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   UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
      DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
 COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA
        PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA




           MARIA ELAINE GOMES DOS SANTOS




O EU, A CIDADE... E OS CONFLITOS IDENTITÁRIOS DO
  SÉCULO XX: UMA ANÁLISE NA CONTÍSTICA DE SONIA
                      COUTINHO.




                        Conceição do Coité
                            2012
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         MARIA ELAINE GOMES DOS SANTOS




O EU, A CIDADE... E OS CONFLITOS IDENTITÁRIOS DO
  SÉCULO XX: UMA ANÁLISE NA CONTÍSTICA DE SONIA
                    COUTINHO.




                 Monografia apresentada ao Departamento de Educação da
                 Universidade do Estado da Bahia (UNEB), curso de Letras
                 com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas –
                 Licenciaturas, como parte do processo avaliativo para
                 obtenção do grau de Licenciada em Letras.

                 Orientadora: Profa. Ms. Eugênia Mateus




                  Conceição do Coité
                        2012
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  “Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura,
      poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo –
      e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que sabemos,
                           tudo o que fomos” (David Harvey, 2001).

"A forma de uma cidade muda mais rápido, infelizmente, do que um
                           coração mortal" (Charles Baudelaire).

"A cidade não é a solidão porque a cidade aniquila tudo o que povoa
          a solidão. A cidade é o vazio" (Pierre Drieu La Rochelle).
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 Dedico a Deus...
   À minha mãe.
   Ao meu filho.
À minha família.
Aos meus amigos
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                           AGRADECIMENTOS




A Deus, por me permitir humana.
Aos meus pais, sobretudo, à dona Joana, por me concretizarem humana.
Ao meu filho Gustavo, causa da minha plenitude humana.
Àqueles que comigo compartilham a honra de sermos unidos por laços sanguíneos.
Aos colegas de faculdade que, movidos pela mesma sede, alcançamos juntos uma
vitória.
Aos que se tornaram amigos, grata pela cumplicidade e companheirismo.
Aos mestres que passaram e deixaram sua contribuição.
À professora Jussimara Lopes por acreditar no que eu ainda não havia percebido.
À escritora Sonia Coutinho, por sua produção artística.
À minha orientadora, professora Eugênia Mateus, pelas inúmeras contribuições, pela
paciência, profissionalismo, disponibilidade, credibilidade no meu trabalho, pelo
humanismo.
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RESUMO


O presente trabalho discute a interferência da cidade na (des)construção identitária do sujeito
moderno. As características especificas desse individuo que, de dia ou de noite, é andarilho
das cidades, foram evidenciadas com o objetivo de enfatizar os fatores sociais colaboradores à
sua manutenção enquanto sujeito social. Para tanto, utilizam-se os conceitos tradicionais e
contemporâneos da literatura com vistas a analisar o Modernismo brasileiro à revelia do que
se considera Pós-modernismo. A análise literária de alguns contos da escritora contemporânea
Sonia Coutinho, indica, por vezes, um diálogo com os estudos culturais que, bem como a
produção literária brasileira atual, chama a atenção para os sujeitos historicamente isolados
das estruturas sociais. Os cantos da cidade ecoaram o ritmo da vida das personagens na
incessante busca pelo seu eu. Com base na constatação de que os anseios vivenciados pelas
personagens estão presentes tanto no universo feminino, como no masculino, realizou-se o
levantamento das características que definem o indivíduo em sua obra. Observou-se, então,
que para além de uma escrita tratando exclusivamente do universo feminino, Coutinho produz
uma arte que possibilita analisar o comportamento do humano contemporâneo em diversas
esferas sociais. Narrativas extremamente convidativas, envolventes, pois as sensações
demonstradas pelas personagens se misturam a estrutura urbana e geram fascinantes histórias.
Pessoas, aparentemente, perdidas de si mesmas e movidas pelo desejo de serem felizes. Os
leitores são seduzidos a embarcarem no mundo das personagens e, quem sabe, tentar
desvendar junto com as mesmas as veredas que as conduzirão à felicidade. Neste trabalho, a
cidade apresentada, adquire a forma dos desejos das personagens, justificando assim a sua
plasticidade e múltiplas faces. Erguida, segundo os sonhos dos que a desejam, a cidade segue
soberana, enquanto que em seu redor, ou pelas suas entranhas, sonhos irrealizados esvaem-se,
enquanto que aqueles que neles creram perdem-se nos labirintos urbanos. E a vida vai
passando. A análise foi baseada nos estudos de David Harvey (2001), Walter Benjamin
(1989), Ítalo Calvino (1990), Steven Connor (2000), Linda Hutcheon (1991), Leyla Perrone-
Moisés (1998) alguns dos teóricos que sustentam a interferência da cidade na (des)construção
do eu.

Palavras-chave: Literatura. Conto. (des)construção identitária. Contemporaneidade. Cidades.
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ABSTRACT


The present work makes an analysis of the interference of cities in the identity deconstruction
of a modern man. The specifics characteristics of this individual, that, night and day, is a
cities´ walker. It was evidenced with the goal, emphasize some social factors that contributed
to maintain the man as a social subject, but, use traditional literature concepts and
contemporary literature concepts, in relation to the contemporaneity. The literary analysis of
some contemporary short stories by writer Sonia Coutinho, show us the dialogue with the
cultural studies, that, as the Brazilian production nowadays, call attention to the historically
isolated man of the social structures, the four cities corners echoed the rhythm of characters'
life, seeking their own identity. Based on in this observation that this anxiety makes part in
the female personality and male personality, was made some characteristics definition in her
literary work, notice that when the writing makes part of the female universe, Coutinho makes
an art that allows an analysis about contemporary human behavior in different social status.
It’s a extremely inviting narrative, engaging, some sensation showed by the characters have a
mix in some urban structures and allows fascinating stories. People, apparently lost in
themselves are moving because they wish to be happy, the readers are seduced to know the
characters’ world, and maybe try to discover what will conduct them to happiness. In this
work the city acquires the characters’ wishes; this way justifying the city’s multiple faces,
built by those who wish to, the city keeping on the top, whereas around it, some dreams has
been destroyed. Some of them who believed in the dreams are lost in the urban labyrinth, the
life is passing by. The analysis was based on some studies of: de David Harvey (2001),
Walter Benjamin (1989), Ítalo Calvino (1990), Steven Connor (2000), Linda Hutcheon
(1991), Leyla Perrone-Moisés (1998) some of theoretical, who believe in the city as a man’s
deconstruction.



Key- words: Literature. Shorts stories. Identity deconstruction. Contemporaneity. Cities.
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                                                         SUMÁRIO




INTRODUÇÃO AO PASSEIO PELA CIDADE, EM SONIA COUTINHO ..............                                                            08

1      LITERATURA E TALENTO: a tradição revisitada ............................................ 13
1.1 Modernismo ou pós-modernismo: a dialética e o espaço literário ............................. 17
1.2 Da tradição à contemporaneidade: quem conta um conto .......................................... 21
1.3 Originalidade e estilo na literatura finissecular ..........................................................               25

2      O EU PELAS RUAS DA MODERNIDADE .......................................................... 28
2.1 Andarilho noturno e o eu boêmio ............................................................................... 33
2.2 O Flâneur e a descoberta da cidade ...........................................................................             37
2.3 A modernidade e a velocidade desequilibrante do sujeito .........................................                          42

3      OS CANTOS DA CIDADE E A CONFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA: uma 47
       leitura da contística de Sonia Coutinho ..................................................................
3.1 Sonia Coutinho e a idealização de cidade: uma revisão bibliográfica .......................                                51
3.2 Desconstrução de identidades espelhadas nas ruas da cidade ....................................                            56
3.3 Escrita de gênero: simplesmente a arte literária de um(a) autor(a) ...........................                             60

AINDA NAS RUAS DA CIDADE: UMA ESCRITA (IN)CONCLUSA .....................                                                       66

REFERÊNCIAS ................................................................................................................   69
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INTRODUÇÃO AO PASSEIO PELA CIDADE, EM SONIA COUTINHO


                                                 “MIL OLHOS DE ORVALHO DE UMA ROSA a
                                              olharam, transparentes. Uma rosa molhada no Jardim
                                                Botânico, de manhã cedo, sob o céu nublado. Tinha
                                            chovido forte e agora caía uma poeira de chuva. A rosa
                                                 era chá, com um número infinito de pétalas macias
                                           fechadas sobre si mesmas. A rosa, como um repolho do
                                          céu. Abaixou-se, aproximou o nariz, cheirou. As pétalas
                                         exalavam levíssimo perfume. De perto, o orvalho grosso:
                                              viu que havia espelhos dentro das gotas, como se elas
                                               fossem bolas de cristal. Mas é obvio que não adianta
                                              fazer planos, pensou Tina. Que não adianta pensar no
                                          futuro. Como também não adiantava lembrar o passado,
                                             estar presa a recordações distantes. Apenas o presente,
                                            ordenou a si mesma. Não havia passado nem futuro, só
                                         esse agora. Enquanto mil olhos de orvalho de uma rosa a
                                          olhavam, simplesmente” (COUTINHO. In: Mil olhos de
                                                                              uma rosa, 2001, p. 9).


        Em meio à selva de pedras da cidade, Rio de Janeiro, eis que uma gota de vida pura e
singela aspira antigas sensações. Nem tudo são horrores nesse lugar, o Jardim Botânico
mostra isso. Mas, ela, a rosa, não permite que a divagação chegue ao longe, entre cheiros e
prazeres o toque da realidade, o verbo viver, não no pretérito, tão pouco no futuro e sim no
presente.
        Sonia Coutinho apresenta em sua contística inúmeras histórias, diversos personagens
perdidos nos labirintos da vida e presos nas garras da cidade, mas que, mesmo assim, se
tivessem oportunidade não fariam nada para mudar seu modo de viver, afinal, não
conseguiriam sobreviver de maneira diferente, em outro lugar. As personagens, sem terem
consciência plena da dimensão da telha que as envolve, buscam encontrar-se, querem uma
identidade.
        Movidas pelas incertezas urbanas, desde as trazidas lá da cidadezinha, seguem em
romaria, sim, todas as personagens realizam a mesma trajetória, rumo à cidade prometida, Rio
de Janeiro. Com um poder envolvente, quase sobrenatural, atrai suas presas com belas
promessas, sucesso profissional, um lugar ao sol que, por muitas vezes, encontra-se escondido
atrás das nuvens, mesmo que o conto seja O último verão em Copacabana. Os fantasmas
surgidos na cidade a tornam uma verdadeira Doce, porque não, mas também cinzenta,
Copacabana. Não há obstáculos resistentes o suficiente para expulsarem os desbravadores
9



dessa selva, embora a única saída, em algumas situações, seja o suicídio concretizado na
cidade. Importa assegurar a permanência na cidade, garantir que a sociedade visualize a sua
felicidade, falsa, e não voltar atrás, jamais, afinal, a cidadezinha não os quer de volta.
         Com base na incerteza que assola a vida desses indivíduos, vivenciando situações
tipicamente contemporâneas, extremas, de amores e desencantos, tentar-se com esse trabalho,
traçar os impasses com os quais convivem esses indivíduos e que, os impossibilitam de
consolidar a sua identidade. Mas, discutindo, também, a possibilidade de que o objeto
desejado nessa incessante busca seja, de fato, utópico, impossível de ser encontrado e que é,
justamente, essa busca incessante que lhes garante a permanência da cidade.
         O trabalho encontra-se estruturado do seguinte modo, apresentação, na qual se fará
uma abordagem geral do que está contido na pesquisa. Seguido de três capítulos, cada um
com três sessões e as considerações finais, numa conclusão incerta, como a escrita de Sonia
Coutinho, mas possibilitadora de diálogos outros. No primeiro capítulo, intitulado “Literatura
e talento: a tradição revisitada” a discussão respalda-se em conceitos tradicionais e
contemporâneos da literatura, bem como o uso de conceitos que a definem, além de apontar
alguns dos recursos linguísticos que utiliza. Para tanto, há uma abordagem mais específica em
momentos históricos específicos do panorama literário brasileiro, desde o Modernismo à
contemporaneidade, haja vista Sonia Coutinho estar inserida nesse contexto histórico e social.
         Do mesmo modo, um diálogo com outra área de estudo, os estudos culturais, por
ambos dispensarem o foco de suas pesquisas ao espaço que o sujeito, historicamente rejeitado,
ocupa na estrutura social moderna. Aspectos como o estilo e a originalidade são abordados
como característica dos contos em estudo, assegurando com isso o valor artístico dessa
produção escrita.
         Seguido pelo segundo capítulo, “O eu pelas ruas da modernidade”, discute-se os
aspectos dos andarilhos das cidades, de dia ou pela noite e o modo como a velocidade da vida
moderna contribui para que estes indivíduos não consigam encontrar estabilidade social e,
sobretudo, psicológica. Estabelece-se uma relação sobre as características do mundo moderno
que interferem à construção identitárias dessa época. E por último o capítulo “Os cantos da
cidade e a configuração identitária: uma leitura da contística de Sonia Coutinho” aborda os
aspectos atrativos da cidade e que servem de isca aos personagens dos contos em estudo. Há
uma revisão bibliográfica da contística em análise buscando apontar os indícios que
constituem, no imaginário das personagens, a cidade ideal. Na incessante busca por uma
10



identidade as personagens driblam a adversidade da vida urbana, dando início a um processo
que passará a ser constante em sua (des)construção identitária.
         Neste último capítulo há a apresentação da vida da escritora e a análise de uma
entrevista de Sonia Coutinho, na qual se puderam observar algumas características de sua vida
destacadas na trajetória de suas personagens. As narrativas de Coutinho têm como
personagens principais, na grande maioria, mulheres, fato que não impede de algumas
histórias terem como protagonistas homens que, por sua vez, compartilham dos mesmos
conflitos do universo feminino.
         A partir da constatação de que os conflitos descritos pela escritora são recorrentes no
universo masculino e feminino, ou seja, típicos dos sujeitos pós-modernos, realizou-se uma
sucinta abordagem acerca de sua escrita. Logo, percebeu-se que, muito além, de uma
abordagem específica sobre gênero, a contística em análise oferece possibilidades para se
analisar o comportamento humano em diversas esferas sociais, desde as familiares à dinâmica
dos grandes centros urbanos.
         Na conclusão deste trabalho tentou-se realizar um encerramento do corpus em
estudo, porém o objeto em análise não possibilitou, efetivamente, um fechamento da
discussão. São tantas as temáticas instigantes, capazes de conduzir os seus leitores a situações
inimagináveis no mundo real, mas totalmente possível no universo literário. Morte, solidão,
amores não correspondidos, incertezas, inseguranças, (des)construção de identidades,
conflitos com a estrutura urbana,      dilemas familiares, fracassos profissionais, repressão
sexual, desejos contidos, nostalgia, descoberta dos (des)encantos da cidade, são alguns dos
elementos encontrados da contística de Sonia Coutinho.
         Todas essas sensações se misturam à desconcertante estrutura das cidades e
produzem as mais fascinantes narrativas. Cenas fantásticas descritas deparam-se com uma
infinidade de personagens totalmente perdidas, mas, em meio à instabilidade, é latente o
desejo de desvendar os segredos da cidade e, quem sabe, sair do lugar de desbravadores da
felicidade.
         Na busca por uma construção e consolidação identitárias, as personagens conduzem
os leitores a embarcarem em seus universos e observar, com um olhar mais atento, a multidão
contemporânea e, quem sabe, reconhecerem-se e, através da literatura, ressignificarem a sua
existência, cumprindo com maestria a função primeira da literatura, representar a realidade
provocando catarse nos seus amantes.
11



         A discussão aqui abordada tem como tema Literatura e identidade, instigado pelo
desejo de compreender o panorama literário do país após o Modernismo. A literatura, ao
longo da história do Brasil, consolida-se enquanto arte sempre na sustentação da sua
característica essencial, a arte da palavra. Contudo, em face de um novo cenário da história do
país há a intensificação no uso de alguns conceitos, bem como a exigência de novos, os quais
abarquem a complexidade contemporânea. Dentre os vários conceitos, pode-se apontar o de
identidade que, respaldado na efemeridade e fragmentação do sujeito contemporâneo oferece
aos leitores obras literárias compostas de ferramentas que lhes possibilitam pensar sobre os
fatores contribuintes para a afirmação do ser humano como tal.
       A escritora Sonia Coutinho, na sua contística, apresenta narrativas, cujas personagens
principais estão em constante conflito existencial, sobretudo, o conflito interno motivado,
principalmente, pelo fato de elas não conseguirem se autoafirmarem. A escritora oferece um
riquíssimo material para que se pense sobre a condição do indivíduo na busca pela sua
identidade, por aquilo que é constante na vida das suas personagens, ao menos a maioria
delas, dar significado à sua vida, à sua história.
       Assim, considera-se com esse trabalho assinalar: quais elementos da literatura
contemporânea são utilizados pela autora nos contos? Quais características garantem a
originalidade das obras? De quais subsídios se utiliza Sonia Coutinho para desmistificar o
paradigma de que, em sua escrita, trata, unicamente, de conflitos femininos? E, diante de tais
elementos, será possível afirmar que o espaço físico contribui para (des)construção identitária
dos sujeitos contemporâneos?
       Com base nos questionamentos supramencionados delineou-se o objetivo geral:
verificar, sob o olhar da literatura contemporânea, as características do espaço físico
interferentes para as (des)construções identitárias na contemporaneidade. Seguido dos
específicos: Comparar Modernismo/Pós-modernismo à revelia da literatura tradicional;
Conceituar o conto sob a perspectiva tradicional e contemporânea; Identificar elementos da
literatura contemporânea nos contos em análise; Apontar a importância do espaço físico para
a (des)construção de identidades nos contos analisados; Analisar a escrita de Sonia Coutinho
como arte literária enigmática para além das discussões de gênero.
       Tomando como princípios basilares a finalidade deste projeto e as múltiplas
possibilidades permitidas nos contos de Sonia Coutinho, chegou-se a sua concretização.
Incerta, (in)conclusa, apaixonante. Revigorou-se a função da literatura de oferecer novidades
12



possíveis, vivenciadas e sustentadas num universo envolvente que só a literatura pode
proporcionar. Em um trilhar incansável pelas páginas da arte contemporânea, moldada pelas
mãos da artista contemporânea Sonia Coutinho, através de becos e vielas da cidade, algo novo
foi tecido.
13



1 LITERATURA E TALENTO: a tradição revisitada


         A literatura, como agente transformador e intensificador da linguagem, apropria-se
do sistema linguístico comum, representa a realidade e, por consequência, ressignifica-a e
desenha um estilo próprio que provoca estranheza e, ao mesmo tempo, catarse no leitor.
         Com relação aos outros discursos, a linguagem literária distingue-se por desfigurar,
de várias formas, o sistema comumente usado. Essa distorção faz com que o cotidiano torne-
se um universo, inesperadamente, desfamiliarizado. Elementos como imagem, métrica, rima,
entre outros, produzem o efeito de estranhamento. Diante de situações, aparentemente
corriqueiras, o sujeito torna-se inseguro da sua realidade.
         O novo cenário posto pela literatura instiga o leitor a ter outro olhar sobre o real.
Embora se trate de representação, nota-se que, pelo fato de o sistema linguístico utilizado ser
o mesmo do mundo verossímil, contribui para que objetos e situações da vida sejam
percebidos por outro ângulo. Uma linguagem mais intensificada e, portanto, revestida de
ressignificações sugestivas à autoconsciência. Eagleton (2006, p. 5-6), baseado na concepção
dos formalistas russos, destaca:

                       A literatura, impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova
                       essas reações habituais, tornando os objetos mais “perceptíveis”. Por ter de
                       lutar com a linguagem de forma mais trabalhosa, mais autoconsciente do que
                       o usual, o mundo que essa linguagem encerra é renovado de forma mais
                       intensa.

         A renovação dessas reações habituais revela-se contínua e intensa na linguagem
literária e, na contemporaneidade, muitas são as expressões artísticas retratadas. Sonia
Coutinho1, por exemplo, transporta a interrogação do quem sou eu, em sua narrativa. Ela, de
posse de um sistema linguístico, inteira-se do ato de fingir somado à seleção e à combinação,
representa, sobretudo, temáticas concernentes aos conflitos existenciais do indivíduo.
Coutinho apresenta, em sua contística, inúmeras narrativas, nas quais se podem observar
personagens imersas em constantes conflitos existenciais; são histórias que convidam o leitor
a embarcar, com um olhar mais atento, no mundo das personagens.
          Percebem-se, em sua obra, características que corroboram com a afirmativa
apresentada por Eagleton. Propositalmente, ou não, a escritora traz elementos que consolidam
a sua literatura como original, esteja essa originalidade relacionada aos conceitos abordados
na tradição ou na contemporaneidade. No conto, Doce e cinzenta Copacabana (2005, p. 45),
pode-se ilustrar a capacidade do texto literário de impor novas possibilidades às meras
situações cotidianas, como a saída da personagem para um breve passeio em seu bairro: “[...]

