, a mulher, para conquistar a autoria, desde o século XIX, passou por
diferentes fases, levando o sujeito feminino a adotar normas que não eram suas para,
consequentemente, atingir a sua autorrealização.
As transgressões, portanto, foram utilizadas como meio de empreendimento na
luta e na conquista de sua liberdade. A escrita torna-se o veículo pelo qual as mulheres
constroem a sua identidade e, por consequência, ascendem aos seus direitos com o propósito
de se fazer sujeito da história.
2.2 Mulher e escrita: a conquista de liberdade
No contexto da narrativa, as mulheres foram um foco importante no século XX,
visto que a história da conquista da escrita feminina tornou-se um assunto muito discutido na
sociedade. Embora a mulher, para se definir como autora, tivesse que rever o seu desempenho
nesse ofício para apagar todos os empecilhos que a sociedade patriarcal antes lhe apresentara,
a sua primeira tentativa para sair dessa tradição foi a escrita. Desde as primeiras produções no
século XIX e no limiar do século XX, já havia a denúncia das limitações impostas pelo
sistema patriarcalista, aspectos que faziam refletir sobre a realidade social e os papéis
estabelecidos às mulheres.
Desse modo, as produções de autoria feminina limitavam-se, nesse período, à
representação de mulheres submissas ao poder patriarcal. Como afirma Del Priore (2006, p.
624), “as mulheres ainda eram vistas prioritariamente como donas de casa e mães, a ideia da
incompatibilidade entre casamento e vida profissional tinha grande força no imaginário
social”. Restringia-se, dessa forma, a figuras femininas que encontravam sua realização no
matrimônio e/ou na condição de mãe; uma conduta compatível às normas impostas pela
sociedade da época. Portanto, essas produções escritas se enquadram na primeira fase da
tradição literária de autoria feminina, designada Fase Feminina ou imitativa, como bem
31. 30
pontua Elaine Showalter, que reconhece essa divisão da literatura de autoria feminina em três
fases:
Na primeira, quando imitava a escrita masculina, visando a afirmar-se, [...]
(é a escrita feminina). A isto teria sucedido, com a luta pelo direito ao
sufrágio, a escrita feminista, marcada pelo protesto em relação ao
rebaixamento e exclusão. A última das fases, a da escrita fêmea, marcada
pela recente conscientização deslanchada a partir dos anos 60 de nosso
século, assinalaria a maturação, a auto realização da escrita-mulher (apud
CAMPOS, 1992, p. 121).
Esta última fase se caracteriza pela busca de uma identidade própria, de uma
escrita e de uma representação mais autêntica e livre. Logo, essa busca de uma identidade na
escrita e a representação da mulher na narrativa torna-se reconhecida e valorizada diante do
cânone literário formado quase exclusivamente por homens.
Em relação à trajetória de autoria feminina, sabe-se que a escrita feminina
somente passou a ocupar um lugar reconhecido na literatura brasileira a partir de Clarice
Lispector, apesar de que, ainda no século XIX, Júlia Lopes de Almeida e, depois, Rachel de
Queiroz, Cecília Meireles seriam exemplos de escritoras sempre citadas nesse caminho.
Ressalta-se ainda que as escritoras do século XIX não construíam personagens femininas com
perfil de mulheres falsas, anjos ou hipócritas. Nessa fase, os romances traziam discussões
acerca do cotidiano e de elementos que conferiam a condição da mulher.
A constante busca por uma escrita feminina com identidade própria vem se
estabilizando, entretanto é um processo lento, assim como foram todas as conquistas
femininas na história. Apesar de a produção literária da mulher, a partir da década de 60, já
possuir um espaço simbólico intelectual, as instituições mais conservadoras somente
começaram a reconhecê-las por volta dos anos 70 (ALVES, 2005, p. 45). Dessa forma,
mesmo tendo uma escritora marcada por ser a primeira mulher eleita para a Academia
Brasileira de Letras – Rachel de Queiroz - faz-se necessário lembrar, que não foi fácil o seu
reconhecimento e acesso à esfera pública.
