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1. A LITERATURA COLONIAL:
FRONTEIRAS E DIFERENÇAS EM RELAÇÃO ÀS
LITERATURAS AFRICANAS.
*…+ A literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do
universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem
africano. No contexto da literatura colonial, por décadas exaltada, o homem negro
aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal
acontece, é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O
branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o
portador de uma cultura superior. Exemplo: «o único país que pode explorar
seriamente a África, é Portugal» (prefácio de Manuel Pinheiro Chagas a Os sertões
d’África, 1880, de Alfredo de Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: «É um
homem na forma, mas os instintos são de fera», p. 87). Paradoxalmente, o branco é
eleito como o grande sacrificado. A aplicação do ponto de vista colonialista tem no
europeu o agente dinâmico e não o opressor: «Fiel aos nossos deveres de dominador,
grata ao nosso orgulho, útil às populações», escrevia um homem anti-fascista, Augusto
Casimiro (Nova largada, 1929). Predominavam, então, as ideias, da inferioridade do
homem negro, que teóricos racistas, haviam derramado e para as quais teria
contribuído o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da mentalidade pré-lógica, — sendo
certo, embora, que a renunciou pouco antes de morrer.
Logo no último quartel do século XIX se encontram os pioneiros desta literatura.
Mas é no período 20/30 do século XX que ela vai atingir o ponto maior: na quantidade,
na marca colonialista, na aceitação do público que esgota algumas edições, com
certeza motivado pelo exótico. Aí se destaca um naipe todo ele incapaz de apreender o
homem africano no seu contexto real e na sua complexa personalidade. É certo que
justo será destacar pela qualidade da sua escrita João de Lemos, Almas negras, 1937,
porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um meritório esforço de
análise e intenção humanística. Mas, escritor português, manietado pela distanciação
colonialista, por norma, dá ao seu discurso um sentido racista hoje de inconcebível
aceitação. Henrique Galvão: «A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos
demoníacos» (O vélo d’oiro, 4ª ed., 1936, p. 122); ou: «Era um negro esguio» [o
Mandobe] que «dava a impressão [...] dum excelente animal de corrida» (p. 34);
Hipólito Raposo (Ana a Kalunga, 1926) na glorificação mística imperial: «Queimados no
ardor silencioso de Golfo, em todo o peito português vai estremecendo o marulhar
heróico dos Lusíadas» (p. 21), e outros (muitos) como António Gonçalves Videira, João
Teixeira das Neves, irmão de Teixeira de Pascoaes, Brito Camacho, Contos selvagens
(1934). Prolonga-se este tipo de literatura até aos nossos dias, com tendência, no
entanto, para reflectir os efeitos de uma perspectiva humana ajustada à evolução das
condições históricas e políticas, porventura o caso de Maria da Graça Freire (A primeira
viagem, 1952) e, noutro aspecto, na actualização de uma linha que vem de Hipólito
Raposo, citaríamos António Pires, (Sangue Cuanhama, 1949). Essa incapacidade de
penetrar no mundo africano terminou por se instalar na consciência de um ou outro
(poucos) mais atentos, mais apetrechados do ponto de vista teórico, como é o caso de
José Osório de Oliveira, que se interroga a si próprio: «Conseguirei escutar nesta
viagem, a voz da raça negra?» (Roteiro de África, 1936, p. 55).
O tempo histórico, o tempo cultural, para quem, ideologicamente, era incapaz de
se furtar à insidiosa instauração do fascismo em Portugal e à inscrição legal do
assimilacionismo (aí vinha já o célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não
ajudava a uma tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma
reformulação da mentalidade do europeu.
Hoje, não há lugar para dúvidas: muitas dessas obras estão condenadas ao
esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas contigências de
uma época e de uma mentalidade coloniais, evidenciam contudo um certo esforço
humanístico e uma real qualidade estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma
severidade implacável e arrumará a quase totalidade desta literatura no discurso da
acção colonizadora ou no nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado.
Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, ICALP,
1977, vol.1., pp. 10-13.
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/eliterarios/006/bb06.pdf
2. GUERRA COLONIAL E GUERRA DE LIBERTAÇÃO
NACIONAL
O tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa confere aos
textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de uma pátria. O
soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir.
Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial,
notamos que ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo
algum eufórica. Autores como Almeida Faria, Lobo Antunes e João de Melo, entre
outros, insistem numa visão trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater
para um espaço desconhecido e inóspito, com o qual não se identificavam. Não
habitam heróis nas obras destes autores, mas anti-heróis fadados para o destino de
uma guerra sem saída
GUERRA COLONIAL & GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
Não foi pacificamente que os governantes portugueses cederam às pressões dos povos
africanos, quando estes, conscientes do seu direito à autodeterminação, exigiram a devolução
das suas terras colonizadas.
A guerra eclodiu em 1961, mas desde cedo conheceu os seus opositores quer na
sociedade portuguesa quer na comunidade internacional. Recusou-a o bom senso das novas
gerações universitárias impelidas para uma guerra que não era a sua e governadas por uma
entidade não disposta a escutar nem a dialogar com mentes rebeldes e desordeiras. Não
admira, pois, que o governo tivesse sido alvo de conspirações e, por isso, desde logo
estendido o seu braço da censura à intelligentia da época.
Estava atento a casos como o do escritor Luandino Vieira que, radicado em Angola,
intensificara a expressão da problemática africana, assumindo a própria língua autóctone. Foi
ele quem mais longe chegou na informação estética da angolanidade e foi, sem dúvida, um eco
de Angola perigoso ao regime. Notado pelo seu trabalho, foi, por um lado, preso pela PIDE e,
por outro, premiado, em 1965, pela Sociedade Portuguesa de Autores pela escrita do seu
livro Luuanda. Essa ousadia em apoiar literatura comprometida politicamente pagou-a a SPA
com o seu encerramento por ordem governamental.
No ultramar, grupos de trabalho empenhavam-se em começar a escrever a sua própria
História numa perspectiva decididamente pragmática. É disso exemplo um manual da História
de Angola escrito para ―revolucionários‖, publicado em Argel, no mês de Julho de 1965 e
editado, dez anos mais tarde, pela Afrontamento, na sua colecção ―Libertação dos Povos das
Colónias‖:
―É necessário que um revolucionário conheça a história do seu país. Muitos
revolucionários dos nossos dias estudaram as grandes batalhas dos tempos antigos e
aprenderam métodos de luta (tácticas) que foram muito úteis nas guerras revolucionárias do
nosso tempo.
Se um militante estudar a história do seu país, aprenderá como é enorme a força e a
coragem das massas populares; aprenderá como elas sabem encontrar maneiras
inteligentes e habilidosas de se defenderem e derrotarem os seus inimigos. O militante
aprenderá a conhecer quem são os mais fiéis amigos das massas populares, ou então
aqueles que mais facilmente podem traí-las, ou ainda aqueles que são seus inimigos.‖
(MPLA)
Assiste-se ao nascimento de uma consciência nacional, nos espaços luso-africanos,
também verificável nas manifestações literárias da época: a começar pela geração da
―Mensagem‖ (anos cinquenta) que, ao entoar o novo canto da angolanidade, via os seus
escritores mais empenhados a serem progressivamente eclipsados por um aparelho policial,
garante legal do obscurantismo instalado na colónia.
As vozes de denúncia não se calaram, antes se ergueram para reclamar justiça: num
crescendo de significado, a poetisa caboverdiana Alda do Espírito Santo, em 1958, começa
por exigir que se castigue os carrascos da sua terra:
O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Aí o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Aí, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
– Nós estamos de pé –
Nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando p'la vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
... Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
– Que fizeste do meu povo?...
– Que respondeis?
– Onde está o meu povo?...
E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...
Depois, o poeta-militante Agostinho Neto, no poema ―Luta‖, anuncia:
Violência
vozes de aço ao sol
incendeiam a paisagem já quente
E os sonhos
se desfazem
contra uma muralha de baionetas
Nova onda se levanta
e os anseios se desfazem
sobre os corpos insepulcos
E nova onda se levanta para a luta
e ainda outra e outra
até que da violência
apenas reste o nosso perdão.
E o verso de Jorge Rebelo faz-nos reparar na euforia do momento: «as balas começam a
florir». De aí em diante, o tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa
passaria a conferir aos textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de
uma pátria. O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir.
Esta era, de resto, a ―guerra justa‖, um instrumento que não se discute.
Da literatura produzida na zona de guerrilha, destaca-se Pepetela, pseudónimo de A.
Pestana dos Santos. A narração de As Aventuras de Ngunga (1972) ensinava aos pioneiros
do Movimento Popular para a Libertação de Angola as características do bom guerrilheiro.
Funcionalidade moral que leva Mayombe (outra obra do prosador Pepetela escrita em 1971) a
não centrar a sua atenção nas acções de combate, embora as descreva pontualmente. Esta é
uma obra que apresenta múltiplas reflexões que procuram dar corpo aos pensamentos das
diferentes correntes e aos sentimentos dos diferentes grupos étnicos, etários, sócio-políticos e
culturais.
EU, O NARRADOR, SOU TEORIA.
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café, vinda da mãe,
misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável
e é este o meu motor. Num Universo de sim e não, branco ou negro, eu represento o talvez.
Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa
será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo
tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este
problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os
outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.
Pepetela, Mayombe, Lisboa, Edições 70, 1988, 3ª ed., p. 16.
Em Mayombe a noção de confiança é defendida como elemento imprescindível,
comparável ao cimento que une as pedras de um edifício, isto é, os elementos de uma nação.
É ela própria a força do grupo; é a necessidade de conquistar pessoas; é a direcção
participada; é o necessitar de auscultar as opiniões dos outros; é, enfim, o saber estar colectivo
na procura do equilíbrio. No fundo, Mayombe enaltece o povo angolano, justo e merecedor de
uma paz duradoura, pelo passado sofrido da maioria dos seus habitantes. Merecedor de uma
política consciente e de políticos honestos, hábeis construtores de uma nação equilibrada,
onde se possa confiar numa justiça imparcial, racional, capaz de atenuar os efeitos das
dissenções étnicas.
GUERRA COLONIAL
Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial, notamos que
ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo algum eufórica.
Autores como Almeida Faria, Lobo Antunes e João de Melo, entre outros, insistem numa
visão trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater para um espaço desconhecido
e inóspito, com o qual não se identificavam. Não habitam heróis nas obras destes autores, mas
anti-heróis fadados para o destino de uma guerra sem saída.
José Maria de Aguiar Carreiro
―Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe‖ (1973), escultura de Clara Menéres
(Fonte: Panorama da arte portuguesa do século XX, Fernando Pernes
Porto, Campo das Letras, 1986, p. 265.)
―Jaz morto e arrefece o império de sua mãe.‖
Margarida Calafate Ribeiro
Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo
Porto, Afrontamento, 2004 (Clique aqui para consulta online)
OS CORPOS
vede
que jazem
à minha frente
a pele citrina
da morte
biliosa
os habita
espécie de pacto
sobre tudo isto que vedes
a maneira de olhar
o sangue
calar a revolta
este pânico entreaberto
nos olhos dos cadáveres
e os coágulos duros deste sol
há uma mentira acreditável
em quem vê as armas caídas
ao lado destes corpos
cumplicidade de admitir nos mortos
a espera da nossa morte
vede que jazem
estes membros como insónia
sobre os corpos destruídos das granadas
perfil rígido
das metralhadoras
para sempre presas no sovaco
cratera da nossa boca
de comer e tanto vomitar a guerra
mas vede também
que ira interrompida
se morde contra a morte
sobre estes mortos
João de Melo, Navegação da terra
Lisboa, Editorial Vega, 1980, 1ª ed.
ATÉ HOJE: MEMÓRIAS DE CÃO
Não seria nome de guerra — Uíje — pintadas letras negras no casco cinzento, letras
simples, másculas, a boca espremida no contra-senso da pronúncia — Uíje — os lábios
contraídos, aguados. Seria nome de rio, de província com rio, sabor exótico, leito imprevisível
com margens insondáveis, cacofonia de África portuguesa em pé de guerra, de derrames
viscerais de culturas anti-natura, os longos e duros séculos coloniais em ressaca. Nem nome
de guerra, rio, província, seria aquele ―Uíje‖, agora em aspas, enorme batelão desgraçado de
luxos e cruzeiros. Era nome de barco por conta do Exército, com os porões desventrados,
sorvia batalhões de homens forrados de moreia, empilhados, náusea sobre náusea, o oxigénio
consumido, suor destilado, uvas na prensa — vinagre ou fel do cálix português na viagem
incolor de encontro à guerra. la-se naquele barco com a alma dependurada no gancho da
dúvida. 1253 homens carregados em Alcântara. Nem todos voltariam — sabia-se. A guerra era
a guerra, cosida com as linhas da morte. Cobras, escorpiões, jacarés, o micróbio das águas, as
febres — cuidado! A cobra vê-se, o jacaré avista-se, o escorpião sente-se. ―Não bebam água
sem ser filtrada‖, mesmo quando filtros não há. ―A sede não mata, a febre palúdica derruba-se
com quinino‖. Nem uma palavra sobre os efeitos da bala, do cogumelo de estilhaços da
granada, das razões que assistem ao poder do canhão. ―O inimigo não conta! Mata-se,
simplesmente... É lorpa! O inimigo é preto por ignorante, sinónimo de escravo por vocação...‖ O
arrazoado seguia monótono e talvez cabal, contraditando notícias, relatos, o número dos
mortos, as zonas impenetráveis, o internacionalismo do problema. Beberam ódio em doses
maciças contra o inimigo de quem não sabiam nem a forma nem a força.
Álamo Oliveira, Até Hoje: Memórias de Cão
Lisboa, Edições Salamandra, 2003, 2ª ed. (Ulmeiro, 1986, 1ª ed.)
Para finalizar este post, remeto os leitores para o Diário de um
combatente, uma página online sobre a guerra colonial, com fotos da época, poemas e diário
de guerra em Angola, entre Abril de 1961 e Março de 1963. O ex-combatente é Joaquim
Coelho.
Do Caxito até Quitexe – ATRIBULAÇÕES
No posto de controlo do Cacuaco, enquanto as viaturas pararam até à abertura da cancela,
alguns pára-quedistas saltaram para o campo de cana-de-açúcar e colheram troncos de cana
que guardaram na mochila. Os mais experimentados sabem que, nos dias de jejum passados
nas matas dos Dembos, as canas vão saber a pão-de-ló. Os comandantes de pelotão
aproveitaram a paragem para acertar as últimas estratégias contra os possíveis ataques da
guerrilha.
[…]
O Alfredo diz guardar todo o seu fogo e desejo para a Maria Isabel, sua noiva. Mas não
deixa de assediar as jovens negras que vão à porta do acampamento entregar as roupas
lavadas. Tem um poder extraordinário para cativar as gajas, que na conversa lhe pedem mais
uns centavos e ficam na brincadeira até se zangarem, quando o Alfredo lhes passa a mão por
baixo da capulana e apalpa a carapinha entufada. Elas são recatadas e riem muito, dizendo:
– Ih! Alfredo quer é foder a gente.
Sempre a rir e a pregoar, lançou o aviso:
– Ainda é menina e não quer home p’ra fodê.
Mas algumas já deliravam quando sentiam as mãos a espremer os mamilos, e com o calor
da descarga que lhes inundava a passarinha. Esfregam-se bem, antes de entesarem o
parceiro, e gemem com uma boa penachada. Andam por ali a cirandar, logo bamboleando as
ancas como um chamariz que desperta a atenção dos soldados que acompanham as colunas
de reabastecimento. Às vezes até são descaradas na forma de mostrar o decote, despertando
a libido que está ao rubro, intensificando o desejo e as emoções dos soldados, que ficam sem
controlo. Elas riem, percebendo que o membro ganha volume e os pensamentos ―mergulham‖
no meio das coxas de qualquer mulher! A gente assim carente logo quer tocar nas peles
acetinadas e apalpar as mamas avantajadas para manter o diálogo de volúpia e conquista...
Mesmo no divertimento com o membro entesado, elas riem. As químicas do amor carnal
também cristalizam os sonhos de amores ausentes, e não têm limites na relação corporal. Os
prazeres estão nas coisas simples e são temperados pelos gestos dos corpos que levam ao
êxtase das infinitas delícias da vida.
O ÚLTIMO GOLPE DE MÃO
Na estrada do Piri, aos solavancos
para as matas do Quitexe
as viaturas loucas avançam...
atentos ao bandido que ainda mexe
vão os soldados de fatos às cores
só para se confundirem no capim.
Para trás deixam os tenros amores!
as bebedeiras de poeira sem fim
obrigam ao silêncio das gargantas,
em cada curva da picada sinuosa
o perigo esconde-se nas plantas!
Os gananciosos obreiros coloniais
Já não se afoitam como dantes...
recolhidos ao aconchego da cidade,
vivem rodeados de criados e amantes.
E nós, combatentes e detestados,
estamos a comer o pó do sertão,
enquanto caminhamos sufocados
até ao derradeiro golpe de mão!
(Quibaxe)
Joaquim Coelho
O Despertar dos Combatentes. Fotos com estórias em Angola
Clássica Editora, 2005
Uma visão esquecida e inconveniente para muitos!
Considero-me mais conhecedor sobre esta temática após ler o seu texto.
Estou-lhe grato por isso.
A divulgação destas verdades históricas tornou-se uma urgência nos nossos dias
para que se evite o branqueamento da responsabilidade deste drama da nossa
história colectiva recente.
Eram vários os quadrantes políticos interessados no desmembramento da última
potência colonial.
Villemarest (em ?História Secreta das Organizações Terroristas?, tomo IV,
inteiramente dedicado ao caso português) fala da ?Trilateral?, uma força em
expansão, controlada pelos grandes capitalistas da Europa, Japão e Estados
Unidos, que não hesitam em pactuar com os comunistas e afins para auferir
melhores proventos.
Assim, a vontade legítima de separatismo dos povos africanos foi aproveitada
por forças externas movidas por interesses próprios para as quais pessoas e
nações mais não são do que joguetes.
O problema é que os regimes extremos tocam-se no que há de pior, impedindo o
florescimento de uma sociedade democrática.
Em matéria de descolonização, não ignoro os erros cometidos pelos políticos e
patentes elevadas dos militares portugueses. O processo de descolonização foi
um fruto podre da anarquia com que mergulhou Portugal nos meses
imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974. Veja-se, por exemplo, o que
escreve António José Saraiva no ?Diário de Notícias?, num artigo datado de
26/01/1979: ?os militares, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais,
largando armas e calçado, abandonando portugueses e africanos que confiavam
neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.?
About josecarreiro
JOSÉ MARIA DE AGUIAR CARREIRO. Página pessoal:
http://folhadepoesia.com.sapo.pt Plataforma de apoio pedagógico ao
estudo da língua portuguesa: http://lusofonia.com.sapo.pt
3. LITERATURA COLONIAL E PÓS-COLONIAL
A literatura colonial, identificada com um conjunto de textos que inclui romance,
poesia, narrativas de viagem, relatos de missionários, diários, livros de notas e outros
que propagandearam a ideia de império sobretudo a partir do século XIX , tem origem
em textos muito anteriores aos quais vai beber metáforas e imagens, como sejam as
descrições de selvajaria de Heródoto, os relatos de Marco Polo, Mandeville ou Haklyut.
Seria, contudo, na viragem do século, com a expansão colonial como a Inglaterra e a
França, que iria desenvolver-se. A África, continente redescoberta pelos europeus nos
anos 80 do século passado, surge então como cenário de inúmeros textos de autores
como H. Rider Haggard, John Buchan, Mary Kingsley, Florence Dixie ou Joseph Conrad
em Inglaterra e Pierre Loti, Paul Vigne D’Octon ou Paul Bonnetain em França. Também
o império britânico na Índia é tema de Rudyard Kipling, E. M. Forster, G. A. Henty ou
Alice Perrin.
Quanto à literatura pós-colonial considera-se, em geral, que tem início após a II Guerra
Mundial sendo definida por Elleke Boehmer como “a literature which identified itself
with the broad movement of resistence to, and transformation of, colonial societies.”
(Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, Oxford University Press, 1995,
p. 184). Entre as duas barreiras temporais citadas encontra-se todo um conjunto de
textos que registam diferentes atitudes face ao império e que não poderão enquadrar-
se numa designação única, já que, segundo a mesma autora, “initiatives which we now
call postcolonial first began to emerge before,the time of formal independence, and
therefore formed part of colonial literature” (Op.cit., p.5). Na verdade, já em Conrad e
Forster se registam atitudes de resistência ao poder colonial, as quais iriam também
encontrar expressão nos anos 20 e 30 nas obras de autores como Léopold Sédar
Senghor (Senegal), Aimé Cesaire (Martinica) ou Bernard Binlin Dadié (Costa do
Marfim). Vivendo em Paris, estes escritores tornaram positiva a imagem de
“negritude”, anteriormente identificada como negativa e inferior pelo colonizador,
passando a celebrá-la enquanto símbolo do institivo e misterioso da África negra.
É, porém, o movimento anti-colonial que se sucede a 1945 que traz consigo a literatura
pós-colonial de que são exemplificativos autores como: Chinua Achebe, George
Lamming, Ana Ata Aidoo, Alice Munro, Margaret Atwood, patrick White (Prémio
Nobel, 1973), Wole Soyinka (Prémio Nobel, 1986), J. M. Coetzee, Peter Carey ou
Nadine Gordimer (Prémio Nobel, 1992, apenas para citar alguns.