1
 Autora dos contos em análise nesse estudo e que se encontra apresentada no último capítulo do
trabalho.
14



ela pode estar aqui em Copacabana sem causar estranheza a ninguém, assim de calças
compridas um tanto sujas, mas então lembra a roupa para lavar, o apartamento imundo, os
restos de comida [...]”.
         A peculiaridade da literatura ao utilizar o sistema linguístico convencionado faz com
que a sua leitura conduza o leitor, mais que criar um mundo fictício, imaginário, a acreditar
veementemente no universo inventado pela sua imaginação. Essa submersão, mergulho numa
outra realidade, é possibilitada através do uso de alguns artifícios literários, como a linguagem
conotativa. Acerca do uso e da função da linguagem comum pela literatura, D’Onofrio (2007,
p. 15-6) afirma:



                           A linguagem literária acentua o próprio signo linguístico, estando orientada
                           para a mensagem como tal e não apenas para seu significado. Sua função,
                           mais do que referencial, é essencialmente expressiva, pois confere um novo
                           sentido às palavras.


         A discussão apresentada por D’Onofrio encontra respaldo na escrita de Sonia
Coutinho, pois a autora, ao se apropriar da convenção linguística, oferece uma nova visão,
uma ressignificação para o comportamento humano. No conto O leque do Afeganistão (2005),
a personagem do Professor Anaximandro demonstra uma conduta contraditória a que sempre
apresentara, ao menos no seu discurso, fica consternado ao perceber a mudança no
comportamento da sua esposa Sibila, ao notar que ela não o deseja mais. Nesse momento, o
Professor mostra a sua verdadeira face:



                           Ele remexeu, depressa, em alguma coisa atrás da orelha, e Sibila viu que
                           Desafivelava a Máscara. [...] Debaixo da cobertura de borracha que
                           compunha seus traços corriqueiros havia um misto de focinho de lobo e
                           feições grosseiras de sátiro (COUTINHO, 2005, p. 15).



         A estranheza do texto literário que, ao mesmo tempo, afasta e convida o leitor a
trilhar pelos caminhos das suas narrativas, dá-se pelo fato de serem atribuídos, ao significante
o próprio texto literário, novos significados, sensações, emoções. O inanimado torna-se peça
fundamental do jogo de palavras criado e sustentado pela literatura. A verossimilhança é
característica do texto literário, pois o autor ao produzi-lo está sujeito às influências do mundo
15



que o circunda. Essa proximidade com o real é justificada pela mímese, uma vez que o
universo existente na obra literária torna-se verossímil.
           Apesar de a literatura estar cercada de artifícios que confirmam a sua escrita como
diferenciada e original, questiona-se, ainda, se haveria, efetivamente, algo a ser considerado a
essência da literatura. Nesse sentido, Eagleton (2006, p. 14) afirma não existir “uma
‘essência’ da literatura”. Análise de obras a partir do contexto social no qual estejam
inseridas, semelhanças e diferenças com esse ambiente, bem como a sua finalidade e a
maneira como o texto literário se comporta diante das práticas humanas que o rodeiam, são
alguns dos argumentos levantados pelo autor para fundamentar a sua discordância.
           A concepção de texto literário, alicerçada apenas nestes princípios torna-se, o que
deveria ser uma obra de arte, em uma prática comum da linguagem, “puramente formal,
vazia” (EAGLETON, 2006, p. 14), nas palavras do escritor. Além de igualá-la a outros tipos
de realização linguística não-pragmática, como a piada que, assim como a literatura, nessa
concepção estritamente mecanizada, poderia transportar os interlocutores, de um dado
processo comunicativo, ao mundo apresentado por uma piada, dependendo do modo como é
contada.
           Cabe salientar, portanto, outro conceito, intrinsecamente ligado à concepção de
literatura: o julgamento de valor. Nessa perspectiva, Perrone-Moisés (1998) afirma que as
considerações tecidas acerca da história literária neste século, deixaram à margem, senão de
maneira explícita, as questões inerentes a essa discussão.
           Perrone-Moisés (1998) afirma, inclusive, que, para que a literatura seja utilizada
como instrumento fortalecedor das experiências de mundo dos leitores, os críticos literários
deveriam explicitar quais valores são utilizados em seus julgamentos. Essa atitude contribuiria
para que o leitor decidisse qual história literária serviria para aperfeiçoar a sua fruição num
contato com as obras.
           Para o aprofundamento da sua critica, Perrone-Moisés (1998) discute sobre a
importância do passado para a consolidação de qualquer legado literário construído num dado
presente. Segundo a escritora, os autores, em sua contemporaneidade, devem ter consciência
sobre o passado que contribuiu para a organização de sua obra. A releitura do passado se dará,
segundo a autora (1998, p. 25-26), à luz de valores do presente e, como consequência,
garimpar-se-á subsídios para novas produções:
16



                          A leitura valorativa do passado literário efetuada pelos escritores-críticos
                          modernos afeta significamente a historiografia literária. A escolha efetuada
                          por um escritor entre os nomes-obras do passado é fortemente interessada:
                          trata-se, para o escritor, de julgar e selecionar com vistas a um fazer.


           Os pressupostos apresentados por Perrone-Moisés (1998) dialogam com o que, em
outrora, fora proposto num ensaio por T.S. Eliot (1988). Neste ensaio, a individualidade é
fundamental para a consolidação e manutenção da literatura dos escritores. Cada leitor ao
entrar em contato com algum manuscrito tenta buscar o que o difere de textos anteriores,
sobretudo os mais próximos, algo novo, até então irrevelável e com isso deleita-se na sua
leitura.
           A tradição está além da mera utilização dos êxitos deixados pela última geração. O
passado não é renegado, mas ressignificado, revigorado. O texto da tradição é lido no presente
como no período da sua escrita. Esta implicação exige que o escritor torne-se mais consciente
da sua contemporaneidade. O seu significado torna-se mais valoroso, pois se constrói, através
de comparação com artistas mortos, não apenas numa perspectiva histórica, mas crítica.
           Tais pressupostos permitem ao poeta evoluir enquanto artista que, consciente do
passado, imprime na sua produção suas peculiaridades. Eliot (1989) afirma que essa evolução
relaciona-se a um autossacrifício, além de constante perda da personalidade. A partir dessa
afirmativa, o escritor apresenta a correlação da despersonalização com a tradição. A
característica da valoração do passado é encontrada na escrita de Sonia Coutinho. Através da
intertextualidade2, a autora revisita o passado e ressignica-o. Em Nos olhos do cão (2004, p.
85), os descompassos da vida da personagem são relacionados ao conflito vivido em um
clássico da literatura universal, a história de João e Maria: “Eu não queria nada disso pra mim,
pensou o homem de 50 anos para quem não haveria resgate. Estava perdido no bosque, depois
que os pássaros comeram a trilha de migalhas de pão”. Nesse sentido, a poesia deverá ser
concebida como “um conjunto vívido de toda a poesia já escrita até hoje” (ELIOT, 1989, p.
42-3).
           O conflito interno do poeta com o seu próprio ser possibilita matéria-prima às suas
produções, pois poeta perfeito, certo de seus pensamentos separa o seu sofrer de sua mente



2
 COMPAGNON, Antoine (2006). Expressão do léxico literário, criado pela semioticista Júlia Kristeva, o qual
designa o diálogo entre os textos.
17



criadora, não se torna um artista atemporal. A mente do poeta é um reservatório de um
emaranhado de frases, imagens, palavras capazes de, unidas, constituírem um novo composto.
         O artista utiliza-se, poeticamente, de emoções cotidianas, quase despercebidas, talvez
imperceptíveis e, com a ressignificação da linguagem, além de demonstrar todos os anseios
implícitos nesses sentimentos, impingem o objetivo do artista. Assim, entrecruzam-se a
individualidade dos escritores, através do talento, às sensações dos leitores para que a tradição
continue sendo construída.
         Acerca das emoções baseadas no cotidiano, possivelmente estimuladas no leitor,
Sonia Coutinho apresenta diversas situações corriqueiras, mas somadas ao seu talento de
descrevê-las e a receptividade do leitor asseguraram a longevidade de sua obra. Discutir
literatura implica, quase sempre, um retorno ao seu passado histórico. Essa retomada, não
nostálgica, é a sua permanência ao longo dos tempos.
         As diferentes abordagens no universo literário podem ser entendidas não como
progressos, mas como adequação e aperfeiçoamento, pois enquanto representação da
realidade, a literatura continua oferecendo novos olhares sobre o comportamento do ser
humano que, independentemente da época, conviverá com os conflitos próprios do seu ser.
         A linguagem como instrumento primeiro da literatura reveste-se de novos focos, e
novos olhares a redimensionam a fim de trazê-la às perspectivas de um presente, mas que no
passado, inclusive, terá viéses imprescindíveis àquela atualidade. Apesar de tantas discussões,
a dialética se instaura, dando continuidade permanente ao discurso literário.



1.1 Modernismo ou pós-modernismo: a dialética teórica e o espaço literário



         A produção literária, tradicionalmente, fora dividida em períodos determinados, não
por datas estabelecidas a rigor, mas pelo fato de os escritos de alguns autores que viveram
numa mesma época serem marcados por iguais características, senão muito próximas ou,
ainda, estarem voltados às mesmas ideologias.
         O Modernismo brasileiro, movimento em estudo, surge no bojo das grandes
transformações sociopoliticoeconômicas, oriundas, principalmente, como consequências da
Primeira Guerra Mundial. Como uma nova estética que visava maior vivacidade na
representação dos sentimentos, emoções e ideais artísticos daquela época, esse movimento
18



requereu um estreitamento com as camadas populares, pois a massa brasileira, enquanto
constituinte social, não poderia ser deixada à margem da representatividade do povo.
           Nessa perspectiva, inúmeras são as definições acerca do que seria esse momento no
panorama literário. Apresentam-se conceitos que engendram desde a ruptura com tendências
literárias já estabelecidas à retomada de temas abordados em outrora, como as inquietudes do
ser humano mediante a incerteza do seu destino, bem como uma literatura que expusesse a
sociedade brasileira tal como ela é, afastando-se, com isso, dos resquícios europeus.
           Percebe-se a importância do movimento para o país. Ele exerceu forte influência na
criação de um novo estilo que aguçava a consciência nacional de modo a exprimir as novas
perspectivas brasileiras frente às artes e às letras, à vida e à cultura da massa brasileira.
Alguns teóricos, afirmam não tratar o Modernismo apenas de um período histórico a ser
conceituado, mas estar relacionado aos valores culturais do país. Candido (2000, p.124)
ressalta essa ideia:



                         Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de
                         movimentos das idéias, e não apenas das letras) corresponde à tendência
                         mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro. Nele, e, sobretudo, na
                         culminância em que todos os seus frutos amadureceram (1930-40),
                         fundiram-se a libertação do academicismo, dos recalques históricos, do
                         oficialismo literário; as tendências de educação política e reforma social: o
                         ardor de conhecer o país.


           A literatura, diante dos conflitos existenciais contemporâneos, apodera-se,
ficcionalmente, daquilo que a ciência não consegue explicar para se consolidar como arte, isto
é, enquanto representação da realidade apresenta hipóteses, ferramentas que podem levar o
sujeito a questionar a sua existência, deixando-o mais certo de si ou mais alheio a sua história,
desconstruindo, pois, a ideia de um mundo moderno coerente, igual, para reconstruí-la com
base numa realidade fragmentada, heterogênea e imprescindível às experiências desses atores
sociais.
           Hutcheon (1991, p. 19) afirma que o “[...] pós-modernismo é um fenômeno
contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que desafia
[...]”. Este período não deve ser percebido tão somente como o momento da história substituto
19



do Modernismo, mas como um movimento denso e questionador da modernidade3 que, dentre
outros, discutirá os aspectos culturais para a formação das identidades. Ainda sobre o pós-
modernismo, a autora (1991, p. 31-2) considera:



                          [...] um processo ou atividade cultural em andamento, e creio que
                          precisamos, mais do que de uma definição estável e estabilizante, é de uma
                          “poética”, uma estrutura teórica aberta, em constante mutação, com a qual
                          passamos a organizar nosso conhecimento cultural e nossos procedimentos
                          críticos [...].


          Há de se observar que a afirmação de Hutcheon encontra solidez na
contemporaneidade, pois além de perceber esse momento histórico como um processo, em
constante movimento, destaca-o como uma possibilidade a mais para compreender a
constituição cultural de uma dada época.
          As definições apresentadas sobre Modernismo e Pós-modernismo apontam para as
peculiaridades de cada um desses momentos. Aquele, embora buscando uma melhor
representação de um Brasil preocupado com as demandas sociais, deteve-se, ainda, numa
escrita   mais    voltada     aos   conflitos    individuais     do    sujeito,   enquanto     esse,    na
contemporaneidade, discute a concepção de sujeito a partir do contexto em que ele se insere.
          Nessa miscelânea de concepções, nota-se uma preocupação comum: a representação
do sujeito, o modo como sua identidade é construída nesse novo universo, tão incerto e
fragmentado. No conto Uma certa felicidade (1994), Coutinho enfatiza aquela que seria uma
constante na vida dos indivíduos na contemporaneidade, a autoidentificação em meio a
desconcertante estrutura dos tempos modernos. Sua personagem, numa possível visita ao
médico, tenta identificar-se, momento em que se evidencia a dificuldade de o sujeito
encontrar-se, definir-se (COUTINHO, 1994, p. 21-22):



                          Mas eu não tenho pontos de referência para reconstruir minha unidade. Tudo
                          embaralhado: numa etapa qualquer, houve a ruptura, a continuidade se
                          perdeu. Esqueci, doutor. Manuseio as pedras do quebra-cabeça espelho na
                          mesa – fragmentos coloridos, desencaixados, que sou eu.



3
 Para Benjamin (1989), cf. Referências, modernidade é compreendida como uma época específica; designa, ao
mesmo tempo, a força que age nessa época e ao mesmo tempo a aproxima da antiguidade.
20



         As incertezas suscitadas na contemporaneidade tentam, mais que dar respostas aos
leitores, questionar os conflitos humanos com base em concepções de mundo. Nessa
interrelação de mundo real e ficcional, de representação mundana através de textos, ou, mera
criação de novos universos, a literatura encontra malhas para tecer a sua arte. Não se trata, tão
somente, de períodos literários, mas da materialização daquilo que se tornou uma construção
discursiva, a vida. Nessa perspectiva, Connor (2000, p. 107) diferencia:



                        [...] enquanto a literatura modernista se comprazia no afastamento auto-
                        reflexivo daquilo que se considerava um mundo real sólido e mudamente
                        não-discursivo, o mundo real transformou-se em literatura – numa questão
                        de textos, representações, discursos. O vinculo entre texto e mundo é
                        remoldado no pós-modernismo não pelo desaparecimento do texto no
                        interesse de um retorno ao real, mas por uma intensificação da textualidade
                        que a torna co-extensiva com o real. Uma vez que o real se transformou em
                        discurso, já não há separação entre texto e mundo a ser transportado.


         Diversas são as discussões apresentadas sobre o que seria o tempo vivido pela
sociedade hoje: modernidade, pós-modernidade, ainda, contemporaneidade enfim, tudo o que
está além do que se considerou Modernismo. Percebe-se a necessidade de nomear o presente,
defini-lo como uma época específica a partir do comportamento social, bem como o modo
como será representado na literatura. A motivação para esse fato justifica-se, quiçá, pela
obrigação de situar os discursos a partir de uma dada época. Compreensões como de espaço
coletivo e individual, de ocupação do sujeito e do outro, de linguagem, são valiosas ao
discurso literário, pois serão basilares para a manutenção da literatura como representação da
realidade.
         Mais do que nunca, esses debates são pertinentes, haja vista a complexidade
vivenciada por esse período que, com toda sua efemeridade, fragmentação, rapidez, concebe
sujeitos cada vez mais incertos de sua existência, de sua colocação na sociedade. A
insegurança torna-se um importante fator na construção de subjetividades, embora peculiares,
são vítimas de discursos, logo, sujeitas a mudanças. Villaça (1996, p. 186), traz para a
discussão: “No espaço que vai do individual ao social, do eu ao outro, do moderno ao
contemporâneo, constrói-se a subjetividade textual, onde as polaridades se dissolvem na
transformação permanente instalada pelo dialogismo”.
21



        Na contística de Sonia Coutinho, percebe-se a existência constante dessa concepção
de espaço e sua contribuição para a construção do mundo das personagens. São histórias que
têm como elementos a rua, moldada segundo os conflitos das personagens: “[...] Enquanto
tudo prosseguia em redor, o trânsito engarrafado, muralhas de pedra, a solidão, Copacabana e
um milhão de sonhos irrealizados” (COUTINHO, 2004, p. 88). Embora tenha buscado no
espaço coletivo um refúgio para a sua angústia, a personagem percebeu, apenas, que de nada
valerá a diversidade nele encontrada sem uma harmonização consigo mesma.
        A literatura, portanto, como uma representante de discursos, estará sempre sujeita a
modificações, interferências, permanências. Contudo, independentemente do período tratado,
a obra deve manter as características que a asseguram como arte.
        O poder, exercido por essa escrita de conduzir leitores ao êxtase e a se reconhecerem
em seus escritos, perdurará para além das discussões de períodos literários. Logo, mantendo-
se com tal habilidade demonstra que, como na tradição, mantêm-se viva, instigante,
inovadora, uma nova opção de realidade.
        A arte rejuvenescida aos olhos de cada leitor se renova e se atualiza. As narrativas
que, segundo Cortázar (1993), aproximam-se da fotografia e valem pelo inenarrável (Seixas,
1998), também vasculham da tradição à contemporaneidade.



1.2 Da tradição à contemporaneidade: quem conta um conto



        Tradição e contemporaneidade: duas faces de uma mesma história. Dessa maneira,
visualiza-se a trajetória literária que, como qualquer outra, apresenta múltiplas versões,
determinadas, sobretudo, pelo momento em que acontece. Como os indivíduos, a literatura
tem sua identidade construída a partir da sua história, por isso a necessidade de discuti-la
sempre à luz da tradição.
        Entretanto, há de se questionar o próprio conceito de tradição, haja vista cada época
ser marcada por seus descompassos que, por consequência, serão impressos naquilo que
futuramente se considerará tradição, possivelmente, essa pode ser uma maneira de, além de
reconhecer a importância do que em outrora se construiu, criar a futura tradição solidificada
em bases concretas, também consolidar a literatura como uma linguagem atemporal, pois
representativa de uma época, oferece instrumentos influentes a novas discussões. Corrobora-
22



se com Harvey (2001, p. 273) sobre revisitar a tradição, visando uma identidade, uma tarefa
não simples se entendida apenas como continuidade:


                        A afirmação de qualquer identidade dependente de lugar tem de apoiar-se
                        em algum ponto no poder motivacional da tradição. É, porém, difícil manter
                        qualquer sentido de continuidade histórica diante de todo o fluxo e
                        efemeridade da acumulação flexível.

         A literatura brasileira consolida-se enquanto arte sempre na sustentação de sua
característica essencial, a arte da palavra. Contudo, em face de um novo cenário da história do
Brasil há a intensificação no uso de alguns conceitos da tradição, bem como a exigência de
novos, os quais abarquem a complexidade contemporânea.
         Dentre os vários conceitos, pode-se apontar o de identidade que, respaldado na
fragmentação e efemeridade do sujeito contemporâneo, oferece aos leitores obras literárias
compostas de ferramentas que lhes possibilitam pensar sobre os fatores contribuintes para a
afirmação do ser humano como tal.
         Nessa perspectiva, no final dos anos 80 e início dos anos 90, várias obras inserem-se
no que se consideram os paradoxos do contemporâneo4, cujas escritas focalizam desde temas
universais, tradicionalmente literários, a questões identitárias. A partir desse novo viés da
literatura, conceitos como o de identidade são ampliados, pois a transitoriedade do
contemporâneo impõe aos indivíduos múltiplos comportamentos, o que, naturalmente,
obrigam-nos a possuir uma identidade plural.
         Sonia Coutinho, no conto Uma certa felicidade (1994, p. 14-15), apresenta uma
história na qual são perceptíveis algumas características do conflito identitário vivenciado
pelos sujeitos contemporâneos. A personagem principal, imersa num conflito constante em
busca do autorreconhecimento, mostra-se cada vez mais embaraçada em meio as suas
lembranças, pois não consegue juntá-las a fim de construir uma unidade, a sua unidade:



                        E eu, que quero afinal? Não sei, e estou com 28 anos e um passado que me
                        parece incompreensível e não tenho a quem oferecer de presente [...]. Mas, o
                        fato de ter esquecido tanta coisa me angustia como se tivesse perdido a
                        identidade. O esforço para lembrar é um esforço de me encontrar.


