Este capítulo descreve a história da mulher na sociedade brasileira, desde a repressão patriarcal até as lutas e conquistas femininas. Inicialmente, discute-se como as mulheres viviam sob um regime de submissão e passividade, onde a ideologia falocêntrica as definia e controlava. Em seguida, aborda-se a reação feminina em busca de espaço e igualdade, culminando na conquista do direito à voz e à escrita, possibilitando a independência e afirmação das mulheres.
O erotismo com representação da transgressão a afirmação da mulher contemporânea em mulher no espelho, de helena parente cunha
1. UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
COLEGIADO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E
LITERATURAS - LICENCIATURA
VIGNA DA CUNHA OLIVEIRA
O EROTISMO COMO REPRESENTAÇÃO DA
TRANSGRESSÃO: A AFIRMAÇÃO DA MULHER
CONTEMPORÂNEA EM MULHER NO ESPELHO, DE
HELENA PARENTE CUNHA
Conceição do Coité
2012
2. VIGNA DA CUNHA OLIVEIRA
O EROTISMO COMO REPRESENTAÇÃO DA
TRANSGRESSÃO: A AFIRMAÇÃO DA MULHER
CONTEMPORÂNEA EM MULHER NO ESPELHO, DE
HELENA PARENTE CUNHA
Monografia apresentada ao Departamento de
Educação, Campus XIV, da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), Curso de Letras com Habilitação
em Língua Portuguesa e Literaturas - Licenciatura,
como parte do processo avaliativo para obtenção do
grau de Licenciada em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio de Carvalho
Valverde
.
Conceição do Coité
2012
3. "A mulher é uma substância tal, que, por mais que a estudes,
sempre encontrarás nela alguma coisa totalmente nova".
Léon Tolstoi
4. AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Deus por me iluminar e me dar forças para
chegar até aqui. A toda a minha família pelo carinho e incentivo oferecido. Agradeço
também a meu orientador, Luiz Valverde, pela dedicação e competência com que
conduziu a elaboração dessa monografia.
Agradeço ainda a todos os professores que, cada um ao seu modo,
marcaram e contribuíram para a minha formação acadêmica. Enfim agradeço a
todos os meus caros colegas pelos conhecimentos e dúvidas partilhadas, pela
cumplicidade e amizades construídas, pelos momentos enriquecedores e
inesquecíveis que me proporcionaram.
A todos vocês a minha gratidão e o meu carinho eterno!
5. RESUMO
O presente trabalho tem como temática o erotismo na literatura de autoria
feminina contemporânea. Ao observarmos que essa literatura de gênero tem inscrito
em seus textos o corpo e a sexualidade feminina, o principal objetivo desse estudo é
investigar e compreender de que modo a literatura feminina utiliza o erotismo, com o
propósito de garantir afirmação e autonomia às mulheres, a partir da análise do livro
Mulher no Espelho de Helena Parente Cunha. Fundamentado em pesquisas
bibliográficas, aparecem aqui conceitos e teorias de pesquisadores como Maria José
Motta Viana (1995), Carole Pateman (1993), Mary Del Priori (2006), Joel Birman
(2001), Heliana Ometto Nardin (2000), Ivia Alves (2002), Zilda de Oliveira Freitas
(2002), Octavio Paz (1994), Elódia Xavier (1991), Alfredo Bosi (1996), Massaud
Moisés (2001), Georges Bataille (1988), Helena Parente Cunha (1999), Rita
Therezinha Schmidt (1999) entre outros. Com base em tais pesquisas conclui-se que
na obra analisada, o erotismo tem representado um mecanismo de transgressão,
liberdade e prazer para as mulheres na contemporaneidade.
Palavras-chave: Erotismo. Transgressão. Literatura feminina. Contemporaneidade.
6. ABSTRACT
The present work has as its theme the erotic into literature of contemporary
female authors. By observing that this literature of gender has inscribed in its texts
the body and female sexuality, the main objective of this study is to investigate and
understand how the female literature uses the eroticism, in order to ensure
affirmation and empower women, from the analysis of the book Woman in the Mirror
of Helena Parente Cunha. Based on literature searches, appear here concepts and
theories of researchers such as Maria Jose Motta Viana (1995), Carole Pateman
(1993), Mary Del Priori (2006), Joel Birman (2001), Heliana Ometto Nardin (2000),
Ivia Alves (2002), Zilda Freitas de Oliveira (2002), Octavio Paz (1994), Elodia Xavier
(1991), Alfredo Bosi (1996), Massaud Moisés (2001), Georges Bataille (1988),
Helena Parente Cunha (1999), Rita Therezinha Schmidt (1999) among others. Based
on these studies it is concluded that in the work analyzed, the eroticism has been a
mechanism of transgression, freedom and pleasure for women nowadays.
Keywords: Eroticism. Transgression. Women's literature. Contemporaneity.
7. SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08
1. REPRESSÃO, LUTAS E CONQUISTAS: A HISTÓRIA DA MULHER NA
SOCIEDADE BRASILEIRA 10
1.1 O patriarcalismo e a repressão sexual das mulheres 10
1.2 A reação feminina: a mulher em busca do seu espaço no cenário social 14
1.3 A escrita feminina como instrumento de libertação e inserção da mulher
na sociedade 16
2. LITERATURA E EROTISMO: UMA ÍNTIMA RELAÇÃO 19
2.1 Literatura contemporânea 19
2.2 Literatura feminina 21
2.3 O erotismo 23
2.4 O erotismo na literatura de autoria feminina contemporânea 25
3. MULHER NO ESPELHO: REFLEXOS DA MULHER
CONTEMPORÂNEA, EROTIZADA 27
8. 3.1 Mulher no Espelho: um retrato da mulher contemporânea, dividida entre
a repressão falocêntrica e a aventura da transgressão 27
3.2 O erotismo em Mulher no Espelho: uma fonte de afirmação e Felicidade 29
CONSIDERAÇÕES FINAIS 33
REFERÊNCIAS
9. 8
INTRODUÇÃO
Discutir a literatura feminina é falar de um tema atual, uma vez que a escrita
feminina só se consolida como objeto de pesquisas e análises a partir da década de
1980 e, ainda hoje, apresenta-nos um leque de aspectos e temáticas a serem
investigados. A representação da mulher na literatura tem sido uma questão
amplamente discutida nas academias de todo o país, pois, busca-se compreender
como a mulher, ficcionalmente, se inscreve dentro da sociedade contemporânea e a
relação existente entre essa ficção e as lutas pela liberdade e auto-afirmação desse
gênero.
O erotismo como representação da transgressão da mulher contemporânea é
a temática discutida nesse estudo que objetiva, em primeiro lugar, compreender de
que modo a literatura de gênero utiliza o corpo e a sexualidade para revelar as
rupturas e firmar a autonomia feminina. Tenciona-se aqui também analisar como o
erotismo possibilita a conquista da independência e da realização da mulher frente à
hierarquia falocêntrica.
Partindo do contexto histórico de submissão e passividade em que vivem as
mulheres no regime patriarcal, esse trabalho traça a trajetória das mulheres, a
reação e as lutas feministas em busca de espaço e respeito social. O presente
estudo revela que a conquista do direito à voz e o acesso à escrita possibilitaram-
lhes um grande salto em direção à independência e à afirmação feminina e que, por
meio da literatura de gênero, a mulher tem denunciado a “condição feminina” e se
rebelado contra a repressão masculina.