É de salientar que a partir dos anos 70 grupos cujas obras não eram até então
consideradas passam a figurar na literatura pós-colonial. São eles as mulheres (Am Ata
Aidoo, Bessie Head, Keri Hulme, Michelle Cliff, Erna Brodber) e os povos indígenas (p.
ex., os australianos aborígenes Sally Morgan e Mudrooroo ou os neozelandeses maori
Witi Ilhimaera e Patricia Grace).
A eles se junta um terceiro grupo, os chamados migrant writers. Por diferentes razões,
que vão desde a opção profissional ao exílio político, autores de nações outrora
colonizadas passam a residir em Boston, Nova Iorque, Londres e Paris. É o caso de
Salmom Rushdie, Ben Orki ou V. S. Naipul.
É também nos anos 70 que tem início a crítica literária pós-colonial, nomeadamente
em 1978 com a publicação de Orientalism de Edward Said também ele migrant writer
nos EUA e também ele, como Rushdie, com as suas obras actualmente banidas na
Palestina. Desde então, a obra de Said tem dado origem a uma vasta bibliografia de
análise crítica às suas teorias, bibliografia que muito tem influenciado as várias
“leituras” de que têm sido objecto os textos coloniais e pós-coloniais. O que é
sobretudo posto em causa na perspectiva “orientalista” de Said é o facto de este
dividir o mundo em dois - o do colonizado - afirmando que o Orientalismo, que não
existe na realidade sendo antes fabricado pelo Ocidente, constituir uma afirmação de
poder por parte do colonizador ocidental face ao colonizado, sendo o primeiro sempre
dominante e privilegiado do ponto de vista discursivo, social e político. Afirmações
como “Orientalism depends for its stategy on this flexible positional superiority, which
puts the Westerner in a whole series of possible relationships with Orient without ever
losing him the relative upper hand” (Orientalism, Penguinm 1985), p. 7 têm sido postas
em causa por vários autores. de uma forma ou de outra, todos apontam o
reducionismo da metodologia de Said. Como afirma Bart Moore-Gilbert: “What unites
such critics is a perception that said unifies homogenises the identity and
operationality of colonial discourse to an unwarranted degree”(“Writing India,
Reorienting Colonial Discourse Analyses”, in Writin India 1757-1990. The Literature of
British India, 1996, p. 5).
Entre os críticos de Said destacam-se Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty Spivak.
Partindo da psicanálise, Bhabha mostra como as relações entre colonizadores e
colonizados não são homogéneas mas marcadas pela “ambivalência” (palavra-chave
retirada da psicanálise) pondo em relevo a esfera insconsciente das relações coloniais
e mostrando de que forma o sujeito colonial se converte em objecto de fantasia e
desejo por parte do colonizador. Quanto a Spivak, põe em relevo a(s) história(s) do(s)
“subalterno”(s), conceito que deve ser entendido como a diversidade dos grupos
dominados e explorados sileciados pelo ponto de vista hegemónico da historiografia
académica. Assim, propõe-se dar voz aos excluídos, nomeadamente às mulheres
nativas subalternas, cujo ponto de vista nunca é ouvido, vítimas que são da visão de
superioridade do feminismo ocidental que autora considera sinónimo dos
comportamentos do colonizador face ao colonizado e, portanto, mera reprodução dos
axiomas do imperialismo.
Outros autores têm criticado Said e proposto novas formas de abordagem teórica sem,
contudo, note-se, rejeitarem na íntegra o modelo orientalista. Porém, p. ex., Robert
Young não deixa de apontar outros caminhos fazendo notar que não existe um modelo
metodólogico para a análise de impérios como o português ou o espanhol ou para
espaços geográficos que não a Índia, nomeadamente a África.
Nos anos 90 as literaturas pós-coloniais encontram-se, tal como a metodologia crítica,
numa fase de proliferação e mudança. Parece-nos que uma perspectiva comparatista
poderia ajudar, já que é a que passou a ser adoptada para a própria História do
colonialismo, como significativamente mostra o livro de Mac Ferro Histoire des
colonisations (de notar a utilização do plural) recentemente traduzido para português
e inglês.
Por, e dados os exageros da teorização apontados por muitos críticos, torna-se sem
dúvida, necessário, não só repensar a história das colonizações como regressar ao(s)
texto(s).
Bibliografia
Martine Astier-Loufti, Littérature et colonialisme, 1971; L. Fanoudh-Siefer, Le Mythe du
nègre et de l’Afrique noire dans la littérature française de 1880 à la 2è guerre
mondiale, 1968; Bart Moore-Gilbert, “Introduction. Writing India, Reorienting Colonial
Discourse Analysis”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, pp.
25-29; Elleke Boehmer, Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, 1995;
Mac Ferro, Histoire des colonisations, 1994; A. Martinkus-Zump, Le Blanc et le noir,
1975; W. Edward Said, Orientalism, 1978; Robert J. C. Young, Colonial Desire, Hydridity
in Theory, Culture and Race, 1995; Ania Loomba, Colonialism/Postcolonialism, 1998;
Gaytri Chakravorty Spinak e Sarah Harasym, The Post-Colonial Critic (Interviews,
Stategies, Dialogues), 1990; Billey Asbcroft, Gareth Griffithes e Helen Tiffin, The Post-
Colonial Studies Reader, 1994; Iain Chambers e Lidia Curti, The Postcolonial Question:
Common Skies, Divided Horizons, 1995; Eugene Benson e Leonar Conolly, Encyclopedia
of Post-Colonial Literatures in English, 2 vols., 1994.
© E-Dicionário de Termos literários de Carlos Ceia 2010
Quer na literatura colonial portuguesa quer na
literatura colonial europeia, o homem branco é
elevado à categoria de herói mítico, o sacrificado e
desbravador das terras selvagens, o portador de uma
cultura superior:
“O único país que pode explorar seriamente a
África, é Portugal.”
Manuel Pinheiro Chagas, 1842-1895.
Neste sistema que afirma a superioridade de um grupo
sobre outros, o negro é considerado inferior:
“A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha
reflexos demoníacos.”
Henrique Galvão, 1895-1975.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ioZb0pnWa3w
4. LITERATURAS AFRICANAS ESCRITAS EM LÍNGUA
PORTUGUESA:
O PAPEL DA IMPRENSA E DO ENSINO PARA O SEU
SURGIMENTO
Imprensa
A tipografia foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo Verde (1842);
Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e Príncipe (1857) e Guiné-Bissau
(1879).
Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim Oficial de cada
colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário oficial e religioso, mas que também
incluía textos literários (sobretudo poemas, mas eventualmente crónicas ou contos).
Em geral, no século XIX, com excepção de Angola, a imprensa foi menos
importante do que seria de supor devido também à repressão. O semanário O
Progresso (1868), de Moçambique, religioso, instrutivo, comercial e agrícola, teve
apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir à censura prévia, que o
proibiu. Um militante republicano, Carvalho e Silva, no início deste século, fundou
quatro jornais, todos encerrados, o último dos quais assaltado, a tipografia destruída e
o director agredido, de que resultou a sua morte. De facto, a história da imprensa não
oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos, da colónia e de
Lisboa.
Com a República, até ao advento da lei de João Belo (1926) contra a liberdade de
imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os mais célebres, e justamente
celebrados, pelo seu papel na consciencialização da moçambicanidade, foram os
jornais fundados pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909-1918), O Brado
Africano (1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo sobrevivendo durante décadas e o
último reaparecendo, mais tarde, noutros moldes (1941-55).
Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, apareceu somente em 1920.
Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a imprensa contribuiu decisivamente para o
incentivo à criação literária, no quadro de limitação insular. A fundação do Liceu-
Seminário de São Nicolau (Cabo Verde), nos anos 60 do século XIX, ajuda a explicar o
nível de escolarização cabo-verdiana (a primeira escola primária surgiu em 1817).
Curiosamente, cabo-verdianos e são-tomenses, vivendo em Portugal, na primeira
metade do século XX, estiveram sempre muito activos na busca de uma identidade
cultural e da consciencialização (proto-nacional ou simplesmente na produção
intelectual desligada de intenções insulares. Basta recordar intelectuais como Viana de
Almeida, Mário Domingues, Marcelo da Veiga ou Salustino da Graça Espírito Santo (de
São Tomé e Príncipe) e Pedro Cardoso (de Cabo Verde).
No século XIX, foi intensa e brilhante a actividade jornalística em Angola. Depois da
criação do Boletim Oficial (1845), surge A Aurora (1855), jornal recreativo e literário.
Mais tarde, aparece um jornal pugnando pela efectiva abolição da escravatura, para
além da letra da lei, A Civilização da África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de
Castro e Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola.
De 1860 a 1900, surge cerca de meia centena de títulos de jornais, artesanais e
episódicos, mas de grande importância para o fomento da actividade intelectual e
literária. Desde o Jornal de Luanda (1878), do escritor e advogado Alfredo Troni que
marca a transição do jornalismo de cariz mais colonial para o proto-nacionalista, até O
Futuro de Angola ou O Pharol do Povo, muitos contribuíram para a informação,
elevação cultural e promoção das línguas e culturas locais.
O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881), inaugurando
duas décadas de frenética actividade jornalística (que se prolongaria, depois, até aos
anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre africana, terminando
exactamente com a fundação de A Província de Angola (1923), primeiro jornal de tipo
moderno, industrial, que passou a quotidiano em 1926, perdurando ainda hoje as
instalações ao serviço do Jornal de Angola. A censura, que já funcionava, aprimorou-se
e acabou com as últimas veleidades de uma imprensa realmente democrática e livre.
Na época florescente da imprensa livre, apareceram jornais escritos simultaneamente
em português e quimbundo, como o Muen ‘cxi (= o senhor da terra) e o Mukuarimi (=
o «linguarudo»), dirigidos por Alfredo Troni. Nos últimos vinte anos de Oitocentos,
pugnaram por uma Angola autónoma, mais livre e desenvolvida, jornalistas-
intelectuais como Arantes Braga, José Fontes Pereira de Melo, Pedro Félix Machado ou
Cordeiro da Matta.
No dealbar do novo século, algumas publicações literárias marcaram o desejo de
emancipação dos «filhos do país», de que cumpre destacar as duas seguintes:
• Voz d’Angola — clamando no deserto (1901), colectânea de artigos não
assinados contra um artigo colonialista;
• revista Luz e Crença (1902), cujo segundo número saiu um ano depois.
Esta última era promovida pela Associação Literária Angolense, cuja sigla,
«Liberdade, fraternidade, igualdade», alerta para os ideais republicanos. Pugnava-se
por um espírito de instrução, autonomia política e crítica social e institucional.
Foram líderes e nomes cimeiros desta geração, entre outros, Francisco
Castelbranco, Silvério Ferreira, Paixão Franco, Lourenço do Carmo Ferreira e Domingos
Van Dúnem (não confundir com o homónimo, nascido em 1925 e hoje embaixador do
seu país na UNESCO).
É, pois, através dos jornais que os letrados fazem a aprendizagem da escrita, vendo
os seus escritos em letra de forma, assim modelando a própria concepção de
intervenção literária, que ficaria marcada por essa prática intrínseca de concretude e
explicitude, a não ser quando toda a sorte de preciosismos (saídos do ultra-
romantismo, parnasianismo e decadentismo) tomava conta da efusividade lírica. Esse
desígnio jornalístico — ou melhor, de comunicação social, à letra — marcaria
decisivamente os escritores de África, que quase sempre assistiam à divulgação dos
seus textos através de compilações e antologias, antes de os poderem ver estampados
em livro, um objecto a que poucas vezes tinham acesso, por dificuldades de vária
ordem (censura, perseguição, pobreza, desleixo, dispersão, etc., que foram
aumentando em crescendo até à independência).
Ensino
A educação nas colónias portuguesas registava, ainda a entrada dos anos 60, níveis
baixíssimos. O analfabetismo atingia, em Angola, quase 97%; em Moçambique, quase
98%; na Guiné-Bissau, perto dos 100 %; só em Cabo Verde o nível era mais elevado,
rondando os 78,5%. O analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar uma elite
muito restrita de assimilados para servirem no sector terciário, ao mesmo tempo que
deixava as populações entregues a si próprias, sem permitir o seu auto-
desenvolvimento ou, no pior dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou
barata.
Como escreveu o poeta angolano António Jacinto, em «Carta dum contratado»
(1950):
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também!
*…+ No começo do século XIX, os padres e párocos eram escassos nas colónias. Com
o liberalismo, o ensino passou, em 1834, para o domínio do Estado, tomando-se laico.
A partir de 1869, voltou a ser apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi
lentíssimo.
Em Angola, os grandes centros populacionais tinham escolas oficiais e particulares
para brancos e nas zonas rurais havia as missões para negros. O ensino manteve-se,
durante muitos séculos, exclusivamente a nível primário.
Três anos depois da instauração da República, deu-se a separação da Igreja e do
Estado, substituindo-se as missões religiosas por laicas, para, seis anos mais tarde, as
missões católicas serem auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em
Luanda, foi fundado o Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões civilizadoras»
foram abolidas devido ao seu fracasso no terreno.
A língua usada nas escolas e fora delas, por professores, missionários e auxiliares,
era a portuguesa, que, com as línguas nativas, servia para o ensino da religião. Mas,
até II Guerra Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas
autoridades, não teve expressão. Após 1945, a política governamental procurou
acelerar a assimilação, fazendo um esforço para generalizar o ensino primário,
desenvolver o secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando
instituições para a formação de professores. Todavia, o ensino superior, ao contrário
de outras colónias, inglesas ou francesas, apenas estava ao alcance de um número
muito reduzido de estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a
pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do início da luta de
libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram instalados os Estudos Gerais, de
nível universitário, a partir de 1963, nas cidades angolanas de Luanda, Sá da Bandeira e
Nova Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os únicos territórios que deles
beneficiaram.
Os próprios movimentos de libertação nacional, de que resultariam os partidos no
poder, após 1975, criaram o seu ensino e alfabetização, que não tiveram um
verdadeiro alcance de massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de
militantes na clandestinidade e faixas de população que os apoiavam. O MPLA, FNLA e
UNITA (Angola), o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não
tiveram tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir a escola
colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO (1962) tinham essencialmente
preocupações políticas e militares, mas dedicavam uma atenção especial às questões
culturais. Os outros movimentos, nascidos de dissensões, nunca tiveram qualquer
preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e Príncipe) nasceu pouco antes da
independência.
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa,
Universidade Aberta, 1995, pp. 18-21
∆
5. LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA:
UM FENÓMENO DO URBANISMO
As literaturas africanas modernas, isto é, aquelas que se exprimem na língua de
colonização, têm a sua emergência indubitavelmente ligada ao urbanismo *…+
Colonização que, como é sabido, levou à Africa tradicional factores de
desestruturação que actuaram em todos os níveis da organização cosmológica das
sociedades negras. Sociedades cujos sistemas de valores consuetudinários foram
afectados, ou mesmo destruídos, pelo cartesianismo da filosofia colonizadora que,
aliada ao cristianismo de raiz urbanizante, muito fez para despaganizar a cultura negra
cujo animismo jamais conseguiu entender. Essa despaganização era acompanhada
pelo sacrifício da ruralidade, enquanto imanência do binómio homem-natureza
governado pela força vital, pelo muntu, garante da ancestralidade geradora do
iniciatismo característico da civilização africana, abalando profundamente o mundo do
homem negro, que foi existencialmente agredido por «la violente césure qu’a
constituée l’intrusion de l’Europe chrétienne et cartésienne, et de l’Asie musulmane,
dans un monde aussi animiste», como observa Amadou Ly (1983:37). Esse sacrifício da
ruralidade abria caminho para o advento do urbanismo *…+
A cidade é, portanto, a realidade emblemática da colonização e do sistema
colonial, a que ela conduziria, uma vez que, como referia Kane, ela, a cidade, é
simultaneamente um polo catalisador e difusor dos valores culturais e civilizacionais de
que os colonizadores eram portadores. Nestes termos, ela representa já um centro de
aliciamento para todos aqueles que, no raio da sua influência lhe sentem o efeito,
sujeitos que estão, a partir daí, ao poder atractivo que a novidade da cidade e dos seus
costumes implica. A cidade passa, pois, a ser uma meta a atingir por aqueles que vêem
nela a possibilidade de melhoria do seu estatuto social e económico e que, por isso,
vão provocar um êxodo rural considerável, que vinha instalar-se, normalmente, nas
zonas circundantes dos núcleos citadinos, onde, entretanto, se forjava uma burguesia
constituída por brancos, alguns negros e alguns mestiços, disposta a marcar o ritmo da
evolução cultural, enquanto se engrossava o caudal de despaganizadores que, atraídos
pelos empregos gerados pela actividade comercial e industrial urbana formavam os
muceques ou os caniços que punham a claro as assimetrias e as injustiças do sistema
colonial cuja rede se entretecia.
Transferido do seu espaço vital característico, onde a sua identidade cultural e
civilizacional não era interferida por factores alienígenos, para um espaço outro, onde
era forçado a outrar-se, pensando, ilusoriamente, que lhe seria permitido o ingresso
na cidade e a participação na nova cultura, o homem negro vai acumulando
frustrações, ao mesmo tempo em que cresce nele a revolta pela marginalidade a que o
votavam, acentuando-se a sua dramática divisão interior entre a fidelidade de
pertencer ao mundo tradicional e a necessidade económica de ter de viver, segundo
modelos civilizacionais aniquiladores daquele. Esta dramática divisão é, por certo, a
responsável pela geografia física quase labiríntica desses «bairros de areia» povoados
por gentes das mais diversas proveniências etnolinguísticas e com as mais diversas
ocupações, desde o operário industrial ao empregado comercial, ao amanuense, aos
domésticos, às lavadeiras, aos cozinheiros, etc. O labirinto, em que se vai
transformando o espaço dessas «areias babélicas», como diz Luandino Vieira, pode ser
interpretado como uma garantia para os seus habitantes de que nele seria possível
preservar e cultuar os valores culturais que são basicamente os seus, uma vez que o
europeu, o outro, habitante da cidade de asfalto, seria incapaz de descodificar tão
complexa semiótica espacial e, por isso mesmo, de perturbá-la com os ataques que,
inevitavelmente, lhe dirigiria.
Reduto da defesa de valores culturais e civilizacionais comuns, apesar das
diferenças etnolinguísticas que nele coabitavam, o muceque interessa-nos
literariamente numa tripla dimensão. Primeiro, como apêndice social colonial, onde se
desenvolveu paulatinamente um proletariado que fecundou as sementes anti-coloniais
que a própria colonização gerava em si. Segundo, como cadinho do português que
servia naturalmente de língua de comunicação e que, usado por falantes de diferentes
regiões etnolinguísticas, seria naturalmente sujeito a influências segmentais e
suprassegmentais diversas que lhe moldaram a face característica da fala mucéquica,
ponto de partida para o discurso verbal das literaturas africanas de expressão
portuguesa. Terceiro, como instituição cultural e socioeconómica, fonte de inspiração
para textos poéticos ou narrativos denunciadores do regime colonial de que o
muceque era uma exemplar vítima, enquanto lugar de exílio ou de desterro para
gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens
civilizacionais.
Esta tripla dimensão do espaço urbano — muceque — está presente, desde as
origens, nas literaturas africanas de expressão portuguesa que, como outras literaturas
africanas em língua de colonização, são verdadeiramente um fenómeno do urbanismo,
isto é, alimentam-se essencialmente das contradições e da dialéctica sociocultural
geradas pelo advento da cidade à África. Aqui poderíamos ser levados a concluir que
tais literaturas nada teriam a ver com a literatura negra tradicional que, como se sabe,
tem as suas raízes na ruralidade, na Terra, o que lhe dá uma marca profundamente
telúrica. Todavia, conscientes de que «la voie la plus courte vers l’avenir est toujours
celle qui passe par l’approfondissement du passé» (cf. Césaire), alguns escritores
sempre procuraram trazer para o ambiente urbano, ou urbanizante, dos seus textos
essa Africa tradicional da qual o homem negro, despaganizado pela colonização, não
conseguia, nem queria, libertar-se.
Até aos princípios dos anos 1940, porém, não existia ainda a oposiçào irredutível
entre a cidade e o muceque. Apesar de tudo, enquanto o asfalto não chegou, ainda foi
possivel um certo diálogo entre os dois espaços, como o atestam muitos textos
africanos de expressão portuguesa, onde a infância é evocada como uma idade quase
edénica que se vivia despreocupada das questões rácicas e sociais que o avanço
avassalador do asfalto veio a criar. A infância é, sem dúvida, um dos temas que, nas
literaturas africanas de expressão portuguesa, mais evidencia a sua origem urbana.
Com efeito, quase todos os poetas e ficcionistas dessas literaturas glosam o binómio
cidade-infância, como plataforma para uma escrita denunciativa e insubmissa. Outros
exemplos poderiam ser citados, mas bastará recordarmos o título do primeiro livro de
Luandino Vieira — A Cidade e a infância (1960) —, para verificarmos até que ponto é
que esse binómio teve importância na emergência das literaturas africanas lusófonas.
*…+
Luanda é muito mais a Luanda dos muceques do que a Luanda do asfalto, que a
crescente europeização tornava cada vez mais estrangeira aos filhos do país e àqueles
que a adoptavam como mátria ou pátria de criação literária. É esse, aliás, o sentido da
conhecida «Canção para Luanda», de Luandino Vieira:
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
— Luanda onde está?
Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
— Xé, mana Rosa peixeira
responde?
— Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
«Ola almoço, ola alrnoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé»
— E você mana Maria quitandeira
vendendo maboques
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos
de todos os dias?
«maboque m’boquinha boa
dóce dócinha»
*…+
As casas antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?
Meninos nas ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
— Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
— Luanda onde está?
*…+
__________
Quitandeira: vendedora de frutas, hortaliças, aves, peixes, etc.