4
  VILLAÇA, Nízia (1996). Conjunto de obras literárias cujo foco discute, entre outros, as crises de
representações identitárias na contemporaneidade.
23



         A rapidez e a tenuidade com que as concepções são construídas e desmoronadas na
atualidade desconstroem as bases “sólidas” do sujeito que entra em conflito constante.
Inúmeros são os dilemas, as (in)satisfações, a demanda por conceitos que consigam abarcar a
dinâmica da vida em movimento, iniciada nos primeiros anos do século XX. A ampliação
desse panorama exige a percepção das dicotomias com as quais se deparam o sujeito, além de
uma linguagem que contemple a diversidade social. Villaça (1996, p. 158) caracteriza essa
convivência com esse paradoxo:



                        [...] Vivência da crise da questão política, ética, artística, por uma
                        subjetividade que se volta para a história, para o nacional, a cidadania [...].
                        Crise de representação, da valoração, simultânea à procura de uma
                        linguagem que reflita o multiculturalismo, que mantenha as diferenças
                        retrabalhando sempre os pares distintos.


         Diante da problemática na qual se encontra imersa a sociedade atualmente, torna-se
inconcebível discutir literatura como uma arte absoluta, haja vista o fato de os temas
pertinentes a essa linguagem estarem sendo debatidos em outras vertentes, como os estudos
culturais. A autora continua: “O valor do novo e a tradição de ruptura não se sustentam na
complexidade contemporânea, onde as questões sofrem rearticulações, formam redes” (1996,
p. 162-3).
         Culler, assim como Villaça (1996), visualiza a literatura como uma prática cultural
específica que se beneficia ao ter suas obras relacionadas a outros discursos, isto é, os estudos
culturais podem buscar nessas obras o modo como representam as ideias de uma época.
         Segundo o autor (1999, p. 51-2), o trabalho desenvolvido nessa perspectiva respalda-
se, sobretudo, no modo conflituoso em que as identidades são construídas. O estudo volta-se,
principalmente, à compreensão das culturas de grupos minoritários, historicamente
marginalizadas pela sociedade, mulheres, negros, que encontram dificuldades para sentirem-
se pertencentes à ampla cultura em que estão inseridos.
         Compreende-se a importância de os estudos literários dialogarem com os estudos
culturais. Na contemporaneidade, fragmentação e efemeridade, características muito presentes
nos escritos artísticos, entrecruzam-se para construções identitárias cada vez mais incertas:
“Eu sou isso – meus conflitos, minhas insatisfações, minhas carências afetivas, essa constante
24



e dolorosa sensação de perda. Acima de tudo, minha solidão. São coisas que doem, mas que
também aprecio, porque essas coisas sou eu” (COUTINHO, 2004, p. 75).
         Surgidos dos estudos literários, os estudos culturais, tradicionalmente concebidos
como opositores da literatura, preocupam-se em apresentar novas possibilidades para que se
discutam grandes obras literárias sob uma nova ótica, abrindo bastantes debates sobre o
comportamento humano em sua contemporaneidade. E como ficam as discussões sobre
originalidade e estilo? As implicações estéticas? As desconstruções evitaram petrificações e
ou cristalização. Há uma nova construção, uma visão renovada. Uma busca do desconhecido.
Um mistério de fontes escondidas.



1.3 Originalidade e estilo na literatura finissecular



         A essência da literatura constitui-se em materialidade da linguagem, formas na
página e sons no ar, como afirma Connor (2000, p. 89-90). O autor apresenta a essência da
literatura como um dos princípios literários para a obra. Ele contínua, ao debater a concepção
nas quais devem versar os princípios literários:



                        O principio da literariedade de uma obra particular como algo inerente não
                        tanto à sua natureza material quanto à sua forma – quer dizer, às maneiras
                        particulares pelas quais o estilo e a convenção eram empregados na obra de
                        arte particular. A literariedade, declaravam eles, estava na intensa
                        capacidade da obra literária de servir de mediadora às qualidades da sua
                        forma de atrair a atenção sobre esta.


         Embora a contemporaneidade se apresente assolada de novos conflitos,
fragmentação, efemeridade, identidades etc., a literatura mostra-se renovada para continuar
representando a realidade, pois criou novos e intensificou a utilização de antigos conceitos.
         Ao se apropriar do sistema linguístico comum para falar sobre o comportamento
humano, a literatura continua atraindo a atenção para as suas obras, pois independentemente
da época de que fala, permanece utilizando-se de seus conceitos para aproximar o leitor do
seu universo. Verossimilhança, mímesis, estranheza, catarse, fruição são alguns dos elementos
que, utilizados pela literatura e despertados no leitor, asseguram a sua originalidade.
25



         Numa perspectiva teórica, discutir literatura na contemporaneidade implica, também,
abordagem de questões outras, como os valores ideológicos vigentes e as práticas da crítica,
haja vista estes fatores interferirem diretamente para a construção de conceitos. Contudo, sua
interpretação não pode ser reduzida a esse aspecto, mas estendida à sua compreensão a partir
dos efeitos do seu discurso, como se observa no comentário de Connor (2000, p. 108):



                        A teoria literária pós-moderna, no sentido dual de um conjunto dominante de
                        idéias e práticas críticas [...] e de uma teoria de um modo dominante de
                        literatura contemporânea, pode vivenciar e projetar-se numa espécie de crise
                        eufórica; mas interpretar suas operações somente nestes termos é cometer o
                        erro comum de um só atentar para o conteúdo manifesto da teoria, em vez de
                        avaliar seus efeitos discursivos e ver o que ela diz e não o que ela faz.


         Percebe-se então que, mesmo a literatura cumprindo com maestria a sua função de
representar a realidade, faz-se imprescindível atentar-se para as novas maneiras de conceber
essa realidade, pois esta tem se apresentado segundo várias concepções. Essa situação obriga
o discurso literário a moldar-se segundo uma nova organização e, automaticamente,
desenvolver novas estratégias de representação. Villaça (1996, p. 162) discute sobre este
aspecto: “Hoje, em plena crise de representação, quando o lugar do saber começa a aparecer
como construção histórica, discurso, interpretação, o par ciência/arte, desenha novos
movimentos, inventa-se numa dinâmica outra”.
         Ao se tratar da originalidade na literatura contemporânea, é importante ressaltar outra
característica dessa escrita, o estilo, entendido quase sempre do ponto de vista individual.
Alguns teóricos, como Compagnon (2006), contradizem essa afirmativa, pois, segundo ele, o
estilo é construído sob dois aspectos, individual e coletivo.
         Enquanto propriedade do discurso, o estilo imprimirá nos escritos os hábitos de uma
época. Com essa utilização, além desses escritos serem mais facilmente identificados como de
um tempo específico, possibilitarão o reconhecimento de alguns escritores e o legado deixado
por eles. Acerca da concepção de estilo, Compagnon (2006, p. 173), apresenta-o como um
conceito complexo que, imbricado a sua concepção, traz tantas outras:



                        O estilo, pois está longe de ser um conceito puro; é uma noção complexa,
                        rica, ambígua, múltipla. Em vez de ser despojada de suas acepções anteriores
                        à medida que adquira outras, a palavra acumulou-se e hoje pode comportá-
26



                         las todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, é tudo isso que
                         queremos dizer, separadamente ou simultaneamente, quando falamos de um
                         estilo.


         Possibilitar êxtase absoluto, reconhecimento com um mundo ficcional, afastamento
da realidade, até mesmo dúvida sobre a condição de ser humano, ou simplesmente deleite
durante uma leitura, é assim a literatura que, discutida à luz de diversos conceitos, em
diferentes épocas, autores variados, deverá primar por manter, tão somente, sua característica
principal, a arte da palavra.
         A tradição revisita-se, embriaga-se de conceitos e técnicas, metamorfoseia-se na
aventura humana de renovar-se e pôr na locomotiva da vida as ideias que, indiferentes ao
esgotamento da realidade, auxiliam na construção de símbolos num movimento ininterrupto
do artista que vê e espelha o homem que desfila a noite ou durante o dia pelas páginas
revigoradas do plano mágico do imaginário.
27



2 O EU PELAS RUAS DA MODERNIDADE



       A imaginação tornou-se um elemento essencial aos sujeitos da modernidade. Através
dela realidades são reinventadas. Em face do cenário vigente nesta época, iniciado na segunda
metade do século XIX (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 180), os indivíduos constituem-se cada
vez mais fragmentados, efêmeros, incertos de si mesmo. Seduzidos pelo fascínio das cidades,
muitos se enveredam pelas ruas, becos, vielas ou, ainda, em seus apartamentos, com intuito
de, não somente atribuir significado à sua existência, mas se encontrar. Contudo, os caminhos
trilhados rumo aos (des)encantos das metrópoles mais tem se apresentado como verdadeiras
bifurcações, pois seus andarilhos, com suas andanças ininterruptas, não conseguem definir
qual o destino alcançar.
       A    incerteza      humana   encontra   solidez    nas      representações   literárias   da
contemporaneidade. Artistas, como Sonia Coutinho, através de sua obra, têm descrito de
modo peculiar o devaneio do sujeito moderno. Seria esse o momento da história da
humanidade em que a mera condição de cidadão, de homem livre, tornou-se insuficiente para
driblar as adversidades desse tempo e assegurar a existência? Alguns estudiosos dizem que
sim. Walter Benjamin, em seus estudos acerca da obra de Baudelaire, afirma que ao sujeito
moderno caberá um novo papel, o de herói. Reinventado nessa nova função poderá o
indivíduo recriar conceitos e identidades que garantam a sua vivência. Para o autor (1989, p.
73), “O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a
modernidade, é preciso uma constituição heróica”.
       Para Benjamin, os obstáculos oferecidos ao homem desse tempo estão muito além das
suas forças naturais, por isso ele é impulsionado a buscar refúgio nas ruas, fazendo dela um
teatro a céu aberto no qual a vida possa ser reescrita. Contudo, nem sempre essa tentativa é
acertada, forçando-o a recorrer a outros mecanismos de sobrevivência. Enfraquecido mediante
as constantes dificuldades, o sujeito visualiza, como uma possível saída, a morte.
       O autor (BENJAMIN, 1989, p. 75) chama a atenção para este tipo de morte. A
necessidade de ela ser concebida não apenas como uma perda, uma questão espiritual, mas
como a vontade do herói moderno, como uma última tentativa de demonstrar o seu fascínio
por este mundo moderno. “O suicídio podia parecer aos olhos de Baudelaire o único ato
heróico que restara às ‘populações doentias’ das cidades [...]”.
28



       Uma vez estabelecida a vida como uma peça teatral, inúmeras representações estarão
prontas à espera dos atores sociais. Nesse sentido Benjamin (1989, p. 75) postula: “Mas a
modernidade mantém pronta a matéria-prima de tais representações e espera um mestre. Essa matéria-
prima se depositou nas camadas, que, de ponta a ponta, aparecem como fundamento da modernidade” .
       Antes que as cortinas da vida se fechem, muitas cenas são dramatizadas e a literatura
tem possibilitado a representação de muitos espetáculos. Sonia Coutinho traz, em sua
contística, histórias que têm a morte, ou o suicídio, como companheira constante, quase
sempre, como um último recurso frente aos dissabores de modernidade. No conto Doce e
Cinzenta Copacabana, pode-se visualizar o suicídio como um válvula de escape.
       A personagem central da história acaba de acordar em um quarto “mergulhado em
cinzenta penumbra” (COUTINHO, 2005, p. 40) em Copacabana. Recentemente completara
28 anos, na semana passada. Desempregada, pois abandonara o trabalho de fotógrafa de um
jornal, guardou algumas economias, além de trabalhos extras que sempre surgem, batizados,
casamentos, festas infantis. “Dinheiro não é um problema imediato” (COUTINHO, 2005, p.
41). Talvez, preencher a lacuna causada pela solidão em sua vida fosse uma questão urgente.
Quem sabe, ainda, arrumar a bagunça do seu quarto, sua mãe não acreditaria que uma pessoa
fosse capaz de dormir num lugar assim.
       Imersa em diversos conflitos, viver sozinha, ter fugido de um internato lá na
cidadezinha e, mesmo, assim não poder admitir a sua fragilidade, sente-se completamente
afugentada, desesperada, com medo, desejando proteção familiar: “Essa sua necessidade
inconfessável de ter um pai” (COUTINHO, 2005, p. 42). “[...] e seja como for, não saberia
viver de outra maneira – só que, ao abrir a porta do apartamento, ah, sente um calafrio de
desgosto/medo, tudo tão sujo e solitário e cinzento” (COUTINHO, 2005, p. 46).
       Depois de um reencontro com as suas antigas amigas lá da cidadezinha, entra num
estado emocional mais incerto ainda. Todas estão casadas, a maioria com filhos e INFELIZES
Ao voltar ao seu apartamento, sujo e bagunçado, tenta estabelecer um pouco de ordem,
desiste, prefere ir para cama:



                        [...] então puxa a colcha, encolhe-se lá embaixo, é quente como um útero –
                        pode suicidar-se em seguida, não seria difícil abrindo o gás do banheiro e
                        deixando a água correr, iria pegando no sono, devagar – mas logo faz um
                        esforço e pensa que vai passar, que vai passar, que vai passar
                        (COUTINHO, 2005, p. 46).
29



       Colocar fim na própria vida, mesmo que seja em pensamento, é um recurso utilizado
pela escritora. Por vezes, a morte aparece em suas narrativas como uma explicação para
comportamentos observados pela sociedade como subversivos. No conto O leque do
Afeganistão que abre a compilação Os venenos de Lucrécia (2005), narra a história de uma
complexa relação, tumultuada, entre o Professor Anaximandro e Sibila.
       Ele, homem austero, dos seus cinquenta anos, figura imponente no prédio onde
moravam. Ela, um tanto jovem demais para ele, trinta e cinco anos, portadora de uma beleza
jovial, mas que era ocultada pelo modo como se vestia e se maquiava, o que, naturalmente lhe
davam o aspecto de mulher mais madura. Os dois eram oriundos de boa família.
       Ao longo da narrativa, nota-se que esta mulher carregava consigo desejos simples,
pois, assim como o ser humano tem oportunidade de realizar coisas singelas, pela última vez,
como ver o sol, passear, tomar banho, ela tem seus anseios, pouco significantes para alguns,
mas para ela, de valor inestimado. “Sim, existe uma última vez na vida em que se pode fazer
amor [...] ouvir um homem lhe dizer na rua (pela última vez), que é muito bonita – pois um
dia se morre” (COUTINHO, 2007, p. 8). A partir de tais afirmações, o leitor, poderá ou não,
deduzir que Sibila apresentava possíveis pistas sobre o seu futuro, incerto para aquele, pois ao
início da narrativa não se pode imaginar seu fim, mas certo para ela que, após cinco anos
numa união conjugal monótona, já presumiria seu destino.
       Ora, seu esposo, o rigoroso Anaximandro, viu-se numa situação embaraçosa ao
perceber que de uma hora para outra sua companheira, até então uma mulher acima de
qualquer suspeita, segundo os parâmetros sociais, transforma completamente seu
comportamento, o qual ele chamou de “Estranha Vida Interior de Sibila”. E que um objeto em
destaque no meio da sua sala, um leque vindo do Afeganistão, poderia, não se sabe como, ter
alguma influência sobre essa nova mulher, mas um simples objeto adquirido numa sofisticada
butique de Ipanema exerceria, de fato, um poder sobre ela ou se trataria, tão somente, de um
pretexto, para que a mesma permitisse que algo escondido florescesse?
       Ao passo que Sibila modifica a tradicional decoração a estilo inglês do seu
apartamento, o Professor a observa. Ela abandonara o comportamento que tanto estimava,
deixara de ser uma “mulher discreta e de classe”. Andava nua pela casa, pintava os lábios de
vermelho, “vermelhíssimos”; as unhas com esmalte roxo, banhava-se ao luar avermelhado
que entrava pela janela, passeava pelo jardim com os seios e o sexo à mostra, decididamente,
para o Professor, “Alguma Doença ela devia ter”. A austeridade apresentada pelo Professor,
30



mediante a renovação de sua mulher, começa a mostrar-se enfraquecida, fazendo surgir um
homem sensível, fraco, “um pobre diabo”, vivendo o conflito de ter sua esposa submissa e
diabólica de volta ou adaptar-se a esta nova que se desvendava.
       Ao receber de Sibila a revelação que estava apaixonada por outro, ficou transtornado,
mas com desejo de mantê-la ao seu lado, manter sua libido efervescente através desta mulher.
“Sua filha da puta [...] não pense que vai sair daqui assim, sem mais aquela, depois de tudo o
que fiz por você [...] Já pus uma bala de prata no meu revolver, tente só uma escapada e verá
– não esperarei por uma segunda oportunidade. Lixo de mulher” (COUTINHO, 2005, p. 16).
Submete-a, pois, à violência física e psicológica.
       Contudo, não há evidências que comprovem a existência de outro homem na vida de
Sibila, existem referências, ora um Poeta cego, ora um jovem tuberculoso e ainda um
estudante de Arqueologia. Ou seja, não seria mais um dos vários artifícios usados pelo
narrador para ilustrar a conflitante condição da personagem, que idealiza um mundo
imaginário a partir dos seus desejos, anseios de mudança e sendo impedida de ser uma pessoa
livre, torna-se prisioneira da sua imaginação.
       Como desfecho dessa história, o narrador apresenta dois possíveis fins para a relação
de Sibila e o Professor. Um, ela perdeu definitivamente o equilíbrio psicológico. O outro,
propositalmente se esqueceu da sua realidade, o que para ela era o maior pesadelo, “[...]
jamais conseguiu verdadeiramente suportar” (COUTINHO, 2005, p.19). Pode-se, diante disto,
pensar que seria esse o objetivo da personagem ao criar um mundo imaginário, migrar para
ele quando não mais tivesse condições de tolerar seu modo de viver, sem, contudo, ser
criticada socialmente por isso, sim, não se pode ou ao menos não se deve julgar alguém que
abandonou uma vida por motivos de distúrbios psicológicos, motivos que se desenvolvem
independentemente da vontade do ser humano.
       Embora essas duas possibilidades tenham sido evidenciadas, pode-se perceber nas
últimas linhas do conto que mais uma vez a morte é usada como principal artifício para o fim
da vida da personagem. O homossexual, amigo presente em todos os seus momentos
conflituosos, propaga várias versões para o fim da história de sua amiga. Dentre elas, aponta o
suicídio:
                        Entre as várias versões que o Amigo Homossexual, anos depois, apresentava
                        para o final da história de Sibila, estava a de que ela teria sido rejeitada pelo
                        Amado, com uma frase áspera e então – a) não resistiu e suicidou-se,
                        deixando-se picar no seio por uma áspide [...](COUTINHO, 2005, p. 19).
31



       Os conflitos vividos pela personagem encontram solidez nas discussões da literatura
contemporânea. Na representação desse sujeito pós-moderno, efêmero, fragmentado, em
constante conflito consigo mesmo, a literatura deverá representar a desordem que dele emana.
(TESTI apud SABATO, 2008, p. 5), reforça a ideia de representação do indivíduo pós-
moderno:



                       O homem de hoje vive em alta tensão, diante do perigo da aniquilação e da
                       morte, da tortura e da solidão. É um homem de situações extremas, chegou
                       aos limites últimos de sua existência ou está diante deles. A literatura que o
                       descreve e o interroga só pode ser, portanto, uma literatura de situações
                       excepcionais.


       A afirmação supramencionada descreve algumas características que podem ser
associadas à Sibila nesse ponto de sua vida. Ela encontra-se em alta tensão por conta das
pressões, psicológica e social, as quais o marido a submete. Há um processo de solidão que a
conduz, inclusive, através do sonho de embarcar em um novo outro mundo, sem tampouco
sair do seu apartamento.
       A morte, solução encontrada por seu Amigo Homossexual a fim de oferecer–lhe um
fim de vida digno, embora não se sabe concreta, pode ser vista sob um novo olhar. Não seria
essa morte a representação de uma possível saída para tantos conflitos da contemporaneidade?
Há inúmeras discussões acerca do comportamento humano pós-moderno, porém pouco se
falou sobre o modo como ele deve se portar mediante seus conflitos existenciais.
       Este é um tema recorrente na contística de Sonia Coutinho. Em Nos olhos do cão, o
homem, de 50 anos para quem não haveria mais resgate, em meio ao seu desespero e solidão,
encontra na morte o refúgio que julga necessário: “A morte como um segredo seu, um grave e
digno segredo seu, a sua morte. Era preciso, pensou o homem” (COUTINHO, 2004, p. 88).
Pare ele, já muito cansado da vida que leva, visualiza na morte o último recurso capaz de
livrá-lo das angústias que o acompanham: “Quase com alívio, ah, ele estava tão cansado da
aventura humana. E, um dia, não tão distante assim, poderia afinal, como um simples vivente
morrer” (COUTINHO, 2004, p. 88).
       O papel de heróina modernidade estará sempre à espera dos que quiserem arriscar esse
modo de vida. Contudo, Benjamin (1989, p. 93-94), embora afirmasse anteriormente sobre a
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importante função do herói, reforça que nem mesmo ele conseguirá se libertar das amarras da
modernidade:


                       A modernidade se revela como sua fatalidade. Nela o herói não cabe; ela não
                       tem emprego algum para esse tipo. Amarra-o para sempre a um porto
                       seguro; abandona-o a uma eterna ociosidade. [...] A modernidade heróica se
                       revela como uma tragédia onde o papel do herói está disponível.