Essa pesquisa tem como objeto de análise o romance Mulher no Espelho, de
Helena Parente Cunha, que retrata a mulher contemporânea cheia de medos e
incertezas, mas que, mesmo assim, busca a liberdade e a realização plena dos seus
desejos. E é justamente por meio da aceitação do seu corpo e da exploração da sua
sexualidade que ela consegue concretizar os seus anseios.
Baseada unicamente em pesquisas bibliográficas, essa análise da literatura
feminina contemporânea pelo viés do erotismo apóia-se em teóricos como Ivia Alves
(2002), Zilda de Oliveira Freitas (2002), Elaine Showalter (1994), Octavio Paz (1994),
10. 9
Elódia Xavier (1991), Alfredo Bosi (1996), Massaud Moisés (2001), Georges Bataille
(1988), Helena Parente Cunha (1999), Maria Helena Mendonça (1991), Jorge de
Souza Araujo (2003), entre outros, que dão subsídio teórico para as questões
históricas e sociais abordadas no transcorrer do texto.
A partir desse estudo teórico e literário, intenta-se ao final compreender e
explicitar como e por que o erotismo tem representado, para a mulher, na escrita
feminina contemporânea, uma instância de resistência, poder e transgressão, por
meio do qual ela se liberta, realiza os seus desejos e encontra a felicidade.
11. 10
1. REPRESSÃO, LUTAS E CONQUISTAS: A HISTÓRIA DA MULHER NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
O presente capítulo se propõe a discutir a trajetória das mulheres na
sociedade brasileira, desde a repressão patriarcal, regime político-social no qual as
mulheres viviam em completa submissão e passividade, às lutas e conquistas
femininas, sua circulação no espaço público, em posição de igualdade com os
homens, alcançando o direito de poderem falar e escrever sobre si mesmas, livres
da ideologia falocêntrica, que até então, as definiam e controlavam.
1.1 O patriarcalismo e a repressão sexual das mulheres
As mulheres, historicamente, cumprem demandas e papéis que lhes são
impostos pela sociedade patriarcal. Foram séculos de repressão, durante os quais a
supremacia androcêntrica calou e subjugou a mulher. Para estas, sob a perspectiva
do olhar e dos interesses machistas, criaram-se modelos e estabeleceram-se
padrões de comportamento, a fim de sustentar a virilidade masculina e garantir a
hierarquia entre os sexos. Saffioti (2000), ao tratar da falocracia, argumenta que “[...]
esse regime não deriva de um contrato entre homens e mulheres; ele deriva de um
contrato entre homens e por isso ele é baseado no medo e no controle” (p. 22).
Viana (1995) também relata a condição de subserviência da mulher diante à
hegemonia do falo ao afirmar que
A mulher [...] não pôde fugir também à segregação imposta por uma
ideologia sexista fundada e sustentada no patriarcado, em que o homem
detém o poder e o mando sobre a função, o espaço e o desejo dela. Até a
virada desse século, essa mulher ou era a sinhazinha, [...] ou era escrava,
[...]. Piedosa, abnegada e sobretudo fiel e subserviente aos desejos e
12. 11
demandas paternas ou maritais, durante séculos essa foi a sua realidade (p.
24-5).
Essa dominação dos homens sobre as mulheres resulta, segundo Pateman
(1993), de um pacto original, um contrato “sexual-social” que institui, na sociedade,
uma ordem patriarcal moderna.
O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é sexual no
sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens
sobre as mulheres –, e também sexual no sentido do estabelecimento de
um acesso sistemático dos homens aos corpos das mulheres (p. 17).
Ao abordar o patriarcalismo a autora trata desse sistema como um “conceito
que se refere especificamente à sujeição da mulher, e que singulariza a forma de
direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens” (p. 39).
Assim, sob o comando masculino, excluídas do cenário social, sem acesso à
educação e ao mercado de trabalho, não restava, às mulheres, alternativa senão
submeter-se à vontade dos pais e maridos, respeitando-os e reverenciando-os.
A sociedade patriarcal determinou padrões de comportamento e estabeleceu
os espaços em que as mulheres deveriam atuar. Dessa forma, para ser aceita e
respeitada no meio social, a mulher deveria corresponder à imagem de inocência e
sujeição e deter-se no cumprimento dos encargos a ela atribuídos, na sua condição
de “rainha do lar”. De acordo com Alves (2002), “Estas imagens são construídas
como modelo com a finalidade de controlar o comportamento da mulher que vai se
inserir no espaço doméstico (a virgem pura e a mãe de família)” (p. 85).
Restringida ao ambiente familiar, a mulher vivia, segundo Del Priori (2006),
numa situação de “[...] escrava doméstica exemplarmente obediente e submissa.
Sua existência justificava-se por cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa e servir ao
chefe da família com o seu sexo” (p. 22). O casamento e a maternidade eram as
principais funções femininas, para as quais eram moldadas. A fidelidade, a
passividade e a castidade eram os requisitos essenciais para a configuração da
mulher ideal - esposa e mãe assexuada. A essas constatações, de como se
configurou o ser feminino, Viana (1995) acrescenta que
13. 12
[...] reservaram-se para a mulher características ditas naturais, como
passividade, submissão, fragilidade, menor capacidade de raciocínio e
maior emotividade. Essas características, ao serem ora aceitas, ora
rejeitadas pela mulher, contribuíram para fazer dela o lugar dos paradoxos.
Se as aceitava, estava cumprindo a contento o papel de abrigo do divino,
lugar de repouso do desejo do outro [...] (p. 13).
O patriarcalismo sempre teve a seu favor instrumentos como a Igreja Católica,
com seus sermões e manuais de comportamento, a literatura e o Estado que muito
contribuíram para a “educação” feminina. Segundo Del Priori (2006), “A esposa
devia amar o companheiro ‘como fazem as boas, virtuosas e bem procedidas
mulheres de qualidade’, explicava um juiz eclesiástico em pleno século XVIII” (p. 24).
A autora cita ainda trechos de manuais e guias de casamento escritos pela Igreja, a
fim de garantir a disciplina e a boa conduta das mulheres na relação conjugal.
“O marido é a cabeça da mulher, e os membros devem acomodar o mal da
cabeça se o há”, insiste um desses manuais. Extensão orgânica da vontade
masculina, da razão do esposo, cabia à mulher obediente acudir-lhe os
males, os desmandos e os desvarios. [...] “A mulher deve amar seu marido
com respeito, e o marido deve amá-la com ternura” [...].“É o homem que
deve mandar, a mulher somente criada para obedecer [...]” (p. 28-9).
A Igreja regulamentou a união matrimonial heterossexual sem prazer e com
fins exclusivamente reprodutivos. Controlava a prática sexual dos cônjuges no
casamento, determinava as posições “certas” e proibia o uso de métodos
contraceptivos. A continência dos desejos, principalmente os das mulheres, era um
dos maiores desígnios da Igreja que pretendia domesticar o “amor-paixão” e
assegurar o recato e a submissão feminina aos interesses androcêntricos.
O instinto sexual não controlado pelas regras do casamento se
transformava em luxúria e paixão nas páginas de moralistas. Ou em doença
grave, nas teorias médicas da época. Ao ordenar as práticas sexuais pelos
campos do certo e do errado, do lícito e do ilícito, a igreja procurava
controlar justamente o desejo (DEL PRIORI, 2006, p. 23).