Maboque: fruto de casca dura, verde, comido simples ou com açúcar.
Luandino Vieira lançou, assim, a interrogação da busca da cidade, aliada da
infância, que o urbanismo colonial fez desaparecer. A «fronteira do asfalto» e o
tractor, símbolos da destruição desse espaço existencial compartilhado por brancos,
negros e mestiços, geraram, portanto, o homem do muceque que, empurrado para a
periferia geográfica e social da língua de dominação, vingar-se-ia dela, forçando-a a
africanizar-se para dizer, através da literatura, a mensagem libertadora inspirada na
tradição e apontada para a revolução. O escritor africano de expressão portuguesa,
senhor desta nova fala que o urbanismo gerou nos muceques, conseguia, assim,
ultrapassar, em parte, o exílio das suas personagens, através duma escrita que virava
contra o colonizador a sua própria língua. *…+
Parece-nos bem que a «tortura», a que o muceque submeteu a língua de
empréstimo, modelando-a até limites expressivos, por vezes, impensáveis, neutraliza
perfeitamente o exílio em que nasceu a escrita da moderna literatura africana de
expressão portuguesa. O urbanismo colonial provocou, de facto, o exílio ao homem
negro, despaganizando-o e afastando-o das suas raízes culturais e civilizacionais, mas,
ao mesmo tempo e em atitude, por assim dizer, suicida, criou-lhe as condições para
prometeicamente se vingar dele, por meio duma genuína expressão literária que não
encontra paralelo em nenhuma das outras literaturas africanas em língua de
colonização.
Salvato Trigo, 1984
Ensaios de Literatura Comparada (Afro-Luso-Brasileira), Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-60
∆
6. PRECURSORES DAS LITERATURAS AFRICANAS
Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências diferentes,
Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha, de Moçambique, podem ser
considerados como os precursores da literatura africana de expressão portuguesa, no
domínio poético.
A obra de Costa Alegre, vinda a lume em 1916, foi inteiramente escrita em
Portugal, por voltas de 1880. O arquipélago de S. Tomé encontrava-se na fase decisiva
de mutação das suas estruturas sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o
controle das riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos
«filhos da terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco dessa tensão e não
faz nenhuma menção precisa à conjuntura insular. Ela reflecte uma forma de tomada
de consciência da condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do seu
ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era hostil, dilacerado pelo
isolamento e por decepções amorosas, Costa Alegre refugia-se num universo de
autocondenação racial.
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,
Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas!... flor, que esta minha alma adora.
És a luz, eu a sombra pavorosa,
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.
(Costa Alegre, «Aurora», in Versos, 1946, p.26)
Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos suscitados pela
sociedade em que se desenrolou a sua existência. Sensível ao espectáculo da opressão,
mas isolado na sua démarche, prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da
sua impossível realização, em tanto que assimilado.
Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe causava a vida
das massas africanas, mas professa claramente a resignação. Rui da Noronha apela, à
sua maneira, para a libertação africana, como testemunha o seu soneto «Surge et
ambula»:
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo...
*…+
Desperta. Já no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...
Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno...
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula!
Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma completa
identificação com o seu povo.
Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa,
1976, pp.3-4
∆
7. MOVIMENTOS POLÍTICO-CULTURAIS DO
PRINCÍPIO DO SÉCULO XX
E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO
DAS LITERATURAS AFRICANAS.
7.1. DOS RENASCIMENTOS NEGROS À NEGRITUDE
A Négritude lançou as suas raízes até aos
movimentos culturais protagonizados por negros,
brancos e mestiços que, desde as décadas de 1910, 20 e
30, vinham pugnando por um Renascimento Negro
(busca e revalorização das raízes culturais africanas,
crioulas e populares) principalmente em três países das
Américas, Haiti, Cuba e Estados Unidos da América, mas
também um pouco por todo o lado.
A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo
surge nas Américas, principalmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas,
como consequência das Luzes e do Romantismo que levaram à abolição da
escravatura, à assunção romântica do Volksgeist [o sentimento e o espírito do povo], à
identificação da real composição do mosaico cultural de raiz popular e, logo, nacional,
e, finalmente, à possibilidade de, após a Revolução Francesa, os povos supostamente
poderem assumir a liberdade e a igualdade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na
ocorrência dos movimentos de independência ou do reconhecimento desta como
alvará de igualdade cultural e social de todos os grupos sociais. Tal como no
Renascimento europeu, os três conceitos e tipos de movimento político, cultural e
literário implicam uma comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado
próprio de cada povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo
etno-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na
ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exactamente
o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros dois, sem
excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais nuns casos do
que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles.
O termo Négritude aparece no longo poema «Cahier d’un retour au pays natal», de
Aimé Césaire, poeta da Martinica, que foi publicado na revista Volontés, 10 (1939). A
palavra passou a nomear o movimento que se desenrolava por toda a década de 1930,
nomeadamente em Paris, cadinho de estudantes, intelectuais e políticos que
marcaram profundamente a vida política e cultural do mundo negro. *…+
Social e ideologicamente, a Négritude constituiu-se como o processo de busca de
identidade, de conduta desalienatória e da defesa do património e do humanismo dos
povos negros. Recusou a assimilação a modelos externos à história negro-africana,
embora consciente dos contributos aculturativos, sobretudo nas cidades. A Négritude
pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos modelos e
motivos históricos das literaturas ocidentais.
A poesia da Negritude distingue-se da restante literatura africana de língua
portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras, qualificando-as com
valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco: «o sangue negro,
o sangue bárbaro» (Noémia de Sousa). Os triunfadores e mestres negros da diáspora e
do próprio continente africano são aclamados como paradigmas exemplares a seguir
pelos iniciados: Joe Louis, Jesse Owens (respectivamente, pugilista e atleta norte-
americanos), Louis Armstrong (jazzman norte-americano), Césaire (negritudinista da
Martinica), Toussaint Louverture (revolucionário haitiano oitocentista). Langston
Hughes, Claude Mckay (líderes literários do renascimento negro norte-americano),
Chaka (chefe guerreiro zulu), Nzinga (rainha jaga que lutou contra os portugueses no
início da colonização), Senghor (um dos autores da Négritude).
Nega-se, dessa forma, não o valor das culturas europeias (ou quaisquer outras),
mas a sua dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial.
Chega-se assim à recusa textual da «música fútil/das valsas de Strauss» (Noémia de
Sousa), afirmando ironicamente: «cresçam sinfonias de Beethoven/e poemas que o
amigo Mussunda não entende» (Agostinho Neto).
A África, o negro e a Mãe-Negra (Mãe-África ou Mãe-Terra) ocupam nos textos um
lugar de destaque, como referências, alusões ou temas, numa declaração humanística
de povos até aí apresentados e representados (na literatura colonial) como destituídos
de história, cultura e mesmo de sentimentos. Segundo a análise de Sartre, no prefácio
à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache (1948), de Senghor, dá-se a
revalorização (e a sobrevalorização) das culturas e modos de vida ancestrais (tribais,
clânicos), com o culto dos antepassados, o animismo e a respectiva animização
retórica da natureza, o pan-sexualismo vitalista, a visão eufórica e ufanista das
relações sociais e familiares nas tribos e no mundo rural e natural. Ou seja, opõe-se ao
mundo tecnológico e racionalista dos europeus o mundo natural e sensitivo dos
africanos, num posicionamento que receberia críticas devastadoras dos homens
empenhados na abertura de África ao mundo moderno, através de revoluções
socialistas.
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa,
Universidade Aberta, 1995, pp. 28-29
∆
7.2. LITERATURAS EMERGENTES:
NACIONALISMOS E IDENTIDADE
Entre 1880 e os fins do século passado, num clima de acesas lutas políticas,
sucederam-se duas gerações que marcaram a vida intelectual de Angola,
particularmente dominada pelo jornalismo. Aproveitando as possibilidades de
expressão abertas pela lei portuguesa sobre a liberdade de imprensa, aplicada
efectivamente durante um certo período na colónia, os angolanos lançaram jornais e
revistas literários. *…+
Fundada em Março de 1936, a revista Claridade, primeira manifestação intelectual
de conjunto da elite crioula, significou uma viragem no movimento literário de Cabo
Verde. Segundo os seus mais ilustres representantes, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes
(aliás Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, a preocupação essencial residia na análise
do processo de formação social do arquipélago e no estudo das suas raízes. *…+
Os escritores do movimento Claridade, condicionados pela sua formação
ideológica, adoptaram um ângulo de visão de «classe» para abarcar o universo insular.
Não se atacaram ao fundamento dos dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e
muito menos perspectivaram a superação das atitudes resignadamente
contemplativas. A sua poesia, dominada pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito
aos sentimentos populares. Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela
passou ao lado do clamor das massas das ilhas.
Ao examinarem o processus de aculturação em Cabo Verde, os animadores de
Claridade e outros autores afirmaram que as contribuições da cultura africana tendiam
a reduzir-se ao nível de sobrevivências ou a diluir-se em função do grau de instrução e
de urbanização do meio, enquanto os valores europeus, possuidores de uma maior
capacidade de resistência, se impunham e se generalizavam. *…+
A evolução dos acontecimentos iria demonstrar como as ilhas encontraram a sua
verdade histórica, através da unidade operada na luta solidária do guineenses e de
cabo-verdianos, pela libertação nacional.
Foi na linha deste pensamento que a nova geração cabo-verdiana, após o severo
julgamento dos Claridosos, estabeleceu a ponte de ligação com os movimentos
culturais que surgiriam em Angola e em Moçambique. *…+
Vamos descobrir Angola — tal foi, nesta perspectiva, a palavra de ordem lançada
em Luanda, em1948, por um grupo de estudantes e de jovens intelectuais. Coube a
Viriato da Cruz o mérito da sua formulação teórica e estética:
«O movimento», escreveu ele mais tarde, «deveria retomar, mas sobretudo com
outros métodos, o espírito combativo dos escritores africanos dos fins do século XIX e
dos princípios do actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores
culturais do Ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir
Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado;
exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes
culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações
positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza
africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista.
Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão
africanas.» *…+
Tomada no seu conjunto, a evolução da moderna poesia africana de escrita
portuguesa e crioula comporta três fases essenciais: a primeira, a da negritude,
entendida como negação da assimilação ou, para utilizar a expressão de Aimé Césaire,
como «postulação irritada e impaciente de fraternidade».
A Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro (colecção «Novo Cancioneiro»,
vol. 9, Coimbra, 1949), marca o ponto de partida. O poeta procura ligar,
primordialmente, a sua condição de homem insular ao mundo dos oprimidos, e
revaloriza o património cultural negro-africano. É uma voz solitária, então no exílio,
que se levanta para cantar S. Tomé e exaltar a negritude em língua portuguesa:
Quando cantas nos cabarés
fazendo brilhar o marfim da tua boca
é a África que está chegando!
Quando nas Olimpíadas
corres veloz
é a África que está chegando!
Segue em frente
irmão!
Que a tua música
seja o rumo de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!
…para que a tua gargalhada
de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia!
*…+ A segunda fase, suscitada pelo alargamento e ultrapassagem da negritude, é o
momento da particularização. Os poemas precisam os contornos nacionais e incidem
mais profundamente no real social. A criação literária vai ritmando o desenvolvimento
da consciência nacional, quando se esboça a estrutura dos movimentos políticos. De
1953 a 1960, aproximadamente, a poesia apreende a trama dos acontecimentos que
caracterizam as, mutações na sociedade colonizadora. Daí a actualização da sua
temática.
O próprio enraizamento dos poetas no chão nacional determina a convergência de
temas e a unidade de tom. De todas as colónias erguem-se vozes de denúncia: poetas
cabo-verdianos asfixiam o desespero de querer partir / e ter que ficar, vinculando-se
definitivamente aos diversos níveis das realidades africanas, Alda do Espírito Santo
exige justiça para os carrascos da sua terra.
E quando os povos de Angola, da Guiné e de Moçambique retomam pela via
armada a iniciativa histórica que modela o seu devir nacional, entramos na terceira
fase desta poesia: as balas começam a florir, dirá Jorge Rebelo.
Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa,
1976, pp. 4-10.
“As balas começam a florir.”
Jorge Rebelo, Moçambique, 1940
GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
O soldado africano é apresentado como um herói
libertador, confiante no futuro.
∆
8. LINHAS DE AFIRMAÇÃO DA POESIA AFRICANA
Algumas linhas de afirmação desta poesia devem ser destacadas.
1. Há uma evidente proximidade entre a cultura africana escrita e a cultura
europeia, proximidade esta bem saliente no domínio da literatura.
No caso da poesia de Cabo Verde são evidentes as afinidades com a poesia lírica
portuguesa, nomeadamente nos modos como nela se exprime o sentimento de
insularidade. Este facto, efeito de aculturação, visível não apenas na poesia daquelas
ilhas deve-se, contudo, à difusão da cultura europeia, através dos liceus que, a partir
do princípio e de meados do século, começaram a ser implantados nos pólos urbanos
por toda a África.
A própria consciência de nação, que vemos ser afirmada nesta poesia, origina-se
no impacto do sistema de escrita ocidental sobre uma cultura oral de origem tribal.
2. Vários movimentos e iniciativas culturais empenhados na afirmação da cultura
negra — não apenas africana — têm origem em centros urbanos europeus e norte-
americanos. É o caso das iniciativas em torno da Casa dos Estudantes do Império
sediada em Lisboa, do movimento designado por Negritude, centrado em Paris e
apoiado por intelectuais europeus, como Sartre, do movimento Black Renaissance
surgido em Harlem.
Estes movimentos são responsáveis por algumas linhas de sentido evidentes nestes
poetas:
2.1. a intenção de denúncia da condição do negro na relação com o homem
branco;
2.2. a afirmação de uma identidade própria da poesia negra, nalguns casos,
especificamente expressão do homem africano e com ele do próprio continente.
A propósito do último aspecto apontado, é de notar a frequente referência a uma
realidade telúrica cuja estranheza para o homem europeu (claramente o interlocutor
privilegiado desta afirmação) se manifestará no léxico, sobretudo o relativo a nomes
comuns. — e este aspecto é da maior importância na poesia de Craveirinha — e em
múltiplas descrições, como, por exemplo, a que tem por objecto os rios de
Moçambique, comparados com os grandes rios europeus, no poema Hidrografia de
Alfredo Margarido.
No poema Deixa passar o meu povo da poeta moçambicana Noémia de Sousa, já
não é o exotismo dos nomes que desencadeia a presença de uma realidade, mas uma
frase emblemática. “let my people go” capaz de convocar a riqueza de um cultura
inseparável da condição de negro por esse mundo fora, da sua história e das
mitologias dessa história.
Valerá a pena chamar a atenção para:
— a atmosfera em torno de uma exaltação de insónia: a noite africana, as ondas da
rádio, veículo do refrão “let my people...” (frase emblemática do movimento Black
Renaissance), estabelecendo uma corrente com as ondas nervosas: “Nervosamente
sento-me à mesa e escrevo *...+ E já não sou mais que instrumento *…+";
— a importância simbólica do aparelho de rádio trazendo para o interior da noite
africana a música negra de outro continente: “Todos se vêm debruçar sobre o meu
ombro / enquanto escrevo noite adiante / com Marian e Robeson vigiando pelo olho
luminoso do rádio / [...] / E enquanto me vierem de Harlem / vozes de lamentação /
*...+ / Escreverei, escreverei, / com Robeson e Marian gritando comigo: / “Let my
people go” / *...+“.
(Procure o CD Jazz Heritage Séries, vol. 1, Louis Armstrong, Louis and The Good
Book, ed. M.C.A., 1983. A canção 3, intitulada “Go Down Moses” (espiritual negro) tem
como refrão, constantemente repetido, essa mesma frase, “let my people go”. Esta
canção data do tempo da escravatura.)
Cadernos de Literatura 10º Ano. Livro do Professor, Cristina Duarte, Amadora, Raiz
Editora, [1993], pp.76-77
∆
9. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS
LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
UM SÉCULO DECISIVO
Temos o privilégio de assistir à formação e desenvolvimento das literaturas
africanas de língua portuguesa, em mais de um século de escrita e de publicação. É
com carinho e alegria que se contabilizam todos os escritos e autores e se
desenvencilham diacronias e influências. Estamos possuídos pela ilusão de que, por
tudo estar tão perto e ser tão pouco, se torna fácil compreender e classificar para,
ainda mais facilmente, teorizar. Convém recordar, todavia, que, até tornar-se um
sistema nacional, uma literatura passa por fases de hesitação e de indefinição. As
literaturas africanas dos Cinco são escritas em português, língua de colonização, não
existindo tradição de escrita nas línguas africanas.
O primeiro prelo seguiu para Angola em 1849. Um ano depois saiu o Boletim
Oficial, incluindo já incipientes textos literários como era de uso na época. Cerca de
trinta anos mais tarde, verifica-se o surto da imprensa livre angolana, na qual
ensaiaram experiências literárias e terçaram armas pela democracia, republicana
intelectuais africanos o portugueses. Literatura e jornalismo conviviam, no século XIX,
a ponto de se influenciarem mutuamente. A crónica e o panfleto de cariz doutrinário e
político faziam género. O folhetim narrativo agradava na colónia e obrigava à reedição
na imprensa da metrópole colonizadora.
Africanos, portugueses e brasileiros publicavam nos espaços comuns dos
almanaques, boletins, jornais, revistas a folhetos. Não tinham surgido ainda as
designações de literatura angolana, moçambicana ou são-tomense com carácter de
sistema nacional, mas a escrita já deixara de ser espaço de europeidade absoluta para
se tornar contaminação relativa de línguas. De facto, poetas portugueses o angolanos
intercalavam no texto em português, mais extenso, frases, diálogos, versos, lexemas
em língua banta (quase que exclusivamente o quimbundo). A integração é perfeita, na
coerência do sentido e da sonoridade e na coesão dos segmentos e ritmos. Poemas há
soando aos ouvidos como se produzidos numa só língua natural.
O trabalho literário unifica as línguas, como que galvanoptastizando a substância
da expressão. Tal efeito de produtividade só é possível numa poetogénese conseguida
à custa da integração antropocultural do intelectual português, ou seja, e para utilizar
uma curiosíssima palavra do vocabulário colonialista, à custa da sua cafrealização. Foi
o que aconteceu com o português Alfredo Troni, escritor, jornalista e advogado de
filiação socialista proudhoniana e republicana, desterrado para Luanda, onde
desenvolveu profícua e incalculável agitação cultural e cívica. Por seu turno,
intelectuais africanos como Cordeiro da Mata empenharam-se em trabalhos de
pesquisa linguística, sociológica e etnográfica que favoreceram uma atmosfera de
aprofundamento do saber sobre as realidades africanas, contribuindo para que a
literatura pudesse perder, a pouco e pouco, o lastro negativo do exotismo e do ultra-
romantismo serôdio.
Em todos os poetas do século XIX, mantém-se a rima final e, em, grande
percentagem, a medida da redondilha maior, características tradicionais de muita
poesia popular europeia. Sabemos como esse tipo de procedimento literário não
procede da tradição popular africana. Só muito mais tarde, já na década de 30, é que a
geração da Claridade caboverdiana abandona esses princípios poéticos, enfileirando
no cultivo do verso livre, aproveitando a lição dos modernismos português e brasileiro.
Mas os escritores caboverdianos, nessa altura, não reivindicavam propriamente uma
especificidade africana, se bem que fosse inequívoco o seu sentido da
caboverdianidade, da literatura enquanto sistema de comunicação com poder
autonómico face à situação política e jurídica do arquipélago.
Depois de terem prestado homenagem à tradição literária portuguesa, de Camões
ao parnasianismo, os escritores africanos, no segundo quartel do século XX, trocam de
paradigma, inspirando-se nos brasileiros e norte-americanos A introdução do ensino
laico nas colónias e a vinda de estudantes para Portugal incrementaram notavelmente
uma nova mentalidade cultural sustentada por ideologias como o socialismo
anarquista, o republicanismo, o proudhonismo e, mais tarde, o pan-africanismo. Nas
colónias, a intervenção maçónica de exilados e desterrados portugueses foi decisiva no
movimento operário, com repercussões na intelectualidade, como em Moçambique. A
literatura ganha corpo nacional consoante vai trocando o corpo da negra e da mestiça
pelos do contratado e do branco, expondo-lhes as alienações e as misérias humanas.
Se tomarmos a narrativa angolana como sintoma dessa evolução progressiva e
progressista, verificamos que o espaço físico e social progridem no mapa humano e
geográfico à medida que se consuma a diacronia: a narrativa Nga Mutúri, de Alfredo
Troni, tem como cenário principal uma Luanda permissiva e condescendente, onde se
cruzam personagens típicas de todas as profissões e escalões sociais, nomeadamente o
sector terciário; o romance de António de Assis Júnior O Segredo da Morta desenrola-
se entra costa marítima e uma faixa interiorana que não ultrapassará os trezentos
quilómetros, com percursos fluviais e terrestres, carregadores e comerciantes,
episódios rocambolescos e frases em quimbundo; a acção da trilogia de Castro
Soromenho (Viragem, Terra Morta e A Chaga) passa-se no interior de Angola e novas
personagens afluem à narrativa angolana: chefes tribais, funcionários administrativos,
exrevolucionários retraídos, comerciantes do mato, cipaios, etc.