A determinação em estabelecer um caminho pessoal e fortemente individualizado
foi uma das grandes conquistas de Rachel de Queiroz como mulher e escritora já que, no
século XIX, esse aspecto seria uma das saídas mais eficazes para a mulher frente ao contexto
de exclusão dos direitos femininos, uma vez que:
32. 31
[...] para definir-se como autora, a mulher teria que redefinir então os
próprios termos de sua socialização: a busca do modelo feminino, de
precursoras, estaria ligada ao desejo de legitimação, quando o gênero é
percebido dolorosamente como um obstáculo ou uma inadequação, pela
internalização da inferioridade com que o patriarcalismo a vitimou
(CAMPOS, 1992, p. 120).
É comum ver o seu nome associado às conquistas da mulher brasileira, pois ainda
muito jovem trabalhou como jornalista e tinha admirável militância política. Dessa forma,
evidencia-se que, na escrita de Rachel de Queiroz, há um desejo de apontar sempre à situação
das mulheres, haja vista a percepção de um discurso relacionado às possibilidades da busca de
realização pessoal.
Suas personagens vivenciam diferentes situações em diversas épocas, ainda que a
predominância da região nordeste esteja forte, possibilita ao leitor perceber várias alternativas
da situação da mulher. Da galeria de mulheres de sua ficção destaca-se em As três Marias
(1939) a protagonista Maria Augusta, que vive intenso conflito com sua vida interior e as
condições impostas pela sociedade; em Dôra Doralina (1987), a protagonista Maria das
Dores – a Dôra que tenta encontrar no amor a sua liberdade e, em Memorial de Maria Moura
(1992), como o título do romance já propõe, Maria Moura sacrifica o amor em função dessa
liberdade.
Rachel de Queiroz tem um modo bem particular de construção narrativa. Utiliza-
se como artifício literário marcante a questão do nome próprio para escrever seus textos. São
narradas e descritas personagens que se encontram demarcadas pelo nome “Maria”. Em seu
romance As três Marias (1939), a história das três meninas com iguais prenomes que
prosseguem amigas por toda a vida é conhecido como o mais “feminino” de todos. Dessa
forma, convém descrever as palavras de Mário de Andrade:
Talvez só haja um homem bem homem no livro: o Romeu que rouba a moça,
contra tudo e todos. Mas desse a escritora só nos mostra um braço!... São
homens fortemente incapazes, figuras de... vingança, entre mulheres nítidas.
Em compensação, estas vivem com riqueza esplêndida, todas descritas com
uma segurança de análise, uma firmeza de tons, uma profundeza de
observação verdadeiramente notáveis (ANDRADE apud HOLLANDA,
1997, p.114).
De todas as mulheres exemplares criadas por Queiroz (1939), observa-se nelas
sempre a busca da determinação na escolha de seus destinos, seja ele religioso, profissional,
33. 32
amoroso ou social. Nota-se, portanto, que cada personagem traz em si uma forte vocação, a
qual deixa transparecer ao leitor no universo feminino apresentado pela autora.
No conjunto de sua obra, a figura feminina é descrita a partir de características e
situações individuais, porém com valor universal. “Certas mulheres nascem pra donas, e
5
outras nascem pra ter dono!” (QUEIROZ, 1987, p.159). É representado, deste modo, por
mulheres que não ultrapassam as barreiras estabelecidas pela cultura de seu tempo e/ou, em
muitos momentos, aquelas consideradas transgressoras desse sistema patriarcal, o que coloca
a autora claramente contra as hierarquias da escrita estabelecidas pela sociedade da época.
Dessa forma, percebe-se que, apesar de a autora utilizar para as personagens
nomes ligados à tradição, são descritos perfis de mulheres diferenciados que retratam tanto a
tradição quanto a ruptura. Todos os nomes escolhidos por Queiroz (1939) acrescidos de igual
prenome Maria, representam personagens femininas que se destacam num mundo de
dominação masculina e que em muitos casos rompem cada um a seu modo com os valores
vigentes da época.