Dessa forma, o cristianismo, segundo Foucault (2006), encontrou um meio de
“controlar os indivíduos através de sua sexualidade, concebida como alguma coisa
da qual era preciso desconfiar, alguma coisa que sempre introduzia no indivíduo
14. 13
possibilidades de tentação e de queda” (p. 27). Assim, garantiu-se a obediência e a
perpetuação dos desígnios patriarcais.
Nesse sentido, é possível observar que a repressão dos desejos sexuais
femininos foi sempre uma das principais preocupações do androcentrismo. Nesse
sentido, Saffioti (2000) afirma que “a primeira coisa na qual o regime pensa é no
controle da sexualidade feminina. [...] o regime patriarcal controla a sexualidade
feminina.” (p. 22). Para esse sistema social, a única função da sexualidade feminina
era a procriação e, de acordo com Birman (2001), “tudo que pudesse interferir, ou
até mesmo competir com a finalidade reprodutora seria uma ameaça para a
sociedade [...]” (p. 63). Por isso, segundo Kehl era “preciso coibir, inibir, refrear, de
modo a desenvolver nela o pudor e o recato sexuais [...]” (p. 12). Assim, para as
mulheres, a relação sexual se efetuava desvinculada do prazer erótico, cumprindo
apenas os propósitos da maternidade.
À mulher, era negada a realização dos seus desejos e do prazer sensual, pois
estes eram vistos como pecado e imoralidade. Nessa perspectiva, Birman (2001) diz
que “O erotismo feminino era concebido como essencialmente perigoso, pela
ameaça de desordem que representava” (p. 64), e acrescenta que
A mulher desejante passou a figurar, assim, uma possibilidade real para o
Mal e para o desvio social, na medida em que, enquanto sustentação do
desejo, estaria se deslocando do reto caminho da maternidade e da mulher
virtuosa (p. 65).
Com uma vida de subserviência e repressão, presa às prescrições da
sociedade falocêntrica, a mulher viu seus anseios e aspirações serem refreados e
aquelas que se opusessem às atribuições (de esposa e mãe) a que eram destinadas
e liberassem o seu desejo erótico, vivendo plenamente a sua sexualidade, eram
descriminadas, encaradas como a encarnação do mal, relegadas à prostituição ou
mesmo consideradas loucas, histéricas. Nesse sentido, Birman (2001) relata que
[...] as mulheres que fugiam e se desviavam do reto e sagrado caminho de
maternidade eram ativamente culpabilizadas, moralmente diminuídas em
seu valor e até mesmo criminalizadas pela assunção de outras figurações
sociais (p. 75).
15. 14
Entretanto, é justamente a partir dessa imagem de mulher que se rebela
contra os padrões patriarcais e assume o seu erotismo, que o feminino começa a
configurar a sua estratégia de ruptura e transgressão ao sistema opressor vigente.
1.2 A reação feminina: a mulher em busca do seu espaço no cenário social
Apesar da longa e severa história de repressão vivida pelas mulheres, elas
não permaneceram inertes diante de tantas imposições e humilhações. Nesse
contexto, emergem figuras femininas que tentam resistir e burlar as proibições a fim
alcançar os seus objetivos e realizar seus desejos. Surge aí, a tentativa de
subversão dos modelos recebidos e a construção de novos valores capazes de
garantir à mulher a liberdade de escolha e de expressão.
Mesmo excluídas do meio social, condenadas a exercer papeis marginais
dentro da sociedade, as mulheres não se encerraram pacífica e voluntariamente nas
paredes do lar, pelo contrario, elas demonstraram resistência e buscaram
alternativas para driblar esse controle institucional. Essa luta por direitos sociais e
igualdade entre os sexos só se expande a partir da inserção da mulher no mercado
de trabalho. De acordo com Nardin (2000), “é pelo trabalho, pela profissionalização
que ela cobre em grande parte a distância que a separa do homem, [...] só o
trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta” (p. 62). Desse modo, o acesso
ao espaço público e aos recursos econômicos possibilitou a esse gênero uma
mudança nas atribuições familiares e a elaboração de paradigmas que questionem e
redefinem a supremacia masculina. Nardin (2000) complementa tais informações ao
sustentar que
Somente no século XX, depois de séculos de construção ocidental da
civilização judaico-cristã, de submissão da mulher ao modelo masculino de
poder que lhe impede de sair da imanência e da tutela, é que a mulher pela
profissionalização, utilizando o mesmo instrumental que o homem para
pensar e se construir, impõe à sociedade direitos iguais aos do homem,
afirma-se como semelhante em seus projetos de vida e ação política (p. 68).
16. 15
Mesmo submetendo-se a duras e precárias condições de trabalhos, com
serviços pesados, irregulares e mal remunerados, as mulheres, principalmente as de
classes menos favorecidas, sempre trabalharam e lutaram por melhores condições
de vida. Entretanto, essa possibilidade de adentrar num cenário (social e trabalhista)
que até então era restrito a atuação masculina, só se concretizou a partir do
desenvolvimento científico e industrial. Tais avanços melhoraram as circunstâncias
laborais, alargaram as oportunidades à mão de obra feminina e, ainda, permitiu às
mulheres o poder sobre seus corpos, já que, com o surgimento da pílula
anticoncepcional, a maternidade deixou de ser uma fatalidade e estas conquistaram
o direto de escolha e decisão dos seus destinos. Nesse sentido, Nardin (2000)
argumenta que
A ciência e a indústria ocidentais libertaram as mulheres dos trabalhos
tediosos e do perigo. A pílula neutraliza a fertilidade. Parir não é mais fatal.
Considera que a linha apolínea de racionalidade ocidental produziu a
agressiva mulher moderna, que pode pensar como o homem e escrever
livros desagradáveis (p. 71).
Nessa lenta e árdua batalha por direito a uma vida pública, a um novo lugar e
uma nova identidade, a mulher começa a organizar o seu discurso por meio do qual
se contrapõe às imagens e aos parâmetros estabelecidos pelos homens e reivindica
os direitos do sexo feminino.
Aos poucos foram se levantando vozes de protesto contra a subordinação da
mulher. É, principalmente, a partir da década de 60 que vozes femininas se
organizam e se fazem ouvir através de reivindicações e declarações públicas e,
mesmo a altos custos, as mulheres, a partir dessa década, começam a se
"enxergar" como tal e reclamar autonomia, respeito e liberdade. Brigaram enfim,
para tornarem-se sujeitos atuantes no processo de criação de seu próprio discurso
e, consequentemente, da sua própria vida, ou seja, exigiram uma posição de
igualdade em relação aos homens.
Considerando tais lutas, anseios e progressos, Viana (1995), afirma que a
mulher
[...] passa agora a revelar-se, mais do que isto, revelar-se a si mesma,
através dos diversos caminhos sócio-culturais e políticos. Do confinado
17. 16
espaço das cozinhas e alcovas, espalha-se e se apossa também das salas,
varandas, jardins e do resto dividindo com os homens espaços, ocupações
e principalmente linguagens que lhe eram antes inacessíveis (p. 13).
Ao investir-se de voz, a mulher se insere no processo histórico, do qual, por
muito tempo, foi excluída, já que, até então, a história era construída e centrada no
homem. Dessa forma, ao ter acesso à fala e à escrita, esse gênero abre espaço
para se discutir a condição feminina de marginalizada e dominada, além de buscar a
afirmação da identidade e a reafirmação dos valores e desejos femininos.