       A cidade é, em si, uma demanda de gênero. Ao trilhar por suas intermináveis ruas, o
sujeito depara-se com a infinidade, ora revestida de encantos e magia, ora fantasiada de
desilusões. A cidade, com o seu poder envolvente de serpente, astuta, dissimulada, sedutora,
enreda o andarilho em uma trama de difícil ruptura, o sujeito torna-se uma presa na cidade.
Guiado pelas luzes solares ou, quem sabe, pela luminosidade noturna e enlaçado pelos
descaminhos da modernidade, o sujeito tenta encontrar-se.



2.1 Andarilho noturno e o eu boêmio



       A literatura, na permanência de uma das funções, a representação da realidade,
encontrará nos conflitos do sujeito moderno o húmus necessário à fertilização de sua arte.
Sem a obrigação de que este elemento seja sempre de boa procedência e assegure a qualidade
dos frutos futuros, a arte literária apodera-se dos passos firmados na modernidade. Nem
sempre as pegadas são afixadas em solo firme, concreto, se o fosse, não seria nesse tempo.
       A cidade, espaço de constantes fabulações, comportará em seus meandros todos
aqueles que dela aproximam-se. Uns, até conseguirão fazer dela o seu porto seguro. Outros,
numa busca permanente pelo seu eu, irão, guiados pelas possibilidades por ela oferecidas,
tentar desvendar os seus segredos através de passeios noturnos, infinitas andanças, quase
sempre limitadas aos poucos metros quadrados de um apartamento em Copacabana. Em Os
olhos do cão, o homem sitiado por sua solidão, tem a insônia como companheira:



                       Às três da madrugada, insone, observando ao espelho do banheiro seu belo
                       rosto magro, só ligeiramente gasto – a ruga amarga no canto da boca, barba e
                       cabelos grisalhos -, tentou determinar a partir de quando, desde a sua
                       chegada, começara a se sentir ameaçado (COUTINHO, 2004. p. 85).
33



       O desejo por situações ou objetos que, mesmo simbolicamente, remetam à noite, essas
personagens seguem suas vidas encurraladas por sentimentos, desde os mais sóbrios a
vontades simples, como a segurança de um útero:



                         À noite, ainda angustiado e outra vez sem conseguir dormir, ansiou por uma
                         morna piscina arredondada e escura onde pudesse, afinal, repousar; quis
                         voltar para antes da memória e do sofrimento, para a tépida mudez de um
                         útero (COUTINHO, 2004, p. 87).


       O sujeito que se encontra e perde-se das trilhas urbanas, há muito tem sido objeto de
estudo de alguns estudiosos, inclusive daqueles que se autointitulavam boêmios, como
Baudelaire, segundo a obra de Walter Benjamin (1989, p. 30): [...] “Essa boêmia – ela é tudo
pra mim – inclui despreocupadamente essa criatura a irmandade da boêmia”.
       As próprias cidades modernas, com seus encantos e magia, oferecem possibilidades
para o indivíduo tornar-se um investigador permanente dos seus indecifráveis segredos. E
nessa busca, muitos acabam assumindo o papel de boêmios, figuras onipotentes e
consolidadas em quaisquer centros urbanos.
       O    surgimento     dessa    personagem      peculiar    relaciona-se,   diretamente,    ao
desenvolvimento industrial das cidades. Embora, hoje sua função esteja imbricada à
concepção de vagabundo, tivera em outrora uma importante função no desenvolvimento de
muitas metrópoles, como Paris. Benjamin (1989, p. 16), em suas pesquisas no legado deixado
por Baudelaire, aponta que havia, inclusive, antes de ser conhecido o conceito de boêmia, os
que já davam significado à função, os trapeiros:



                         Maior número de trapeiros surgiu nas cidades desde que, graças aos novos
                         métodos industriais, os rejeitos ganharam certo valor. Trabalhavam para
                         intermediários e representavam uma espécie de indústria caseira situada na
                         rua. O trapeiro fascinava a sua época. Encantados, os primeiros olhos
                         investigadores do pauperismo nele se fixaram com a pergunta muda: “Onde
                         seria alcançado o limite da miséria humana?”.


       A afirmação acima demonstra que os primeiros boêmios, os trapeiros, deram à sua
contribuição à sociedade. Contudo, inseridos na dinâmica urbana e suas artimanhas
convidativas, o sujeito passa a não mais firmar a sua identidade com o exercício profissional,
34



mas por trazer, para o centro das vivências modernas, diversas formas de prazer escondidas
atrás das regras sociais. Nesse momento, sim, a figura, vê-se mais fortemente relacionada ao
andarilho que não tem preocupação com mais nada, a não ser com a sua vida sem regras e de
prazeres. Benjamin (1989, p. 9-10) afirma:



                            Sua existência oscilante e, nos pormenores, mais dependente do acaso que da
                            própria atividade, sua vida desregrada, cujas únicas estações fixas são as
                            tavernas dos negociantes de vinho – os locais de encontro dos conspiradores
                            -, suas relações inevitáveis com toda sorte de gente equívoca, colocam-nos
                            naquela esfera de vida que, em Paris, é chamada a boêmia5.


         Na busca por reconhecimento e fortalecimento da sua arte, a literatura se apodera,
ficcionalmente, daquilo que a ciência não consegue explicar a fim de consolidar-se. Assim, a
concepção acima apresentada encontra respaldo na literatura contemporânea, pois a retratação
de alguns estilos de vida na modernidade dialoga com o perfil dos verdadeiros boêmios, seja
na concepção tradicional apresentada por Baudelaire, ou, numa perspectiva mais atual.
        Ambas convergem para um mesmo fim, vida de pessoas que optam por um modo de
vida mais desregrada para além das conveniências sociais. E a literatura frente aos desafios
deste tempo, deverá primar por manter a sua vivacidade através das produções artísticas, sem,
contudo garantir-lhe sucesso absoluto em suas produções. Baudelaire (1846, p. 348 apud
Benjamim 1989, p. 29), nesse sentido, afirma que: “Assim também é a literatura, que
reproduz a substância mais difícil de avaliar, antes de tudo um enchimento de linhas, e o
arquiteto literário cujo simples nome não promete lucros tem de vender a qualquer preço”.
        Aliado a este estranho sentimento que assola a vida de muitas personagens de Sonia
Coutinho, a solidão, tem-se um desejo pela escuridão, por hábitos boêmios, como a ida a
barzinhos, apreciar ou extravasar mágoas, através da bebida. Apesar de algumas situações se


5
 [Boêmia] foi a apropriação dos estilos de vida marginais pelos burgueses jovens e não tão jovens, para a
dramatização da ambivalência em relação às suas próprias identidades e destinos sociais [...]. As pessoas eram
ou não boêmias dependendo da intensidade na qual partes de suas vidas dramatizavam essas tensões e conflitos
para elas próprias e para os outros, tornando-os visíveis e exigindo que fossem confrontados (Seigel,1992, p. 19-
20). Segundo Seigel (apud NUNES e MENDES), a boemia é um fenômeno social e literário que teve lugar em
diversos pontos do planeta e em diferentes épocas. O termo diz respeito àqueles artistas que se reconhecem como
tais, que procuram definir seus valores em contraposição aos da burguesia e em que a arte desempenha papel
fundamental. Refere-se, pois, ao estilode vida especial, identificável, surgido no século dezenove, nas décadas de
1830 e 1840 na França, tornado popular especialmente a partir das histórias de Henri Murger (1822-1861), que
dramatiza o cotidiano de um grupo de intelectuais boêmios na Paris daquele tempo.
35



passarem durante o dia, a ânsia pela penumbra da noite permanece: “Entrou num botequim,
pediu cachaça pura e, enquanto levava o copo à boca (suas mãos tremiam), escutou um súbito
silêncio de avesso, viu a escuridão por trás do sol ardente e negro” (COUTINHO, 2004, p.
86).
       A literatura, não em conflito com a ciência, deve ser visualizada como uma prática
social, uma vez que, embora ficcionalmente, ofereça instrumentos que poderão perpassar
épocas para que o comportamento humano de um dado período da história seja observado.
Nesse sentido, pode ser um mecanismo na compreensão do modo como as identidades,
individual e coletiva, são construídas e consolidadas e quais fatores historicossociais
contribuíram para tal afirmação. Villaça (1996, p. 160) discute este aspecto:



                       Na busca da individualidade e da identidade nacional, a literatura funciona
                       pela reduplicação do paradigma da ciência e não em oposição a ela:
                       literatura não como válvula de escape para a vida social penetrada de cálculo
                       e visão mecânica, mas literatura orientada pela mesma racionalidade do
                       poder.


       A cidade, em si, favorece a multiplicidade de comportamentos e o surgimento de
novas identidades. A sua estrutura basilar permite aos seus habitantes vivenciarem inúmeras
sensações a partir de práticas sociais. Para Harvey (2001, p. 69), a aparência das cidades e a
sua organização espacial constituem o esteio necessário para que o indivíduo pense, avalie e
realize diversas percepções do contexto que o circunda. O autor discute, ainda, que a
flexibilidade encontrada nas cidades, aliada ao constante processo de rupturas, típicos da
modernidade, ao qual ela está submetida favorece a uma inacabada e contínua (des)construção
de concepções relacionadas à individualidade do sujeito e ao coletivo no qual está inserido.
Harvey (2001, p. 22) postula:



                       A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável
                       ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é
                       caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações
                       internas e inerentes.


       O autor (2001, p. 18) segue suas análises acerca dos amores e dissabores da cidade
afirmando que embora ela se apresente totalmente plástica, ou seja, passiva às conivências
36



identitárias de cada habitante, essa mesma característica poderá conduzir seus andarilhos a
uma incerteza maior ainda sobre, o que até então, concebiam ser liberdade. Essa característica
pode ser observada no conto de Sonia Coutinho Uma certa felicidade (1994, p. 51): “A
liberdade inteira e toda solidão do mundo. [...] minha liberdade inútil a tiracolo, minha
liberdade como uma túnica, como um manto a minha liberdade e solidão [...]”.
       Para afirmar o seu ponto de vista sobre a plasticidade da cidade, Harvey (2001, p. 17)
expõe a diferença entre elas e localidades menores, como pequenos municípios e povoados:
“[...] as cidades, ao contrário dos povoados e pequenos municípios, são plásticas por natureza.
Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, nos moldam por meio da resistência que
oferecem quando tentamos impor-lhes nossa própria forma pessoal”. E é essa incerteza o
principal elemento sedutor e convidativo que a cidade utiliza para atrair os seus amantes.
Estes, movidos pelo desejo de domá-la, seguem, em passeios ininterruptos, por suas trilhas.
       A ânsia em decifrá-la é mais latente que o medo por ela oferecido. Ítalo Calvino
(1990, p. 44) discute sobre as cidades; para ele: “as cidades, como os sonhos, são construídas
por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras
sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam outra coisa”.
       E o sujeito, numa busca constante por si mesmo, segue pela cidade. Se pela noite não
encontrou o objeto de sua busca, segue em passeio diurno. Quem sabe, conduzido pelos
reflexos solares, este sujeito, encontre-se, descubra-se, reconheça-se, fixe num lugar. Ou
quem sabe, depare-se com uma incerteza maior ainda.



2.2 O Flâneur a descoberta da cidade



       A palavra dá vida à fantasia, à imaginação. Através dela novos universos podem ser
criados. E é na literatura que essa atividade é melhor realizada. Independe da época, dos
conflitos que assolam a vida do ser humano, individuais, coletivos, do contexto, a literatura
permanecerá rejuvenescida, revigorada. Com o seu poder de renovar-se representa a
realidade, embriaga-se dos conceitos de qualquer contemporaneidade e descreve, com
maestria, a vida dos sujeitos. Não importa se é um indivíduo seguro de si, ou, ainda,
completamente alheio à sua existência e àquele, que através de passeios intermináveis pelos
labirintos, tenta decifrar o enigma da cidade, definir-se.
37



       Na contemporaneidade, a literatura não mais se sustenta, tão somente, restrita ao seu
universo. Daí o fato de ela dialogar com outras áreas que, assim como ela, tentam retratar a
vida de um povo, sua cultura, sobretudo, àqueles que seguem na busca por reconhecimento e
consolidação social, como mulheres, negros, homossexuais. Assim, seguirá transportando o
leitor a novos mundos criados e sustentados na literatura, sem que se perca de vista o referente
do mundo real. Calvino (1990, p. 13-20) corrobora essa ideia:



                        No universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a
                        explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar
                        nossa imagem do mundo [...]. Mas a literatura não basta para me assegurar
                        que não estou apenas perseguindo sonhos, então busco na ciência alimento
                        para as minhas visões das quais todo pesadume tenha sido excluído.


       Calvino (1990, p. 84) segue o seu texto discutindo sobre o poder da obra literária.
Trata não do seu absolutismo, mas da sua eternidade. Da capacidade que tem de atribuir
sentido, embora inexato, ao existir. Algo inexplicável, mas delicado, gracioso, tão intenso ao
ponto de parecer algo concreto, embora seja imaginação, ficção. Mas, de qualquer modo, tão
cheia de vida, quase um organismo vivo.
       Ao passo que cria histórias, personagens, a literatura representa diversas figuras da
sociedade. Dentre elas, os amantes dos encantos urbanos, os caçadores dos prazeres da terra
prometida, os que concebem a vida, apenas impressa, na diversidade das cidades. Para o
andarilho do dia das cidades, a vida esconde uma infinidade de tesouros que só poderão ser
notados nos labirintos urbanos. Para Benjamim (1989, p. 35): “Que a vida em toda a sua
diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolva entre os
paralelepípedos cinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo”.
       A alusão à cor cinza é uma constante nos contos de Sonia Coutinho. Suas personagens
fazem referência a esta cor ao descreverem alguns cenários do bairro de Copacabana, local
onde se passa a maioria absoluta das situações vivenciadas por elas. A descrição de algumas
cenas acontece de maneira intensa que possibilita a criação de imagens significativas, muito
embora não decifráveis.


                        [...] um conto é, pois, uma imagem que por razão qualquer apresenta-se a
                        mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba formular em
                        termos discursivos ou conceituais.
38



                            [...] fora a brancura cinzenta da espuma (as ondas picadas deixam no ar, em
                            torno, uma névoa de salitre), está de um cinza profundo, ao lado da areia
                            cinza, do céu cinza e da fileira de prédios cinzentos, é quando os pombos
                            branco/acinzentados descem voando em harmoniosa formação [...]
                            (CALVINO, 1990, p. 104).


          Na busca por si mesmo, os sujeitos urbanos terminam por abarcarem as características
de uma típica figura das cidades, o flâneur6 que, para Baudelaire, segundo Benjamin (1989, p.
34): “[...] dias de festa e dias de luto, trabalho e lazer, costumes matrimoniais hábitos
celibatários, família, casa, filhos, escola, sociedade, teatro, tipos, profissões. A calma dessas
descrições combina com o jeito flâneur, a fazer botânica no asfalto”.
          Inúmeros estudos apontam para a figura do flâneur como uma referência de alegria, ao
seu modo, de alguém despreocupado com a vida e algumas de suas obrigações, como aluguel
e pagamentos de despesas comuns, cujo único foco era a malandragem, a busca pelo prazer,
pela esbórnia, mesmo que, para isso, tivesse que passar dias a fio perambulando pelas ruas da
cidade.
          Entretanto, Walter Benjamin, em estudo à obra de Baudelaire mostra que nem sempre
esses andarilhos das cidades deparavam-se com o fascínio criado em suas imaginações. Eles
sempre eram movidos pelos encantos da cidade, sedentos em descobrir os seus mistérios,
porém, esbarravam, em algum momento da sua trajetória, com a solidão.



6
  É através do olhar do flâneur que a cidade de Paris é transfigurada poeticamente por Baudelaire, mediante o
estado de spleen, de que se falará adiante. [...] Nesta ‘nova’ ou reconstruída cidade, e que corresponde também a
um mundo em decadência, de uma cultura derradeira e mortalmente ferida pelo fetiche da mercadoria e pelo
capitalismo burguês, os seus passeios amplos convidavam agora ao passeio, afastando o medo que tomava o
transeunte parisiense, na antiga cidade, e essa actividade (a flânerie) constituía a ocupação privilegiada do
burguês ocioso (o flâneur), aquele que sustentava a convicção da fecundidade da flânerie, de que nos fala, não
apenas Benjamin, nos seus estudos sobre Baudelaire, como também o próprio Baudelaire, na sua obra As Flores
do Mal. [...] A fantasmagoria do flâneur, aquela que irá ser analisada em primeiro lugar, é tomada como
actividade propiciadora de uma embriaguez ou, mesmo, de um êxtase peculiar (comparada frequentemente à
embriaguez provocada pelo uso do haxixe), é, ao mesmo tempo, a expressão de uma situação dialéctica que se
encontra na raiz da lírica alegórica de Baudelaire. [...] Como Walter Benjamin o afirma, o flâneur é um estudioso
da natureza humana. Sob a aparência de um olhar desatento e distraído, esconde-se alguém cuja volúpia reside
na decifração dos sinais e das imagens: algo que pode ser revelado por uma palavra deixada ao acaso, uma
expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que espera o ouvido de um músico atento. Os
conceitos de flânerie e de ócio devem, então, ser aproximados, tomando o segundo como a inaparente condição
do trabalho poético mais fecundo (CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin.
In: Revista de cultura, nº 29. Fortaleza; São Paulo, outubro de 2002. Disponível:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag29benjamin.htm>. Acesso em: 24/12/2011).
39



         Este sentimento que assolava a vida do flânuer tornava-se mais intenso ao descobrir-
se completamente solitário em meio à multidão. Surgia, então, mais uma artimanha da cidade
com a qual o sujeito andante teria que se adaptar se nela quisesse permanecer. “As pessoas
tinham que se acomodar a uma circunstância nova e bastante estranha, característica da cidade
grande. [...] uma multidão a perder de vista, onde ninguém é para o outro nem totalmente
nítido nem totalmente opaco” Benjamin (1989, p. 35 e 46).
         A sensação de estar ilhado pela solidão, mesmo ocupando um espaço no qual
residem milhões de pessoas, é uma característica recorrente nos contos de Sonia Coutinho. A
todo momento, as suas personagens se veem completamente atordoadas por esta sensação
que as toma, envolvendo-as num misto de incertezas e que, na verdade, são os reflexos da
contemporaneidade, sobretudo, nas grandes cidades.
       Estas marcas podem ser facilmente visualizadas em Sonia Coutinho, principalmente
no conto Nos olhos do cão (2004, p. 86) no qual o sujeito, um homem de 50 anos, perde-se
completamente nos labirintos da vida contemporânea e deixa-se abater pela incerteza:



                        No dia seguinte, procurando caminhos entre o tráfego congestionado das
                        novas avenidas, avaliou sua ilusão ao imaginar que a Cidade permaneceria
                        ali imóvel, atestado permanente de sua identidade. Corrosiva, ali também
                        atuara a movediça estranheza da vida – quem seria ele?


       A personagem central desse conto retornara à Cidade após uma temporada fora.
Voltara guiado por um turbilhão de sensações, não sabia explicar, mas estava certo de que na
Cidade deveria permanecer. Sempre que estava mergulhado em suas frustrações, segurava-se
em algo para reerguer-se e ir à busca da beleza da cidade, porém, a cada retomada de fôlego
renascia, mais forte ainda, a incerteza.



                        Mas, na manhã seguinte, reanimado, começou a percorrer as ruas da Cidade,
                        com a excitação de quem se empenha numa atividade sexual. Caminha por
                        ali, pensou, era um largo coito, bíblica fornicação, aquelas ruas poeirentas e
                        douradas, miseráveis mas luxuosas de objetos e cores [...].Algumas horas
                        depois, cansado e encalorado, concluiu que, de certa forma, toda aquela
                        beleza ia além do humano, reduzia as pessoas a insignificantes seres de carne
                        perecível (COUTINHO, 2044, p. 86).
40



       Para Edgar Poe (apud Benjamin, 1989, p. 48-50), o efeito é ainda mais devastador,
pois se trata de humanos como barreira. Em momento algum o trânsito é mencionado como
empecilho ao deslocamento do flânuer, o bloqueio é dado por outras multidões. O flânuer não
poderia estabelecer o seu lugar na cidade, tão pouco brilhar. O andarilho segue numa rota
deslocada, com movimentos desordenados, num eterno gesticular e falar consigo mesmo,
extremamente incomodado pela incontável multidão que o cerca.
       Estranhamente essa personagem, consciente do mar de insegurança no qual estava
imerso, sentia desejo de permanecer nesse conflito. Para ele, em algum momento da sua vida
esquecera nessa Cidade algo essencial à sua existência, precisava resgatá-lo, mesmo num
resgate tortuoso, que custaria a sua paz, ele desejava continuar nesse conflito, uma vez que
explicita a necessidade de permanecer nesse lugar.