Quando os poetas caboverdianos dispensam as alusões clássicas greco-latinas ou
renascentistas (em que era pródigo um José Lopes) e assumem a modernidade
discursiva e textual, configurando efeitos de referencialidade que passam pela
concreticidade da denúncia frontal ou velada da exploração, opressão e repressão do
sistema colonial, a literatura deixa de poder integrar pacificamente as antologias e
histórias da literatura portuguesa. Marcada por transparentes desejos de
emancipação, liberdade, autodeterminação e independência, a literatura africana, em
geral, fala-nos de conflitos sociais, do estatuto do colonizado, de guerras (de
guerrilhas) e de revolução, ainda que, muitas vezes, sob o manto diáfano da
criptografia.
Até 1942, ano em que Tenreiro publica a Ilha do Nome Santo, decorre
aproximadamente um século, decisivo para a formação das literaturas africanas de
língua portuguesa. A escrita dessas literaturas denuncia as hesitações entre uma
norma de raiz escolar europeia (lisboeta ou conimbricense) e um bilinguismo textual
inusitado e causador de eleitos de estranheza no público acaciano. A intencionalidade
de ruptura no circuito comunicativo preside à elaboração de alguns textos posteriores,
como se pode ver nas primeiras edições de José Luandino Vieira, nas quais as
epígrafes, em quimbundo, não eram traduzidas. Nos poetas do século XIX, o
quimbundo é traduzido no próprio poema, como acontece, por exemplo, com Kicôla!,
de Cordeiro da Mata. Nesse tempo havia condições propícias a tais práticas dialógicas,
que a 1 Guerra Mundial alterou bruscamente, modificando a estratégia universal em
relação às colónias.
Encerrado o ciclo da imprensa e da literatura livres de condicionalisrnos políticos,
abriram-se as portas à literatura colonial, apoiada por organismos do Estado
português. Uma torrente de prosa exótica sufocou a metrópole e ratificou o espírito
tarzanístico. Os intelectuais africanos retiraram-se para as suas associações culturais
ou políticas disfarçadas de recreativas e só muito esporadicamente criaram algo de
novo, na tradição do século XIX. Foi necessário esperar por 1936, em Cabo Verde,
1942, em Portugal, e 1948, em Angola, para que as literaturas africanas de língua
portuguesa não mais deixassem de ter sequência. Ao surto definitivo dessas literaturas
não são alheios os acontecimentos políticos e militares de 1936 a 1945.
De facto, a partir daí, é notório o enfeudamento à linha realista, «engagé» e
combatente, fartamente influenciada pelo afro-americanismo, o pan-negrismo, o pan-
africanismo, a negritude e o neo-realismo. Mário Pinto de Andrade, integrando o
moviemento Mensageiro, ainda esboçou uma escrita poética em quimbundo, que logo
abandonou, na altura talvez para não atiçar ou ratificar tribalices. O poema resultante,
junto com dois outros de Bernardo de Sousa e João-Maria Vilanova, é a excepção que
confirma a regra da língua portuguesa.
A edificação das literaturas africanas de língua portuguesa acompanha a
construção de um novo poder político, primeiro clandestino e, depois, triunfante. Os
homens que escrevem são os mesmos que pensam e que politicam. E fazem-no em
português, domesticando a língua em função das suas virtualidades e finalidades,
criando literaturas nacionais numa língua internacional.
O século que vai de 1850 a 1950 foi decisivo para a formação dessas literaturas. Os
últimos trinta e cinco anos têm sido decisivos para o seu desenvolvimento. Com o
advento da luta armada, três tendências se esboçaram, vindo a concretizar-se em
obras específicas: Iiteratura de combate (de e para a guerrilha), de «ghetto»
(publicada, sob a forma críptica, nas próprias colónias) e de diáspora. Os casos de
Pepetela, Manuel dos Santos Lima, João-Maria Vilanova, Costa Andrade, Jorge Rebelo
e Sérgio Vieira ilustram a primeira tendência. O Jofre Rocha de Tempo de Ciclo, David
Mestre com Crónica do Ghetto ou Corsino Fortes documentam a literatura de
«ghetto», que tanto pode ser alusão ao beco (com ou sem saída) da grande cidade
colonial, como metáfora do isolamento insular. A terceira tendência tem no Coração
em África, de Tenreiro, ou no poema «Havemos de voltar», de Agostinho Neto, a
confirmação de que a diáspora é saudosa mesmo das terras que pouco pisou (como
Tenreiro) e messiânica até à vitória final (como Agostinho Neto). Há também uma
literatura rústica, de fundamentação etnológica, como no caso de A Konkhava de
Fheti, de Henrique Abranches, ou de experiência pessoal, como em Uanhenga Xitu.
Os títulos da literatura caboverdiana elucidam-nos acerca do obsessivo terra-
longismo, que Manuel Lopes caracterizou lapidarmente: «a saudade das terras que
não conhece.» É o apelo da distância e do desconhecido, muito forte para quem vive e
escreve nos chamados meios pequenos insulares: «Hora di bai» (poema de Eugénio
Tavares) e Hora di Bai (livro de Manuel Ferreira): «Terra-Ionge», de Pedro Corsino
Azevedo; Poemas de Longe, de António Nunes; Marinheiro em Terra, de Daniel Filipe;
Linha do Horizonte, de Aguinaldo Fonseca; Cais Dever Partir, de Nuno Miranda;
Caminhada, de Ovídio Martins; «Caminho longe», título de poemas de Ovídio Martins,
Onésimo da Silveira, Gabriel Mariano e Terêncio Anahory e ainda de romance de Nuno
Miranda; «Carmin lon» poema em crioulo interpretado por Bana; «Carta de longe» de
Gabriel Mariano; Horizonte Aberto, livro de Sukre D’Sal; Viagem para Além da
Fronteira, de Teobaldo Virgínio; Distância, também de Teobaldo Virgínio; Beija do Cais,
ainda do mesmo autor. Finalmente, o percurso inverso, de retorno, em Cais-do-Sodré
té Salamansa, de Orlanda Amarílis.
Apostrófica, exaltante, apologélica, virulenta, denunciadora, a literatura africana
pode ser excessiva e grandiloquente como os poemas negritudinistas de Francisco José
Tenreiro, reflexiva e serena como a Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, barroca e
neurótica como a ruptura discursiva e textual de Luandino Vieira, humorística e cínica
como escárnio de João Pedro Grabato Dias. Contida, comedida, tranquila, expositiva, a
literatura pode dar-se como fingimento extremo e simular o real por inteiro, como na
máscara do Muana Puó, de Pepetela, burilar a palavra até à exaustão, para lhes extrair
sugestões e alusões étnicas e oníricas, como em Angola Angolê Angolema, de Arlindo
Barbeitos, conotações e ambivalências co-textuais, como em Monção, de Luís Carlos
Patraquim. Enfim, a literatura africana pode vociferar «tuji, patrão», como no poema
de João-Maria Vilanova, retomando as práticas bilinguistas de seus avós, ou render
homenagem aos «grupos de patriotas portugueses/operando na Metrópole ou no
estrangeiro – os do Socorro Vermelho/e os das Brigadas Revolucionárias, tal a nº
2,/que a base secreta da OTAN destruiu no Pinhal do Arneiro,/no lugar dito Fonte da
Telha», como se pode ler no Primeiro Livro de Notcha, discurso V, do caboverdiano
Timóteo Tio Tiofe.
As literaturas formam-se e desenvolvem-se como sistemas nacionais antes das
independências políticas. Desde a publicação de Espontaneidades da Minha Alma, elas
têm 136 anos de vida nem sempre activa. Desde a publicação de Nga Mutúri, passou
pouco mais de um século. Somente meio século nos separa do primeiro número da
revista Claridade. Do meio do século para cá, os poetas profetizaram a mudança:
«veemente ressurreição!» (Osvaldo Osório); «veemente de ressurreição!» (Rolando
Vera-Cruz); «nova gestação» (David Mestre); «sonhando co’a vida» (João-Maria
Vilanova) «edificam novos tectos» (Cândido da Velha); «a alforria ansiada» (Jofre
Rocha); Tempo do Ciclo (Jofre Rocha); «alvorecer de esperança» (Jofre Rocha);
«exigindo novas vestes» (Álvaro Novais); Sagrada Esperança (Agostinho Neto); Vidas
Novas (José Luandino Vieira); «nova Aurora» (Yolanda Morazzo); «llhas renascidas /
nuvens libertas» (Arménio Vieira); «gritarem de esperança» (Tomás Medeiros);
«fomos nós o sonho» (Costa Andrade).
Cumpriu-se a alforria ansiada e já as literaturas africanas se defrontam com os
novos poderes: Mayombe, de Pepetela, publica-se porque o Velho dá o seu
consentimento contra ventos e marés; Os Anões e os Mendigos, do Manuel dos Santos
Lima, a maior diatribe ficcional desde sempre, sai com a chancela de uma editora do
Porto e o autor nunca recebeu resposta a pedidos de leitura do original que enviou a
outras editoras e instituições, não só de Portugal; a pretexto de uma representação
(gravosa para o Presidente angolano) da peça No Velho Ninguém Toca, o autor, Costa
Andrade, esteve preso durante mais de um ano em Luanda. Isto só pode significar que
as literaturas africanas estão mais vivas do que nunca, e os escritores, críticos como
sempre. Não sei quando começou nem quando terminará o século decisivo das
literaturas africanas de língua portuguesa, mas estamos a vivê-lo: une a paixão
amorosa e a (pa)ciência do texto se conjuguem em verbos mais que perfeitos!
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, F. C.
Gulbenkian,1987.
10. O PÓS-COLONIAL NA POESIA AFRICANA DE LÍNGUA
PORTUGUESA
Inocência Mata
Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa
Locha Mateso, o crítico congolês (do ex-Zaire, hoje República Democrática do Congo),
refere, logo de início do seu livro La Littérature Africaine et sa Critique, de 1986,o facto
de a atenção, nos estudos literários africanos, estar sobretudo centrada nos autores e
suas obras, não havendo uma preocupação com a “recepção”, que constitui o outro
pólo da comunicação literária. Se é verdade que hoje, quinze anos depois, a crítica de
Locha Mateso talvez não tenha razão de ser, também é verdade que nos estudos
literários africanos de língua portuguesa a preocupação com a história literária é
recente – apesar de, ainda sem as aquisições das teorias da história literária, ser de
elementar justiça citar os trabalhos de Manuel Ferreira, de Mário Pinto de Andrade e
(embora apenas no âmbito angolano) de Carlos Ervedosa. Isto é, após um longo
período de estudos de natureza sincrónica, de alcance vertical, a incidência da
actividade da crítica tem-se virado para a natureza das metamorfoses das estratégias
textuais que apontam tanto para um novo mapeamento do discurso ideológico e
cultural dominante como para novas configurações estéticas que a dinâmica da
História – vale dizer sobretudo, o pós-colonialismo – tem imposto e para o
desvelamento das suas suposições (suposições da História) a partir de outros “locais da
cultura”. Portanto, um aspecto que remete tanto para as metamorfoses por que têm
passado as formas que hoje canibalizam as próprias matrizes estéticas “da tradição”
(digamos, “consagradas”, em vez de canónicas), ao mesmo tempo que propõe outro
discurso, quanto para a (re)leitura como para a (re) escrita de temáticas já sublinhadas
como ainda.
Estudos sobre o pós-colonialismo1 , sobretudo de tradição anglo-saxónica, ainda
discutem o alcance desta idéia: alguns entendem-na como referente à situação em
que vive(ra)m as sociedades que emergiram depois da implantação do sistema
colonial, enquanto para outros o “pós” do significante “colonial” refere-se a
sociedades que começam a agenciar a sua existência com o advento da independência.
Nesta acepção, o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade que reflecte
sobre a sua própria condição periférica, intentando adaptar-se à lógica de abertura de
novos espaços, de que fala Kwame Anthony Appiah2 . E os significantes desses (novos)
espaços apontam tanto para novas corporizações e legitimidades socioculturais como
para um compromisso na adaptação da tradição às exigências de um mundo cujos
mecanismos de regulação ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição. Assim,
pode pensar-se que uma das marcas desse gesto de abertura de novos espaços,
portanto, da condição pós-colonial, é tanto a recusa das instituições e significações do
colonialismo como das que saíram dos regimes do pós-independência. Exemplos
significativos dessa recusa, sob o signo de uma consciência pós-colonial, encontramo-
la em obras emblemáticas da literatura africana, como a do escritor costa-marfinense
Amadou Kourouma, Les Soleils des Indépendences publicado em 1964, do nigeriano
Chinua Achebe, A Man of the People, de 1966 (cuja tradução portuguesa, pela Editorial
Caminho, é Um Homem Popular, 1988), do camaronês Mongo Beti com o seu romance
Remember Ruben (também há tradução portuguesa) ou do maliano Yambo
Ouologuem, autor de Le Devoir de Violence (1967).
Convencida de que, não obstante as diferenças – que decorrem de “variedades da pós-
colonialidade africana” (R. Hamilton3) –, as literaturas africanas de língua portuguesa
têm-nos oferecido configurações temáticas da pós-colonialidade que já vêm sendo
actualizadas em outros espaços geo-poéticos. São algumas dessas marcas que
pretendo trazer à consideração: é que elas me parecem motivadas pela sua condição
pós-colonial sobretudo se comparadas com configurações similares do período
colonial e o imediatamente pós-independência. Esse corpus de novas configurações –
que vou designar como dimensões da pós-colonialidade – operadas no sistema
literário dos Cinco revelam-se, quanto a mim, motivadas por uma consciência que
evoluiu da sua condição nacionalista e sente agora necessidade de repensar o país que
não mais se encontra em fase de nacionalização ou na condição de emergência mas
sim do agenciamento da sua emancipação.
Por isso, tão amarga quanto a consciência anti-colonial nas literaturas africanas de
língua portuguesa é também a consciência pós-colonial, na visão mais emblemática da
perda inocência, e confrontada com o começo do tempo da distopia: através de
situações que representam uma reedição dos objectivos e métodos do “antigo
período”, colonial, pelo “novo período”, o do pós-independência, é posto a descoberto
o modo como este também participa na “larga história de crueldade em que o
colonialismo é uma página a mais.”4
No entanto, apesar das similitudes, julgo que as literaturas africanas têm
significadores que resultam em significações que fazem a(s) sua(s) singularidades(s).
Uma dessas singularidades é a existência de uma intelligentsia, uma classe de letrados
– chamemos-lhe elite intelectual, para simplificar – multirracial, feita de contribuições
originárias de entidades que, simbolicamente, se antagonizavam. Como assinala
Aníbal, de A Geração da Utopia, “uma elite intelectual de causar inveja a qualquer país
africano. Elite citadina, transitando tranqüilamente da cultura européia para a
africana, acasalando-as com sucesso, num processo que vinha de séculos”5 . A postura
ideológica anti-colonial e nacionalista dessa elite, a reivindicação cultural e política que
realizava, apenas simbolicamente antagonizava os significantes negro/branco. E isso
ainda no período colonial. Vários escritos corroboram essa proposta de
complementaridade e de coligação contra a dominação: ainda em 1942, Francisco José
Tenreiro já revela no poema “Canção do Mestiço”6 um sujeito poético feito do negro
e do branco que, manifestando-se na figura do sujeito da enunciação, está
privilegiadamente posicionado na fronteira entre os dois mundos – isto é, na
“fronteira do asfalto” (LUANDINO VIEIRA, A Cidade e a Infância, 1957) e aproxima os
dois mundos: “Quando amo a branca/Sou branco/Quando amo a negra/Sou negro/
Pois é...”. Portanto a proposta, ou a possibilidade de complementaridade de opostos,
ou de pseudo-divergentes, por ser recorrente, pode ler-se como uma componente da
anti-colonialidade que se vai transformar num dos parâmetros da nossa expressão
literária pós-colonial.
A demanda pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa a que fiz
referência anteriormente reporta-se, também, à imposição que ao escritor é feita de
“consumir” os seus próprios “preconceitos”7. Esses pré-conceitos de que falo dizem
respeito tanto a configurações anteriores, que enformam a “tradição literária africana”
e a memória dela, como aos códigos estéticos do contexto no qual elas se afirmaram.
E, isto, remete-nos para a segunda demanda do pós-colonial que aponta para a
reescrita e a repaginação da(s) identidade(s) cultural/ais, segundo estratégias que não
apelam à ruptura, antes remetem para um processo de remitologização. A ideologia
libertária, exclusivista por natureza e necessidade, revelava-se pouco dinâmica para
responder aos desafios da modernidade: não é por acaso que Mayombe, um romance
escrito ainda em 1971, durante o tempo da guerrilha, só tenha sido publicado em
1980, quando os sinais da utopia político-social já começavam a manifestar-se de
forma evidente. Seguem-se Quem me dera ser onda (1982), de Manuel Rui, Os Anões e
os Mendigos (1984), de Manuel Lima, O Cão e os Calus (1985) de Pepetela, em Angola;
Vozes anoitecidas (1986) e Cronicando (1988), de Mia Couto, em Moçambique; O
Eleito do Sol (***), de Arménio Vieira, em Cabo Verde; A Berlinização ou Partilha de
África (1987), de Aíto Bonfim8 , em São Tomé e Príncipe. Vale a pena não esquecer
que os escritores citados são autores de obras celebrativas, eufóricas e solares em
termos de afirmação da identidade cultural e dever patriótico9 .
Tal como a literatura anti-colonial, na fase de emergência, existência, consolidação e
individualização nacional, mobilizou estratégias contra o discurso que considerava a
produção literária de África como “ultramarina” – para afirmar a diferença e
reivindicar a pátria –, também a actual escrita africana mobiliza estratégias contra-
discursivas que visam a deslegitimização dum projecto de nação monocolor pensado
sob o signo da ideologia nacionalista. Para reescrever a visão uniformizante de pátria,
em que Homem e Natureza se encontravam vinculados à Pátria, como acordes de uma
mesma sinfonia, a nova literatura opta por representar a alteridade, celebrando as
várias raças do homem; para reescrever a visão eufórica da História dos sujeitos
africanos10, as exigências da consciência contrapõem agora uma contra-epopéia
política e social que visa referenciar a transformação dos ideais agónicos. Mas, a
particularidade dessa reescrita consiste não na invenção de um outro lugar totalmente
outro, mas na proposta de uma deslocação dentro do mesmo lugar (Boaventura de
Sousa Santos)11 , para nele agenciar tanto a catarse dos lugares coloniais como os
tensões pós-coloniais, como em A Varanda do Frangipani (1996) que,
deliberadamente, baralha lugares e tempos históricos para significar que a sua
diferença, sendo de natureza (colonial/pós-colonial), é também de olhar: numa
sociedade em que “já ninguém respeitava os velhos”, como amargamente considerava
Salufo Tuco, Xidimingo, colono branco, encontrou nos outros velhos do asilo, negros, a
verdadeira dimensão da solidariedade humana. Também romances como Mayombe, A
Geração da Utopia (1992), Parábola do Cágado Velho (1996) ou Ventos do Apocalipse
(1993), “metaficções historiográficas”, obras que buscam na História a sua própria
existência simbólica, funcionam com uma lógica antiépica que acaba por referenciar os
ideais agónicos da revolução e do nacionalismo, através do despertar de vozes e
memórias que na utopia político-social não tinham lugar. Estamos, assim, perante um
contra-discurso que intenta a mudança no contexto do discurso dominante (e no
âmbito do que tenho vindo a considerar o discurso dominante é a “literatura
consagrada” com nomes emblemáticos que todos conhecemos nas quatro
literaturas)12 – gerindo as suas potencialidades e as suas limitações quanto a uma
“renovação discursiva”.
Consoante a intenção dessa renovação, as estratégias contra-discursivas tomam
formas diversas. Por exemplo, em Pepetela consistem no destecer das teias do logro e
sombras da História – e nisso reside a originalidade da sua escrita. A inovação contida
na obra romanesca de Pepetela reside no repovoamento da paisagem e na
remitologização do espaço da utopia roída pelos descasos da revolução.
Diferentemente do que acontece em Estação das Chuvas (1996), de José Eduardo
Agualusa, ou no já citado Os Anões e os Mendigos, de Manuel dos Santos Lima, em
Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso, e até alguns dos pequenos contos de Da
Palma da Mão (1998), de Manuel Rui – nestas narrativas a morte do país anuncia-se
irrevogável: “este país morreu”, diz uma das personagens de Estação das Chuvas – um
pretérito que retira a possibilidade de revitalização, de qualquer restituição vital e,
portanto, a impossibilidade liminar da utopia. Mas a corroborar a idéia de que “é a
imperfeição do mundo que justifica a utopia, que a torna incontornável, inevitável”13 ,
a obra romanesca de Pepetela, mesmo aquela em que o desencanto é intenso como
em A Geração da Utopia ou em O Desejo de Kianda (1995), contorna a distopia e
antecipa um outro “desejo utópico” não se esgotando um pretérito sem remissão –
veja-se a reinício sugerido de A Geração da Utopia: não pode haver ponto final numa
história que começa por “portanto”.
Outra marca importante da nossa pós-colonialidade literária tem a ver com o lugar e o
modo como o escritor africano trabalha e se posiciona na língua portuguesa. Do
passado para o presente, a escrita já não denuncia qualquer tensão na expressão da
cultura e da vivência do falante, como em Mestre Tamoda (1974) de Uanhenga Xitu,
cuja significação não se esgota na africanização da língua portuguesa mas passa
também pela tematização do desfasamento entre a estruturação cultural da língua
portuguesa e a expressão de uma vivência conduzida em lugares não harmoniosos de
convivência de diferentes (o português e o kimbundu, a cidade e o campo, a letra e a
voz). Mais do que a africanização do português, em Uanhenga Xitu o que é tematizado
é a oraturização do sistema verbal português: ora, este é um processo que ultrapassa
o código lingüístico e se expande por terrenos translinguísticos como a onomasiologia
(a onomástica e a toponímia, sobretudo), a cenarização (o registo das vozes, a rítmica
da dicção e a representação dos gestos) e a sugestão musical. Todos esses recursos de
narração rubricam-lhe uma forma mimética e permitem identificar, na fala narrativa, a
interacção entre a escrita e os textos não escritos incorporados na cultura local, que se
dão a conhecer em português.