2.3 Até tu, Maria: tradição e ruptura
A literatura escrita por mulheres começa a se impor a partir do modernismo, haja
vista um período em que a teoria cultural rompe barreiras acadêmicas tradicionais enquanto
avançava. “Os modernistas extrairiam uma virtude artística daquela necessidade histórica,
garimpando entre os restos de ideologias obsoletas, à maneira dos catadores de lixo de
Baudelaire, para produzir algumas novas e surpreendentes criações” (EAGLETON, 2005,
p.102-03). E um dos grandes nomes a ser citado é Rachel de Queiroz, típica artista
modernista que desde o período de 1930 tem sua trajetória literária ressaltada a partir do
grande sucesso do lançamento de O quinze. Escrito por uma jovem desconhecida na época,
esse acontecimento tornou tema de repercussão para os críticos. Para melhor compreensão
desse aspecto, as palavras de Graciliano Ramos deixam claras a autenticidade do romance e
toda a diferença da ficção de Rachel de Queiroz no quadro da literatura brasileira, quando
comenta que essa obra:
5
Transcrição do livro Dôra Doralina (QUEIROZ, 1987).
34. 33
[...] fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José Américo, por
ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova.
Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no
jornal, balancei a cabeça: “Não há ninguém com este nome. [...] pilhéria.
Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado”
(ARÊAS, 1997, p.88).
Evidencia-se que a autora não adotou nenhum pseudônimo como era reconhecida
a primeira fase da conquista da escrita literária pela mulher, a qual adotava padrões
masculinos. Sucederam-se, porém, a falta de confiança dos homens e o preconceito que
excluía as mulheres da literatura.
Quando Rachel de Queiroz começou a escrever, a literatura brasileira ainda se
dividia entre o estilo suave das mulheres e a literatura masculina. No entanto, a escritora se
impôs a esse estilo, uma vez que as marcas da escrita feminina estariam, principalmente, na
linguagem. A romancista mantinha em alguns casos uma linguagem que prevaleciam traços
masculinos por ter vindo do jornal. Concomitantemente, as atitudes afirmavam as heroínas de
sua produção e buscavam uma condição de mulher, desde o primeiro romance, à procura de
igualdade de direitos e libertação.
Ao mencionar o século XIX, quando as escritoras falavam somente da natureza e
do amor se o destinatário fosse o pretendente, observam-se que a partir da década de 30, as
autoras embora falassem do amor e do desejo reportando sempre a natureza, esses
sentimentos foram sendo relatados ao longo dos tempos, rompendo algumas regras
tradicionais da época. Mesmo escrevendo no mesmo período que outras escritoras com temas
próximos aos seus, Queiroz (1939) se diferencia em um sentido: suas personagens são
apresentadas de forma mais explicitamente sensuais e assume uma linguagem mais liberal ao
falar de sentimentos e desejos. A exemplo de Guta, em As três Marias, personagem-retrato da
ruptura dos paradigmas de uma sociedade patriarcal, quando menciona sobre seu
relacionamento com Isaac:
Quando me tomou, não pediu nada, foi acompanhando gradualmente o seu
desejo, levando-me a compartilhar dele [...]. Mais que a dor física, ficou-me
dessa primeira entrega uma sensação de medo e secreta humilhação; aquele
gozo, que ele tirava de mim, era tão-só dele, tão separado de mim, diminuía-
me tanto! (QUEIROZ, 2009, p.175).
35. 34
E continuam suas inquietações, seu medo de ter um filho solteira e assustada pela reação de
Maria José:
O pensamento disso não me abandonava. Em casa, no quarto, já de luzes
apagadas, quando Maria José, ao meu lado, ressonava suavemente, eu ficava
pensando: que diria ela, que choque, que escândalo! Eu lhe falara de Isaac
como dum namorado, dum noivo talvez, sem ter a coragem de dizer a
verdade, de lhe dizer até onde chegáramos (QUEIROZ, 2009, p.182-83).
Essa figura feminina – Maria José - sublime aos princípios religiosos, como é
descrita por Queiroz, revela ser, a partir da subjetividade da narradora, a afirmação da
personagem que vive à sombra das imposições de uma sociedade conservadora.
Faz parte da competência do artista moderno produzir o novo ao que já está
acostumado na tradição. Como Baudelaire, com sua grande sensibilidade às rupturas, houve
as recusas à tradição do século XIX: “rupturas com as convenções acadêmicas, com a grande
burguesia negocista, com o poder econômico e político que exige a submissão da ordem
estética a ordem estabelecida” (JIMENEZ, 1999, p. 278). Assim, a escritora Raquel de
Queiroz, por viver inserida em uma tradição literária dominada pela concepção masculina,
revoluciona e subverte a herança de uma escrita patriarcalista numa escrita que transgride com
textos que conduzem a figura da mulher como sujeito social de sua própria história.