                       Como se tivesse esquecido ali, há muitos anos, uma peça vital de seu
                       mecanismo interior. Estivesse então em qualquer parte do mundo, à Cidade
                       permaneceria ligado pelo pequeno elo perdido/escondido. Ou, talvez, já
                       destruído e entranhado naquele cenário, do qual então necessitava
                       (COUTINHO, 2004, p.81).


       Benjamin (1989, p.55) discute sobre a busca permanente realizada pelo andarilho
diurno das cidades. Ele afirma que aquele que sai à procura do prazer para passar o tempo irá
defrontar-se com diversas barreiras sociais. A limitação seria uma espécie de termômetro, o
qual estabeleceria limites entre o que o flânuer quer da cidade e o que, efetivamente, ela pode
oferecer-lhe.
       As ruas, aparentemente, cenário perfeito para o sujeito contemporâneo, serviria de
refúgio tão qual uma morada entre quatro paredes. Contudo, uma morada para muitos,
obrigando aos que optam por esse espaço desenvolver a capacidade criativa de fazer dela o
seu porto (in)seguro. Benjamin (1989, p.194) discorre sobre a diversidade das ruas: “As ruas
são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que,
entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduos
ao abrigo de suas quatro paredes”.
       Misturam-se nas ruas, a beleza e as maléficas condições urbanas, sim, pois o sujeito
movido pelos encantos da cidade visualiza o que de não tão bela nela existe, mas quer fixar-se
ali. O sujeito, não tão certo do que busca na cidade, segue ao encontro do seu desejo. Nesse
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Os conflitos identitários na cidade moderna