Diferentemente de Uanhenga Xitu, Luandino Vieira faz emergir as suas personagens de
um contexto tendencialmente monolingue, regularmente escolarizado e de uma
cultura urbana e, naturalmente, resultando de um processo transculturativo. A obra de
Luandino, em Angola e na literatura africana de língua portuguesa, é expoente da
invenção de uma linguagem literária através da qual comunicou mensagens
subversivas – uma linguagem literária que emerge de uma linguagem “letrada” e
recriativa, como a de João Vêncio ou de Lourentinho. Enquanto em Uanhenga Xitu a
dimensão babélica é sugerida pela confrontação de identidades sociais e culturais, que
as diferenças das expressões lingüísticas das personagens encenam – diferenças que
remetem semanticamente para a dispersão e para a recusa de um código de
comunicação totalitário –, em Luandino Vieira a reinvenção metalingüística é uma via
de resistência e atributo de consciência perante a ambiência insuportável à volta:
pressão interior e espiritual, opressão sociocultural e política. Por exemplo, em
“Estória de Família (Dona Antónia de Sousa Neto)”, uma das três estórias de
Lourentinho, Dona António de Sousa Neto & Eu (1981), Tomás aconselha o jovem Paulo
a conhecer Assis – que este pensava tratar-se de um músico – pois “sem o Assis não
haverá poesia angolana”.14
Se a linguagem literária de Luandino, de intenção anti-colonial e contra a
desagregação identitária, indiciando um trabalho peculiar da língua, rubrica
significadores de universos socioculturais e perfis éticos e ideológicos, em Mia Couto a
língua, igual para todos, permite a singularização de cada uma das personagens,
enquanto o léxico desempenha um papel determinante na construção da identidade
colectiva e busca uma nova geografia lingüística, isto é, uma nova ideologia para
pensar e dizer o país15 . Em tempo pós-colonial, em Mia Couto a ludicidade não é o
resultado de um “simples” acto gozoso, embora se sobreponha ao empenhamento
político-ideológico sem, contudo, o rasurar pois que as falas do narrador e das
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Literaturas africanas de expressão portuguesa

  • 1. 1. A LITERATURA COLONIAL: FRONTEIRAS E DIFERENÇAS EM RELAÇÃO ÀS LITERATURAS AFRICANAS. *…+ A literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura superior. Exemplo: «o único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal» (prefácio de Manuel Pinheiro Chagas a Os sertões d’África, 1880, de Alfredo de Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: «É um homem na forma, mas os instintos são de fera», p. 87). Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente dinâmico e não o opressor: «Fiel aos nossos deveres de dominador, grata ao nosso orgulho, útil às populações», escrevia um homem anti-fascista, Augusto Casimiro (Nova largada, 1929). Predominavam, então, as ideias, da inferioridade do homem negro, que teóricos racistas, haviam derramado e para as quais teria contribuído o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da mentalidade pré-lógica, — sendo certo, embora, que a renunciou pouco antes de morrer. Logo no último quartel do século XIX se encontram os pioneiros desta literatura. Mas é no período 20/30 do século XX que ela vai atingir o ponto maior: na quantidade, na marca colonialista, na aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza motivado pelo exótico. Aí se destaca um naipe todo ele incapaz de apreender o homem africano no seu contexto real e na sua complexa personalidade. É certo que justo será destacar pela qualidade da sua escrita João de Lemos, Almas negras, 1937, porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um meritório esforço de análise e intenção humanística. Mas, escritor português, manietado pela distanciação colonialista, por norma, dá ao seu discurso um sentido racista hoje de inconcebível aceitação. Henrique Galvão: «A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos» (O vélo d’oiro, 4ª ed., 1936, p. 122); ou: «Era um negro esguio» [o Mandobe] que «dava a impressão [...] dum excelente animal de corrida» (p. 34); Hipólito Raposo (Ana a Kalunga, 1926) na glorificação mística imperial: «Queimados no ardor silencioso de Golfo, em todo o peito português vai estremecendo o marulhar heróico dos Lusíadas» (p. 21), e outros (muitos) como António Gonçalves Videira, João Teixeira das Neves, irmão de Teixeira de Pascoaes, Brito Camacho, Contos selvagens (1934). Prolonga-se este tipo de literatura até aos nossos dias, com tendência, no entanto, para reflectir os efeitos de uma perspectiva humana ajustada à evolução das condições históricas e políticas, porventura o caso de Maria da Graça Freire (A primeira viagem, 1952) e, noutro aspecto, na actualização de uma linha que vem de Hipólito Raposo, citaríamos António Pires, (Sangue Cuanhama, 1949). Essa incapacidade de penetrar no mundo africano terminou por se instalar na consciência de um ou outro (poucos) mais atentos, mais apetrechados do ponto de vista teórico, como é o caso de
  • 2. José Osório de Oliveira, que se interroga a si próprio: «Conseguirei escutar nesta viagem, a voz da raça negra?» (Roteiro de África, 1936, p. 55). O tempo histórico, o tempo cultural, para quem, ideologicamente, era incapaz de se furtar à insidiosa instauração do fascismo em Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo (aí vinha já o célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a uma tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma reformulação da mentalidade do europeu. Hoje, não há lugar para dúvidas: muitas dessas obras estão condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas contigências de uma época e de uma mentalidade coloniais, evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real qualidade estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma severidade implacável e arrumará a quase totalidade desta literatura no discurso da acção colonizadora ou no nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado. Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, ICALP, 1977, vol.1., pp. 10-13. http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/eliterarios/006/bb06.pdf 2. GUERRA COLONIAL E GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL O tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa confere aos textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de uma pátria. O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir. Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial, notamos que ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo algum eufórica. Autores como Almeida Faria, Lobo Antunes e João de Melo, entre outros, insistem numa visão trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater para um espaço desconhecido e inóspito, com o qual não se identificavam. Não habitam heróis nas obras destes autores, mas anti-heróis fadados para o destino de uma guerra sem saída GUERRA COLONIAL & GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
  • 3. GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL Não foi pacificamente que os governantes portugueses cederam às pressões dos povos africanos, quando estes, conscientes do seu direito à autodeterminação, exigiram a devolução das suas terras colonizadas. A guerra eclodiu em 1961, mas desde cedo conheceu os seus opositores quer na sociedade portuguesa quer na comunidade internacional. Recusou-a o bom senso das novas gerações universitárias impelidas para uma guerra que não era a sua e governadas por uma entidade não disposta a escutar nem a dialogar com mentes rebeldes e desordeiras. Não admira, pois, que o governo tivesse sido alvo de conspirações e, por isso, desde logo estendido o seu braço da censura à intelligentia da época. Estava atento a casos como o do escritor Luandino Vieira que, radicado em Angola, intensificara a expressão da problemática africana, assumindo a própria língua autóctone. Foi ele quem mais longe chegou na informação estética da angolanidade e foi, sem dúvida, um eco de Angola perigoso ao regime. Notado pelo seu trabalho, foi, por um lado, preso pela PIDE e, por outro, premiado, em 1965, pela Sociedade Portuguesa de Autores pela escrita do seu livro Luuanda. Essa ousadia em apoiar literatura comprometida politicamente pagou-a a SPA com o seu encerramento por ordem governamental. No ultramar, grupos de trabalho empenhavam-se em começar a escrever a sua própria História numa perspectiva decididamente pragmática. É disso exemplo um manual da História de Angola escrito para ―revolucionários‖, publicado em Argel, no mês de Julho de 1965 e editado, dez anos mais tarde, pela Afrontamento, na sua colecção ―Libertação dos Povos das Colónias‖:
  • 4. ―É necessário que um revolucionário conheça a história do seu país. Muitos revolucionários dos nossos dias estudaram as grandes batalhas dos tempos antigos e aprenderam métodos de luta (tácticas) que foram muito úteis nas guerras revolucionárias do nosso tempo. Se um militante estudar a história do seu país, aprenderá como é enorme a força e a coragem das massas populares; aprenderá como elas sabem encontrar maneiras inteligentes e habilidosas de se defenderem e derrotarem os seus inimigos. O militante aprenderá a conhecer quem são os mais fiéis amigos das massas populares, ou então aqueles que mais facilmente podem traí-las, ou ainda aqueles que são seus inimigos.‖ (MPLA) Assiste-se ao nascimento de uma consciência nacional, nos espaços luso-africanos, também verificável nas manifestações literárias da época: a começar pela geração da ―Mensagem‖ (anos cinquenta) que, ao entoar o novo canto da angolanidade, via os seus escritores mais empenhados a serem progressivamente eclipsados por um aparelho policial, garante legal do obscurantismo instalado na colónia. As vozes de denúncia não se calaram, antes se ergueram para reclamar justiça: num crescendo de significado, a poetisa caboverdiana Alda do Espírito Santo, em 1958, começa por exigir que se castigue os carrascos da sua terra: O sangue caindo em gotas na terra homens morrendo no mato e o sangue caindo, caindo... Fernão Dias para sempre na história da Ilha Verde, rubra de sangue, dos homens tombados na arena imensa do cais. Aí o cais, o sangue, os homens, os grilhões, os golpes das pancadas a soarem, a soarem, a soarem caindo no silêncio das vidas tombadas dos gritos, dos uivos de dor dos homens que não são homens, na mão dos verdugos sem nome. Zé Mulato, na história do cais
  • 5. baleando homens no silêncio do tombar dos corpos. Aí, Zé Mulato, Zé Mulato. As vítimas clamam vingança O mar, o mar de Fernão Dias engolindo vidas humanas está rubro de sangue. – Nós estamos de pé – Nossos olhos se viram para ti. Nossas vidas enterradas nos campos da morte, os homens do cinco de Fevereiro os homens caídos na estufa da morte clamando piedade gritando p'la vida, mortos sem ar e sem água levantam-se todos da vala comum e de pé no coro de justiça clamam vingança... ... Os corpos tombados no mato, as casas, as casas dos homens destruídas na voragem do fogo incendiário, as vias queimadas, erguem o coro insólito de justiça clamando vingança. E vós todos carrascos e vós todos algozes sentados nos bancos dos réus: – Que fizeste do meu povo?... – Que respondeis? – Onde está o meu povo?... E eu respondo no silêncio das vozes erguidas clamando justiça... Um a um, todos em fila... Para vós, carrascos, o perdão não tem nome. A justiça vai soar,
  • 6. E o sangue das vidas caídas nos matos da morte ensopando a terra num silêncio de arrepios vai fecundar a terra, clamando justiça. É a chamada da humanidade cantando a esperança num mundo sem peias onde a liberdade é a pátria dos homens... Depois, o poeta-militante Agostinho Neto, no poema ―Luta‖, anuncia: Violência vozes de aço ao sol incendeiam a paisagem já quente E os sonhos se desfazem contra uma muralha de baionetas Nova onda se levanta e os anseios se desfazem sobre os corpos insepulcos E nova onda se levanta para a luta e ainda outra e outra até que da violência apenas reste o nosso perdão.
  • 7. E o verso de Jorge Rebelo faz-nos reparar na euforia do momento: «as balas começam a florir». De aí em diante, o tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa passaria a conferir aos textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de uma pátria. O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir. Esta era, de resto, a ―guerra justa‖, um instrumento que não se discute. Da literatura produzida na zona de guerrilha, destaca-se Pepetela, pseudónimo de A. Pestana dos Santos. A narração de As Aventuras de Ngunga (1972) ensinava aos pioneiros do Movimento Popular para a Libertação de Angola as características do bom guerrilheiro. Funcionalidade moral que leva Mayombe (outra obra do prosador Pepetela escrita em 1971) a não centrar a sua atenção nas acções de combate, embora as descreva pontualmente. Esta é uma obra que apresenta múltiplas reflexões que procuram dar corpo aos pensamentos das diferentes correntes e aos sentimentos dos diferentes grupos étnicos, etários, sócio-políticos e culturais. EU, O NARRADOR, SOU TEORIA. Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim e não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este
  • 8. problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta. Pepetela, Mayombe, Lisboa, Edições 70, 1988, 3ª ed., p. 16. Em Mayombe a noção de confiança é defendida como elemento imprescindível, comparável ao cimento que une as pedras de um edifício, isto é, os elementos de uma nação. É ela própria a força do grupo; é a necessidade de conquistar pessoas; é a direcção participada; é o necessitar de auscultar as opiniões dos outros; é, enfim, o saber estar colectivo na procura do equilíbrio. No fundo, Mayombe enaltece o povo angolano, justo e merecedor de uma paz duradoura, pelo passado sofrido da maioria dos seus habitantes. Merecedor de uma política consciente e de políticos honestos, hábeis construtores de uma nação equilibrada, onde se possa confiar numa justiça imparcial, racional, capaz de atenuar os efeitos das dissenções étnicas. GUERRA COLONIAL Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial, notamos que ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo algum eufórica. Autores como Almeida Faria, Lobo Antunes e João de Melo, entre outros, insistem numa visão trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater para um espaço desconhecido e inóspito, com o qual não se identificavam. Não habitam heróis nas obras destes autores, mas anti-heróis fadados para o destino de uma guerra sem saída. José Maria de Aguiar Carreiro
  • 9. ―Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe‖ (1973), escultura de Clara Menéres (Fonte: Panorama da arte portuguesa do século XX, Fernando Pernes Porto, Campo das Letras, 1986, p. 265.) ―Jaz morto e arrefece o império de sua mãe.‖ Margarida Calafate Ribeiro Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo Porto, Afrontamento, 2004 (Clique aqui para consulta online) OS CORPOS vede que jazem à minha frente a pele citrina da morte biliosa os habita espécie de pacto sobre tudo isto que vedes a maneira de olhar o sangue
  • 10. calar a revolta este pânico entreaberto nos olhos dos cadáveres e os coágulos duros deste sol há uma mentira acreditável em quem vê as armas caídas ao lado destes corpos cumplicidade de admitir nos mortos a espera da nossa morte vede que jazem estes membros como insónia sobre os corpos destruídos das granadas perfil rígido das metralhadoras para sempre presas no sovaco cratera da nossa boca de comer e tanto vomitar a guerra mas vede também que ira interrompida se morde contra a morte sobre estes mortos João de Melo, Navegação da terra Lisboa, Editorial Vega, 1980, 1ª ed.
  • 11. ATÉ HOJE: MEMÓRIAS DE CÃO Não seria nome de guerra — Uíje — pintadas letras negras no casco cinzento, letras simples, másculas, a boca espremida no contra-senso da pronúncia — Uíje — os lábios contraídos, aguados. Seria nome de rio, de província com rio, sabor exótico, leito imprevisível com margens insondáveis, cacofonia de África portuguesa em pé de guerra, de derrames viscerais de culturas anti-natura, os longos e duros séculos coloniais em ressaca. Nem nome de guerra, rio, província, seria aquele ―Uíje‖, agora em aspas, enorme batelão desgraçado de luxos e cruzeiros. Era nome de barco por conta do Exército, com os porões desventrados, sorvia batalhões de homens forrados de moreia, empilhados, náusea sobre náusea, o oxigénio consumido, suor destilado, uvas na prensa — vinagre ou fel do cálix português na viagem incolor de encontro à guerra. la-se naquele barco com a alma dependurada no gancho da dúvida. 1253 homens carregados em Alcântara. Nem todos voltariam — sabia-se. A guerra era a guerra, cosida com as linhas da morte. Cobras, escorpiões, jacarés, o micróbio das águas, as febres — cuidado! A cobra vê-se, o jacaré avista-se, o escorpião sente-se. ―Não bebam água
  • 12. sem ser filtrada‖, mesmo quando filtros não há. ―A sede não mata, a febre palúdica derruba-se com quinino‖. Nem uma palavra sobre os efeitos da bala, do cogumelo de estilhaços da granada, das razões que assistem ao poder do canhão. ―O inimigo não conta! Mata-se, simplesmente... É lorpa! O inimigo é preto por ignorante, sinónimo de escravo por vocação...‖ O arrazoado seguia monótono e talvez cabal, contraditando notícias, relatos, o número dos mortos, as zonas impenetráveis, o internacionalismo do problema. Beberam ódio em doses maciças contra o inimigo de quem não sabiam nem a forma nem a força. Álamo Oliveira, Até Hoje: Memórias de Cão Lisboa, Edições Salamandra, 2003, 2ª ed. (Ulmeiro, 1986, 1ª ed.) Para finalizar este post, remeto os leitores para o Diário de um combatente, uma página online sobre a guerra colonial, com fotos da época, poemas e diário de guerra em Angola, entre Abril de 1961 e Março de 1963. O ex-combatente é Joaquim Coelho. Do Caxito até Quitexe – ATRIBULAÇÕES No posto de controlo do Cacuaco, enquanto as viaturas pararam até à abertura da cancela, alguns pára-quedistas saltaram para o campo de cana-de-açúcar e colheram troncos de cana que guardaram na mochila. Os mais experimentados sabem que, nos dias de jejum passados nas matas dos Dembos, as canas vão saber a pão-de-ló. Os comandantes de pelotão aproveitaram a paragem para acertar as últimas estratégias contra os possíveis ataques da guerrilha. […] O Alfredo diz guardar todo o seu fogo e desejo para a Maria Isabel, sua noiva. Mas não deixa de assediar as jovens negras que vão à porta do acampamento entregar as roupas
  • 13. lavadas. Tem um poder extraordinário para cativar as gajas, que na conversa lhe pedem mais uns centavos e ficam na brincadeira até se zangarem, quando o Alfredo lhes passa a mão por baixo da capulana e apalpa a carapinha entufada. Elas são recatadas e riem muito, dizendo: – Ih! Alfredo quer é foder a gente. Sempre a rir e a pregoar, lançou o aviso: – Ainda é menina e não quer home p’ra fodê. Mas algumas já deliravam quando sentiam as mãos a espremer os mamilos, e com o calor da descarga que lhes inundava a passarinha. Esfregam-se bem, antes de entesarem o parceiro, e gemem com uma boa penachada. Andam por ali a cirandar, logo bamboleando as ancas como um chamariz que desperta a atenção dos soldados que acompanham as colunas de reabastecimento. Às vezes até são descaradas na forma de mostrar o decote, despertando a libido que está ao rubro, intensificando o desejo e as emoções dos soldados, que ficam sem controlo. Elas riem, percebendo que o membro ganha volume e os pensamentos ―mergulham‖ no meio das coxas de qualquer mulher! A gente assim carente logo quer tocar nas peles acetinadas e apalpar as mamas avantajadas para manter o diálogo de volúpia e conquista... Mesmo no divertimento com o membro entesado, elas riem. As químicas do amor carnal também cristalizam os sonhos de amores ausentes, e não têm limites na relação corporal. Os prazeres estão nas coisas simples e são temperados pelos gestos dos corpos que levam ao êxtase das infinitas delícias da vida.
  • 14. O ÚLTIMO GOLPE DE MÃO Na estrada do Piri, aos solavancos para as matas do Quitexe as viaturas loucas avançam... atentos ao bandido que ainda mexe vão os soldados de fatos às cores só para se confundirem no capim. Para trás deixam os tenros amores! as bebedeiras de poeira sem fim obrigam ao silêncio das gargantas, em cada curva da picada sinuosa o perigo esconde-se nas plantas! Os gananciosos obreiros coloniais Já não se afoitam como dantes... recolhidos ao aconchego da cidade, vivem rodeados de criados e amantes.
  • 15. E nós, combatentes e detestados, estamos a comer o pó do sertão, enquanto caminhamos sufocados até ao derradeiro golpe de mão! (Quibaxe) Joaquim Coelho O Despertar dos Combatentes. Fotos com estórias em Angola Clássica Editora, 2005 Uma visão esquecida e inconveniente para muitos! Considero-me mais conhecedor sobre esta temática após ler o seu texto. Estou-lhe grato por isso. A divulgação destas verdades históricas tornou-se uma urgência nos nossos dias para que se evite o branqueamento da responsabilidade deste drama da nossa história colectiva recente. Eram vários os quadrantes políticos interessados no desmembramento da última potência colonial. Villemarest (em ?História Secreta das Organizações Terroristas?, tomo IV, inteiramente dedicado ao caso português) fala da ?Trilateral?, uma força em expansão, controlada pelos grandes capitalistas da Europa, Japão e Estados Unidos, que não hesitam em pactuar com os comunistas e afins para auferir melhores proventos. Assim, a vontade legítima de separatismo dos povos africanos foi aproveitada por forças externas movidas por interesses próprios para as quais pessoas e nações mais não são do que joguetes. O problema é que os regimes extremos tocam-se no que há de pior, impedindo o florescimento de uma sociedade democrática. Em matéria de descolonização, não ignoro os erros cometidos pelos políticos e patentes elevadas dos militares portugueses. O processo de descolonização foi um fruto podre da anarquia com que mergulhou Portugal nos meses imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974. Veja-se, por exemplo, o que escreve António José Saraiva no ?Diário de Notícias?, num artigo datado de 26/01/1979: ?os militares, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.?