O meio literário de onde emerge a produção de Rachel de Queiroz caracteriza-se
por apresentar uma predominância na representação da figura da mulher, o que leva a
demonstrar a influência do nome próprio para demarcar esse território. Nesse contexto, a
escolha do nome para as suas personagens ocupa uma posição curiosa e, semanticamente,
intencional em sua ficção, haja vista estarem associados ao nome Maria.
De fato, este nome faz parte da tradição cristã e são reveladas claramente nos
evangelhos como a maternidade divina e a concepção de Jesus, ainda virgem, visto que o
papel que é assumido por Maria nos evangelhos está intrinsecamente ligado à vida judaica a
que era habituada, aparentemente frágil, jovem e que, no inconsciente coletivo, tem-se a
imagem de uma mulher pobre, sofredora. Na história bíblica universal, as mulheres
desempenham um papel eminentemente patriarcal, limitado às funções de mãe e esposa. Para
essas características, torna-se evidente o papel exercido por Maria da Glória em As três
Marias (1939), quando a autora traça o perfil de mulher tradicional.
36. 35
Na verdade, outro princípio pode ser destacado: Maria é a forma helenizada do
nome hebraico miryam, uma mulher que tinha capacidade de correr riscos e enfrentar
situações novas. A partir desse ângulo, importa ressaltar a escolha do nome Maria Augusta,
que uma vez selecionado pela autora passa a ser a parte inseparável da personagem na ficção,
já que condiz com seu comportamento. Como que para demonstrar essa mulher que quebra
valores da tradição patriarcal, Queiroz, através desse retrato, consegue romper com os
paradigmas de escrita impostos pela sociedade da época. Nessa perspectiva, observa-se este
nome comum como um dos artifícios literários utilizados pela autora para que o leitor busque
as conotações e possíveis sugestões que remetem os nomes das personagens.
Através de uma escrita instigante sobre a mulher, Queiroz (1939) traça perfis
femininos diferenciados para representar através das personagens a dualidade existente entre a
tradição e ruptura, tanto em relação à mulher como personagem de romance enquanto
protagonista de sua própria história. O romance As três Marias é, por exemplo, uma resposta
às formas tradicionais: a figura feminina aparece como sujeito que dá voz às suas pretensões,
posto que, em outrora, a mulher era silenciada a partir de um perfil estereotipado a que a
figura feminina estava confinada – reprodutora da espécie.
Percebe-se, portanto, que a escrita feminina ampliou seu espaço de produção,
visto que a escrita foi o veículo para a construção de direitos e da sua própria identidade.
Nessa literatura produzida por mulheres, principalmente, a da autora selecionada, verifica-se
que o modo de escrita envolve o gênero humano e a abordagem de temas universais que se
diferenciam por meio do ponto de vista do tratamento. A partir desse princípio, surge o
questionamento sobre a existência de autoria feminina e masculina no sentido de discurso.
Evidencia-se que um texto pode ser escrito por um sujeito feminino ou masculino, o que há
diferença é no sujeito da escrita e não no tipo de escrita pelas diferenças sexuais, porque cada
escritor terá suas marcas pessoais em sua obra. Na narrativa de Queiroz, a transgressão de
uma das personagens torna-se o símbolo da luta do sujeito feminino por sua liberdade.
De fato, quando a autora constrói suas personagens, destaca com exatidão o que
cada uma vivencia. Apresenta situações a fim de superar barreiras impostas por convenções
patriarcais, cuja trajetória baseia-se na busca da autorrealização. Além desse aspecto, explora
a vida das personagens mediante questões repercutidas nos planos amoroso e social, haja vista
as jovens Marias buscarem o sentido para as suas existências a partir de perspectivas
relacionadas ao amor.