  • 1. 0 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA MARIA ELAINE GOMES DOS SANTOS O EU, A CIDADE... E OS CONFLITOS IDENTITÁRIOS DO SÉCULO XX: UMA ANÁLISE NA CONTÍSTICA DE SONIA COUTINHO. Conceição do Coité 2012
  • 2. 1 MARIA ELAINE GOMES DOS SANTOS O EU, A CIDADE... E OS CONFLITOS IDENTITÁRIOS DO SÉCULO XX: UMA ANÁLISE NA CONTÍSTICA DE SONIA COUTINHO. Monografia apresentada ao Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), curso de Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas – Licenciaturas, como parte do processo avaliativo para obtenção do grau de Licenciada em Letras. Orientadora: Profa. Ms. Eugênia Mateus Conceição do Coité 2012
  • 3. 2 “Ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo – e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que sabemos, tudo o que fomos” (David Harvey, 2001). "A forma de uma cidade muda mais rápido, infelizmente, do que um coração mortal" (Charles Baudelaire). "A cidade não é a solidão porque a cidade aniquila tudo o que povoa a solidão. A cidade é o vazio" (Pierre Drieu La Rochelle).
  • 4. 3 Dedico a Deus... À minha mãe. Ao meu filho. À minha família. Aos meus amigos
  • 5. 4 AGRADECIMENTOS A Deus, por me permitir humana. Aos meus pais, sobretudo, à dona Joana, por me concretizarem humana. Ao meu filho Gustavo, causa da minha plenitude humana. Àqueles que comigo compartilham a honra de sermos unidos por laços sanguíneos. Aos colegas de faculdade que, movidos pela mesma sede, alcançamos juntos uma vitória. Aos que se tornaram amigos, grata pela cumplicidade e companheirismo. Aos mestres que passaram e deixaram sua contribuição. À professora Jussimara Lopes por acreditar no que eu ainda não havia percebido. À escritora Sonia Coutinho, por sua produção artística. À minha orientadora, professora Eugênia Mateus, pelas inúmeras contribuições, pela paciência, profissionalismo, disponibilidade, credibilidade no meu trabalho, pelo humanismo.
  • 6. 5 RESUMO O presente trabalho discute a interferência da cidade na (des)construção identitária do sujeito moderno. As características especificas desse individuo que, de dia ou de noite, é andarilho das cidades, foram evidenciadas com o objetivo de enfatizar os fatores sociais colaboradores à sua manutenção enquanto sujeito social. Para tanto, utilizam-se os conceitos tradicionais e contemporâneos da literatura com vistas a analisar o Modernismo brasileiro à revelia do que se considera Pós-modernismo. A análise literária de alguns contos da escritora contemporânea Sonia Coutinho, indica, por vezes, um diálogo com os estudos culturais que, bem como a produção literária brasileira atual, chama a atenção para os sujeitos historicamente isolados das estruturas sociais. Os cantos da cidade ecoaram o ritmo da vida das personagens na incessante busca pelo seu eu. Com base na constatação de que os anseios vivenciados pelas personagens estão presentes tanto no universo feminino, como no masculino, realizou-se o levantamento das características que definem o indivíduo em sua obra. Observou-se, então, que para além de uma escrita tratando exclusivamente do universo feminino, Coutinho produz uma arte que possibilita analisar o comportamento do humano contemporâneo em diversas esferas sociais. Narrativas extremamente convidativas, envolventes, pois as sensações demonstradas pelas personagens se misturam a estrutura urbana e geram fascinantes histórias. Pessoas, aparentemente, perdidas de si mesmas e movidas pelo desejo de serem felizes. Os leitores são seduzidos a embarcarem no mundo das personagens e, quem sabe, tentar desvendar junto com as mesmas as veredas que as conduzirão à felicidade. Neste trabalho, a cidade apresentada, adquire a forma dos desejos das personagens, justificando assim a sua plasticidade e múltiplas faces. Erguida, segundo os sonhos dos que a desejam, a cidade segue soberana, enquanto que em seu redor, ou pelas suas entranhas, sonhos irrealizados esvaem-se, enquanto que aqueles que neles creram perdem-se nos labirintos urbanos. E a vida vai passando. A análise foi baseada nos estudos de David Harvey (2001), Walter Benjamin (1989), Ítalo Calvino (1990), Steven Connor (2000), Linda Hutcheon (1991), Leyla Perrone- Moisés (1998) alguns dos teóricos que sustentam a interferência da cidade na (des)construção do eu. Palavras-chave: Literatura. Conto. (des)construção identitária. Contemporaneidade. Cidades.
  • 7. 6 ABSTRACT The present work makes an analysis of the interference of cities in the identity deconstruction of a modern man. The specifics characteristics of this individual, that, night and day, is a cities´ walker. It was evidenced with the goal, emphasize some social factors that contributed to maintain the man as a social subject, but, use traditional literature concepts and contemporary literature concepts, in relation to the contemporaneity. The literary analysis of some contemporary short stories by writer Sonia Coutinho, show us the dialogue with the cultural studies, that, as the Brazilian production nowadays, call attention to the historically isolated man of the social structures, the four cities corners echoed the rhythm of characters' life, seeking their own identity. Based on in this observation that this anxiety makes part in the female personality and male personality, was made some characteristics definition in her literary work, notice that when the writing makes part of the female universe, Coutinho makes an art that allows an analysis about contemporary human behavior in different social status. It’s a extremely inviting narrative, engaging, some sensation showed by the characters have a mix in some urban structures and allows fascinating stories. People, apparently lost in themselves are moving because they wish to be happy, the readers are seduced to know the characters’ world, and maybe try to discover what will conduct them to happiness. In this work the city acquires the characters’ wishes; this way justifying the city’s multiple faces, built by those who wish to, the city keeping on the top, whereas around it, some dreams has been destroyed. Some of them who believed in the dreams are lost in the urban labyrinth, the life is passing by. The analysis was based on some studies of: de David Harvey (2001), Walter Benjamin (1989), Ítalo Calvino (1990), Steven Connor (2000), Linda Hutcheon (1991), Leyla Perrone-Moisés (1998) some of theoretical, who believe in the city as a man’s deconstruction. Key- words: Literature. Shorts stories. Identity deconstruction. Contemporaneity. Cities.
  • 8. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO AO PASSEIO PELA CIDADE, EM SONIA COUTINHO .............. 08 1 LITERATURA E TALENTO: a tradição revisitada ............................................ 13 1.1 Modernismo ou pós-modernismo: a dialética e o espaço literário ............................. 17 1.2 Da tradição à contemporaneidade: quem conta um conto .......................................... 21 1.3 Originalidade e estilo na literatura finissecular .......................................................... 25 2 O EU PELAS RUAS DA MODERNIDADE .......................................................... 28 2.1 Andarilho noturno e o eu boêmio ............................................................................... 33 2.2 O Flâneur e a descoberta da cidade ........................................................................... 37 2.3 A modernidade e a velocidade desequilibrante do sujeito ......................................... 42 3 OS CANTOS DA CIDADE E A CONFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA: uma 47 leitura da contística de Sonia Coutinho .................................................................. 3.1 Sonia Coutinho e a idealização de cidade: uma revisão bibliográfica ....................... 51 3.2 Desconstrução de identidades espelhadas nas ruas da cidade .................................... 56 3.3 Escrita de gênero: simplesmente a arte literária de um(a) autor(a) ........................... 60 AINDA NAS RUAS DA CIDADE: UMA ESCRITA (IN)CONCLUSA ..................... 66 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 69
  • 9. 8 INTRODUÇÃO AO PASSEIO PELA CIDADE, EM SONIA COUTINHO “MIL OLHOS DE ORVALHO DE UMA ROSA a olharam, transparentes. Uma rosa molhada no Jardim Botânico, de manhã cedo, sob o céu nublado. Tinha chovido forte e agora caía uma poeira de chuva. A rosa era chá, com um número infinito de pétalas macias fechadas sobre si mesmas. A rosa, como um repolho do céu. Abaixou-se, aproximou o nariz, cheirou. As pétalas exalavam levíssimo perfume. De perto, o orvalho grosso: viu que havia espelhos dentro das gotas, como se elas fossem bolas de cristal. Mas é obvio que não adianta fazer planos, pensou Tina. Que não adianta pensar no futuro. Como também não adiantava lembrar o passado, estar presa a recordações distantes. Apenas o presente, ordenou a si mesma. Não havia passado nem futuro, só esse agora. Enquanto mil olhos de orvalho de uma rosa a olhavam, simplesmente” (COUTINHO. In: Mil olhos de uma rosa, 2001, p. 9). Em meio à selva de pedras da cidade, Rio de Janeiro, eis que uma gota de vida pura e singela aspira antigas sensações. Nem tudo são horrores nesse lugar, o Jardim Botânico mostra isso. Mas, ela, a rosa, não permite que a divagação chegue ao longe, entre cheiros e prazeres o toque da realidade, o verbo viver, não no pretérito, tão pouco no futuro e sim no presente. Sonia Coutinho apresenta em sua contística inúmeras histórias, diversos personagens perdidos nos labirintos da vida e presos nas garras da cidade, mas que, mesmo assim, se tivessem oportunidade não fariam nada para mudar seu modo de viver, afinal, não conseguiriam sobreviver de maneira diferente, em outro lugar. As personagens, sem terem consciência plena da dimensão da telha que as envolve, buscam encontrar-se, querem uma identidade. Movidas pelas incertezas urbanas, desde as trazidas lá da cidadezinha, seguem em romaria, sim, todas as personagens realizam a mesma trajetória, rumo à cidade prometida, Rio de Janeiro. Com um poder envolvente, quase sobrenatural, atrai suas presas com belas promessas, sucesso profissional, um lugar ao sol que, por muitas vezes, encontra-se escondido atrás das nuvens, mesmo que o conto seja O último verão em Copacabana. Os fantasmas surgidos na cidade a tornam uma verdadeira Doce, porque não, mas também cinzenta, Copacabana. Não há obstáculos resistentes o suficiente para expulsarem os desbravadores
  • 10. 9 dessa selva, embora a única saída, em algumas situações, seja o suicídio concretizado na cidade. Importa assegurar a permanência na cidade, garantir que a sociedade visualize a sua felicidade, falsa, e não voltar atrás, jamais, afinal, a cidadezinha não os quer de volta. Com base na incerteza que assola a vida desses indivíduos, vivenciando situações tipicamente contemporâneas, extremas, de amores e desencantos, tentar-se com esse trabalho, traçar os impasses com os quais convivem esses indivíduos e que, os impossibilitam de consolidar a sua identidade. Mas, discutindo, também, a possibilidade de que o objeto desejado nessa incessante busca seja, de fato, utópico, impossível de ser encontrado e que é, justamente, essa busca incessante que lhes garante a permanência da cidade. O trabalho encontra-se estruturado do seguinte modo, apresentação, na qual se fará uma abordagem geral do que está contido na pesquisa. Seguido de três capítulos, cada um com três sessões e as considerações finais, numa conclusão incerta, como a escrita de Sonia Coutinho, mas possibilitadora de diálogos outros. No primeiro capítulo, intitulado “Literatura e talento: a tradição revisitada” a discussão respalda-se em conceitos tradicionais e contemporâneos da literatura, bem como o uso de conceitos que a definem, além de apontar alguns dos recursos linguísticos que utiliza. Para tanto, há uma abordagem mais específica em momentos históricos específicos do panorama literário brasileiro, desde o Modernismo à contemporaneidade, haja vista Sonia Coutinho estar inserida nesse contexto histórico e social. Do mesmo modo, um diálogo com outra área de estudo, os estudos culturais, por ambos dispensarem o foco de suas pesquisas ao espaço que o sujeito, historicamente rejeitado, ocupa na estrutura social moderna. Aspectos como o estilo e a originalidade são abordados como característica dos contos em estudo, assegurando com isso o valor artístico dessa produção escrita. Seguido pelo segundo capítulo, “O eu pelas ruas da modernidade”, discute-se os aspectos dos andarilhos das cidades, de dia ou pela noite e o modo como a velocidade da vida moderna contribui para que estes indivíduos não consigam encontrar estabilidade social e, sobretudo, psicológica. Estabelece-se uma relação sobre as características do mundo moderno que interferem à construção identitárias dessa época. E por último o capítulo “Os cantos da cidade e a configuração identitária: uma leitura da contística de Sonia Coutinho” aborda os aspectos atrativos da cidade e que servem de isca aos personagens dos contos em estudo. Há uma revisão bibliográfica da contística em análise buscando apontar os indícios que constituem, no imaginário das personagens, a cidade ideal. Na incessante busca por uma
  • 11. 10 identidade as personagens driblam a adversidade da vida urbana, dando início a um processo que passará a ser constante em sua (des)construção identitária. Neste último capítulo há a apresentação da vida da escritora e a análise de uma entrevista de Sonia Coutinho, na qual se puderam observar algumas características de sua vida destacadas na trajetória de suas personagens. As narrativas de Coutinho têm como personagens principais, na grande maioria, mulheres, fato que não impede de algumas histórias terem como protagonistas homens que, por sua vez, compartilham dos mesmos conflitos do universo feminino. A partir da constatação de que os conflitos descritos pela escritora são recorrentes no universo masculino e feminino, ou seja, típicos dos sujeitos pós-modernos, realizou-se uma sucinta abordagem acerca de sua escrita. Logo, percebeu-se que, muito além, de uma abordagem específica sobre gênero, a contística em análise oferece possibilidades para se analisar o comportamento humano em diversas esferas sociais, desde as familiares à dinâmica dos grandes centros urbanos. Na conclusão deste trabalho tentou-se realizar um encerramento do corpus em estudo, porém o objeto em análise não possibilitou, efetivamente, um fechamento da discussão. São tantas as temáticas instigantes, capazes de conduzir os seus leitores a situações inimagináveis no mundo real, mas totalmente possível no universo literário. Morte, solidão, amores não correspondidos, incertezas, inseguranças, (des)construção de identidades, conflitos com a estrutura urbana, dilemas familiares, fracassos profissionais, repressão sexual, desejos contidos, nostalgia, descoberta dos (des)encantos da cidade, são alguns dos elementos encontrados da contística de Sonia Coutinho. Todas essas sensações se misturam à desconcertante estrutura das cidades e produzem as mais fascinantes narrativas. Cenas fantásticas descritas deparam-se com uma infinidade de personagens totalmente perdidas, mas, em meio à instabilidade, é latente o desejo de desvendar os segredos da cidade e, quem sabe, sair do lugar de desbravadores da felicidade. Na busca por uma construção e consolidação identitárias, as personagens conduzem os leitores a embarcarem em seus universos e observar, com um olhar mais atento, a multidão contemporânea e, quem sabe, reconhecerem-se e, através da literatura, ressignificarem a sua existência, cumprindo com maestria a função primeira da literatura, representar a realidade provocando catarse nos seus amantes.
  • 12. 11 A discussão aqui abordada tem como tema Literatura e identidade, instigado pelo desejo de compreender o panorama literário do país após o Modernismo. A literatura, ao longo da história do Brasil, consolida-se enquanto arte sempre na sustentação da sua característica essencial, a arte da palavra. Contudo, em face de um novo cenário da história do país há a intensificação no uso de alguns conceitos, bem como a exigência de novos, os quais abarquem a complexidade contemporânea. Dentre os vários conceitos, pode-se apontar o de identidade que, respaldado na efemeridade e fragmentação do sujeito contemporâneo oferece aos leitores obras literárias compostas de ferramentas que lhes possibilitam pensar sobre os fatores contribuintes para a afirmação do ser humano como tal. A escritora Sonia Coutinho, na sua contística, apresenta narrativas, cujas personagens principais estão em constante conflito existencial, sobretudo, o conflito interno motivado, principalmente, pelo fato de elas não conseguirem se autoafirmarem. A escritora oferece um riquíssimo material para que se pense sobre a condição do indivíduo na busca pela sua identidade, por aquilo que é constante na vida das suas personagens, ao menos a maioria delas, dar significado à sua vida, à sua história. Assim, considera-se com esse trabalho assinalar: quais elementos da literatura contemporânea são utilizados pela autora nos contos? Quais características garantem a originalidade das obras? De quais subsídios se utiliza Sonia Coutinho para desmistificar o paradigma de que, em sua escrita, trata, unicamente, de conflitos femininos? E, diante de tais elementos, será possível afirmar que o espaço físico contribui para (des)construção identitária dos sujeitos contemporâneos? Com base nos questionamentos supramencionados delineou-se o objetivo geral: verificar, sob o olhar da literatura contemporânea, as características do espaço físico interferentes para as (des)construções identitárias na contemporaneidade. Seguido dos específicos: Comparar Modernismo/Pós-modernismo à revelia da literatura tradicional; Conceituar o conto sob a perspectiva tradicional e contemporânea; Identificar elementos da literatura contemporânea nos contos em análise; Apontar a importância do espaço físico para a (des)construção de identidades nos contos analisados; Analisar a escrita de Sonia Coutinho como arte literária enigmática para além das discussões de gênero. Tomando como princípios basilares a finalidade deste projeto e as múltiplas possibilidades permitidas nos contos de Sonia Coutinho, chegou-se a sua concretização. Incerta, (in)conclusa, apaixonante. Revigorou-se a função da literatura de oferecer novidades
  • 13. 12 possíveis, vivenciadas e sustentadas num universo envolvente que só a literatura pode proporcionar. Em um trilhar incansável pelas páginas da arte contemporânea, moldada pelas mãos da artista contemporânea Sonia Coutinho, através de becos e vielas da cidade, algo novo foi tecido.
  • 14. 13 1 LITERATURA E TALENTO: a tradição revisitada A literatura, como agente transformador e intensificador da linguagem, apropria-se do sistema linguístico comum, representa a realidade e, por consequência, ressignifica-a e desenha um estilo próprio que provoca estranheza e, ao mesmo tempo, catarse no leitor. Com relação aos outros discursos, a linguagem literária distingue-se por desfigurar, de várias formas, o sistema comumente usado. Essa distorção faz com que o cotidiano torne- se um universo, inesperadamente, desfamiliarizado. Elementos como imagem, métrica, rima, entre outros, produzem o efeito de estranhamento. Diante de situações, aparentemente corriqueiras, o sujeito torna-se inseguro da sua realidade. O novo cenário posto pela literatura instiga o leitor a ter outro olhar sobre o real. Embora se trate de representação, nota-se que, pelo fato de o sistema linguístico utilizado ser o mesmo do mundo verossímil, contribui para que objetos e situações da vida sejam percebidos por outro ângulo. Uma linguagem mais intensificada e, portanto, revestida de ressignificações sugestivas à autoconsciência. Eagleton (2006, p. 5-6), baseado na concepção dos formalistas russos, destaca: A literatura, impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova essas reações habituais, tornando os objetos mais “perceptíveis”. Por ter de lutar com a linguagem de forma mais trabalhosa, mais autoconsciente do que o usual, o mundo que essa linguagem encerra é renovado de forma mais intensa. A renovação dessas reações habituais revela-se contínua e intensa na linguagem literária e, na contemporaneidade, muitas são as expressões artísticas retratadas. Sonia Coutinho1, por exemplo, transporta a interrogação do quem sou eu, em sua narrativa. Ela, de posse de um sistema linguístico, inteira-se do ato de fingir somado à seleção e à combinação, representa, sobretudo, temáticas concernentes aos conflitos existenciais do indivíduo. Coutinho apresenta, em sua contística, inúmeras narrativas, nas quais se podem observar personagens imersas em constantes conflitos existenciais; são histórias que convidam o leitor a embarcar, com um olhar mais atento, no mundo das personagens. Percebem-se, em sua obra, características que corroboram com a afirmativa apresentada por Eagleton. Propositalmente, ou não, a escritora traz elementos que consolidam a sua literatura como original, esteja essa originalidade relacionada aos conceitos abordados na tradição ou na contemporaneidade. No conto, Doce e cinzenta Copacabana (2005, p. 45), pode-se ilustrar a capacidade do texto literário de impor novas possibilidades às meras situações cotidianas, como a saída da personagem para um breve passeio em seu bairro: “[...] 1 Autora dos contos em análise nesse estudo e que se encontra apresentada no último capítulo do trabalho.
  • 15. 14 ela pode estar aqui em Copacabana sem causar estranheza a ninguém, assim de calças compridas um tanto sujas, mas então lembra a roupa para lavar, o apartamento imundo, os restos de comida [...]”. A peculiaridade da literatura ao utilizar o sistema linguístico convencionado faz com que a sua leitura conduza o leitor, mais que criar um mundo fictício, imaginário, a acreditar veementemente no universo inventado pela sua imaginação. Essa submersão, mergulho numa outra realidade, é possibilitada através do uso de alguns artifícios literários, como a linguagem conotativa. Acerca do uso e da função da linguagem comum pela literatura, D’Onofrio (2007, p. 15-6) afirma: A linguagem literária acentua o próprio signo linguístico, estando orientada para a mensagem como tal e não apenas para seu significado. Sua função, mais do que referencial, é essencialmente expressiva, pois confere um novo sentido às palavras. A discussão apresentada por D’Onofrio encontra respaldo na escrita de Sonia Coutinho, pois a autora, ao se apropriar da convenção linguística, oferece uma nova visão, uma ressignificação para o comportamento humano. No conto O leque do Afeganistão (2005), a personagem do Professor Anaximandro demonstra uma conduta contraditória a que sempre apresentara, ao menos no seu discurso, fica consternado ao perceber a mudança no comportamento da sua esposa Sibila, ao notar que ela não o deseja mais. Nesse momento, o Professor mostra a sua verdadeira face: Ele remexeu, depressa, em alguma coisa atrás da orelha, e Sibila viu que Desafivelava a Máscara. [...] Debaixo da cobertura de borracha que compunha seus traços corriqueiros havia um misto de focinho de lobo e feições grosseiras de sátiro (COUTINHO, 2005, p. 15). A estranheza do texto literário que, ao mesmo tempo, afasta e convida o leitor a trilhar pelos caminhos das suas narrativas, dá-se pelo fato de serem atribuídos, ao significante o próprio texto literário, novos significados, sensações, emoções. O inanimado torna-se peça fundamental do jogo de palavras criado e sustentado pela literatura. A verossimilhança é característica do texto literário, pois o autor ao produzi-lo está sujeito às influências do mundo
  • 16. 15 que o circunda. Essa proximidade com o real é justificada pela mímese, uma vez que o universo existente na obra literária torna-se verossímil. Apesar de a literatura estar cercada de artifícios que confirmam a sua escrita como diferenciada e original, questiona-se, ainda, se haveria, efetivamente, algo a ser considerado a essência da literatura. Nesse sentido, Eagleton (2006, p. 14) afirma não existir “uma ‘essência’ da literatura”. Análise de obras a partir do contexto social no qual estejam inseridas, semelhanças e diferenças com esse ambiente, bem como a sua finalidade e a maneira como o texto literário se comporta diante das práticas humanas que o rodeiam, são alguns dos argumentos levantados pelo autor para fundamentar a sua discordância. A concepção de texto literário, alicerçada apenas nestes princípios torna-se, o que deveria ser uma obra de arte, em uma prática comum da linguagem, “puramente formal, vazia” (EAGLETON, 2006, p. 14), nas palavras do escritor. Além de igualá-la a outros tipos de realização linguística não-pragmática, como a piada que, assim como a literatura, nessa concepção estritamente mecanizada, poderia transportar os interlocutores, de um dado processo comunicativo, ao mundo apresentado por uma piada, dependendo do modo como é contada. Cabe salientar, portanto, outro conceito, intrinsecamente ligado à concepção de literatura: o julgamento de valor. Nessa perspectiva, Perrone-Moisés (1998) afirma que as considerações tecidas acerca da história literária neste século, deixaram à margem, senão de maneira explícita, as questões inerentes a essa discussão. Perrone-Moisés (1998) afirma, inclusive, que, para que a literatura seja utilizada como instrumento fortalecedor das experiências de mundo dos leitores, os críticos literários deveriam explicitar quais valores são utilizados em seus julgamentos. Essa atitude contribuiria para que o leitor decidisse qual história literária serviria para aperfeiçoar a sua fruição num contato com as obras. Para o aprofundamento da sua critica, Perrone-Moisés (1998) discute sobre a importância do passado para a consolidação de qualquer legado literário construído num dado presente. Segundo a escritora, os autores, em sua contemporaneidade, devem ter consciência sobre o passado que contribuiu para a organização de sua obra. A releitura do passado se dará, segundo a autora (1998, p. 25-26), à luz de valores do presente e, como consequência, garimpar-se-á subsídios para novas produções:
  • 17. 16 A leitura valorativa do passado literário efetuada pelos escritores-críticos modernos afeta significamente a historiografia literária. A escolha efetuada por um escritor entre os nomes-obras do passado é fortemente interessada: trata-se, para o escritor, de julgar e selecionar com vistas a um fazer. Os pressupostos apresentados por Perrone-Moisés (1998) dialogam com o que, em outrora, fora proposto num ensaio por T.S. Eliot (1988). Neste ensaio, a individualidade é fundamental para a consolidação e manutenção da literatura dos escritores. Cada leitor ao entrar em contato com algum manuscrito tenta buscar o que o difere de textos anteriores, sobretudo os mais próximos, algo novo, até então irrevelável e com isso deleita-se na sua leitura. A tradição está além da mera utilização dos êxitos deixados pela última geração. O passado não é renegado, mas ressignificado, revigorado. O texto da tradição é lido no presente como no período da sua escrita. Esta implicação exige que o escritor torne-se mais consciente da sua contemporaneidade. O seu significado torna-se mais valoroso, pois se constrói, através de comparação com artistas mortos, não apenas numa perspectiva histórica, mas crítica. Tais pressupostos permitem ao poeta evoluir enquanto artista que, consciente do passado, imprime na sua produção suas peculiaridades. Eliot (1989) afirma que essa evolução relaciona-se a um autossacrifício, além de constante perda da personalidade. A partir dessa afirmativa, o escritor apresenta a correlação da despersonalização com a tradição. A característica da valoração do passado é encontrada na escrita de Sonia Coutinho. Através da intertextualidade2, a autora revisita o passado e ressignica-o. Em Nos olhos do cão (2004, p. 85), os descompassos da vida da personagem são relacionados ao conflito vivido em um clássico da literatura universal, a história de João e Maria: “Eu não queria nada disso pra mim, pensou o homem de 50 anos para quem não haveria resgate. Estava perdido no bosque, depois que os pássaros comeram a trilha de migalhas de pão”. Nesse sentido, a poesia deverá ser concebida como “um conjunto vívido de toda a poesia já escrita até hoje” (ELIOT, 1989, p. 42-3). O conflito interno do poeta com o seu próprio ser possibilita matéria-prima às suas produções, pois poeta perfeito, certo de seus pensamentos separa o seu sofrer de sua mente 2 COMPAGNON, Antoine (2006). Expressão do léxico literário, criado pela semioticista Júlia Kristeva, o qual designa o diálogo entre os textos.