1.3 A escrita feminina como instrumento de libertação e inserção da mulher na
sociedade
Desprovida de linguagem própria, a mulher sempre se viu configurada e
escrita pelo olhar e pelas mãos masculinas. O comportamento e posturas
estabelecidos pelo homem eram internalizados pelas mulheres que se resumiam a
desempenhar o papel do outro, ou seja, não eram tidas como sujeitos providos de
direitos e vontade individual, mas, ao contrário, atendiam, unicamente, aos
interesses e conveniências do sistema falocêntrico. Somente a partir do momento
em que a mulher torna-se consciente da precária condição feminina e se reconhece
como um ser capaz de se auto-definir, é que ela começa a transpor os limites
sociais, se engajando então, num movimento de construção de uma nova identidade
e de um novo destino. Para Viana (1995),
Essa ampliação do espaço feminino torna-se viável à medida que a mulher
toma posse da linguagem, [...] À medida que a mulher não reivindica para si
o direito à fala, no sentido político-ideológico que o sistema lingüístico
envolve, e não consegue ser ouvida, não pode também ser percebida como
ser dotado de razão, potencial de trabalho e sensibilidade discernente (p.
13-4).
Ainda segundo essa autora, “[...] a apropriação da escrita significou uma
revolução no âmbito sócio-cultural e psicológico da mulher. O reapropriar-se da
palavra viabiliza a quebra de um institucional e codificado silêncio feminino” (p. 33).
18. 17
Dessa forma, fica claro que é, essencialmente, por meio da escrita que a mulher
começa a se mostrar, a se construir como ser social, pensante, apto a falar o que é e
o que quer, livre dos modelos masculinos que lhes foram predeterminados.
Ao tratar da escrita feminina, Freitas (2002), explica que os passos mais
consistentes em direção à libertação e autonomia feminina foram dados no século
XX, a partir das lutas feministas. Dentre as conquistas alcançadas por essa classe, a
introdução das mulheres no cenário literário parece ser uma das mais importantes,
pois a escrita representou para estas a oportunidade de falar tudo o que por muito
tempo foi silenciado, de escrever o que não podia ser escrito.
A narrativa feminina neste período vai mostrar a insatisfação da mulher com o
lugar de submissão, apresentando assim, questionamentos aos valores impostos
pelo patriarcalismo dominante, mostrando, muitas vezes, o conflito entre ser a dona
do lar e a realização do desejo de liberdade e independência, reconhecendo e
reconstruindo, desse modo, a sua própria feição.
A literatura não é para as mulheres uma simples transgressão das leis que
lhes proibiam ao acesso à criação artística. Foi, muito mais do que isso, um
território liberado, clandestino. Saída secreta da clausura da linguagem e de
um pensamento masculino que as pensava e descrevia in absentia. [...] a
literatura feminina é mais um registro escrito do inconformismo da mulher
àquelas leis (FREITAS, 2002, p. 119).
Freitas (2002) esclarece ainda que “A criação artística e, sobretudo, a
literatura, [...] abre para a mulher uma fenda na muralha, revolve o estagnado
cenário cultural masculino, apresenta-a a este mesmo cenário” (p. 121). Assim, para
a autora, “[...] a mulher que escreve estabelece seu mundo imaginário, procurando
dizer de si mesma aos outros e propondo maneiras inovadoras de estar e de fazer”
(p. 120).
Esse desejo de revelar-se e de conquistar autonomia e liberdade é firmado e
tematizado pela literatura de autoria feminina, na qual a representação do mundo é
feita pela ótica feminina, o que difere da autoria masculina, na medida em que é a
mulher que se compõe, recompõe e se impõe à hegemonia do falo.
A construção identitária de uma escrita propriamente feminina é um processo
necessário para desfazer as condições repressoras que lhes eram impostas e
construir uma nova imagem de mulher. Se opondo aos moldes estabelecidos pela
19. 18
literatura clássica patriarcal, as personagens das narrativas de gênero são mulheres
transgressoras, que tentam, a qualquer preço, transpor as regras e viver além dos
limites infligidos pelo poder masculino.
Tais personagens, assim como as suas autoras, reclamam o direito a um
espaço na esfera pública, um lugar onde possam ser vistas e ouvidas, livres da
ideologia patriarcal. De acordo com Viana (1995), a escrita se apresenta a essas
mulheres como a melhor e mais acessível “forma de se apropriarem do discurso,
domínio e campo do masculino” (p. 26), para então, conquistarem tal espaço tão
merecido e desejado.
Em suma, é notório que, ao apropriar-se da linguagem e da escrita e,
somente através de tais recursos, a mulher consegue, enfim, adentrar o espaço
público, quebrar barreiras e assegurar para si uma posição de respeito e autonomia
em ralação aos homens. Entretanto, sabe-se também que muitas lutas precisam
ainda ser travadas e vencidas para que estas mulheres alcancem de fato “um lugar
ao sol” na sociedade que, até hoje, preserva conceitos e valores da hierarquia
masculina.
Por fim, é cabível ressaltar que, apesar de toda a opressão vivida pelas
mulheres, estas lutaram incansavelmente por liberdade e autonomia, buscaram um
espaço digno onde pudessem sair da tutela e se tornarem independentes, capazes
de construir a própria identidade e de determinarem seu destino. Foi através do
trabalho e da escrita que o feminino começou a transgredir e desconstruir os
padrões patriarcais para enfim alcançar um lugar de respeito e destaque na esfera
pública. Contudo, é bem verdade que há ainda um longo caminho a ser percorrido e
muito a ser discutido e conquistado para que as mulheres possam, efetivamente, se
realizarem como sujeitos autônomos e libertos das imposições sociais.
20. 19
2. LITERATURA E EROTISMO: UMA ÍNTIMA RELAÇÃO
Abordando aspectos da literatura contemporânea e da literatura feminina,
tenciona-se, neste capítulo, discutir a relação existente entre literatura e erotismo,
considerando o erótico como um instrumento de transgressão e liberdade, já que,
autoras contemporâneas têm usado esse artifício para construir suas histórias,
revelar seus desejos e opor-se à “condição feminina”.
2.1 Literatura contemporânea
Em um contexto social de pós-guerra, marcado pela evolução tecnológica e
industrial, pelo capitalismo e por diversas crises no meio político e econômico,
emerge, no Brasil, uma geração insatisfeita e contestadora, capaz de provocar e
promover profundas mudanças sócio-culturais. Novas ideias, novos desejos, novas
tendências, subjazem o período contemporâneo que começou a configurar-se
depois da década de 30 e se prolonga até os dias atuais.
Pode-se definir contemporâneo como aquilo que pertence ao tempo do qual
se fala, ao tempo atual. Nesse sentido, Bosi (1996, p. 383) afirma que “O termo
contemporâneo é, por natureza, elástico e costuma trair a geração de quem o
emprega”. E acrescenta que “Somos hoje contemporâneos de uma realidade
econômica, social, política e cultural que se estruturou depois de 1930” (BOSI, 1996,
p. 383).