37. 36
3 MARIA... MARIAS: amores em construção
As Três Marias, desenho comparativo do sujeito feminino de posse do nome
Maria, apesar de narrada na primeira pessoa por Guta, ao entrar, aos 12 anos no internato, a
trama é descortinada pelo ângulo do olhar das três personagens. Tantas quantas fossem
necessárias, desfilariam as Marias pelas linhas rabiscadas de uma escritora persistente na
polêmica discussão sobre o papel da mulher na sociedade.
Histórias construídas no mesmo espaço, guiadas pela mesma ideologia. Mulheres
marcadas para encenar a história do espaço feminino na sociedade. De igual educação no
mesmo pátio e salas de aula, dirigidas pelas freiras, Maria Augusta, Maria da Glória e Maria
José, são amigas inseparáveis, deitavam-se, à noite na grama, dirigiam o olhar aos céus e se
viam refletidas na constelação de mesmo nome por elas recebido: As três Marias. A estrela na
parte superior, resplandecente e próxima, lembrava Maria da Glória. A estrela da parte
inferior, minúscula e tremeluzente, era a representação de Maria José. E, na do meio, Maria
Augusta se via, serena e azulada.
Como a leitura ágil mesmo proporciona, o texto insere o leitor no mundo
psicológico das personagens que, nesta comparação, deixa pistas para se compreender suas
atitudes e comportamentos. As duas primeiras entregam aos moldes conservadores difundidos
durante sua educação. Guta, no entanto, busca a liberdade de seu existir e a austeridade da
vida fissura os sonhos imaginados durantes as leituras românticas de adolescente.
Aspirações diversas alimentavam os sonhos dessas mulheres, porém, ao
apresentarem-se ao mundo exterior, vêem-se limitadas às determinações sociais falocêntricas.
Maria José, enquanto sujeito da história, edifica-se na segurança religiosa. Com
vida de monja: a sublimação do ser. Isto é, ela faz uma das opções que lhe são oferecidas
socialmente. Maria da Glória, contudo, entrega-se ao matrimônio, opção mais escolhida e
esperada nos espaços sociais – um retrato da tradição revela-se na fragilidade feminina ao
deparar-se com obstáculos resistentes para “o sexo frágil”. A vida mais livre, mais
desprendida dos valores sociais coube à Maria Augusta – uma vida “libertina” comum às
prostitutas. Uma vida frustrada por causa dos relacionamentos descompromissados de um ser
crédulo nas histórias amorosas. Guta torna-se o símbolo do existir feminino.
Queiroz, pois, ilustra a imagem amarga do destino feminino, quando do confronto
entre sua natureza e seus dilemas interiores. Destinos diversos convergentes nos mesmos
ideais, quimeras... e desencontros.
38. 37
3.1 Maria José: a sublimação do ser
Desde o período do Simbolismo o autor Alphonsus de Guimaraens já traz em sua
poesia a figura da Virgem Maria associado ao ideal de mulher. Muitos autores defendem a
ideia de que “Maria” é um modelo atemporal de mulher e que, portanto, deve ser seguido. O
pensamento de Cury (2007, p. 170) confirma esse conceito quando apresenta que “os
princípios utilizados pela mãe de Jesus são uma fonte de lucidez para a educação moderna”.
Nesse sentido, acredita-se que cada nome marca um eu, e é exatamente por esse
ângulo que o nome Maria será tratado, já que, em diferentes narrativas modernistas, é
apresentado esse nome comum para demarcar o território feminino. Por isso, importa ressaltar
a importância da obra de Rachel de Queiroz que traz em seus textos, protagonistas Marias,
com comportamentos totalmente diferentes, porém típicos de mulher.
O nome escolhido por Queiroz (1939) para suas personagens remete ao papel de
pureza da alma, entretanto, une o nome emblemático de Mulher que vem da Bíblia aos
subsequentes, haja vista o significado de seus nomes apontarem para um ser ora majestoso,
indicativos de uma pessoa que prefere uma profissão para sua independência, ora comum à
pessoa que sente irresistível desejo de casar-se e ter filhos, ora indica uma pessoa sensível,
confiante e generosa, que sofre com os problemas alheios, conciliadora e conserva o
autocontrole mesmo nas piores situações; aquela que acrescenta – José.