  • 18. 17 criadora, não se torna um artista atemporal. A mente do poeta é um reservatório de um emaranhado de frases, imagens, palavras capazes de, unidas, constituírem um novo composto. O artista utiliza-se, poeticamente, de emoções cotidianas, quase despercebidas, talvez imperceptíveis e, com a ressignificação da linguagem, além de demonstrar todos os anseios implícitos nesses sentimentos, impingem o objetivo do artista. Assim, entrecruzam-se a individualidade dos escritores, através do talento, às sensações dos leitores para que a tradição continue sendo construída. Acerca das emoções baseadas no cotidiano, possivelmente estimuladas no leitor, Sonia Coutinho apresenta diversas situações corriqueiras, mas somadas ao seu talento de descrevê-las e a receptividade do leitor asseguraram a longevidade de sua obra. Discutir literatura implica, quase sempre, um retorno ao seu passado histórico. Essa retomada, não nostálgica, é a sua permanência ao longo dos tempos. As diferentes abordagens no universo literário podem ser entendidas não como progressos, mas como adequação e aperfeiçoamento, pois enquanto representação da realidade, a literatura continua oferecendo novos olhares sobre o comportamento do ser humano que, independentemente da época, conviverá com os conflitos próprios do seu ser. A linguagem como instrumento primeiro da literatura reveste-se de novos focos, e novos olhares a redimensionam a fim de trazê-la às perspectivas de um presente, mas que no passado, inclusive, terá viéses imprescindíveis àquela atualidade. Apesar de tantas discussões, a dialética se instaura, dando continuidade permanente ao discurso literário. 1.1 Modernismo ou pós-modernismo: a dialética teórica e o espaço literário A produção literária, tradicionalmente, fora dividida em períodos determinados, não por datas estabelecidas a rigor, mas pelo fato de os escritos de alguns autores que viveram numa mesma época serem marcados por iguais características, senão muito próximas ou, ainda, estarem voltados às mesmas ideologias. O Modernismo brasileiro, movimento em estudo, surge no bojo das grandes transformações sociopoliticoeconômicas, oriundas, principalmente, como consequências da Primeira Guerra Mundial. Como uma nova estética que visava maior vivacidade na representação dos sentimentos, emoções e ideais artísticos daquela época, esse movimento
  • 19. 18 requereu um estreitamento com as camadas populares, pois a massa brasileira, enquanto constituinte social, não poderia ser deixada à margem da representatividade do povo. Nessa perspectiva, inúmeras são as definições acerca do que seria esse momento no panorama literário. Apresentam-se conceitos que engendram desde a ruptura com tendências literárias já estabelecidas à retomada de temas abordados em outrora, como as inquietudes do ser humano mediante a incerteza do seu destino, bem como uma literatura que expusesse a sociedade brasileira tal como ela é, afastando-se, com isso, dos resquícios europeus. Percebe-se a importância do movimento para o país. Ele exerceu forte influência na criação de um novo estilo que aguçava a consciência nacional de modo a exprimir as novas perspectivas brasileiras frente às artes e às letras, à vida e à cultura da massa brasileira. Alguns teóricos, afirmam não tratar o Modernismo apenas de um período histórico a ser conceituado, mas estar relacionado aos valores culturais do país. Candido (2000, p.124) ressalta essa ideia: Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de movimentos das idéias, e não apenas das letras) corresponde à tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro. Nele, e, sobretudo, na culminância em que todos os seus frutos amadureceram (1930-40), fundiram-se a libertação do academicismo, dos recalques históricos, do oficialismo literário; as tendências de educação política e reforma social: o ardor de conhecer o país. A literatura, diante dos conflitos existenciais contemporâneos, apodera-se, ficcionalmente, daquilo que a ciência não consegue explicar para se consolidar como arte, isto é, enquanto representação da realidade apresenta hipóteses, ferramentas que podem levar o sujeito a questionar a sua existência, deixando-o mais certo de si ou mais alheio a sua história, desconstruindo, pois, a ideia de um mundo moderno coerente, igual, para reconstruí-la com base numa realidade fragmentada, heterogênea e imprescindível às experiências desses atores sociais. Hutcheon (1991, p. 19) afirma que o “[...] pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que desafia [...]”. Este período não deve ser percebido tão somente como o momento da história substituto
  • 20. 19 do Modernismo, mas como um movimento denso e questionador da modernidade3 que, dentre outros, discutirá os aspectos culturais para a formação das identidades. Ainda sobre o pós- modernismo, a autora (1991, p. 31-2) considera: [...] um processo ou atividade cultural em andamento, e creio que precisamos, mais do que de uma definição estável e estabilizante, é de uma “poética”, uma estrutura teórica aberta, em constante mutação, com a qual passamos a organizar nosso conhecimento cultural e nossos procedimentos críticos [...]. Há de se observar que a afirmação de Hutcheon encontra solidez na contemporaneidade, pois além de perceber esse momento histórico como um processo, em constante movimento, destaca-o como uma possibilidade a mais para compreender a constituição cultural de uma dada época. As definições apresentadas sobre Modernismo e Pós-modernismo apontam para as peculiaridades de cada um desses momentos. Aquele, embora buscando uma melhor representação de um Brasil preocupado com as demandas sociais, deteve-se, ainda, numa escrita mais voltada aos conflitos individuais do sujeito, enquanto esse, na contemporaneidade, discute a concepção de sujeito a partir do contexto em que ele se insere. Nessa miscelânea de concepções, nota-se uma preocupação comum: a representação do sujeito, o modo como sua identidade é construída nesse novo universo, tão incerto e fragmentado. No conto Uma certa felicidade (1994), Coutinho enfatiza aquela que seria uma constante na vida dos indivíduos na contemporaneidade, a autoidentificação em meio a desconcertante estrutura dos tempos modernos. Sua personagem, numa possível visita ao médico, tenta identificar-se, momento em que se evidencia a dificuldade de o sujeito encontrar-se, definir-se (COUTINHO, 1994, p. 21-22): Mas eu não tenho pontos de referência para reconstruir minha unidade. Tudo embaralhado: numa etapa qualquer, houve a ruptura, a continuidade se perdeu. Esqueci, doutor. Manuseio as pedras do quebra-cabeça espelho na mesa – fragmentos coloridos, desencaixados, que sou eu. 3 Para Benjamin (1989), cf. Referências, modernidade é compreendida como uma época específica; designa, ao mesmo tempo, a força que age nessa época e ao mesmo tempo a aproxima da antiguidade.
  • 21. 20 As incertezas suscitadas na contemporaneidade tentam, mais que dar respostas aos leitores, questionar os conflitos humanos com base em concepções de mundo. Nessa interrelação de mundo real e ficcional, de representação mundana através de textos, ou, mera criação de novos universos, a literatura encontra malhas para tecer a sua arte. Não se trata, tão somente, de períodos literários, mas da materialização daquilo que se tornou uma construção discursiva, a vida. Nessa perspectiva, Connor (2000, p. 107) diferencia: [...] enquanto a literatura modernista se comprazia no afastamento auto- reflexivo daquilo que se considerava um mundo real sólido e mudamente não-discursivo, o mundo real transformou-se em literatura – numa questão de textos, representações, discursos. O vinculo entre texto e mundo é remoldado no pós-modernismo não pelo desaparecimento do texto no interesse de um retorno ao real, mas por uma intensificação da textualidade que a torna co-extensiva com o real. Uma vez que o real se transformou em discurso, já não há separação entre texto e mundo a ser transportado. Diversas são as discussões apresentadas sobre o que seria o tempo vivido pela sociedade hoje: modernidade, pós-modernidade, ainda, contemporaneidade enfim, tudo o que está além do que se considerou Modernismo. Percebe-se a necessidade de nomear o presente, defini-lo como uma época específica a partir do comportamento social, bem como o modo como será representado na literatura. A motivação para esse fato justifica-se, quiçá, pela obrigação de situar os discursos a partir de uma dada época. Compreensões como de espaço coletivo e individual, de ocupação do sujeito e do outro, de linguagem, são valiosas ao discurso literário, pois serão basilares para a manutenção da literatura como representação da realidade. Mais do que nunca, esses debates são pertinentes, haja vista a complexidade vivenciada por esse período que, com toda sua efemeridade, fragmentação, rapidez, concebe sujeitos cada vez mais incertos de sua existência, de sua colocação na sociedade. A insegurança torna-se um importante fator na construção de subjetividades, embora peculiares, são vítimas de discursos, logo, sujeitas a mudanças. Villaça (1996, p. 186), traz para a discussão: “No espaço que vai do individual ao social, do eu ao outro, do moderno ao contemporâneo, constrói-se a subjetividade textual, onde as polaridades se dissolvem na transformação permanente instalada pelo dialogismo”.
  • 22. 21 Na contística de Sonia Coutinho, percebe-se a existência constante dessa concepção de espaço e sua contribuição para a construção do mundo das personagens. São histórias que têm como elementos a rua, moldada segundo os conflitos das personagens: “[...] Enquanto tudo prosseguia em redor, o trânsito engarrafado, muralhas de pedra, a solidão, Copacabana e um milhão de sonhos irrealizados” (COUTINHO, 2004, p. 88). Embora tenha buscado no espaço coletivo um refúgio para a sua angústia, a personagem percebeu, apenas, que de nada valerá a diversidade nele encontrada sem uma harmonização consigo mesma. A literatura, portanto, como uma representante de discursos, estará sempre sujeita a modificações, interferências, permanências. Contudo, independentemente do período tratado, a obra deve manter as características que a asseguram como arte. O poder, exercido por essa escrita de conduzir leitores ao êxtase e a se reconhecerem em seus escritos, perdurará para além das discussões de períodos literários. Logo, mantendo- se com tal habilidade demonstra que, como na tradição, mantêm-se viva, instigante, inovadora, uma nova opção de realidade. A arte rejuvenescida aos olhos de cada leitor se renova e se atualiza. As narrativas que, segundo Cortázar (1993), aproximam-se da fotografia e valem pelo inenarrável (Seixas, 1998), também vasculham da tradição à contemporaneidade. 1.2 Da tradição à contemporaneidade: quem conta um conto Tradição e contemporaneidade: duas faces de uma mesma história. Dessa maneira, visualiza-se a trajetória literária que, como qualquer outra, apresenta múltiplas versões, determinadas, sobretudo, pelo momento em que acontece. Como os indivíduos, a literatura tem sua identidade construída a partir da sua história, por isso a necessidade de discuti-la sempre à luz da tradição. Entretanto, há de se questionar o próprio conceito de tradição, haja vista cada época ser marcada por seus descompassos que, por consequência, serão impressos naquilo que futuramente se considerará tradição, possivelmente, essa pode ser uma maneira de, além de reconhecer a importância do que em outrora se construiu, criar a futura tradição solidificada em bases concretas, também consolidar a literatura como uma linguagem atemporal, pois representativa de uma época, oferece instrumentos influentes a novas discussões. Corrobora-
  • 23. 22 se com Harvey (2001, p. 273) sobre revisitar a tradição, visando uma identidade, uma tarefa não simples se entendida apenas como continuidade: A afirmação de qualquer identidade dependente de lugar tem de apoiar-se em algum ponto no poder motivacional da tradição. É, porém, difícil manter qualquer sentido de continuidade histórica diante de todo o fluxo e efemeridade da acumulação flexível. A literatura brasileira consolida-se enquanto arte sempre na sustentação de sua característica essencial, a arte da palavra. Contudo, em face de um novo cenário da história do Brasil há a intensificação no uso de alguns conceitos da tradição, bem como a exigência de novos, os quais abarquem a complexidade contemporânea. Dentre os vários conceitos, pode-se apontar o de identidade que, respaldado na fragmentação e efemeridade do sujeito contemporâneo, oferece aos leitores obras literárias compostas de ferramentas que lhes possibilitam pensar sobre os fatores contribuintes para a afirmação do ser humano como tal. Nessa perspectiva, no final dos anos 80 e início dos anos 90, várias obras inserem-se no que se consideram os paradoxos do contemporâneo4, cujas escritas focalizam desde temas universais, tradicionalmente literários, a questões identitárias. A partir desse novo viés da literatura, conceitos como o de identidade são ampliados, pois a transitoriedade do contemporâneo impõe aos indivíduos múltiplos comportamentos, o que, naturalmente, obrigam-nos a possuir uma identidade plural. Sonia Coutinho, no conto Uma certa felicidade (1994, p. 14-15), apresenta uma história na qual são perceptíveis algumas características do conflito identitário vivenciado pelos sujeitos contemporâneos. A personagem principal, imersa num conflito constante em busca do autorreconhecimento, mostra-se cada vez mais embaraçada em meio as suas lembranças, pois não consegue juntá-las a fim de construir uma unidade, a sua unidade: E eu, que quero afinal? Não sei, e estou com 28 anos e um passado que me parece incompreensível e não tenho a quem oferecer de presente [...]. Mas, o fato de ter esquecido tanta coisa me angustia como se tivesse perdido a identidade. O esforço para lembrar é um esforço de me encontrar. 4 VILLAÇA, Nízia (1996). Conjunto de obras literárias cujo foco discute, entre outros, as crises de representações identitárias na contemporaneidade.
  • 24. 23 A rapidez e a tenuidade com que as concepções são construídas e desmoronadas na atualidade desconstroem as bases “sólidas” do sujeito que entra em conflito constante. Inúmeros são os dilemas, as (in)satisfações, a demanda por conceitos que consigam abarcar a dinâmica da vida em movimento, iniciada nos primeiros anos do século XX. A ampliação desse panorama exige a percepção das dicotomias com as quais se deparam o sujeito, além de uma linguagem que contemple a diversidade social. Villaça (1996, p. 158) caracteriza essa convivência com esse paradoxo: [...] Vivência da crise da questão política, ética, artística, por uma subjetividade que se volta para a história, para o nacional, a cidadania [...]. Crise de representação, da valoração, simultânea à procura de uma linguagem que reflita o multiculturalismo, que mantenha as diferenças retrabalhando sempre os pares distintos. Diante da problemática na qual se encontra imersa a sociedade atualmente, torna-se inconcebível discutir literatura como uma arte absoluta, haja vista o fato de os temas pertinentes a essa linguagem estarem sendo debatidos em outras vertentes, como os estudos culturais. A autora continua: “O valor do novo e a tradição de ruptura não se sustentam na complexidade contemporânea, onde as questões sofrem rearticulações, formam redes” (1996, p. 162-3). Culler, assim como Villaça (1996), visualiza a literatura como uma prática cultural específica que se beneficia ao ter suas obras relacionadas a outros discursos, isto é, os estudos culturais podem buscar nessas obras o modo como representam as ideias de uma época. Segundo o autor (1999, p. 51-2), o trabalho desenvolvido nessa perspectiva respalda- se, sobretudo, no modo conflituoso em que as identidades são construídas. O estudo volta-se, principalmente, à compreensão das culturas de grupos minoritários, historicamente marginalizadas pela sociedade, mulheres, negros, que encontram dificuldades para sentirem- se pertencentes à ampla cultura em que estão inseridos. Compreende-se a importância de os estudos literários dialogarem com os estudos culturais. Na contemporaneidade, fragmentação e efemeridade, características muito presentes nos escritos artísticos, entrecruzam-se para construções identitárias cada vez mais incertas: “Eu sou isso – meus conflitos, minhas insatisfações, minhas carências afetivas, essa constante
  • 25. 24 e dolorosa sensação de perda. Acima de tudo, minha solidão. São coisas que doem, mas que também aprecio, porque essas coisas sou eu” (COUTINHO, 2004, p. 75). Surgidos dos estudos literários, os estudos culturais, tradicionalmente concebidos como opositores da literatura, preocupam-se em apresentar novas possibilidades para que se discutam grandes obras literárias sob uma nova ótica, abrindo bastantes debates sobre o comportamento humano em sua contemporaneidade. E como ficam as discussões sobre originalidade e estilo? As implicações estéticas? As desconstruções evitaram petrificações e ou cristalização. Há uma nova construção, uma visão renovada. Uma busca do desconhecido. Um mistério de fontes escondidas. 1.3 Originalidade e estilo na literatura finissecular A essência da literatura constitui-se em materialidade da linguagem, formas na página e sons no ar, como afirma Connor (2000, p. 89-90). O autor apresenta a essência da literatura como um dos princípios literários para a obra. Ele contínua, ao debater a concepção nas quais devem versar os princípios literários: O principio da literariedade de uma obra particular como algo inerente não tanto à sua natureza material quanto à sua forma – quer dizer, às maneiras particulares pelas quais o estilo e a convenção eram empregados na obra de arte particular. A literariedade, declaravam eles, estava na intensa capacidade da obra literária de servir de mediadora às qualidades da sua forma de atrair a atenção sobre esta. Embora a contemporaneidade se apresente assolada de novos conflitos, fragmentação, efemeridade, identidades etc., a literatura mostra-se renovada para continuar representando a realidade, pois criou novos e intensificou a utilização de antigos conceitos. Ao se apropriar do sistema linguístico comum para falar sobre o comportamento humano, a literatura continua atraindo a atenção para as suas obras, pois independentemente da época de que fala, permanece utilizando-se de seus conceitos para aproximar o leitor do seu universo. Verossimilhança, mímesis, estranheza, catarse, fruição são alguns dos elementos que, utilizados pela literatura e despertados no leitor, asseguram a sua originalidade.
  • 26. 25 Numa perspectiva teórica, discutir literatura na contemporaneidade implica, também, abordagem de questões outras, como os valores ideológicos vigentes e as práticas da crítica, haja vista estes fatores interferirem diretamente para a construção de conceitos. Contudo, sua interpretação não pode ser reduzida a esse aspecto, mas estendida à sua compreensão a partir dos efeitos do seu discurso, como se observa no comentário de Connor (2000, p. 108): A teoria literária pós-moderna, no sentido dual de um conjunto dominante de idéias e práticas críticas [...] e de uma teoria de um modo dominante de literatura contemporânea, pode vivenciar e projetar-se numa espécie de crise eufórica; mas interpretar suas operações somente nestes termos é cometer o erro comum de um só atentar para o conteúdo manifesto da teoria, em vez de avaliar seus efeitos discursivos e ver o que ela diz e não o que ela faz. Percebe-se então que, mesmo a literatura cumprindo com maestria a sua função de representar a realidade, faz-se imprescindível atentar-se para as novas maneiras de conceber essa realidade, pois esta tem se apresentado segundo várias concepções. Essa situação obriga o discurso literário a moldar-se segundo uma nova organização e, automaticamente, desenvolver novas estratégias de representação. Villaça (1996, p. 162) discute sobre este aspecto: “Hoje, em plena crise de representação, quando o lugar do saber começa a aparecer como construção histórica, discurso, interpretação, o par ciência/arte, desenha novos movimentos, inventa-se numa dinâmica outra”. Ao se tratar da originalidade na literatura contemporânea, é importante ressaltar outra característica dessa escrita, o estilo, entendido quase sempre do ponto de vista individual. Alguns teóricos, como Compagnon (2006), contradizem essa afirmativa, pois, segundo ele, o estilo é construído sob dois aspectos, individual e coletivo. Enquanto propriedade do discurso, o estilo imprimirá nos escritos os hábitos de uma época. Com essa utilização, além desses escritos serem mais facilmente identificados como de um tempo específico, possibilitarão o reconhecimento de alguns escritores e o legado deixado por eles. Acerca da concepção de estilo, Compagnon (2006, p. 173), apresenta-o como um conceito complexo que, imbricado a sua concepção, traz tantas outras: O estilo, pois está longe de ser um conceito puro; é uma noção complexa, rica, ambígua, múltipla. Em vez de ser despojada de suas acepções anteriores à medida que adquira outras, a palavra acumulou-se e hoje pode comportá-
  • 27. 26 las todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, é tudo isso que queremos dizer, separadamente ou simultaneamente, quando falamos de um estilo. Possibilitar êxtase absoluto, reconhecimento com um mundo ficcional, afastamento da realidade, até mesmo dúvida sobre a condição de ser humano, ou simplesmente deleite durante uma leitura, é assim a literatura que, discutida à luz de diversos conceitos, em diferentes épocas, autores variados, deverá primar por manter, tão somente, sua característica principal, a arte da palavra. A tradição revisita-se, embriaga-se de conceitos e técnicas, metamorfoseia-se na aventura humana de renovar-se e pôr na locomotiva da vida as ideias que, indiferentes ao esgotamento da realidade, auxiliam na construção de símbolos num movimento ininterrupto do artista que vê e espelha o homem que desfila a noite ou durante o dia pelas páginas revigoradas do plano mágico do imaginário.
  • 28. 27 2 O EU PELAS RUAS DA MODERNIDADE A imaginação tornou-se um elemento essencial aos sujeitos da modernidade. Através dela realidades são reinventadas. Em face do cenário vigente nesta época, iniciado na segunda metade do século XIX (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 180), os indivíduos constituem-se cada vez mais fragmentados, efêmeros, incertos de si mesmo. Seduzidos pelo fascínio das cidades, muitos se enveredam pelas ruas, becos, vielas ou, ainda, em seus apartamentos, com intuito de, não somente atribuir significado à sua existência, mas se encontrar. Contudo, os caminhos trilhados rumo aos (des)encantos das metrópoles mais tem se apresentado como verdadeiras bifurcações, pois seus andarilhos, com suas andanças ininterruptas, não conseguem definir qual o destino alcançar. A incerteza humana encontra solidez nas representações literárias da contemporaneidade. Artistas, como Sonia Coutinho, através de sua obra, têm descrito de modo peculiar o devaneio do sujeito moderno. Seria esse o momento da história da humanidade em que a mera condição de cidadão, de homem livre, tornou-se insuficiente para driblar as adversidades desse tempo e assegurar a existência? Alguns estudiosos dizem que sim. Walter Benjamin, em seus estudos acerca da obra de Baudelaire, afirma que ao sujeito moderno caberá um novo papel, o de herói. Reinventado nessa nova função poderá o indivíduo recriar conceitos e identidades que garantam a sua vivência. Para o autor (1989, p. 73), “O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma constituição heróica”. Para Benjamin, os obstáculos oferecidos ao homem desse tempo estão muito além das suas forças naturais, por isso ele é impulsionado a buscar refúgio nas ruas, fazendo dela um teatro a céu aberto no qual a vida possa ser reescrita. Contudo, nem sempre essa tentativa é acertada, forçando-o a recorrer a outros mecanismos de sobrevivência. Enfraquecido mediante as constantes dificuldades, o sujeito visualiza, como uma possível saída, a morte. O autor (BENJAMIN, 1989, p. 75) chama a atenção para este tipo de morte. A necessidade de ela ser concebida não apenas como uma perda, uma questão espiritual, mas como a vontade do herói moderno, como uma última tentativa de demonstrar o seu fascínio por este mundo moderno. “O suicídio podia parecer aos olhos de Baudelaire o único ato heróico que restara às ‘populações doentias’ das cidades [...]”.
  • 29. 28 Uma vez estabelecida a vida como uma peça teatral, inúmeras representações estarão prontas à espera dos atores sociais. Nesse sentido Benjamin (1989, p. 75) postula: “Mas a modernidade mantém pronta a matéria-prima de tais representações e espera um mestre. Essa matéria- prima se depositou nas camadas, que, de ponta a ponta, aparecem como fundamento da modernidade” . Antes que as cortinas da vida se fechem, muitas cenas são dramatizadas e a literatura tem possibilitado a representação de muitos espetáculos. Sonia Coutinho traz, em sua contística, histórias que têm a morte, ou o suicídio, como companheira constante, quase sempre, como um último recurso frente aos dissabores de modernidade. No conto Doce e Cinzenta Copacabana, pode-se visualizar o suicídio como um válvula de escape. A personagem central da história acaba de acordar em um quarto “mergulhado em cinzenta penumbra” (COUTINHO, 2005, p. 40) em Copacabana. Recentemente completara 28 anos, na semana passada. Desempregada, pois abandonara o trabalho de fotógrafa de um jornal, guardou algumas economias, além de trabalhos extras que sempre surgem, batizados, casamentos, festas infantis. “Dinheiro não é um problema imediato” (COUTINHO, 2005, p. 41). Talvez, preencher a lacuna causada pela solidão em sua vida fosse uma questão urgente. Quem sabe, ainda, arrumar a bagunça do seu quarto, sua mãe não acreditaria que uma pessoa fosse capaz de dormir num lugar assim. Imersa em diversos conflitos, viver sozinha, ter fugido de um internato lá na cidadezinha e, mesmo, assim não poder admitir a sua fragilidade, sente-se completamente afugentada, desesperada, com medo, desejando proteção familiar: “Essa sua necessidade inconfessável de ter um pai” (COUTINHO, 2005, p. 42). “[...] e seja como for, não saberia viver de outra maneira – só que, ao abrir a porta do apartamento, ah, sente um calafrio de desgosto/medo, tudo tão sujo e solitário e cinzento” (COUTINHO, 2005, p. 46). Depois de um reencontro com as suas antigas amigas lá da cidadezinha, entra num estado emocional mais incerto ainda. Todas estão casadas, a maioria com filhos e INFELIZES Ao voltar ao seu apartamento, sujo e bagunçado, tenta estabelecer um pouco de ordem, desiste, prefere ir para cama: [...] então puxa a colcha, encolhe-se lá embaixo, é quente como um útero – pode suicidar-se em seguida, não seria difícil abrindo o gás do banheiro e deixando a água correr, iria pegando no sono, devagar – mas logo faz um esforço e pensa que vai passar, que vai passar, que vai passar (COUTINHO, 2005, p. 46).