  • 16. About josecarreiro JOSÉ MARIA DE AGUIAR CARREIRO. Página pessoal: http://folhadepoesia.com.sapo.pt Plataforma de apoio pedagógico ao estudo da língua portuguesa: http://lusofonia.com.sapo.pt 3. LITERATURA COLONIAL E PÓS-COLONIAL A literatura colonial, identificada com um conjunto de textos que inclui romance, poesia, narrativas de viagem, relatos de missionários, diários, livros de notas e outros que propagandearam a ideia de império sobretudo a partir do século XIX , tem origem em textos muito anteriores aos quais vai beber metáforas e imagens, como sejam as descrições de selvajaria de Heródoto, os relatos de Marco Polo, Mandeville ou Haklyut. Seria, contudo, na viragem do século, com a expansão colonial como a Inglaterra e a França, que iria desenvolver-se. A África, continente redescoberta pelos europeus nos anos 80 do século passado, surge então como cenário de inúmeros textos de autores como H. Rider Haggard, John Buchan, Mary Kingsley, Florence Dixie ou Joseph Conrad em Inglaterra e Pierre Loti, Paul Vigne D’Octon ou Paul Bonnetain em França. Também o império britânico na Índia é tema de Rudyard Kipling, E. M. Forster, G. A. Henty ou Alice Perrin. Quanto à literatura pós-colonial considera-se, em geral, que tem início após a II Guerra Mundial sendo definida por Elleke Boehmer como “a literature which identified itself with the broad movement of resistence to, and transformation of, colonial societies.” (Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, Oxford University Press, 1995, p. 184). Entre as duas barreiras temporais citadas encontra-se todo um conjunto de textos que registam diferentes atitudes face ao império e que não poderão enquadrar- se numa designação única, já que, segundo a mesma autora, “initiatives which we now call postcolonial first began to emerge before,the time of formal independence, and therefore formed part of colonial literature” (Op.cit., p.5). Na verdade, já em Conrad e Forster se registam atitudes de resistência ao poder colonial, as quais iriam também encontrar expressão nos anos 20 e 30 nas obras de autores como Léopold Sédar Senghor (Senegal), Aimé Cesaire (Martinica) ou Bernard Binlin Dadié (Costa do Marfim). Vivendo em Paris, estes escritores tornaram positiva a imagem de “negritude”, anteriormente identificada como negativa e inferior pelo colonizador, passando a celebrá-la enquanto símbolo do institivo e misterioso da África negra. É, porém, o movimento anti-colonial que se sucede a 1945 que traz consigo a literatura pós-colonial de que são exemplificativos autores como: Chinua Achebe, George Lamming, Ana Ata Aidoo, Alice Munro, Margaret Atwood, patrick White (Prémio Nobel, 1973), Wole Soyinka (Prémio Nobel, 1986), J. M. Coetzee, Peter Carey ou Nadine Gordimer (Prémio Nobel, 1992, apenas para citar alguns. É de salientar que a partir dos anos 70 grupos cujas obras não eram até então consideradas passam a figurar na literatura pós-colonial. São eles as mulheres (Am Ata Aidoo, Bessie Head, Keri Hulme, Michelle Cliff, Erna Brodber) e os povos indígenas (p.
  • 17. ex., os australianos aborígenes Sally Morgan e Mudrooroo ou os neozelandeses maori Witi Ilhimaera e Patricia Grace). A eles se junta um terceiro grupo, os chamados migrant writers. Por diferentes razões, que vão desde a opção profissional ao exílio político, autores de nações outrora colonizadas passam a residir em Boston, Nova Iorque, Londres e Paris. É o caso de Salmom Rushdie, Ben Orki ou V. S. Naipul. É também nos anos 70 que tem início a crítica literária pós-colonial, nomeadamente em 1978 com a publicação de Orientalism de Edward Said também ele migrant writer nos EUA e também ele, como Rushdie, com as suas obras actualmente banidas na Palestina. Desde então, a obra de Said tem dado origem a uma vasta bibliografia de análise crítica às suas teorias, bibliografia que muito tem influenciado as várias “leituras” de que têm sido objecto os textos coloniais e pós-coloniais. O que é sobretudo posto em causa na perspectiva “orientalista” de Said é o facto de este dividir o mundo em dois - o do colonizado - afirmando que o Orientalismo, que não existe na realidade sendo antes fabricado pelo Ocidente, constituir uma afirmação de poder por parte do colonizador ocidental face ao colonizado, sendo o primeiro sempre dominante e privilegiado do ponto de vista discursivo, social e político. Afirmações como “Orientalism depends for its stategy on this flexible positional superiority, which puts the Westerner in a whole series of possible relationships with Orient without ever losing him the relative upper hand” (Orientalism, Penguinm 1985), p. 7 têm sido postas em causa por vários autores. de uma forma ou de outra, todos apontam o reducionismo da metodologia de Said. Como afirma Bart Moore-Gilbert: “What unites such critics is a perception that said unifies homogenises the identity and operationality of colonial discourse to an unwarranted degree”(“Writing India, Reorienting Colonial Discourse Analyses”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, p. 5). Entre os críticos de Said destacam-se Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty Spivak. Partindo da psicanálise, Bhabha mostra como as relações entre colonizadores e colonizados não são homogéneas mas marcadas pela “ambivalência” (palavra-chave retirada da psicanálise) pondo em relevo a esfera insconsciente das relações coloniais e mostrando de que forma o sujeito colonial se converte em objecto de fantasia e desejo por parte do colonizador. Quanto a Spivak, põe em relevo a(s) história(s) do(s) “subalterno”(s), conceito que deve ser entendido como a diversidade dos grupos dominados e explorados sileciados pelo ponto de vista hegemónico da historiografia académica. Assim, propõe-se dar voz aos excluídos, nomeadamente às mulheres nativas subalternas, cujo ponto de vista nunca é ouvido, vítimas que são da visão de superioridade do feminismo ocidental que autora considera sinónimo dos comportamentos do colonizador face ao colonizado e, portanto, mera reprodução dos axiomas do imperialismo. Outros autores têm criticado Said e proposto novas formas de abordagem teórica sem, contudo, note-se, rejeitarem na íntegra o modelo orientalista. Porém, p. ex., Robert Young não deixa de apontar outros caminhos fazendo notar que não existe um modelo
  • 18. metodólogico para a análise de impérios como o português ou o espanhol ou para espaços geográficos que não a Índia, nomeadamente a África. Nos anos 90 as literaturas pós-coloniais encontram-se, tal como a metodologia crítica, numa fase de proliferação e mudança. Parece-nos que uma perspectiva comparatista poderia ajudar, já que é a que passou a ser adoptada para a própria História do colonialismo, como significativamente mostra o livro de Mac Ferro Histoire des colonisations (de notar a utilização do plural) recentemente traduzido para português e inglês. Por, e dados os exageros da teorização apontados por muitos críticos, torna-se sem dúvida, necessário, não só repensar a história das colonizações como regressar ao(s) texto(s). Bibliografia Martine Astier-Loufti, Littérature et colonialisme, 1971; L. Fanoudh-Siefer, Le Mythe du nègre et de l’Afrique noire dans la littérature française de 1880 à la 2è guerre mondiale, 1968; Bart Moore-Gilbert, “Introduction. Writing India, Reorienting Colonial Discourse Analysis”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, pp. 25-29; Elleke Boehmer, Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, 1995; Mac Ferro, Histoire des colonisations, 1994; A. Martinkus-Zump, Le Blanc et le noir, 1975; W. Edward Said, Orientalism, 1978; Robert J. C. Young, Colonial Desire, Hydridity in Theory, Culture and Race, 1995; Ania Loomba, Colonialism/Postcolonialism, 1998; Gaytri Chakravorty Spinak e Sarah Harasym, The Post-Colonial Critic (Interviews, Stategies, Dialogues), 1990; Billey Asbcroft, Gareth Griffithes e Helen Tiffin, The Post- Colonial Studies Reader, 1994; Iain Chambers e Lidia Curti, The Postcolonial Question: Common Skies, Divided Horizons, 1995; Eugene Benson e Leonar Conolly, Encyclopedia of Post-Colonial Literatures in English, 2 vols., 1994. © E-Dicionário de Termos literários de Carlos Ceia 2010 Quer na literatura colonial portuguesa quer na literatura colonial europeia, o homem branco é elevado à categoria de herói mítico, o sacrificado e desbravador das terras selvagens, o portador de uma cultura superior:
  • 19. “O único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal.” Manuel Pinheiro Chagas, 1842-1895. Neste sistema que afirma a superioridade de um grupo sobre outros, o negro é considerado inferior: “A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos.” Henrique Galvão, 1895-1975. http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ioZb0pnWa3w 4. LITERATURAS AFRICANAS ESCRITAS EM LÍNGUA PORTUGUESA: O PAPEL DA IMPRENSA E DO ENSINO PARA O SEU SURGIMENTO Imprensa A tipografia foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879). Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário oficial e religioso, mas que também incluía textos literários (sobretudo poemas, mas eventualmente crónicas ou contos). Em geral, no século XIX, com excepção de Angola, a imprensa foi menos importante do que seria de supor devido também à repressão. O semanário O
  • 20. Progresso (1868), de Moçambique, religioso, instrutivo, comercial e agrícola, teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir à censura prévia, que o proibiu. Um militante republicano, Carvalho e Silva, no início deste século, fundou quatro jornais, todos encerrados, o último dos quais assaltado, a tipografia destruída e o director agredido, de que resultou a sua morte. De facto, a história da imprensa não oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos, da colónia e de Lisboa. Com a República, até ao advento da lei de João Belo (1926) contra a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909-1918), O Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo sobrevivendo durante décadas e o último reaparecendo, mais tarde, noutros moldes (1941-55). Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, apareceu somente em 1920. Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a imprensa contribuiu decisivamente para o incentivo à criação literária, no quadro de limitação insular. A fundação do Liceu- Seminário de São Nicolau (Cabo Verde), nos anos 60 do século XIX, ajuda a explicar o nível de escolarização cabo-verdiana (a primeira escola primária surgiu em 1817). Curiosamente, cabo-verdianos e são-tomenses, vivendo em Portugal, na primeira metade do século XX, estiveram sempre muito activos na busca de uma identidade cultural e da consciencialização (proto-nacional ou simplesmente na produção intelectual desligada de intenções insulares. Basta recordar intelectuais como Viana de Almeida, Mário Domingues, Marcelo da Veiga ou Salustino da Graça Espírito Santo (de São Tomé e Príncipe) e Pedro Cardoso (de Cabo Verde). No século XIX, foi intensa e brilhante a actividade jornalística em Angola. Depois da criação do Boletim Oficial (1845), surge A Aurora (1855), jornal recreativo e literário. Mais tarde, aparece um jornal pugnando pela efectiva abolição da escravatura, para além da letra da lei, A Civilização da África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola. De 1860 a 1900, surge cerca de meia centena de títulos de jornais, artesanais e episódicos, mas de grande importância para o fomento da actividade intelectual e literária. Desde o Jornal de Luanda (1878), do escritor e advogado Alfredo Troni que marca a transição do jornalismo de cariz mais colonial para o proto-nacionalista, até O Futuro de Angola ou O Pharol do Povo, muitos contribuíram para a informação, elevação cultural e promoção das línguas e culturas locais. O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881), inaugurando duas décadas de frenética actividade jornalística (que se prolongaria, depois, até aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre africana, terminando exactamente com a fundação de A Província de Angola (1923), primeiro jornal de tipo moderno, industrial, que passou a quotidiano em 1926, perdurando ainda hoje as instalações ao serviço do Jornal de Angola. A censura, que já funcionava, aprimorou-se e acabou com as últimas veleidades de uma imprensa realmente democrática e livre.
  • 21. Na época florescente da imprensa livre, apareceram jornais escritos simultaneamente em português e quimbundo, como o Muen ‘cxi (= o senhor da terra) e o Mukuarimi (= o «linguarudo»), dirigidos por Alfredo Troni. Nos últimos vinte anos de Oitocentos, pugnaram por uma Angola autónoma, mais livre e desenvolvida, jornalistas- intelectuais como Arantes Braga, José Fontes Pereira de Melo, Pedro Félix Machado ou Cordeiro da Matta. No dealbar do novo século, algumas publicações literárias marcaram o desejo de emancipação dos «filhos do país», de que cumpre destacar as duas seguintes: • Voz d’Angola — clamando no deserto (1901), colectânea de artigos não assinados contra um artigo colonialista; • revista Luz e Crença (1902), cujo segundo número saiu um ano depois. Esta última era promovida pela Associação Literária Angolense, cuja sigla, «Liberdade, fraternidade, igualdade», alerta para os ideais republicanos. Pugnava-se por um espírito de instrução, autonomia política e crítica social e institucional. Foram líderes e nomes cimeiros desta geração, entre outros, Francisco Castelbranco, Silvério Ferreira, Paixão Franco, Lourenço do Carmo Ferreira e Domingos Van Dúnem (não confundir com o homónimo, nascido em 1925 e hoje embaixador do seu país na UNESCO). É, pois, através dos jornais que os letrados fazem a aprendizagem da escrita, vendo os seus escritos em letra de forma, assim modelando a própria concepção de intervenção literária, que ficaria marcada por essa prática intrínseca de concretude e explicitude, a não ser quando toda a sorte de preciosismos (saídos do ultra- romantismo, parnasianismo e decadentismo) tomava conta da efusividade lírica. Esse desígnio jornalístico — ou melhor, de comunicação social, à letra — marcaria decisivamente os escritores de África, que quase sempre assistiam à divulgação dos seus textos através de compilações e antologias, antes de os poderem ver estampados em livro, um objecto a que poucas vezes tinham acesso, por dificuldades de vária ordem (censura, perseguição, pobreza, desleixo, dispersão, etc., que foram aumentando em crescendo até à independência). Ensino A educação nas colónias portuguesas registava, ainda a entrada dos anos 60, níveis baixíssimos. O analfabetismo atingia, em Angola, quase 97%; em Moçambique, quase 98%; na Guiné-Bissau, perto dos 100 %; só em Cabo Verde o nível era mais elevado, rondando os 78,5%. O analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar uma elite muito restrita de assimilados para servirem no sector terciário, ao mesmo tempo que deixava as populações entregues a si próprias, sem permitir o seu auto- desenvolvimento ou, no pior dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou barata.
  • 22. Como escreveu o poeta angolano António Jacinto, em «Carta dum contratado» (1950): Mas ah meu amor, eu não sei compreender por que é, por que é, por que é, meu bem que tu não sabes ler e eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também! *…+ No começo do século XIX, os padres e párocos eram escassos nas colónias. Com o liberalismo, o ensino passou, em 1834, para o domínio do Estado, tomando-se laico. A partir de 1869, voltou a ser apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi lentíssimo. Em Angola, os grandes centros populacionais tinham escolas oficiais e particulares para brancos e nas zonas rurais havia as missões para negros. O ensino manteve-se, durante muitos séculos, exclusivamente a nível primário. Três anos depois da instauração da República, deu-se a separação da Igreja e do Estado, substituindo-se as missões religiosas por laicas, para, seis anos mais tarde, as missões católicas serem auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em Luanda, foi fundado o Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões civilizadoras» foram abolidas devido ao seu fracasso no terreno. A língua usada nas escolas e fora delas, por professores, missionários e auxiliares, era a portuguesa, que, com as línguas nativas, servia para o ensino da religião. Mas, até II Guerra Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas autoridades, não teve expressão. Após 1945, a política governamental procurou acelerar a assimilação, fazendo um esforço para generalizar o ensino primário, desenvolver o secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando instituições para a formação de professores. Todavia, o ensino superior, ao contrário de outras colónias, inglesas ou francesas, apenas estava ao alcance de um número muito reduzido de estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do início da luta de libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram instalados os Estudos Gerais, de nível universitário, a partir de 1963, nas cidades angolanas de Luanda, Sá da Bandeira e Nova Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os únicos territórios que deles beneficiaram. Os próprios movimentos de libertação nacional, de que resultariam os partidos no poder, após 1975, criaram o seu ensino e alfabetização, que não tiveram um verdadeiro alcance de massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de militantes na clandestinidade e faixas de população que os apoiavam. O MPLA, FNLA e UNITA (Angola), o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não tiveram tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir a escola colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO (1962) tinham essencialmente preocupações políticas e militares, mas dedicavam uma atenção especial às questões culturais. Os outros movimentos, nascidos de dissensões, nunca tiveram qualquer
  • 23. preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e Príncipe) nasceu pouco antes da independência. Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 18-21 ∆ 5. LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM FENÓMENO DO URBANISMO As literaturas africanas modernas, isto é, aquelas que se exprimem na língua de colonização, têm a sua emergência indubitavelmente ligada ao urbanismo *…+ Colonização que, como é sabido, levou à Africa tradicional factores de desestruturação que actuaram em todos os níveis da organização cosmológica das sociedades negras. Sociedades cujos sistemas de valores consuetudinários foram afectados, ou mesmo destruídos, pelo cartesianismo da filosofia colonizadora que, aliada ao cristianismo de raiz urbanizante, muito fez para despaganizar a cultura negra cujo animismo jamais conseguiu entender. Essa despaganização era acompanhada pelo sacrifício da ruralidade, enquanto imanência do binómio homem-natureza governado pela força vital, pelo muntu, garante da ancestralidade geradora do iniciatismo característico da civilização africana, abalando profundamente o mundo do homem negro, que foi existencialmente agredido por «la violente césure qu’a constituée l’intrusion de l’Europe chrétienne et cartésienne, et de l’Asie musulmane, dans un monde aussi animiste», como observa Amadou Ly (1983:37). Esse sacrifício da ruralidade abria caminho para o advento do urbanismo *…+ A cidade é, portanto, a realidade emblemática da colonização e do sistema colonial, a que ela conduziria, uma vez que, como referia Kane, ela, a cidade, é simultaneamente um polo catalisador e difusor dos valores culturais e civilizacionais de que os colonizadores eram portadores. Nestes termos, ela representa já um centro de aliciamento para todos aqueles que, no raio da sua influência lhe sentem o efeito, sujeitos que estão, a partir daí, ao poder atractivo que a novidade da cidade e dos seus costumes implica. A cidade passa, pois, a ser uma meta a atingir por aqueles que vêem nela a possibilidade de melhoria do seu estatuto social e económico e que, por isso, vão provocar um êxodo rural considerável, que vinha instalar-se, normalmente, nas zonas circundantes dos núcleos citadinos, onde, entretanto, se forjava uma burguesia constituída por brancos, alguns negros e alguns mestiços, disposta a marcar o ritmo da evolução cultural, enquanto se engrossava o caudal de despaganizadores que, atraídos pelos empregos gerados pela actividade comercial e industrial urbana formavam os
  • 24. muceques ou os caniços que punham a claro as assimetrias e as injustiças do sistema colonial cuja rede se entretecia. Transferido do seu espaço vital característico, onde a sua identidade cultural e civilizacional não era interferida por factores alienígenos, para um espaço outro, onde era forçado a outrar-se, pensando, ilusoriamente, que lhe seria permitido o ingresso na cidade e a participação na nova cultura, o homem negro vai acumulando frustrações, ao mesmo tempo em que cresce nele a revolta pela marginalidade a que o votavam, acentuando-se a sua dramática divisão interior entre a fidelidade de pertencer ao mundo tradicional e a necessidade económica de ter de viver, segundo modelos civilizacionais aniquiladores daquele. Esta dramática divisão é, por certo, a responsável pela geografia física quase labiríntica desses «bairros de areia» povoados por gentes das mais diversas proveniências etnolinguísticas e com as mais diversas ocupações, desde o operário industrial ao empregado comercial, ao amanuense, aos domésticos, às lavadeiras, aos cozinheiros, etc. O labirinto, em que se vai transformando o espaço dessas «areias babélicas», como diz Luandino Vieira, pode ser interpretado como uma garantia para os seus habitantes de que nele seria possível preservar e cultuar os valores culturais que são basicamente os seus, uma vez que o europeu, o outro, habitante da cidade de asfalto, seria incapaz de descodificar tão complexa semiótica espacial e, por isso mesmo, de perturbá-la com os ataques que, inevitavelmente, lhe dirigiria. Reduto da defesa de valores culturais e civilizacionais comuns, apesar das diferenças etnolinguísticas que nele coabitavam, o muceque interessa-nos literariamente numa tripla dimensão. Primeiro, como apêndice social colonial, onde se desenvolveu paulatinamente um proletariado que fecundou as sementes anti-coloniais que a própria colonização gerava em si. Segundo, como cadinho do português que servia naturalmente de língua de comunicação e que, usado por falantes de diferentes regiões etnolinguísticas, seria naturalmente sujeito a influências segmentais e suprassegmentais diversas que lhe moldaram a face característica da fala mucéquica, ponto de partida para o discurso verbal das literaturas africanas de expressão portuguesa. Terceiro, como instituição cultural e socioeconómica, fonte de inspiração para textos poéticos ou narrativos denunciadores do regime colonial de que o muceque era uma exemplar vítima, enquanto lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens civilizacionais. Esta tripla dimensão do espaço urbano — muceque — está presente, desde as origens, nas literaturas africanas de expressão portuguesa que, como outras literaturas africanas em língua de colonização, são verdadeiramente um fenómeno do urbanismo, isto é, alimentam-se essencialmente das contradições e da dialéctica sociocultural geradas pelo advento da cidade à África. Aqui poderíamos ser levados a concluir que tais literaturas nada teriam a ver com a literatura negra tradicional que, como se sabe, tem as suas raízes na ruralidade, na Terra, o que lhe dá uma marca profundamente telúrica. Todavia, conscientes de que «la voie la plus courte vers l’avenir est toujours celle qui passe par l’approfondissement du passé» (cf. Césaire), alguns escritores sempre procuraram trazer para o ambiente urbano, ou urbanizante, dos seus textos