Ao tratar da geração contemporânea, Moisés (2001) diz que essa “Geração
nascida sob o signo da análise, não poderia deixar de manifestar-se de modo
relevante no específico terreno da crítica” (p. 291). Provindos da rebeldia, da
vontade de mudança e da busca por soluções para os problemas da sociedade
moderna, os contemporâneos exprimem, principalmente nas manifestações
21. 20
artísticas, essa procura por novos caminhos e a ruptura com valores tradicionais,
revelando, então, de forma crítica e sarcástica, a realidade de um país sufocado pela
repressão e desigualdade social. Nesse contexto, a literatura revela-se um
significativo instrumento para a quebra de conceitos e padrões ultrapassados, e à
afirmação desse novo tempo marcado por transformações de cunho social, histórico,
cultural e psicológico.
Em se tratando da literatura como veículo de mudanças e da influência que as
tendências contemporâneas exerceram sobre essa e as demais artes, Moisés (2003)
argumenta que “[...] as mudanças em curso no pós-guerra recobrem praticamente
todas as modalidades do fazer literário” (p. 339). E Bosi (1996) relata ainda que “[...]
as obras [...] de 30 a 40 e a 50 mostram à sociedade que novas angústias e novos
projetos enformavam o artista brasileiro e o obrigava a definir-se na trama do mundo
contemporâneo” (p. 385).
A partir de tais concepções é possível afirmar que a produção literária
contemporânea reflete a realidade de uma época repleta de mudanças, novidades,
conflitos e incertezas, uma época em que tudo é muito inconstante e liquefeito.
O fazer literário na contemporaneidade é marcado por formas mais diretas e
complexas de observar e representar o cotidiano e as relações sociais da vida
moderna. O homem em sociedade é apresentado com todos os seus embates
pessoais, suas buscas, anseios, escolhas e dúvidas. São esses os temas que
definem o percurso e postura dos personagens da literatura brasileira atual. Para
Bosi (1996), o
[...] caráter próprio da melhor literatura de pós-guerra é a consciente
interpenetração de planos (lírico, narrativo, dramático, crítico) na busca de
uma “escritura” geral e onicompreensiva, que possa espelhar o pluralismo
da vida moderna; [...] (p. 388).
Enfim, podemos constatar que a literatura contemporânea espelha a
multiplicidade e as turbulências da sociedade moderna, uma sociedade que ainda se
encontra em processo de formação e transformação. A literatura desse período
traduz, principalmente, os sentimentos e as contradições vividas por sujeitos que
desejam se reencontrar, se redefinir e se autoafirmar numa época em que os valores
são movediços e os conceitos indefinidos.
22. 21
2.2 Literatura feminina
As mudanças e inovações sócio-culturais ocorridas no âmbito da
contemporaneidade possibilitaram a mobilidade de grupos que, até então, eram
excluídos e silenciados pela sociedade. Tais grupos passaram a brigar para serem
vistos e ouvidos como sujeitos integrantes do todo social e, aos poucos, com muita
luta, a margem tem conquistado espaço e visibilidade ante as classes dominantes.
Dentre estes grupos que buscavam inserção e ascensão social, as mulheres
se destacam com suas ideias feministas, que tomaram vulto na década de 70.
Considerando Schmidt (1999), pode-se afirmar que o feminismo é um movimento
social que
[...] se engaja na crítica cultural, teórica e epistemológica em curso, a partir
da passagem dos sujeitos sociais femininos construídos no campo da
experiência histórica, para o âmbito dos processos de produção de
conhecimento, nas diversas áreas [...] (p. 29).
Nesse sentido, cabe acrescentar que o intuito primeiro do feminismo é a
construção de novos conhecimentos e a ressignificação da história e da condição
das mulheres, a fim questionar e repensar a realidade social do feminino. É sabido
então, que é, a partir desses ideais feministas, que as mulheres passam a produzir e
divulgar, em maior escala, a “literatura feminina”.
Pautada na desconstrução de ideologias patriarcais e na valorização do
discurso feminino que, durante muito tempo foi negado, a escrita da mulher, de
acordo com Schmidt (1999),
[...] constitui um movimento de resistência ao paradigma de essencialismo,
homogeinização e universalismo que sustenta a institucionalização da
literatura e que subjaz às noções vigentes de tradição e cânone literário, [...]
herdados e legitimados na cultura patriarcal” (p. 36).
Essa literatura, escrita e centrada na mulher, reivindica a visibilidade desta
como sujeito capaz de pensar e de falar por si mesma, capaz de se reconstruir
23. 22
independente dos padrões e papeis sociais que a hegemonia masculina lhes
instituiu.
Ao examinar-se a produção literária da mulher brasileira a partir da década de
70, pode-se observar que as escritoras contemporâneas estão, a cada dia,
construindo um espaço literário, onde as vozes que se ouvem são, realmente,
femininas, libertas dos parâmetros determinados pelo discurso falocêntrico que, por
muito tempo, configurou o comportamento e a imagem da mulher.
Nessa perspectiva, Freitas (2002) salienta que é ao reconhecer-se como
diferente do homem que a mulher passa a produzir uma escrita essencialmente
feminina, revelando nela o seu universo, sua experiência histórica e sócio-cultural.
Ainda segundo essa autora, “Ao afastar-se do estilo masculino, assumindo sua
inexperiência e imperfeição, a mulher encontra o seu verdadeiro jeito de escrever. O
universo masculino é olvidado, para que se instaure o feminino” (p. 121).
Sobre essa literatura caracteristicamente feminina, Xavier (1991) constata que
“A condição da mulher, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento
estruturante nesses textos; não se trata de um simples tema literário, mas da
substância mesma de que se nutre a narrativa” (p. 11), ou seja, as experiências e os
sentimentos vividos pelas mulheres são elementos inerentes às construções
literárias feita por elas. Ainda considerando essa autora, podemos compreender que
a representação do mundo feita pela ótica feminina difere daquela feita pelo olhar
masculino, pois é construída a partir de uma perspectiva e de uma condição de vida
diferente, especial, desprovida dos privilégios que a falocracia, durante muito tempo,
assegurou aos homens.
Essa “condição feminina” é narrada, em seus textos, por meio de uma voz
que emerge do corpo e do imaginário feminino e revela um discurso contra-
ideológico, que vem sendo organizado pelas mulheres com a finalidade de encontrar
uma linguagem autêntica, capaz de expressar essa nova mulher e construir para
esta, uma nova identidade.
Uma escritura autônoma e autenticamente feminina revela a forma singular da
mulher pensar e sentir, reflete as incertezas e os desejos dessas escritoras que
buscam a auto-afirmação e o reconhecimento da sua presença, do seu discurso e do
seu espaço no meio histórico-social em que vivem. Sobre essa liberdade e
24. 23
realização literária que a mulher anseia e, aos poucos, vem conquistando, Freitas
(2002), diz que
[...] a escrita feminina é justamente este livre expressar-se do universo
feminino, paralelo ao masculino, sem imitá-lo, mas também sem
desconhecê-lo. A realidade da produção literária do nosso século opõe os
contrários, sem que a mulher precise adotar o estilo do elemento masculino
dominador, mantendo a sua natureza feminina (p. 122).
Assim, fica perceptível que a literatura de autoria feminina vem alcançando
independência, visibilidade e respeito num cenário em que os paradigmas ainda são
androcêntricos e o cânone literário, predominantemente masculino.