Diante dos inúmeros significados que apontam para o nome Maria, convém
destacar as informações de Mckenzie (1983) em seu dicionário bíblico: Maria do hebraico
miryam, de significado e etimologia incertos, talvez do egípcio mrjt, “amada”. Nome de
muitas mulheres na Bíblia, tais como irmã de Moisés e de Aarão, a qual dirigiu as mulheres
de Israel nos cantos e danças depois da passagem do mar vermelho; Maria, testemunha da
crucificação de Jesus e do sepulcro vazio, e também, Maria, uma cristã de Roma, saudada por
Paulo. Essas referências relacionam-se, portanto, a figura de Maria José em As três Marias
(1939) quando dedicava a sua vida aos estudos, ao trabalho como professora primária e à
proteção aos menos favorecidos.
A personagem Maria José destinava a maior parte de seu tempo a orações e a
consagração do amor divino. “Ah! O amor... esse milagre de encantamento, espécie de
suntuoso presente que atravessa os séculos” (DEL PRIORE, 2005, p. 12). Não há dúvidas de
que, a época vivenciada por Maria José, no romance, era marcada por formas patriarcais de
dominação no que diz respeito ao amor nas práticas. Entretanto, a personagem busca esse
39. 38
amor baseado na sublimação, um sentimento amoroso capaz de anular o amor conjugal para
dedicar-se ao amor de Deus: “[...] rezava, rezava cada vez mais perdidamente, rezava como
quem chora num desespero; calejava os joelhos, dispersava os dias em horas de adoração,
corria das aulas para a bênção, comungava e ia à missa todas as manhãs” (QUEIROZ, 2009,
p. 146).
Para Maria José, a devoção a Deus era considerada como valor supremo. As
mulheres deveriam simbolizar a pureza feminina na figura da Virgem Maria. As relações
sexuais eram proibidas antes do casamento e o adultério era considerado um ato diabólico.
Esse perfil de mulher traçado por Queiroz (1939) retoma os princípios de Santo Agostinho em
que eram decapitados, queimados e condenados os indivíduos que praticassem tais atos. Essa
característica acentuada em Maria José marca a “anatemização cristã do amor profano” 6, visto
que na tradição cristã a mulher que se deixasse conduzir pelas “más” ações seria considerada
prostituta e tinha seu destino limitado à miséria.
A sociedade patriarcal em que vivenciara deixava transparecer a ideia de que o
sexo antes do casamento era sinônimo de vergonha. A virgindade era um valor adotado na
época para considerar a mulher pura, com princípios de decência e pudor, já que a beleza
feminina se encontraria na pureza da alma. A sublime Maria José de As três Marias (1939)
retrata a partir de seu comportamento e limites um perfil de mulher “anjo” - antítese aos
valores associados à mulher como instrumento do pecado.
Durante o século XVIII, autores como Gregório de Matos, explica através dos
seus poemas a natureza do amor na expressão idealizada da mulher amada. Por meio do
soneto À mesma D. Ângela, o autor compara a beleza da mulher com a natureza, o qual aponta
a lírica7 amorosa da obra à imagem feminina angelical e a tentação da carne que martiriza a
alma:
Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em que, senão em vós uniformara?
[...]
6
Cuja expressão sexual é fonte de transmissão do “pecado original” teorizado por Santo Agostinho (FERREIRA,
2005, p. 13).
7
A partir do século IV a. C., o termo lírica passou a substituir a antiga palavra mélica (de melos, “canto”,
“melodia”) para indicar poemas pequenos por meio dos quais os poetas exprimiam seus sentimentos
(D‟ONOFRIO, 2000, p. 56).
40. 39
O eu lírico começa a traçar um retrato de mulher construído a partir de duas
palavras flor e anjo que se relacionam ao seu rosto e ao seu nome, respectivamente. O
sentimento do poeta pela mulher é, por sua vez, metaforizado no sentido de que a flor seria a
beleza, o símbolo do desejo e o anjo a pureza da alma. Logo, acrescenta-se a imagem da
mulher Angélica que significa ser pura como um anjo e ao mesmo tempo, bela como uma
flor, a qual pode inspirar sensualidade.