  • 25. essa Africa tradicional da qual o homem negro, despaganizado pela colonização, não conseguia, nem queria, libertar-se. Até aos princípios dos anos 1940, porém, não existia ainda a oposiçào irredutível entre a cidade e o muceque. Apesar de tudo, enquanto o asfalto não chegou, ainda foi possivel um certo diálogo entre os dois espaços, como o atestam muitos textos africanos de expressão portuguesa, onde a infância é evocada como uma idade quase edénica que se vivia despreocupada das questões rácicas e sociais que o avanço avassalador do asfalto veio a criar. A infância é, sem dúvida, um dos temas que, nas literaturas africanas de expressão portuguesa, mais evidencia a sua origem urbana. Com efeito, quase todos os poetas e ficcionistas dessas literaturas glosam o binómio cidade-infância, como plataforma para uma escrita denunciativa e insubmissa. Outros exemplos poderiam ser citados, mas bastará recordarmos o título do primeiro livro de Luandino Vieira — A Cidade e a infância (1960) —, para verificarmos até que ponto é que esse binómio teve importância na emergência das literaturas africanas lusófonas. *…+ Luanda é muito mais a Luanda dos muceques do que a Luanda do asfalto, que a crescente europeização tornava cada vez mais estrangeira aos filhos do país e àqueles que a adoptavam como mátria ou pátria de criação literária. É esse, aliás, o sentido da conhecida «Canção para Luanda», de Luandino Vieira: A pergunta no ar no mar na boca de todos nós: — Luanda onde está? Silêncio nas ruas Silêncio nas bocas Silêncio nos olhos — Xé, mana Rosa peixeira responde? — Mano Não pode responder tem de vender correr a cidade se quer comer! «Ola almoço, ola alrnoçoéé matona calapau ji ferrera ji ferrerééé» — E você mana Maria quitandeira vendendo maboques os seios-maboque gritando saltando
  • 26. os pés percorrendo caminhos de todos os dias? «maboque m’boquinha boa dóce dócinha» *…+ As casas antigas o barro vermelho as nossas cantigas tractor derrubou? Meninos nas ruas caçambulas quigosas brincadeiras minhas e tuas asfalto matou? — Manos Rosa peixeira quitandeira Maria você também Zefa mulata dos brincos de lata — Luanda onde está? *…+ __________ Quitandeira: vendedora de frutas, hortaliças, aves, peixes, etc. Maboque: fruto de casca dura, verde, comido simples ou com açúcar. Luandino Vieira lançou, assim, a interrogação da busca da cidade, aliada da infância, que o urbanismo colonial fez desaparecer. A «fronteira do asfalto» e o tractor, símbolos da destruição desse espaço existencial compartilhado por brancos, negros e mestiços, geraram, portanto, o homem do muceque que, empurrado para a periferia geográfica e social da língua de dominação, vingar-se-ia dela, forçando-a a africanizar-se para dizer, através da literatura, a mensagem libertadora inspirada na tradição e apontada para a revolução. O escritor africano de expressão portuguesa, senhor desta nova fala que o urbanismo gerou nos muceques, conseguia, assim, ultrapassar, em parte, o exílio das suas personagens, através duma escrita que virava contra o colonizador a sua própria língua. *…+
  • 27. Parece-nos bem que a «tortura», a que o muceque submeteu a língua de empréstimo, modelando-a até limites expressivos, por vezes, impensáveis, neutraliza perfeitamente o exílio em que nasceu a escrita da moderna literatura africana de expressão portuguesa. O urbanismo colonial provocou, de facto, o exílio ao homem negro, despaganizando-o e afastando-o das suas raízes culturais e civilizacionais, mas, ao mesmo tempo e em atitude, por assim dizer, suicida, criou-lhe as condições para prometeicamente se vingar dele, por meio duma genuína expressão literária que não encontra paralelo em nenhuma das outras literaturas africanas em língua de colonização. Salvato Trigo, 1984 Ensaios de Literatura Comparada (Afro-Luso-Brasileira), Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-60 ∆ 6. PRECURSORES DAS LITERATURAS AFRICANAS Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha, de Moçambique, podem ser considerados como os precursores da literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético. A obra de Costa Alegre, vinda a lume em 1916, foi inteiramente escrita em Portugal, por voltas de 1880. O arquipélago de S. Tomé encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas estruturas sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos «filhos da terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco dessa tensão e não faz nenhuma menção precisa à conjuntura insular. Ela reflecte uma forma de tomada de consciência da condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era hostil, dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa Alegre refugia-se num universo de autocondenação racial. Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora, Tu és o dia, eu sou a noite espessa, Onde eu acabo é que o teu ser começa. Não amas!... flor, que esta minha alma adora. És a luz, eu a sombra pavorosa, Eu sou a tua antítese frisante,
  • 28. Mas não estranhes que te aspire formosa, Do carvão sai o brilho do diamante. (Costa Alegre, «Aurora», in Versos, 1946, p.26) Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos suscitados pela sociedade em que se desenrolou a sua existência. Sensível ao espectáculo da opressão, mas isolado na sua démarche, prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da sua impossível realização, em tanto que assimilado. Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe causava a vida das massas africanas, mas professa claramente a resignação. Rui da Noronha apela, à sua maneira, para a libertação africana, como testemunha o seu soneto «Surge et ambula»: Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério. Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo… O progresso caminha ao alto de um hemisfério E tu dormes no outro o sono teu infindo... *…+ Desperta. Já no alto adejam negros corvos Ansiosos de cair e de beber aos sorvos Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula... Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno... Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno Que a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula! Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma completa identificação com o seu povo. Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp.3-4 ∆ 7. MOVIMENTOS POLÍTICO-CULTURAIS DO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO
  • 29. DAS LITERATURAS AFRICANAS. 7.1. DOS RENASCIMENTOS NEGROS À NEGRITUDE A Négritude lançou as suas raízes até aos movimentos culturais protagonizados por negros, brancos e mestiços que, desde as décadas de 1910, 20 e 30, vinham pugnando por um Renascimento Negro (busca e revalorização das raízes culturais africanas, crioulas e populares) principalmente em três países das Américas, Haiti, Cuba e Estados Unidos da América, mas também um pouco por todo o lado. A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo surge nas Américas, principalmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas, como consequência das Luzes e do Romantismo que levaram à abolição da escravatura, à assunção romântica do Volksgeist [o sentimento e o espírito do povo], à identificação da real composição do mosaico cultural de raiz popular e, logo, nacional, e, finalmente, à possibilidade de, após a Revolução Francesa, os povos supostamente poderem assumir a liberdade e a igualdade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na ocorrência dos movimentos de independência ou do reconhecimento desta como alvará de igualdade cultural e social de todos os grupos sociais. Tal como no Renascimento europeu, os três conceitos e tipos de movimento político, cultural e literário implicam uma comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado próprio de cada povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo etno-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exactamente o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros dois, sem excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais nuns casos do que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles. O termo Négritude aparece no longo poema «Cahier d’un retour au pays natal», de Aimé Césaire, poeta da Martinica, que foi publicado na revista Volontés, 10 (1939). A palavra passou a nomear o movimento que se desenrolava por toda a década de 1930, nomeadamente em Paris, cadinho de estudantes, intelectuais e políticos que marcaram profundamente a vida política e cultural do mundo negro. *…+ Social e ideologicamente, a Négritude constituiu-se como o processo de busca de identidade, de conduta desalienatória e da defesa do património e do humanismo dos povos negros. Recusou a assimilação a modelos externos à história negro-africana, embora consciente dos contributos aculturativos, sobretudo nas cidades. A Négritude
  • 30. pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos modelos e motivos históricos das literaturas ocidentais. A poesia da Negritude distingue-se da restante literatura africana de língua portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras, qualificando-as com valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco: «o sangue negro, o sangue bárbaro» (Noémia de Sousa). Os triunfadores e mestres negros da diáspora e do próprio continente africano são aclamados como paradigmas exemplares a seguir pelos iniciados: Joe Louis, Jesse Owens (respectivamente, pugilista e atleta norte- americanos), Louis Armstrong (jazzman norte-americano), Césaire (negritudinista da Martinica), Toussaint Louverture (revolucionário haitiano oitocentista). Langston Hughes, Claude Mckay (líderes literários do renascimento negro norte-americano), Chaka (chefe guerreiro zulu), Nzinga (rainha jaga que lutou contra os portugueses no início da colonização), Senghor (um dos autores da Négritude). Nega-se, dessa forma, não o valor das culturas europeias (ou quaisquer outras), mas a sua dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial. Chega-se assim à recusa textual da «música fútil/das valsas de Strauss» (Noémia de Sousa), afirmando ironicamente: «cresçam sinfonias de Beethoven/e poemas que o amigo Mussunda não entende» (Agostinho Neto). A África, o negro e a Mãe-Negra (Mãe-África ou Mãe-Terra) ocupam nos textos um lugar de destaque, como referências, alusões ou temas, numa declaração humanística de povos até aí apresentados e representados (na literatura colonial) como destituídos de história, cultura e mesmo de sentimentos. Segundo a análise de Sartre, no prefácio à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache (1948), de Senghor, dá-se a revalorização (e a sobrevalorização) das culturas e modos de vida ancestrais (tribais, clânicos), com o culto dos antepassados, o animismo e a respectiva animização retórica da natureza, o pan-sexualismo vitalista, a visão eufórica e ufanista das relações sociais e familiares nas tribos e no mundo rural e natural. Ou seja, opõe-se ao mundo tecnológico e racionalista dos europeus o mundo natural e sensitivo dos africanos, num posicionamento que receberia críticas devastadoras dos homens empenhados na abertura de África ao mundo moderno, através de revoluções socialistas. Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 28-29 ∆
  • 31.
  • 32. 7.2. LITERATURAS EMERGENTES: NACIONALISMOS E IDENTIDADE Entre 1880 e os fins do século passado, num clima de acesas lutas políticas, sucederam-se duas gerações que marcaram a vida intelectual de Angola, particularmente dominada pelo jornalismo. Aproveitando as possibilidades de expressão abertas pela lei portuguesa sobre a liberdade de imprensa, aplicada efectivamente durante um certo período na colónia, os angolanos lançaram jornais e revistas literários. *…+
  • 33. Fundada em Março de 1936, a revista Claridade, primeira manifestação intelectual de conjunto da elite crioula, significou uma viragem no movimento literário de Cabo Verde. Segundo os seus mais ilustres representantes, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (aliás Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, a preocupação essencial residia na análise do processo de formação social do arquipélago e no estudo das suas raízes. *…+ Os escritores do movimento Claridade, condicionados pela sua formação ideológica, adoptaram um ângulo de visão de «classe» para abarcar o universo insular. Não se atacaram ao fundamento dos dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e muito menos perspectivaram a superação das atitudes resignadamente contemplativas. A sua poesia, dominada pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito aos sentimentos populares. Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela passou ao lado do clamor das massas das ilhas. Ao examinarem o processus de aculturação em Cabo Verde, os animadores de Claridade e outros autores afirmaram que as contribuições da cultura africana tendiam a reduzir-se ao nível de sobrevivências ou a diluir-se em função do grau de instrução e de urbanização do meio, enquanto os valores europeus, possuidores de uma maior capacidade de resistência, se impunham e se generalizavam. *…+ A evolução dos acontecimentos iria demonstrar como as ilhas encontraram a sua verdade histórica, através da unidade operada na luta solidária do guineenses e de cabo-verdianos, pela libertação nacional. Foi na linha deste pensamento que a nova geração cabo-verdiana, após o severo julgamento dos Claridosos, estabeleceu a ponte de ligação com os movimentos culturais que surgiriam em Angola e em Moçambique. *…+ Vamos descobrir Angola — tal foi, nesta perspectiva, a palavra de ordem lançada em Luanda, em1948, por um grupo de estudantes e de jovens intelectuais. Coube a Viriato da Cruz o mérito da sua formulação teórica e estética: «O movimento», escreveu ele mais tarde, «deveria retomar, mas sobretudo com outros métodos, o espírito combativo dos escritores africanos dos fins do século XIX e dos princípios do actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.» *…+ Tomada no seu conjunto, a evolução da moderna poesia africana de escrita portuguesa e crioula comporta três fases essenciais: a primeira, a da negritude, entendida como negação da assimilação ou, para utilizar a expressão de Aimé Césaire, como «postulação irritada e impaciente de fraternidade».
  • 34. A Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro (colecção «Novo Cancioneiro», vol. 9, Coimbra, 1949), marca o ponto de partida. O poeta procura ligar, primordialmente, a sua condição de homem insular ao mundo dos oprimidos, e revaloriza o património cultural negro-africano. É uma voz solitária, então no exílio, que se levanta para cantar S. Tomé e exaltar a negritude em língua portuguesa: Quando cantas nos cabarés fazendo brilhar o marfim da tua boca é a África que está chegando! Quando nas Olimpíadas corres veloz é a África que está chegando! Segue em frente irmão! Que a tua música seja o rumo de uma conquista! E que o teu ritmo seja a cadência de uma vida nova! …para que a tua gargalhada de novo venha estraçalhar os ares como gritos agudos de azagaia! *…+ A segunda fase, suscitada pelo alargamento e ultrapassagem da negritude, é o momento da particularização. Os poemas precisam os contornos nacionais e incidem mais profundamente no real social. A criação literária vai ritmando o desenvolvimento da consciência nacional, quando se esboça a estrutura dos movimentos políticos. De 1953 a 1960, aproximadamente, a poesia apreende a trama dos acontecimentos que caracterizam as, mutações na sociedade colonizadora. Daí a actualização da sua temática. O próprio enraizamento dos poetas no chão nacional determina a convergência de temas e a unidade de tom. De todas as colónias erguem-se vozes de denúncia: poetas cabo-verdianos asfixiam o desespero de querer partir / e ter que ficar, vinculando-se definitivamente aos diversos níveis das realidades africanas, Alda do Espírito Santo exige justiça para os carrascos da sua terra. E quando os povos de Angola, da Guiné e de Moçambique retomam pela via armada a iniciativa histórica que modela o seu devir nacional, entramos na terceira fase desta poesia: as balas começam a florir, dirá Jorge Rebelo. Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp. 4-10.
  • 35. “As balas começam a florir.” Jorge Rebelo, Moçambique, 1940 GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no futuro. ∆ 8. LINHAS DE AFIRMAÇÃO DA POESIA AFRICANA Algumas linhas de afirmação desta poesia devem ser destacadas. 1. Há uma evidente proximidade entre a cultura africana escrita e a cultura europeia, proximidade esta bem saliente no domínio da literatura. No caso da poesia de Cabo Verde são evidentes as afinidades com a poesia lírica portuguesa, nomeadamente nos modos como nela se exprime o sentimento de insularidade. Este facto, efeito de aculturação, visível não apenas na poesia daquelas ilhas deve-se, contudo, à difusão da cultura europeia, através dos liceus que, a partir do princípio e de meados do século, começaram a ser implantados nos pólos urbanos por toda a África.
  • 36. A própria consciência de nação, que vemos ser afirmada nesta poesia, origina-se no impacto do sistema de escrita ocidental sobre uma cultura oral de origem tribal. 2. Vários movimentos e iniciativas culturais empenhados na afirmação da cultura negra — não apenas africana — têm origem em centros urbanos europeus e norte- americanos. É o caso das iniciativas em torno da Casa dos Estudantes do Império sediada em Lisboa, do movimento designado por Negritude, centrado em Paris e apoiado por intelectuais europeus, como Sartre, do movimento Black Renaissance surgido em Harlem. Estes movimentos são responsáveis por algumas linhas de sentido evidentes nestes poetas: 2.1. a intenção de denúncia da condição do negro na relação com o homem branco; 2.2. a afirmação de uma identidade própria da poesia negra, nalguns casos, especificamente expressão do homem africano e com ele do próprio continente. A propósito do último aspecto apontado, é de notar a frequente referência a uma realidade telúrica cuja estranheza para o homem europeu (claramente o interlocutor privilegiado desta afirmação) se manifestará no léxico, sobretudo o relativo a nomes comuns. — e este aspecto é da maior importância na poesia de Craveirinha — e em múltiplas descrições, como, por exemplo, a que tem por objecto os rios de Moçambique, comparados com os grandes rios europeus, no poema Hidrografia de Alfredo Margarido. No poema Deixa passar o meu povo da poeta moçambicana Noémia de Sousa, já não é o exotismo dos nomes que desencadeia a presença de uma realidade, mas uma frase emblemática. “let my people go” capaz de convocar a riqueza de um cultura inseparável da condição de negro por esse mundo fora, da sua história e das mitologias dessa história. Valerá a pena chamar a atenção para: — a atmosfera em torno de uma exaltação de insónia: a noite africana, as ondas da rádio, veículo do refrão “let my people...” (frase emblemática do movimento Black Renaissance), estabelecendo uma corrente com as ondas nervosas: “Nervosamente sento-me à mesa e escrevo *...+ E já não sou mais que instrumento *…+"; — a importância simbólica do aparelho de rádio trazendo para o interior da noite africana a música negra de outro continente: “Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro / enquanto escrevo noite adiante / com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio / [...] / E enquanto me vierem de Harlem / vozes de lamentação / *...+ / Escreverei, escreverei, / com Robeson e Marian gritando comigo: / “Let my people go” / *...+“.
  • 37. (Procure o CD Jazz Heritage Séries, vol. 1, Louis Armstrong, Louis and The Good Book, ed. M.C.A., 1983. A canção 3, intitulada “Go Down Moses” (espiritual negro) tem como refrão, constantemente repetido, essa mesma frase, “let my people go”. Esta canção data do tempo da escravatura.) Cadernos de Literatura 10º Ano. Livro do Professor, Cristina Duarte, Amadora, Raiz Editora, [1993], pp.76-77 ∆ 9. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
  • 38. UM SÉCULO DECISIVO Temos o privilégio de assistir à formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa, em mais de um século de escrita e de publicação. É com carinho e alegria que se contabilizam todos os escritos e autores e se desenvencilham diacronias e influências. Estamos possuídos pela ilusão de que, por tudo estar tão perto e ser tão pouco, se torna fácil compreender e classificar para, ainda mais facilmente, teorizar. Convém recordar, todavia, que, até tornar-se um sistema nacional, uma literatura passa por fases de hesitação e de indefinição. As literaturas africanas dos Cinco são escritas em português, língua de colonização, não existindo tradição de escrita nas línguas africanas. O primeiro prelo seguiu para Angola em 1849. Um ano depois saiu o Boletim Oficial, incluindo já incipientes textos literários como era de uso na época. Cerca de trinta anos mais tarde, verifica-se o surto da imprensa livre angolana, na qual ensaiaram experiências literárias e terçaram armas pela democracia, republicana intelectuais africanos o portugueses. Literatura e jornalismo conviviam, no século XIX, a ponto de se influenciarem mutuamente. A crónica e o panfleto de cariz doutrinário e político faziam género. O folhetim narrativo agradava na colónia e obrigava à reedição na imprensa da metrópole colonizadora. Africanos, portugueses e brasileiros publicavam nos espaços comuns dos almanaques, boletins, jornais, revistas a folhetos. Não tinham surgido ainda as designações de literatura angolana, moçambicana ou são-tomense com carácter de sistema nacional, mas a escrita já deixara de ser espaço de europeidade absoluta para se tornar contaminação relativa de línguas. De facto, poetas portugueses o angolanos intercalavam no texto em português, mais extenso, frases, diálogos, versos, lexemas em língua banta (quase que exclusivamente o quimbundo). A integração é perfeita, na coerência do sentido e da sonoridade e na coesão dos segmentos e ritmos. Poemas há soando aos ouvidos como se produzidos numa só língua natural. O trabalho literário unifica as línguas, como que galvanoptastizando a substância da expressão. Tal efeito de produtividade só é possível numa poetogénese conseguida à custa da integração antropocultural do intelectual português, ou seja, e para utilizar uma curiosíssima palavra do vocabulário colonialista, à custa da sua cafrealização. Foi o que aconteceu com o português Alfredo Troni, escritor, jornalista e advogado de filiação socialista proudhoniana e republicana, desterrado para Luanda, onde desenvolveu profícua e incalculável agitação cultural e cívica. Por seu turno, intelectuais africanos como Cordeiro da Mata empenharam-se em trabalhos de pesquisa linguística, sociológica e etnográfica que favoreceram uma atmosfera de aprofundamento do saber sobre as realidades africanas, contribuindo para que a literatura pudesse perder, a pouco e pouco, o lastro negativo do exotismo e do ultra- romantismo serôdio.