2.3 O erotismo
Na etimologia, do erotismo encontramos a palavra grega “Eros” que significa
amor. Atualmente, o erotismo está muito mais relacionado à sexualidade do que à
afetividade da ligação amorosa. São muitas as definições que os dicionários
atribuem ao erotismo (manifestação do amor sensual, da sexualidade; estado de
excitação sexual; liberação dos desejos sexuais etc.), todas voltadas para a relação
sexual humana. Entretanto o conceito de erotismo vai muito além de tais descrições
e o significado desse termo, apesar de ser amplamente discutido por teóricos e
pesquisadores, não é algo fechado, concreto ou definitivo.
É bem verdade que ao falarmos em erotismo, imediatamente, relacionamo-lo
à prática sexual, contudo é importante assinalar que “[...] o erotismo não tem por
objeto o enfoque do ato sexual em si, mas a infinita gama de matizes sensuais que
presidem a intimidade entre os sexos” (FRANCONI, 1997, p. 17).
O erotismo faz parte da natureza humana, é uma forma de expressão que vai
além do comportamento sedutor, é algo instintivo e espontâneo que busca, na sua
existência interior, superar os limites, quebrar leis e restrições sociais, alcançando
assim um estado de realização plena do sujeito. Nesse sentido, Bataille (1988)
afirma que
25. 24
O Erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Se não damos
conta disso, é porque o Erotismo busca incessantemente fora dele um
objeto de desejo. Esse objeto, contudo, corresponde à interioridade do
desejo [...] O Erotismo é, na consciência do homem, o que leva a pôr o ser
em questão (p. 25).
O erotismo é uma constante em todos os homens, ao mesmo tempo, o
contexto sociocultural instalou controle e proibições em sua vivência, configurando-o,
assim, como algo ilícito que deve ser negado e ocultado. Nessa perspectiva
podemos adotar o conceito de erotismo proposto por Bataille (1988), que o
compreende como um contraste aos comportamentos e juízos habituais. Podemos
então, utilizar as suas palavras, quando diz que “o erotismo deixa transparecer o
avesso duma fachada, cuja correta aparência nunca é desmentida: nesse avesso se
revelam sentimentos, partes do corpo e modos de ser de que vulgarmente temos
vergonha” (p. 85).
Desse modo, podemos enxergar o erotismo como um dispositivo de
resistência que traça caminhos transgressores, capaz de escapar da vigilância e do
poder disciplinador que regula comportamentos, dentro de uma moral que
estabelece o permitido e o proibido, na qual os sujeitos são conduzidos a enquadrar
suas sexualidades. Enfim, podemos compreender que o erotismo possibilita ao
sujeito exprimir suas subjetividades.
Sendo o erotismo um mecanismo de manifestação da consciência e dos
desejos humanos, é ele o elemento que difere a sexualidade do homem, da animal.
De acordo com Paz (1994), o erotismo é uma ação específica do ser humano, é um
movimento que desvia ou muda o impulso sexual reprodutor e transforma-o em uma
representação. “O erotismo é a dimensão humana da sexualidade; aquilo que a
imaginação acrescenta à natureza” (p. 104). Fica evidente assim que o erotismo está
muito mais relacionado ao aspecto psicológico, às fantasias, aos desejos, à
sensualidade, do que à realização física e rudimentar do ato sexual humano.
Por fim, pode-se entender erotismo como a manifestação dos anseios mais
íntimos do sujeito, ao passo que, possibilita a este, quebrar regras e se libertar de
amarras sociais que regulamentam e controlam a pratica sexual. Por ser uma forma
de representação de sentimentos e emoções, o erotismo é também um instrumento
de transgressão, afirmação e autonomia do homem diante da sociedade e da vida.
26. 25
2.4 O erotismo na literatura de autoria feminina contemporânea
Com o intuito de desconstruir os padrões androcêntricos e se auto-afirmar, as
escritoras contemporâneas, passaram a imprimir em seus textos a nova face da
mulher questionadora, transgressora, que mesmo repleta de medos e dúvidas,
revela suas insatisfações e seus desejos, dá visibilidade a seu corpo. De acordo com
Freud (1908 apud Showalter 1994) “[...] os sonhos e desejos insatisfeitos das
mulheres são sobretudo eróticos; estes são os desejos que formam os enredos da
ficção feita por mulheres” (p. 42).
Por ter sua sexualidade reprimida e controlada durante séculos pelo sistema
patriarcal, a mulher na contemporaneidade, em meio às reivindicações e
transformações desse período, tomou para si o domínio do seu corpo e da sua
vontade. Nesse sentido, sua produção literária começa a revelar o anseio pela
realização plena do prazer erótico. Cunha (1999) ressalva a importância das
mulheres terem ousado a falar de si mesmas, dos seus desejos e fantasias, para
ela, “[...] ao retomarem o caminho do prazer rejeitado pela dominação falocêntrica,
atuam em nome de Eros, não da força do falo falocêntrico. A fala da mulher sai
finalmente do silêncio imposto para falar do seu corpo e do seu desejo” (p. 168).
A literatura feminina contemporânea ultrapassa os limites preestabelecidos,
busca novos caminhos e reclama para as mulheres o direito de decidirem seus
destinos. Nessa procura por auto-definição e independência, reivindicam,
principalmente, a realização livre e prazerosa da sua sexualidade, o que por tanto
tempo lhes foi negado. O desejo sexual feminino é concebido, na escrita de gênero,
como uma instância de liberdade e poder. Em relação a essa transgressão feminina
de viver e expor o seu erotismo, Cunha (1999) diz que
Angélica Soares ao se referir ao discurso transgressor e libertário da
sexualidade feminina, aponta-o como lugar da ressingularização da
experiência erótica, instaurando assim novas modalidades de valorização
relativas à subjetividade e à socialidade (CUNHA, 1999, p. 168).
A vivência plena dos desejos eróticos representa para as mulheres a
superação das regras que lhes eram impostas e a afirmação de sua autonomia, do
27. 26
seu poder de escolha e decisão. É por meio da aceitação e exploração do seu
erotismo que as mulheres, tanto as da ficção quanto as reais, tornam-se donas dos
seus corpos e senhoras da própria vontade. Sendo assim, a literatura erótica
brasileira de autoria feminina possibilita, através da recriação do erotismo, a
formação de uma nova consciência feminina, enquanto percepção de si mesma e da
sociedade.
O erotismo como elemento estruturante na literatura feita por mulheres reflete
a ressiginificação da condição feminina na sociedade e a sua realização erótica. Ao
inscrever experiências e aspirações eróticas em sua produção literária a mulher
proclama a emancipação e liberdade sexual. Conforme Cunha (1999), “[...] se pode
considerar a liberação do desejo como uma das modalidades de ultrapassar as
limitações impostas pelo jugo da razão [...]” (p. 162).
Essa nova moral erótica, ousada e liberta, apresentada na literatura feminina
contemporânea, surge a partir da participação das mulheres no cenário público,
onde começam a experimentar a igualdade de direitos entre os sexos.
Parafraseando Paz (1994), podemos dizer que a finalidade do erotismo é a
dominação do sexo e a sua inserção na sociedade. Então, fica claro que, por meio
do resgate do seu prazer erótico, proibido pela civilização machista, a mulher
conseguiu quebrar silêncios e, em parte, conquistar independência e
reconhecimento social.