  • 30. 29 Colocar fim na própria vida, mesmo que seja em pensamento, é um recurso utilizado pela escritora. Por vezes, a morte aparece em suas narrativas como uma explicação para comportamentos observados pela sociedade como subversivos. No conto O leque do Afeganistão que abre a compilação Os venenos de Lucrécia (2005), narra a história de uma complexa relação, tumultuada, entre o Professor Anaximandro e Sibila. Ele, homem austero, dos seus cinquenta anos, figura imponente no prédio onde moravam. Ela, um tanto jovem demais para ele, trinta e cinco anos, portadora de uma beleza jovial, mas que era ocultada pelo modo como se vestia e se maquiava, o que, naturalmente lhe davam o aspecto de mulher mais madura. Os dois eram oriundos de boa família. Ao longo da narrativa, nota-se que esta mulher carregava consigo desejos simples, pois, assim como o ser humano tem oportunidade de realizar coisas singelas, pela última vez, como ver o sol, passear, tomar banho, ela tem seus anseios, pouco significantes para alguns, mas para ela, de valor inestimado. “Sim, existe uma última vez na vida em que se pode fazer amor [...] ouvir um homem lhe dizer na rua (pela última vez), que é muito bonita – pois um dia se morre” (COUTINHO, 2007, p. 8). A partir de tais afirmações, o leitor, poderá ou não, deduzir que Sibila apresentava possíveis pistas sobre o seu futuro, incerto para aquele, pois ao início da narrativa não se pode imaginar seu fim, mas certo para ela que, após cinco anos numa união conjugal monótona, já presumiria seu destino. Ora, seu esposo, o rigoroso Anaximandro, viu-se numa situação embaraçosa ao perceber que de uma hora para outra sua companheira, até então uma mulher acima de qualquer suspeita, segundo os parâmetros sociais, transforma completamente seu comportamento, o qual ele chamou de “Estranha Vida Interior de Sibila”. E que um objeto em destaque no meio da sua sala, um leque vindo do Afeganistão, poderia, não se sabe como, ter alguma influência sobre essa nova mulher, mas um simples objeto adquirido numa sofisticada butique de Ipanema exerceria, de fato, um poder sobre ela ou se trataria, tão somente, de um pretexto, para que a mesma permitisse que algo escondido florescesse? Ao passo que Sibila modifica a tradicional decoração a estilo inglês do seu apartamento, o Professor a observa. Ela abandonara o comportamento que tanto estimava, deixara de ser uma “mulher discreta e de classe”. Andava nua pela casa, pintava os lábios de vermelho, “vermelhíssimos”; as unhas com esmalte roxo, banhava-se ao luar avermelhado que entrava pela janela, passeava pelo jardim com os seios e o sexo à mostra, decididamente, para o Professor, “Alguma Doença ela devia ter”. A austeridade apresentada pelo Professor,
  • 31. 30 mediante a renovação de sua mulher, começa a mostrar-se enfraquecida, fazendo surgir um homem sensível, fraco, “um pobre diabo”, vivendo o conflito de ter sua esposa submissa e diabólica de volta ou adaptar-se a esta nova que se desvendava. Ao receber de Sibila a revelação que estava apaixonada por outro, ficou transtornado, mas com desejo de mantê-la ao seu lado, manter sua libido efervescente através desta mulher. “Sua filha da puta [...] não pense que vai sair daqui assim, sem mais aquela, depois de tudo o que fiz por você [...] Já pus uma bala de prata no meu revolver, tente só uma escapada e verá – não esperarei por uma segunda oportunidade. Lixo de mulher” (COUTINHO, 2005, p. 16). Submete-a, pois, à violência física e psicológica. Contudo, não há evidências que comprovem a existência de outro homem na vida de Sibila, existem referências, ora um Poeta cego, ora um jovem tuberculoso e ainda um estudante de Arqueologia. Ou seja, não seria mais um dos vários artifícios usados pelo narrador para ilustrar a conflitante condição da personagem, que idealiza um mundo imaginário a partir dos seus desejos, anseios de mudança e sendo impedida de ser uma pessoa livre, torna-se prisioneira da sua imaginação. Como desfecho dessa história, o narrador apresenta dois possíveis fins para a relação de Sibila e o Professor. Um, ela perdeu definitivamente o equilíbrio psicológico. O outro, propositalmente se esqueceu da sua realidade, o que para ela era o maior pesadelo, “[...] jamais conseguiu verdadeiramente suportar” (COUTINHO, 2005, p.19). Pode-se, diante disto, pensar que seria esse o objetivo da personagem ao criar um mundo imaginário, migrar para ele quando não mais tivesse condições de tolerar seu modo de viver, sem, contudo, ser criticada socialmente por isso, sim, não se pode ou ao menos não se deve julgar alguém que abandonou uma vida por motivos de distúrbios psicológicos, motivos que se desenvolvem independentemente da vontade do ser humano. Embora essas duas possibilidades tenham sido evidenciadas, pode-se perceber nas últimas linhas do conto que mais uma vez a morte é usada como principal artifício para o fim da vida da personagem. O homossexual, amigo presente em todos os seus momentos conflituosos, propaga várias versões para o fim da história de sua amiga. Dentre elas, aponta o suicídio: Entre as várias versões que o Amigo Homossexual, anos depois, apresentava para o final da história de Sibila, estava a de que ela teria sido rejeitada pelo Amado, com uma frase áspera e então – a) não resistiu e suicidou-se, deixando-se picar no seio por uma áspide [...](COUTINHO, 2005, p. 19).
  • 32. 31 Os conflitos vividos pela personagem encontram solidez nas discussões da literatura contemporânea. Na representação desse sujeito pós-moderno, efêmero, fragmentado, em constante conflito consigo mesmo, a literatura deverá representar a desordem que dele emana. (TESTI apud SABATO, 2008, p. 5), reforça a ideia de representação do indivíduo pós- moderno: O homem de hoje vive em alta tensão, diante do perigo da aniquilação e da morte, da tortura e da solidão. É um homem de situações extremas, chegou aos limites últimos de sua existência ou está diante deles. A literatura que o descreve e o interroga só pode ser, portanto, uma literatura de situações excepcionais. A afirmação supramencionada descreve algumas características que podem ser associadas à Sibila nesse ponto de sua vida. Ela encontra-se em alta tensão por conta das pressões, psicológica e social, as quais o marido a submete. Há um processo de solidão que a conduz, inclusive, através do sonho de embarcar em um novo outro mundo, sem tampouco sair do seu apartamento. A morte, solução encontrada por seu Amigo Homossexual a fim de oferecer–lhe um fim de vida digno, embora não se sabe concreta, pode ser vista sob um novo olhar. Não seria essa morte a representação de uma possível saída para tantos conflitos da contemporaneidade? Há inúmeras discussões acerca do comportamento humano pós-moderno, porém pouco se falou sobre o modo como ele deve se portar mediante seus conflitos existenciais. Este é um tema recorrente na contística de Sonia Coutinho. Em Nos olhos do cão, o homem, de 50 anos para quem não haveria mais resgate, em meio ao seu desespero e solidão, encontra na morte o refúgio que julga necessário: “A morte como um segredo seu, um grave e digno segredo seu, a sua morte. Era preciso, pensou o homem” (COUTINHO, 2004, p. 88). Pare ele, já muito cansado da vida que leva, visualiza na morte o último recurso capaz de livrá-lo das angústias que o acompanham: “Quase com alívio, ah, ele estava tão cansado da aventura humana. E, um dia, não tão distante assim, poderia afinal, como um simples vivente morrer” (COUTINHO, 2004, p. 88). O papel de heróina modernidade estará sempre à espera dos que quiserem arriscar esse modo de vida. Contudo, Benjamin (1989, p. 93-94), embora afirmasse anteriormente sobre a
  • 33. 32 importante função do herói, reforça que nem mesmo ele conseguirá se libertar das amarras da modernidade: A modernidade se revela como sua fatalidade. Nela o herói não cabe; ela não tem emprego algum para esse tipo. Amarra-o para sempre a um porto seguro; abandona-o a uma eterna ociosidade. [...] A modernidade heróica se revela como uma tragédia onde o papel do herói está disponível. A cidade é, em si, uma demanda de gênero. Ao trilhar por suas intermináveis ruas, o sujeito depara-se com a infinidade, ora revestida de encantos e magia, ora fantasiada de desilusões. A cidade, com o seu poder envolvente de serpente, astuta, dissimulada, sedutora, enreda o andarilho em uma trama de difícil ruptura, o sujeito torna-se uma presa na cidade. Guiado pelas luzes solares ou, quem sabe, pela luminosidade noturna e enlaçado pelos descaminhos da modernidade, o sujeito tenta encontrar-se. 2.1 Andarilho noturno e o eu boêmio A literatura, na permanência de uma das funções, a representação da realidade, encontrará nos conflitos do sujeito moderno o húmus necessário à fertilização de sua arte. Sem a obrigação de que este elemento seja sempre de boa procedência e assegure a qualidade dos frutos futuros, a arte literária apodera-se dos passos firmados na modernidade. Nem sempre as pegadas são afixadas em solo firme, concreto, se o fosse, não seria nesse tempo. A cidade, espaço de constantes fabulações, comportará em seus meandros todos aqueles que dela aproximam-se. Uns, até conseguirão fazer dela o seu porto seguro. Outros, numa busca permanente pelo seu eu, irão, guiados pelas possibilidades por ela oferecidas, tentar desvendar os seus segredos através de passeios noturnos, infinitas andanças, quase sempre limitadas aos poucos metros quadrados de um apartamento em Copacabana. Em Os olhos do cão, o homem sitiado por sua solidão, tem a insônia como companheira: Às três da madrugada, insone, observando ao espelho do banheiro seu belo rosto magro, só ligeiramente gasto – a ruga amarga no canto da boca, barba e cabelos grisalhos -, tentou determinar a partir de quando, desde a sua chegada, começara a se sentir ameaçado (COUTINHO, 2004. p. 85).
  • 34. 33 O desejo por situações ou objetos que, mesmo simbolicamente, remetam à noite, essas personagens seguem suas vidas encurraladas por sentimentos, desde os mais sóbrios a vontades simples, como a segurança de um útero: À noite, ainda angustiado e outra vez sem conseguir dormir, ansiou por uma morna piscina arredondada e escura onde pudesse, afinal, repousar; quis voltar para antes da memória e do sofrimento, para a tépida mudez de um útero (COUTINHO, 2004, p. 87). O sujeito que se encontra e perde-se das trilhas urbanas, há muito tem sido objeto de estudo de alguns estudiosos, inclusive daqueles que se autointitulavam boêmios, como Baudelaire, segundo a obra de Walter Benjamin (1989, p. 30): [...] “Essa boêmia – ela é tudo pra mim – inclui despreocupadamente essa criatura a irmandade da boêmia”. As próprias cidades modernas, com seus encantos e magia, oferecem possibilidades para o indivíduo tornar-se um investigador permanente dos seus indecifráveis segredos. E nessa busca, muitos acabam assumindo o papel de boêmios, figuras onipotentes e consolidadas em quaisquer centros urbanos. O surgimento dessa personagem peculiar relaciona-se, diretamente, ao desenvolvimento industrial das cidades. Embora, hoje sua função esteja imbricada à concepção de vagabundo, tivera em outrora uma importante função no desenvolvimento de muitas metrópoles, como Paris. Benjamin (1989, p. 16), em suas pesquisas no legado deixado por Baudelaire, aponta que havia, inclusive, antes de ser conhecido o conceito de boêmia, os que já davam significado à função, os trapeiros: Maior número de trapeiros surgiu nas cidades desde que, graças aos novos métodos industriais, os rejeitos ganharam certo valor. Trabalhavam para intermediários e representavam uma espécie de indústria caseira situada na rua. O trapeiro fascinava a sua época. Encantados, os primeiros olhos investigadores do pauperismo nele se fixaram com a pergunta muda: “Onde seria alcançado o limite da miséria humana?”. A afirmação acima demonstra que os primeiros boêmios, os trapeiros, deram à sua contribuição à sociedade. Contudo, inseridos na dinâmica urbana e suas artimanhas convidativas, o sujeito passa a não mais firmar a sua identidade com o exercício profissional,
  • 35. 34 mas por trazer, para o centro das vivências modernas, diversas formas de prazer escondidas atrás das regras sociais. Nesse momento, sim, a figura, vê-se mais fortemente relacionada ao andarilho que não tem preocupação com mais nada, a não ser com a sua vida sem regras e de prazeres. Benjamin (1989, p. 9-10) afirma: Sua existência oscilante e, nos pormenores, mais dependente do acaso que da própria atividade, sua vida desregrada, cujas únicas estações fixas são as tavernas dos negociantes de vinho – os locais de encontro dos conspiradores -, suas relações inevitáveis com toda sorte de gente equívoca, colocam-nos naquela esfera de vida que, em Paris, é chamada a boêmia5. Na busca por reconhecimento e fortalecimento da sua arte, a literatura se apodera, ficcionalmente, daquilo que a ciência não consegue explicar a fim de consolidar-se. Assim, a concepção acima apresentada encontra respaldo na literatura contemporânea, pois a retratação de alguns estilos de vida na modernidade dialoga com o perfil dos verdadeiros boêmios, seja na concepção tradicional apresentada por Baudelaire, ou, numa perspectiva mais atual. Ambas convergem para um mesmo fim, vida de pessoas que optam por um modo de vida mais desregrada para além das conveniências sociais. E a literatura frente aos desafios deste tempo, deverá primar por manter a sua vivacidade através das produções artísticas, sem, contudo garantir-lhe sucesso absoluto em suas produções. Baudelaire (1846, p. 348 apud Benjamim 1989, p. 29), nesse sentido, afirma que: “Assim também é a literatura, que reproduz a substância mais difícil de avaliar, antes de tudo um enchimento de linhas, e o arquiteto literário cujo simples nome não promete lucros tem de vender a qualquer preço”. Aliado a este estranho sentimento que assola a vida de muitas personagens de Sonia Coutinho, a solidão, tem-se um desejo pela escuridão, por hábitos boêmios, como a ida a barzinhos, apreciar ou extravasar mágoas, através da bebida. Apesar de algumas situações se 5 [Boêmia] foi a apropriação dos estilos de vida marginais pelos burgueses jovens e não tão jovens, para a dramatização da ambivalência em relação às suas próprias identidades e destinos sociais [...]. As pessoas eram ou não boêmias dependendo da intensidade na qual partes de suas vidas dramatizavam essas tensões e conflitos para elas próprias e para os outros, tornando-os visíveis e exigindo que fossem confrontados (Seigel,1992, p. 19- 20). Segundo Seigel (apud NUNES e MENDES), a boemia é um fenômeno social e literário que teve lugar em diversos pontos do planeta e em diferentes épocas. O termo diz respeito àqueles artistas que se reconhecem como tais, que procuram definir seus valores em contraposição aos da burguesia e em que a arte desempenha papel fundamental. Refere-se, pois, ao estilode vida especial, identificável, surgido no século dezenove, nas décadas de 1830 e 1840 na França, tornado popular especialmente a partir das histórias de Henri Murger (1822-1861), que dramatiza o cotidiano de um grupo de intelectuais boêmios na Paris daquele tempo.
  • 36. 35 passarem durante o dia, a ânsia pela penumbra da noite permanece: “Entrou num botequim, pediu cachaça pura e, enquanto levava o copo à boca (suas mãos tremiam), escutou um súbito silêncio de avesso, viu a escuridão por trás do sol ardente e negro” (COUTINHO, 2004, p. 86). A literatura, não em conflito com a ciência, deve ser visualizada como uma prática social, uma vez que, embora ficcionalmente, ofereça instrumentos que poderão perpassar épocas para que o comportamento humano de um dado período da história seja observado. Nesse sentido, pode ser um mecanismo na compreensão do modo como as identidades, individual e coletiva, são construídas e consolidadas e quais fatores historicossociais contribuíram para tal afirmação. Villaça (1996, p. 160) discute este aspecto: Na busca da individualidade e da identidade nacional, a literatura funciona pela reduplicação do paradigma da ciência e não em oposição a ela: literatura não como válvula de escape para a vida social penetrada de cálculo e visão mecânica, mas literatura orientada pela mesma racionalidade do poder. A cidade, em si, favorece a multiplicidade de comportamentos e o surgimento de novas identidades. A sua estrutura basilar permite aos seus habitantes vivenciarem inúmeras sensações a partir de práticas sociais. Para Harvey (2001, p. 69), a aparência das cidades e a sua organização espacial constituem o esteio necessário para que o indivíduo pense, avalie e realize diversas percepções do contexto que o circunda. O autor discute, ainda, que a flexibilidade encontrada nas cidades, aliada ao constante processo de rupturas, típicos da modernidade, ao qual ela está submetida favorece a uma inacabada e contínua (des)construção de concepções relacionadas à individualidade do sujeito e ao coletivo no qual está inserido. Harvey (2001, p. 22) postula: A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas e inerentes. O autor (2001, p. 18) segue suas análises acerca dos amores e dissabores da cidade afirmando que embora ela se apresente totalmente plástica, ou seja, passiva às conivências
  • 37. 36 identitárias de cada habitante, essa mesma característica poderá conduzir seus andarilhos a uma incerteza maior ainda sobre, o que até então, concebiam ser liberdade. Essa característica pode ser observada no conto de Sonia Coutinho Uma certa felicidade (1994, p. 51): “A liberdade inteira e toda solidão do mundo. [...] minha liberdade inútil a tiracolo, minha liberdade como uma túnica, como um manto a minha liberdade e solidão [...]”. Para afirmar o seu ponto de vista sobre a plasticidade da cidade, Harvey (2001, p. 17) expõe a diferença entre elas e localidades menores, como pequenos municípios e povoados: “[...] as cidades, ao contrário dos povoados e pequenos municípios, são plásticas por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, nos moldam por meio da resistência que oferecem quando tentamos impor-lhes nossa própria forma pessoal”. E é essa incerteza o principal elemento sedutor e convidativo que a cidade utiliza para atrair os seus amantes. Estes, movidos pelo desejo de domá-la, seguem, em passeios ininterruptos, por suas trilhas. A ânsia em decifrá-la é mais latente que o medo por ela oferecido. Ítalo Calvino (1990, p. 44) discute sobre as cidades; para ele: “as cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam outra coisa”. E o sujeito, numa busca constante por si mesmo, segue pela cidade. Se pela noite não encontrou o objeto de sua busca, segue em passeio diurno. Quem sabe, conduzido pelos reflexos solares, este sujeito, encontre-se, descubra-se, reconheça-se, fixe num lugar. Ou quem sabe, depare-se com uma incerteza maior ainda. 2.2 O Flâneur a descoberta da cidade A palavra dá vida à fantasia, à imaginação. Através dela novos universos podem ser criados. E é na literatura que essa atividade é melhor realizada. Independe da época, dos conflitos que assolam a vida do ser humano, individuais, coletivos, do contexto, a literatura permanecerá rejuvenescida, revigorada. Com o seu poder de renovar-se representa a realidade, embriaga-se dos conceitos de qualquer contemporaneidade e descreve, com maestria, a vida dos sujeitos. Não importa se é um indivíduo seguro de si, ou, ainda, completamente alheio à sua existência e àquele, que através de passeios intermináveis pelos labirintos, tenta decifrar o enigma da cidade, definir-se.
  • 38. 37 Na contemporaneidade, a literatura não mais se sustenta, tão somente, restrita ao seu universo. Daí o fato de ela dialogar com outras áreas que, assim como ela, tentam retratar a vida de um povo, sua cultura, sobretudo, àqueles que seguem na busca por reconhecimento e consolidação social, como mulheres, negros, homossexuais. Assim, seguirá transportando o leitor a novos mundos criados e sustentados na literatura, sem que se perca de vista o referente do mundo real. Calvino (1990, p. 13-20) corrobora essa ideia: No universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo [...]. Mas a literatura não basta para me assegurar que não estou apenas perseguindo sonhos, então busco na ciência alimento para as minhas visões das quais todo pesadume tenha sido excluído. Calvino (1990, p. 84) segue o seu texto discutindo sobre o poder da obra literária. Trata não do seu absolutismo, mas da sua eternidade. Da capacidade que tem de atribuir sentido, embora inexato, ao existir. Algo inexplicável, mas delicado, gracioso, tão intenso ao ponto de parecer algo concreto, embora seja imaginação, ficção. Mas, de qualquer modo, tão cheia de vida, quase um organismo vivo. Ao passo que cria histórias, personagens, a literatura representa diversas figuras da sociedade. Dentre elas, os amantes dos encantos urbanos, os caçadores dos prazeres da terra prometida, os que concebem a vida, apenas impressa, na diversidade das cidades. Para o andarilho do dia das cidades, a vida esconde uma infinidade de tesouros que só poderão ser notados nos labirintos urbanos. Para Benjamim (1989, p. 35): “Que a vida em toda a sua diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolva entre os paralelepípedos cinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo”. A alusão à cor cinza é uma constante nos contos de Sonia Coutinho. Suas personagens fazem referência a esta cor ao descreverem alguns cenários do bairro de Copacabana, local onde se passa a maioria absoluta das situações vivenciadas por elas. A descrição de algumas cenas acontece de maneira intensa que possibilita a criação de imagens significativas, muito embora não decifráveis. [...] um conto é, pois, uma imagem que por razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba formular em termos discursivos ou conceituais.
  • 39. 38 [...] fora a brancura cinzenta da espuma (as ondas picadas deixam no ar, em torno, uma névoa de salitre), está de um cinza profundo, ao lado da areia cinza, do céu cinza e da fileira de prédios cinzentos, é quando os pombos branco/acinzentados descem voando em harmoniosa formação [...] (CALVINO, 1990, p. 104). Na busca por si mesmo, os sujeitos urbanos terminam por abarcarem as características de uma típica figura das cidades, o flâneur6 que, para Baudelaire, segundo Benjamin (1989, p. 34): “[...] dias de festa e dias de luto, trabalho e lazer, costumes matrimoniais hábitos celibatários, família, casa, filhos, escola, sociedade, teatro, tipos, profissões. A calma dessas descrições combina com o jeito flâneur, a fazer botânica no asfalto”. Inúmeros estudos apontam para a figura do flâneur como uma referência de alegria, ao seu modo, de alguém despreocupado com a vida e algumas de suas obrigações, como aluguel e pagamentos de despesas comuns, cujo único foco era a malandragem, a busca pelo prazer, pela esbórnia, mesmo que, para isso, tivesse que passar dias a fio perambulando pelas ruas da cidade. Entretanto, Walter Benjamin, em estudo à obra de Baudelaire mostra que nem sempre esses andarilhos das cidades deparavam-se com o fascínio criado em suas imaginações. Eles sempre eram movidos pelos encantos da cidade, sedentos em descobrir os seus mistérios, porém, esbarravam, em algum momento da sua trajetória, com a solidão. 6 É através do olhar do flâneur que a cidade de Paris é transfigurada poeticamente por Baudelaire, mediante o estado de spleen, de que se falará adiante. [...] Nesta ‘nova’ ou reconstruída cidade, e que corresponde também a um mundo em decadência, de uma cultura derradeira e mortalmente ferida pelo fetiche da mercadoria e pelo capitalismo burguês, os seus passeios amplos convidavam agora ao passeio, afastando o medo que tomava o transeunte parisiense, na antiga cidade, e essa actividade (a flânerie) constituía a ocupação privilegiada do burguês ocioso (o flâneur), aquele que sustentava a convicção da fecundidade da flânerie, de que nos fala, não apenas Benjamin, nos seus estudos sobre Baudelaire, como também o próprio Baudelaire, na sua obra As Flores do Mal. [...] A fantasmagoria do flâneur, aquela que irá ser analisada em primeiro lugar, é tomada como actividade propiciadora de uma embriaguez ou, mesmo, de um êxtase peculiar (comparada frequentemente à embriaguez provocada pelo uso do haxixe), é, ao mesmo tempo, a expressão de uma situação dialéctica que se encontra na raiz da lírica alegórica de Baudelaire. [...] Como Walter Benjamin o afirma, o flâneur é um estudioso da natureza humana. Sob a aparência de um olhar desatento e distraído, esconde-se alguém cuja volúpia reside na decifração dos sinais e das imagens: algo que pode ser revelado por uma palavra deixada ao acaso, uma expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que espera o ouvido de um músico atento. Os conceitos de flânerie e de ócio devem, então, ser aproximados, tomando o segundo como a inaparente condição do trabalho poético mais fecundo (CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin. In: Revista de cultura, nº 29. Fortaleza; São Paulo, outubro de 2002. Disponível: <http://www.revista.agulha.nom.br/ag29benjamin.htm>. Acesso em: 24/12/2011).
  • 40. 39 Este sentimento que assolava a vida do flânuer tornava-se mais intenso ao descobrir- se completamente solitário em meio à multidão. Surgia, então, mais uma artimanha da cidade com a qual o sujeito andante teria que se adaptar se nela quisesse permanecer. “As pessoas tinham que se acomodar a uma circunstância nova e bastante estranha, característica da cidade grande. [...] uma multidão a perder de vista, onde ninguém é para o outro nem totalmente nítido nem totalmente opaco” Benjamin (1989, p. 35 e 46). A sensação de estar ilhado pela solidão, mesmo ocupando um espaço no qual residem milhões de pessoas, é uma característica recorrente nos contos de Sonia Coutinho. A todo momento, as suas personagens se veem completamente atordoadas por esta sensação que as toma, envolvendo-as num misto de incertezas e que, na verdade, são os reflexos da contemporaneidade, sobretudo, nas grandes cidades. Estas marcas podem ser facilmente visualizadas em Sonia Coutinho, principalmente no conto Nos olhos do cão (2004, p. 86) no qual o sujeito, um homem de 50 anos, perde-se completamente nos labirintos da vida contemporânea e deixa-se abater pela incerteza: No dia seguinte, procurando caminhos entre o tráfego congestionado das novas avenidas, avaliou sua ilusão ao imaginar que a Cidade permaneceria ali imóvel, atestado permanente de sua identidade. Corrosiva, ali também atuara a movediça estranheza da vida – quem seria ele? A personagem central desse conto retornara à Cidade após uma temporada fora. Voltara guiado por um turbilhão de sensações, não sabia explicar, mas estava certo de que na Cidade deveria permanecer. Sempre que estava mergulhado em suas frustrações, segurava-se em algo para reerguer-se e ir à busca da beleza da cidade, porém, a cada retomada de fôlego renascia, mais forte ainda, a incerteza. Mas, na manhã seguinte, reanimado, começou a percorrer as ruas da Cidade, com a excitação de quem se empenha numa atividade sexual. Caminha por ali, pensou, era um largo coito, bíblica fornicação, aquelas ruas poeirentas e douradas, miseráveis mas luxuosas de objetos e cores [...].Algumas horas depois, cansado e encalorado, concluiu que, de certa forma, toda aquela beleza ia além do humano, reduzia as pessoas a insignificantes seres de carne perecível (COUTINHO, 2044, p. 86).
  • 41. 40 Para Edgar Poe (apud Benjamin, 1989, p. 48-50), o efeito é ainda mais devastador, pois se trata de humanos como barreira. Em momento algum o trânsito é mencionado como empecilho ao deslocamento do flânuer, o bloqueio é dado por outras multidões. O flânuer não poderia estabelecer o seu lugar na cidade, tão pouco brilhar. O andarilho segue numa rota deslocada, com movimentos desordenados, num eterno gesticular e falar consigo mesmo, extremamente incomodado pela incontável multidão que o cerca. Estranhamente essa personagem, consciente do mar de insegurança no qual estava imerso, sentia desejo de permanecer nesse conflito. Para ele, em algum momento da sua vida esquecera nessa Cidade algo essencial à sua existência, precisava resgatá-lo, mesmo num resgate tortuoso, que custaria a sua paz, ele desejava continuar nesse conflito, uma vez que explicita a necessidade de permanecer nesse lugar. Como se tivesse esquecido ali, há muitos anos, uma peça vital de seu mecanismo interior. Estivesse então em qualquer parte do mundo, à Cidade permaneceria ligado pelo pequeno elo perdido/escondido. Ou, talvez, já destruído e entranhado naquele cenário, do qual então necessitava (COUTINHO, 2004, p.81). Benjamin (1989, p.55) discute sobre a busca permanente realizada pelo andarilho diurno das cidades. Ele afirma que aquele que sai à procura do prazer para passar o tempo irá defrontar-se com diversas barreiras sociais. A limitação seria uma espécie de termômetro, o qual estabeleceria limites entre o que o flânuer quer da cidade e o que, efetivamente, ela pode oferecer-lhe. As ruas, aparentemente, cenário perfeito para o sujeito contemporâneo, serviria de refúgio tão qual uma morada entre quatro paredes. Contudo, uma morada para muitos, obrigando aos que optam por esse espaço desenvolver a capacidade criativa de fazer dela o seu porto (in)seguro. Benjamin (1989, p.194) discorre sobre a diversidade das ruas: “As ruas são a morada do coletivo. O coletivo é um ser eternamente inquieto, eternamente agitado, que, entre os muros dos prédios, vive, experimenta, reconhece e inventa tanto quanto os indivíduos ao abrigo de suas quatro paredes”. Misturam-se nas ruas, a beleza e as maléficas condições urbanas, sim, pois o sujeito movido pelos encantos da cidade visualiza o que de não tão bela nela existe, mas quer fixar-se ali. O sujeito, não tão certo do que busca na cidade, segue ao encontro do seu desejo. Nesse