Esse jogo de contradições, na qual a mulher é anjo, por um lado, e demônio por
outro, fixa alguns estereótipos sobre a figura feminina e aponta a ideologia católica que
confunde o encanto com a sedução impura – a atração do pecado. Esse ponto de vista pode ser
associado aos princípios religiosos de Maria José – guardiã e transmissora do sagrado - que
censura outros comportamentos utilizados pelas amigas:
Que é que você pode entender de alma e de Deus? Por isso é que se atira nos
braços dos homens, sem remorsos e sem medo. Por isso é que você aprova
os desatinos de Jandira. Não tem noção do bem e do mal (QUEIROZ, 2009,
p. 191).
O amor venerado por Maria José condena o procedimento sexual que tem por
consequência a paixão amorosa pela busca de prazer: “[...] esse mundo que seduz e apavora
Maria José com suas diabólicas e proibidas atrações” (2009, p. 193). Para a personagem as tão
temidas paixões serviriam somente para o adultério e para fraquejar o poder da carne, levando
os cônjuges a se afastarem do caminho institucional. Nota-se, portanto, que o papel exercido
pela personagem em questão se confirma a partir das considerações feitas por Del Priore
quando comenta sobre a influência do cristianismo diante da sublimação do poder carnal:
“Não há dúvidas de que o Cristianismo e seu monopólio espiritual influenciaram ainda por
muito tempo o princípio de que o amor carnal deveria ser sublimado. Sublimado, anulado e
substituído, de preferência, pelo amor a Deus” (2005, p. 108).
Mas o amor limitado pela personagem condizia àquele cujo sentimento sutil
retrata sofrimento, generosidade e doação. Um sentimento virtuoso que estaria presente em
suas orações na forma de piedade, caridade e amor ao próximo (QUEIROZ, 2009, p. 190). Na
Bíblia, por exemplo, essa visão do amor puro se manifesta em vários capítulos, como em um
dos textos do Novo Testamento a seguir:
41. 40
O amor8 é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece.
Não se porta com indecência, não busca seus interesses, não se irrita não
suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor nunca falha; mas, havendo profecias, serão aniquiladas; havendo
línguas cessarão; havendo ciência desaparecerá;
[...]
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior
destes é o amor (I CORÍNTIOS, 13, 4-13).
De fato, apesar da completa união às leis religiosas, de seu eterno amor divino,
Maria José ainda em momentos de aflição vivia num entre-lugar9, pois o desejo de conhecer
como seria essa outra vida de prazer a atormentava. Deprimida por causa do irremediável caso
do pai que deixara sua mãe e, principalmente, o futuro dos irmãos criados naquela casa sem
homem, trazia-lhe dúvidas religiosas. Persistia na ideia de que instintivamente a pessoa deseja
o mal e, por isso, mantinha o pensamento da religião como algo que lhe contivesse. Sem a fé,
se atirava para o pecado como uma louca, pois tinha desejo e medo de tudo. “Tenho vontade
de largar tudo, de me arriscar e experimentar essa vida. Desafiar o mundo como ele, me
afundar, me acabar. [...] E eu bem sei que todo prazer é um pecado” (QUEIROZ, 2009, p.
192).
Sobre a questão do desejo, Levy apresenta um novo conceito que não está no
lugar de uma liberdade perversa e destrutiva, porém num desejo voltado apenas para um
produto de nossa faculdade de desejar: “O desejo não representa a força do mal e sim nossa
capacidade específica de definir os critérios do bem e do mal” (1990, p. 159).
Por viver numa sociedade tradicional, educada por princípios religiosos, Maria
José, possuía um vínculo bastante acentuado com a Igreja. No entanto, o matrimônio era um
dos sacramentos admirados pela personagem, já que mostrava enorme satisfação em
participar da cerimônia religiosa da sua amiga Maria da Glória.
Essa prática amorosorreligiosa lhe era venerada ao saber que as mulheres se
entregariam aos maridos por amor a Deus, como a essência da vida humana. O ideal era,
portanto, aproximar esse amor conjugal espelhado ao discurso da Igreja e dos manuais de
casamento sobre tais práticas amorosas, nas quais as relações pré-matrimoniais não deveriam
ultrapassar regras morais da época.
8
Ou caridade.
9
Expressão muito utilizada por Silviano Santiago. Refere-se à dúvida do sujeito que não se encontra.