Para concluir podemos afirmar que essa transgressão feminina de falar sobre
suas insatisfações e seus desejos mais íntimos tornou-se possível graças às
transformações trazidas pela contemporaneidade. Foi nesse período que a literatura
feminina conseguiu se firmar e se expandir como uma arma feminista na luta contra
uma sociedade regida por valores falocêntricos. Ao estampar o erotismo em sua
produção literária, as mulheres mostraram ousadia e coragem nessa árdua batalha
por autonomia e liberdade, uma batalha que ainda está em curso e não tem previsão
para findar.
28. 27
3. MULHER NO ESPELHO: REFLEXOS DA MULHER CONTEMPORÂNEA,
EROTIZADA
Relatando a trajetória da protagonista de Mulher no Espelho, este capítulo
propõe-se a analisar como essa personagem, vivenciando os conflitos da mulher
contemporânea, conseguiu, através da realização erótica, transgredir, conquistar
liberdade e prazer. Intenta-se aqui também o estudo da presença do erotismo na
obra supracitada e a observância de como ele tem possibilitado a redefinição
identitária da mulher, proporcionando-lhe mais autonomia e felicidade.
3.1 Mulher no Espelho: um retrato da mulher contemporânea, dividida entre a
repressão falocêntrica e a aventura da transgressão
O romance Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha, publicado em
1985, retrata a mulher contemporânea que, mesmo estando ainda presa e
atormentada pelo regime falocêntrico, busca incessantemente uma redefinição
identitária e independência.
Essa obra conta a história de uma mulher inominada (o que demonstra que
esta pode ser a história de qualquer mulher) de quarenta e poucos anos, que até o
momento da narrativa, viveu na mais absoluta “submissão passiva”. Vinda de uma
família nuclear burguesa, chefiada por um pai autoritário que, com um poder
supremo, aniquila sua liberdade, impõe padrões de comportamento, limita seus atos
e suas perspectivas e define quem ela deverá ser, seguindo o modelo androcêntrico,
que se repete após se casar com um homem também prepotente, com quem tem
três filhos. Vemos aí a imagem da mulher fragmentada que tenta lidar com essa
repressão acumulada durante anos e controlar seus conflitos pessoais. É em frente
aos espelhos e através do diálogo com seu alter ego que a protagonista começa a
29. 28
se questionar quem é, e o que quer. Dividida entre a ordem patriarcal e seus desejos
ainda não assumidos, a personagem revela a necessidade da reinvenção da
identidade feminina e da redefinição do seu papel na sociedade.
Cunha (1999), ao teorizar “aspectos da literatura de autoria feminina”, analisa
Mulher no Espelho e relata a trajetória da sua personagem
A personagem nasceu em tradicional família da Bahia, regida pelo pai
implacável que proibia a menina de brincar com meninos e com gente preta
[...] Casou-se com um homem herdeiro dos mesmos preconceitos e
formalismos do pai e, após vinte e tantos anos de união e dedicação ao
marido e aos três filhos, se viu abandonada e só. Decidiu então viver o lado
rebelde e passou a praticar toda ordem de transgressões, [...] relacionando-
se com muitos homens, inclusive casados e, por fim, apaixonando-se por
um negro, dançarino de música afro-baiana e seguidor do candomblé (p.
157-8).
Ainda, nessa perspectiva analítica, a autora afirma que esse romance
[...] constitui um [...] exemplo do sujeito ambíguo e deslizante, dividido em
extremos opostos, entre os quais a protagonista oscila, sem saber quem é.
De um lado está a representação do eu fiel ao paradigma falocêntrico,
enquanto no oposto se encontra a representação antitética (p. 157).
A dupla identidade da personagem resulta numa reflexão sobre a mulher
contemporânea, deslocada, que já não aceita as imposições da sociedade patriarcal,
porém ainda não consegue transgredir e viver plenamente a sua liberdade e
autonomia. Por isso se enfrentam, se questionam, se criticam e se distanciam.
Eu sou eu. Ela é ela. Extrovertida e alegre, ela. Fechada e séria, eu. Ela se
descerra, eu me concluo. [...] Ela e eu, trança de não de sim de talvez.
Aceitei que meu pai gostasse mais de meu irmão. Aceitei que meu marido
não permitisse que eu saísse sozinha. [...] Aceitei, aceitei, risco e perda,
solitário ganho. Ela fugia da casa dos pais, nunca se casou, conheceu
muitos homens. Triunfo e perigo, solitária perda. O que é mais autêntico?
Bradar não, com estardalhaço? Sussurrar sim, em surdina? (CUNHA, 2003,
p. 23-4).
O confronto travado entre as duas faces da mesma personagem – “[...] uma
extremamente reprimida e outra excessivamente liberal; esta última existindo na
30. 29
imaginação da primeira [...]” (MENDONÇA, 1991, p. 25) - reflete as contradições
vividas pela mulher, dividida entre o que é e o que quer ser.
Essas imagens contraditórias que se projetam nos espelhos só se
reencontram e se completam quando a protagonista resolve enfrentar os seus
medos, se rebelar contra os papéis que a sociedade lhe impôs e assumir os seus
desejos, vivendo plenamente a independência conquistada.
A partir de então ocorre uma transformação,
[...] a mulher reprimida transforma-se na mulher liberal, mais instintos que
consciência; [...] a mulher reprimida aprendeu a rir sem medo, assumiu a
profissão de escritora, conseguiu seu orgasmo, experimentou, enfim, uma
outra vivência, na qual os condicionamentos, preconceitos e complexos,
impostos desde a infância, emergem do inconsciente, diluindo-se pelo
simples reconhecimento (MENDONÇA, 1991, p. 25-6).
Tais mudanças acontecem somente quando essa mulher aceita a sua
sexualidade e se entrega à realização do desejo erótico.
Ora, eu que durante toda a minha vida procurei agir e reagir como se não
tivesse sexo, envergonhada e confusa quando estremecia por causa de
cenas eróticas em filmes ou livros, eu, a mãe de família exemplar, a filha
obediente e abnegada, a esposa casta e cheia de virtudes, eu, a tímida e
pura, a inocente e a ingênua, eu, eu proclamo a legitimidade do prazer
praticado por livre vontade e com a pessoa escolhida, independente de
vínculos matrimoniais. [...] Pela primeira vez na minha vida, pude sentir-me
livremente, integralmente, plenamente fêmea. E ávida. Esta sensação me
dá uma vertigem, uma alegria nunca antes experimentada, nem sequer
suspeitada (CUNHA, 2003, p. 121-2).
Fica claro assim que é, principalmente, através da satisfação sexual que a
personagem finalmente consegue transgredir, reconhecer-se, redefinir-se e auto-
afirmar-se, encontrando enfim a felicidade.
3.2 O erotismo em Mulher no Espelho: uma fonte de afirmação e felicidade
Mulher no Espelho apresenta-se como um exemplo ímpar no cenário das
autoras contemporâneas que utilizam o erotismo para estruturar suas narrativas e
31. 30
configurar suas personagens em busca de afirmação e independência. Nesse
contexto, Helena Parente Cunha ganha destaque, uma vez que suas obras discutem
e denunciam o sistema patriarcal repressor, ao passo que apresentam-nos mulheres
transgressoras, que buscam a realização dos desejos e a felicidade.
No romance em questão observamos a presença do erotismo já que é através
da exploração da própria sexualidade que a protagonista encontra a possibilidade de
se rebelar contra a repressão masculina e conquistar liberdade e prazer. Pois, como
afirma Araujo (2003), o “[...] erotismo alcança dimensões libertadoras mesmo nas
condições mais adversas” (p. 116). Essa libertação proporcionada pelo erotismo
pode ser notada no trecho a seguir
Eu vou virar a mesa. De agora por diante estou livre de todo e qualquer
preconceito. Necessito de gozar a vida da qual fui banida. Continuarei a
criar a minha realidade de independência da mesma forma que inventei a
minha submissão (CUNHA, 2003, p. 117).
A experiência erótica possibilita, nesse romance, um processo de
autoconhecimento que leva a personagem a fortalecer e afirmar a sua subjetividade
alcançando assim poder e controle sobre seu próprio destino. A erotização aí
representa a libertação através do prazer e da sensualidade.
Alegria que nunca suspeitei pudesse existir, alegria plena de ser mulher e
me sentir desejada, totalidade na entrega a um homem que não é balofo,
nem sua, nem baba no orgasmo. Descoberta do prazer. O prazer natural. O
prazer do prazer. Animalidade saudável, sem reservas, sem subterfúgios
(CUNHA, 2003, p. 120).
Com uma linguagem desvelada, Helena Parente Cunha expressa uma nova
moral erótica na qual a personagem se embasa para concretizar as transformações
e rupturas que por tanto tempo foram desejadas e sufocadas em nome dos valores e
dos bons costumes pregados pela falocracia. Essa metamorfose vivida pela
personagem e promovida pelo erotismo confirma a fala de Bataille (apud Araujo,
2003, p. 115) “o erótico se apóia num projeto transgressor, subversivo, iconoclasta
do real”.
32. 31
Cansei-me de morrer coagulada, afivelada, sem ninguém [...] Vocês acham
ridículo que eu, aos quarenta e cinco anos, isto é, quarenta e seis, [...] me
sinta fêmea? E ávida? E deseje um homem? Eu que nunca tive da vida um
ínfimo prazer? Vocês acham ridículo que eu me faça de vítima agora? Pois
muito bem, vocês pensem o que quiserem, podem rir, podem até gargalhar,
eu sei que os meus espelhos não me enganam. O homem que tem vindo
me amar estas noites, não viria se eu não pudesse despertar nele uma real
sedução (CUNHA, 2003, p. 124).
Nota-se, a partir do trecho acima, que a eroticidade nesta obra está voltada
para o plano instintivo da valorização da sexualidade feminina frente ao processo de
negação e superação da condição subalterna da mulher e da necessidade imperiosa
da realização sexual, satisfação da qual, durante anos, a mulher foi privada.
Em meio a essa realidade de submissão e abstenção, o erotismo significa
para a mulher a proclamação da liberdade em um mundo de repressão. Nessa
perspectiva, por meio da expressão erótica, a literatura de autoria feminina
contemporânea, tem descrito o processo de afirmação e autonomia do sujeito
feminino.
No romance estudado, presenciamos esse processo de transgressão
feminina e podemos constatar que foi no sexo que essa mulher se libertou, se
redefiniu e reencontrou a felicidade.
Você é o homem que nestes próximos momentos estará empenhado em me
proporcionar o maior orgasmo que qualquer mulher possa pretender, possa
imaginar. Suas mãos delgadas e enxutas, deslizando na minha pele macia.
Entrarei no seu romance como a fêmea ávida, em busca do prazer máximo.
Voraz. Insaciável. Sofreguidão do mergulho absoluto. Ânsia do grito
impossível (CUNHA, 2003, p. 140).
Temos aí o retrato da mulher contemporânea que, rompendo com as
correntes que aprisionavam-na à hierarquia patriarcal, busca, sem culpa nem receio,
a realização dos seus desejos mais íntimos e ousados, a efetivação do seu prazer
erótico. Nesse sentido percebemos que Mulher no Espelho aponta a necessidade de
questionarmos a forma como a nossa sociedade enxerga a sexualidade feminina e
revela a urgência de desassociarmos a prática sexual de uma ideologia hierárquica e
falocêntrica na qual a mulher é eroticamente anulada.
Em suma, ao examinarmos a trajetória da protagonista de Mulher no Espelho,
notamos que essa personagem traduz todas as contradições, incertezas e
33. 32
insatisfações das mulheres contemporâneas, ao mesmo tempo em que, representa
o desejo de mudança e a transgressão vivida por muitas dessas mulheres, que
através do erotismo, romperam com paradigmas androcêntricos e alcançaram
afirmação e felicidade.
Essa personagem inominada é o reflexo da mulher contemporânea que viveu
sob a égide do patriarcalismo, sistema que, como disse Viana (1995), detinha o
poder sobre a função, o espaço e os desejos femininos. Entretanto, essa
personagem quebrou tabus, venceu seus medos e enfrentou dificuldades, críticas e
preconceitos, mas, enfim, conseguiu romper com os valores machistas que a
escravizavam e, através da realização erótica, conquistou independência e
autoafirmação. Desse modo, o erotismo aparece nesse romance numa perspectiva
condizente com as teorias defendidas por Bataille (1988) e Paz (1994), que
enxergam o erotismo como uma manifestação dos sentimentos e desejos humanos
que, em consonância com a moral e os bons costumes, deveriam ser negados e
sufocados. Por isso, para estes autores, o erotismo possibilita a transgressão dessas
regras sociais e satisfação plena do sujeito.
A obra em questão, aqui estudada mostra-se como um brilhante exemplo da
literatura feminina na contemporaneidade que, como bem constatou Cunha (1999),
utiliza o discurso erótico para sair do silêncio, ultrapassar limites, reivindicar o direito
sobre seus corpos e seus destinos e assegurar respeito e valorização no meio
social.
Enfim, fica evidente que em Mulher no espelho, assim como em outras obras
contemporâneas de gênero, a sexualidade feminina começa a ser pensada como
um elemento fundamental para a construção da identidade liberta, autônoma e
realizada do ser mulher. As escritoras na contemporaneidade pretendem revelar
seus desejos mais íntimos e fazer da literatura um instrumento de manifestação da
liberdade, do erotismo e do prazer feminino.
34. 33
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o estudo teórico e a análise literária, pode-se concluir que, o erotismo,
na literatura de autoria feminina, representa uma estratégia de resistência aos
modelos patriarcais, em que o corpo da mulher é idealizado na imagem da virgem
virtuosa cujos desejos são reprimidos, sufocados. Como pudemos observar em
Mulher no Espelho, o discurso erótico proporciona, à mulher contemporânea, uma
redefinição da sua própria sexualidade, possibilita o rompimento com valores
falocêntricos e assegura sua liberdade e auto-afirmação.
A partir das pesquisas realizadas durante a execução desse trabalho, ficou
evidente que, na obra supracitada, bem como em outras obras de gênero, a
erotização do corpo e a exposição dos desejos mais íntimos e ousados significam,
para as personagens da literatura feminina, um mecanismo de transgressão por
meio do qual estas se opõem aos modelos comportamentais destinados à mulher
pela cultura machista, e revelam o verdadeiro eu feminino na busca por seu espaço
na sociedade contemporânea.
Por fim, pode-se afirmar que o erotismo se configura, no romance analisado,
como uma instância de autonomia e poder que proporciona prazer e realização à
mulher, abrindo caminhos às suas lutas por independência e felicidade. Dessa
forma, o erotismo revela-se, de fato, um eficiente instrumento para a efetivação das
rupturas e conquistas femininas na contemporaneidade.
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