  • 39. Em todos os poetas do século XIX, mantém-se a rima final e, em, grande percentagem, a medida da redondilha maior, características tradicionais de muita poesia popular europeia. Sabemos como esse tipo de procedimento literário não procede da tradição popular africana. Só muito mais tarde, já na década de 30, é que a geração da Claridade caboverdiana abandona esses princípios poéticos, enfileirando no cultivo do verso livre, aproveitando a lição dos modernismos português e brasileiro. Mas os escritores caboverdianos, nessa altura, não reivindicavam propriamente uma especificidade africana, se bem que fosse inequívoco o seu sentido da caboverdianidade, da literatura enquanto sistema de comunicação com poder autonómico face à situação política e jurídica do arquipélago. Depois de terem prestado homenagem à tradição literária portuguesa, de Camões ao parnasianismo, os escritores africanos, no segundo quartel do século XX, trocam de paradigma, inspirando-se nos brasileiros e norte-americanos A introdução do ensino laico nas colónias e a vinda de estudantes para Portugal incrementaram notavelmente uma nova mentalidade cultural sustentada por ideologias como o socialismo anarquista, o republicanismo, o proudhonismo e, mais tarde, o pan-africanismo. Nas colónias, a intervenção maçónica de exilados e desterrados portugueses foi decisiva no movimento operário, com repercussões na intelectualidade, como em Moçambique. A literatura ganha corpo nacional consoante vai trocando o corpo da negra e da mestiça pelos do contratado e do branco, expondo-lhes as alienações e as misérias humanas. Se tomarmos a narrativa angolana como sintoma dessa evolução progressiva e progressista, verificamos que o espaço físico e social progridem no mapa humano e geográfico à medida que se consuma a diacronia: a narrativa Nga Mutúri, de Alfredo Troni, tem como cenário principal uma Luanda permissiva e condescendente, onde se cruzam personagens típicas de todas as profissões e escalões sociais, nomeadamente o sector terciário; o romance de António de Assis Júnior O Segredo da Morta desenrola- se entra costa marítima e uma faixa interiorana que não ultrapassará os trezentos quilómetros, com percursos fluviais e terrestres, carregadores e comerciantes, episódios rocambolescos e frases em quimbundo; a acção da trilogia de Castro Soromenho (Viragem, Terra Morta e A Chaga) passa-se no interior de Angola e novas personagens afluem à narrativa angolana: chefes tribais, funcionários administrativos, exrevolucionários retraídos, comerciantes do mato, cipaios, etc. Quando os poetas caboverdianos dispensam as alusões clássicas greco-latinas ou renascentistas (em que era pródigo um José Lopes) e assumem a modernidade discursiva e textual, configurando efeitos de referencialidade que passam pela concreticidade da denúncia frontal ou velada da exploração, opressão e repressão do sistema colonial, a literatura deixa de poder integrar pacificamente as antologias e histórias da literatura portuguesa. Marcada por transparentes desejos de emancipação, liberdade, autodeterminação e independência, a literatura africana, em geral, fala-nos de conflitos sociais, do estatuto do colonizado, de guerras (de guerrilhas) e de revolução, ainda que, muitas vezes, sob o manto diáfano da criptografia. Até 1942, ano em que Tenreiro publica a Ilha do Nome Santo, decorre aproximadamente um século, decisivo para a formação das literaturas africanas de
  • 40. língua portuguesa. A escrita dessas literaturas denuncia as hesitações entre uma norma de raiz escolar europeia (lisboeta ou conimbricense) e um bilinguismo textual inusitado e causador de eleitos de estranheza no público acaciano. A intencionalidade de ruptura no circuito comunicativo preside à elaboração de alguns textos posteriores, como se pode ver nas primeiras edições de José Luandino Vieira, nas quais as epígrafes, em quimbundo, não eram traduzidas. Nos poetas do século XIX, o quimbundo é traduzido no próprio poema, como acontece, por exemplo, com Kicôla!, de Cordeiro da Mata. Nesse tempo havia condições propícias a tais práticas dialógicas, que a 1 Guerra Mundial alterou bruscamente, modificando a estratégia universal em relação às colónias. Encerrado o ciclo da imprensa e da literatura livres de condicionalisrnos políticos, abriram-se as portas à literatura colonial, apoiada por organismos do Estado português. Uma torrente de prosa exótica sufocou a metrópole e ratificou o espírito tarzanístico. Os intelectuais africanos retiraram-se para as suas associações culturais ou políticas disfarçadas de recreativas e só muito esporadicamente criaram algo de novo, na tradição do século XIX. Foi necessário esperar por 1936, em Cabo Verde, 1942, em Portugal, e 1948, em Angola, para que as literaturas africanas de língua portuguesa não mais deixassem de ter sequência. Ao surto definitivo dessas literaturas não são alheios os acontecimentos políticos e militares de 1936 a 1945. De facto, a partir daí, é notório o enfeudamento à linha realista, «engagé» e combatente, fartamente influenciada pelo afro-americanismo, o pan-negrismo, o pan- africanismo, a negritude e o neo-realismo. Mário Pinto de Andrade, integrando o moviemento Mensageiro, ainda esboçou uma escrita poética em quimbundo, que logo abandonou, na altura talvez para não atiçar ou ratificar tribalices. O poema resultante, junto com dois outros de Bernardo de Sousa e João-Maria Vilanova, é a excepção que confirma a regra da língua portuguesa. A edificação das literaturas africanas de língua portuguesa acompanha a construção de um novo poder político, primeiro clandestino e, depois, triunfante. Os homens que escrevem são os mesmos que pensam e que politicam. E fazem-no em português, domesticando a língua em função das suas virtualidades e finalidades, criando literaturas nacionais numa língua internacional. O século que vai de 1850 a 1950 foi decisivo para a formação dessas literaturas. Os últimos trinta e cinco anos têm sido decisivos para o seu desenvolvimento. Com o advento da luta armada, três tendências se esboçaram, vindo a concretizar-se em obras específicas: Iiteratura de combate (de e para a guerrilha), de «ghetto» (publicada, sob a forma críptica, nas próprias colónias) e de diáspora. Os casos de Pepetela, Manuel dos Santos Lima, João-Maria Vilanova, Costa Andrade, Jorge Rebelo e Sérgio Vieira ilustram a primeira tendência. O Jofre Rocha de Tempo de Ciclo, David Mestre com Crónica do Ghetto ou Corsino Fortes documentam a literatura de «ghetto», que tanto pode ser alusão ao beco (com ou sem saída) da grande cidade colonial, como metáfora do isolamento insular. A terceira tendência tem no Coração em África, de Tenreiro, ou no poema «Havemos de voltar», de Agostinho Neto, a confirmação de que a diáspora é saudosa mesmo das terras que pouco pisou (como
  • 41. Tenreiro) e messiânica até à vitória final (como Agostinho Neto). Há também uma literatura rústica, de fundamentação etnológica, como no caso de A Konkhava de Fheti, de Henrique Abranches, ou de experiência pessoal, como em Uanhenga Xitu. Os títulos da literatura caboverdiana elucidam-nos acerca do obsessivo terra- longismo, que Manuel Lopes caracterizou lapidarmente: «a saudade das terras que não conhece.» É o apelo da distância e do desconhecido, muito forte para quem vive e escreve nos chamados meios pequenos insulares: «Hora di bai» (poema de Eugénio Tavares) e Hora di Bai (livro de Manuel Ferreira): «Terra-Ionge», de Pedro Corsino Azevedo; Poemas de Longe, de António Nunes; Marinheiro em Terra, de Daniel Filipe; Linha do Horizonte, de Aguinaldo Fonseca; Cais Dever Partir, de Nuno Miranda; Caminhada, de Ovídio Martins; «Caminho longe», título de poemas de Ovídio Martins, Onésimo da Silveira, Gabriel Mariano e Terêncio Anahory e ainda de romance de Nuno Miranda; «Carmin lon» poema em crioulo interpretado por Bana; «Carta de longe» de Gabriel Mariano; Horizonte Aberto, livro de Sukre D’Sal; Viagem para Além da Fronteira, de Teobaldo Virgínio; Distância, também de Teobaldo Virgínio; Beija do Cais, ainda do mesmo autor. Finalmente, o percurso inverso, de retorno, em Cais-do-Sodré té Salamansa, de Orlanda Amarílis. Apostrófica, exaltante, apologélica, virulenta, denunciadora, a literatura africana pode ser excessiva e grandiloquente como os poemas negritudinistas de Francisco José Tenreiro, reflexiva e serena como a Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, barroca e neurótica como a ruptura discursiva e textual de Luandino Vieira, humorística e cínica como escárnio de João Pedro Grabato Dias. Contida, comedida, tranquila, expositiva, a literatura pode dar-se como fingimento extremo e simular o real por inteiro, como na máscara do Muana Puó, de Pepetela, burilar a palavra até à exaustão, para lhes extrair sugestões e alusões étnicas e oníricas, como em Angola Angolê Angolema, de Arlindo Barbeitos, conotações e ambivalências co-textuais, como em Monção, de Luís Carlos Patraquim. Enfim, a literatura africana pode vociferar «tuji, patrão», como no poema de João-Maria Vilanova, retomando as práticas bilinguistas de seus avós, ou render homenagem aos «grupos de patriotas portugueses/operando na Metrópole ou no estrangeiro – os do Socorro Vermelho/e os das Brigadas Revolucionárias, tal a nº 2,/que a base secreta da OTAN destruiu no Pinhal do Arneiro,/no lugar dito Fonte da Telha», como se pode ler no Primeiro Livro de Notcha, discurso V, do caboverdiano Timóteo Tio Tiofe. As literaturas formam-se e desenvolvem-se como sistemas nacionais antes das independências políticas. Desde a publicação de Espontaneidades da Minha Alma, elas têm 136 anos de vida nem sempre activa. Desde a publicação de Nga Mutúri, passou pouco mais de um século. Somente meio século nos separa do primeiro número da revista Claridade. Do meio do século para cá, os poetas profetizaram a mudança: «veemente ressurreição!» (Osvaldo Osório); «veemente de ressurreição!» (Rolando Vera-Cruz); «nova gestação» (David Mestre); «sonhando co’a vida» (João-Maria Vilanova) «edificam novos tectos» (Cândido da Velha); «a alforria ansiada» (Jofre Rocha); Tempo do Ciclo (Jofre Rocha); «alvorecer de esperança» (Jofre Rocha); «exigindo novas vestes» (Álvaro Novais); Sagrada Esperança (Agostinho Neto); Vidas Novas (José Luandino Vieira); «nova Aurora» (Yolanda Morazzo); «llhas renascidas /
  • 42. nuvens libertas» (Arménio Vieira); «gritarem de esperança» (Tomás Medeiros); «fomos nós o sonho» (Costa Andrade). Cumpriu-se a alforria ansiada e já as literaturas africanas se defrontam com os novos poderes: Mayombe, de Pepetela, publica-se porque o Velho dá o seu consentimento contra ventos e marés; Os Anões e os Mendigos, do Manuel dos Santos Lima, a maior diatribe ficcional desde sempre, sai com a chancela de uma editora do Porto e o autor nunca recebeu resposta a pedidos de leitura do original que enviou a outras editoras e instituições, não só de Portugal; a pretexto de uma representação (gravosa para o Presidente angolano) da peça No Velho Ninguém Toca, o autor, Costa Andrade, esteve preso durante mais de um ano em Luanda. Isto só pode significar que as literaturas africanas estão mais vivas do que nunca, e os escritores, críticos como sempre. Não sei quando começou nem quando terminará o século decisivo das literaturas africanas de língua portuguesa, mas estamos a vivê-lo: une a paixão amorosa e a (pa)ciência do texto se conjuguem em verbos mais que perfeitos! Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, F. C. Gulbenkian,1987. 10. O PÓS-COLONIAL NA POESIA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA Inocência Mata Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa Locha Mateso, o crítico congolês (do ex-Zaire, hoje República Democrática do Congo), refere, logo de início do seu livro La Littérature Africaine et sa Critique, de 1986,o facto de a atenção, nos estudos literários africanos, estar sobretudo centrada nos autores e suas obras, não havendo uma preocupação com a “recepção”, que constitui o outro pólo da comunicação literária. Se é verdade que hoje, quinze anos depois, a crítica de Locha Mateso talvez não tenha razão de ser, também é verdade que nos estudos literários africanos de língua portuguesa a preocupação com a história literária é recente – apesar de, ainda sem as aquisições das teorias da história literária, ser de elementar justiça citar os trabalhos de Manuel Ferreira, de Mário Pinto de Andrade e (embora apenas no âmbito angolano) de Carlos Ervedosa. Isto é, após um longo período de estudos de natureza sincrónica, de alcance vertical, a incidência da actividade da crítica tem-se virado para a natureza das metamorfoses das estratégias textuais que apontam tanto para um novo mapeamento do discurso ideológico e cultural dominante como para novas configurações estéticas que a dinâmica da História – vale dizer sobretudo, o pós-colonialismo – tem imposto e para o
  • 43. desvelamento das suas suposições (suposições da História) a partir de outros “locais da cultura”. Portanto, um aspecto que remete tanto para as metamorfoses por que têm passado as formas que hoje canibalizam as próprias matrizes estéticas “da tradição” (digamos, “consagradas”, em vez de canónicas), ao mesmo tempo que propõe outro discurso, quanto para a (re)leitura como para a (re) escrita de temáticas já sublinhadas como ainda. Estudos sobre o pós-colonialismo1 , sobretudo de tradição anglo-saxónica, ainda discutem o alcance desta idéia: alguns entendem-na como referente à situação em que vive(ra)m as sociedades que emergiram depois da implantação do sistema colonial, enquanto para outros o “pós” do significante “colonial” refere-se a sociedades que começam a agenciar a sua existência com o advento da independência. Nesta acepção, o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade que reflecte sobre a sua própria condição periférica, intentando adaptar-se à lógica de abertura de novos espaços, de que fala Kwame Anthony Appiah2 . E os significantes desses (novos) espaços apontam tanto para novas corporizações e legitimidades socioculturais como para um compromisso na adaptação da tradição às exigências de um mundo cujos mecanismos de regulação ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição. Assim, pode pensar-se que uma das marcas desse gesto de abertura de novos espaços, portanto, da condição pós-colonial, é tanto a recusa das instituições e significações do colonialismo como das que saíram dos regimes do pós-independência. Exemplos significativos dessa recusa, sob o signo de uma consciência pós-colonial, encontramo- la em obras emblemáticas da literatura africana, como a do escritor costa-marfinense Amadou Kourouma, Les Soleils des Indépendences publicado em 1964, do nigeriano Chinua Achebe, A Man of the People, de 1966 (cuja tradução portuguesa, pela Editorial Caminho, é Um Homem Popular, 1988), do camaronês Mongo Beti com o seu romance Remember Ruben (também há tradução portuguesa) ou do maliano Yambo Ouologuem, autor de Le Devoir de Violence (1967). Convencida de que, não obstante as diferenças – que decorrem de “variedades da pós- colonialidade africana” (R. Hamilton3) –, as literaturas africanas de língua portuguesa têm-nos oferecido configurações temáticas da pós-colonialidade que já vêm sendo actualizadas em outros espaços geo-poéticos. São algumas dessas marcas que pretendo trazer à consideração: é que elas me parecem motivadas pela sua condição pós-colonial sobretudo se comparadas com configurações similares do período colonial e o imediatamente pós-independência. Esse corpus de novas configurações – que vou designar como dimensões da pós-colonialidade – operadas no sistema literário dos Cinco revelam-se, quanto a mim, motivadas por uma consciência que evoluiu da sua condição nacionalista e sente agora necessidade de repensar o país que não mais se encontra em fase de nacionalização ou na condição de emergência mas sim do agenciamento da sua emancipação. Por isso, tão amarga quanto a consciência anti-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa é também a consciência pós-colonial, na visão mais emblemática da perda inocência, e confrontada com o começo do tempo da distopia: através de situações que representam uma reedição dos objectivos e métodos do “antigo período”, colonial, pelo “novo período”, o do pós-independência, é posto a descoberto
  • 44. o modo como este também participa na “larga história de crueldade em que o colonialismo é uma página a mais.”4 No entanto, apesar das similitudes, julgo que as literaturas africanas têm significadores que resultam em significações que fazem a(s) sua(s) singularidades(s). Uma dessas singularidades é a existência de uma intelligentsia, uma classe de letrados – chamemos-lhe elite intelectual, para simplificar – multirracial, feita de contribuições originárias de entidades que, simbolicamente, se antagonizavam. Como assinala Aníbal, de A Geração da Utopia, “uma elite intelectual de causar inveja a qualquer país africano. Elite citadina, transitando tranqüilamente da cultura européia para a africana, acasalando-as com sucesso, num processo que vinha de séculos”5 . A postura ideológica anti-colonial e nacionalista dessa elite, a reivindicação cultural e política que realizava, apenas simbolicamente antagonizava os significantes negro/branco. E isso ainda no período colonial. Vários escritos corroboram essa proposta de complementaridade e de coligação contra a dominação: ainda em 1942, Francisco José Tenreiro já revela no poema “Canção do Mestiço”6 um sujeito poético feito do negro e do branco que, manifestando-se na figura do sujeito da enunciação, está privilegiadamente posicionado na fronteira entre os dois mundos – isto é, na “fronteira do asfalto” (LUANDINO VIEIRA, A Cidade e a Infância, 1957) e aproxima os dois mundos: “Quando amo a branca/Sou branco/Quando amo a negra/Sou negro/ Pois é...”. Portanto a proposta, ou a possibilidade de complementaridade de opostos, ou de pseudo-divergentes, por ser recorrente, pode ler-se como uma componente da anti-colonialidade que se vai transformar num dos parâmetros da nossa expressão literária pós-colonial. A demanda pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa a que fiz referência anteriormente reporta-se, também, à imposição que ao escritor é feita de “consumir” os seus próprios “preconceitos”7. Esses pré-conceitos de que falo dizem respeito tanto a configurações anteriores, que enformam a “tradição literária africana” e a memória dela, como aos códigos estéticos do contexto no qual elas se afirmaram. E, isto, remete-nos para a segunda demanda do pós-colonial que aponta para a reescrita e a repaginação da(s) identidade(s) cultural/ais, segundo estratégias que não apelam à ruptura, antes remetem para um processo de remitologização. A ideologia libertária, exclusivista por natureza e necessidade, revelava-se pouco dinâmica para responder aos desafios da modernidade: não é por acaso que Mayombe, um romance escrito ainda em 1971, durante o tempo da guerrilha, só tenha sido publicado em 1980, quando os sinais da utopia político-social já começavam a manifestar-se de forma evidente. Seguem-se Quem me dera ser onda (1982), de Manuel Rui, Os Anões e os Mendigos (1984), de Manuel Lima, O Cão e os Calus (1985) de Pepetela, em Angola; Vozes anoitecidas (1986) e Cronicando (1988), de Mia Couto, em Moçambique; O Eleito do Sol (***), de Arménio Vieira, em Cabo Verde; A Berlinização ou Partilha de África (1987), de Aíto Bonfim8 , em São Tomé e Príncipe. Vale a pena não esquecer que os escritores citados são autores de obras celebrativas, eufóricas e solares em termos de afirmação da identidade cultural e dever patriótico9 .
  • 45. Tal como a literatura anti-colonial, na fase de emergência, existência, consolidação e individualização nacional, mobilizou estratégias contra o discurso que considerava a produção literária de África como “ultramarina” – para afirmar a diferença e reivindicar a pátria –, também a actual escrita africana mobiliza estratégias contra- discursivas que visam a deslegitimização dum projecto de nação monocolor pensado sob o signo da ideologia nacionalista. Para reescrever a visão uniformizante de pátria, em que Homem e Natureza se encontravam vinculados à Pátria, como acordes de uma mesma sinfonia, a nova literatura opta por representar a alteridade, celebrando as várias raças do homem; para reescrever a visão eufórica da História dos sujeitos africanos10, as exigências da consciência contrapõem agora uma contra-epopéia política e social que visa referenciar a transformação dos ideais agónicos. Mas, a particularidade dessa reescrita consiste não na invenção de um outro lugar totalmente outro, mas na proposta de uma deslocação dentro do mesmo lugar (Boaventura de Sousa Santos)11 , para nele agenciar tanto a catarse dos lugares coloniais como os tensões pós-coloniais, como em A Varanda do Frangipani (1996) que, deliberadamente, baralha lugares e tempos históricos para significar que a sua diferença, sendo de natureza (colonial/pós-colonial), é também de olhar: numa sociedade em que “já ninguém respeitava os velhos”, como amargamente considerava Salufo Tuco, Xidimingo, colono branco, encontrou nos outros velhos do asilo, negros, a verdadeira dimensão da solidariedade humana. Também romances como Mayombe, A Geração da Utopia (1992), Parábola do Cágado Velho (1996) ou Ventos do Apocalipse (1993), “metaficções historiográficas”, obras que buscam na História a sua própria existência simbólica, funcionam com uma lógica antiépica que acaba por referenciar os ideais agónicos da revolução e do nacionalismo, através do despertar de vozes e memórias que na utopia político-social não tinham lugar. Estamos, assim, perante um contra-discurso que intenta a mudança no contexto do discurso dominante (e no âmbito do que tenho vindo a considerar o discurso dominante é a “literatura consagrada” com nomes emblemáticos que todos conhecemos nas quatro literaturas)12 – gerindo as suas potencialidades e as suas limitações quanto a uma “renovação discursiva”. Consoante a intenção dessa renovação, as estratégias contra-discursivas tomam formas diversas. Por exemplo, em Pepetela consistem no destecer das teias do logro e sombras da História – e nisso reside a originalidade da sua escrita. A inovação contida na obra romanesca de Pepetela reside no repovoamento da paisagem e na remitologização do espaço da utopia roída pelos descasos da revolução. Diferentemente do que acontece em Estação das Chuvas (1996), de José Eduardo Agualusa, ou no já citado Os Anões e os Mendigos, de Manuel dos Santos Lima, em Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso, e até alguns dos pequenos contos de Da Palma da Mão (1998), de Manuel Rui – nestas narrativas a morte do país anuncia-se irrevogável: “este país morreu”, diz uma das personagens de Estação das Chuvas – um pretérito que retira a possibilidade de revitalização, de qualquer restituição vital e, portanto, a impossibilidade liminar da utopia. Mas a corroborar a idéia de que “é a imperfeição do mundo que justifica a utopia, que a torna incontornável, inevitável”13 , a obra romanesca de Pepetela, mesmo aquela em que o desencanto é intenso como em A Geração da Utopia ou em O Desejo de Kianda (1995), contorna a distopia e antecipa um outro “desejo utópico” não se esgotando um pretérito sem remissão –
  • 46. veja-se a reinício sugerido de A Geração da Utopia: não pode haver ponto final numa história que começa por “portanto”. Outra marca importante da nossa pós-colonialidade literária tem a ver com o lugar e o modo como o escritor africano trabalha e se posiciona na língua portuguesa. Do passado para o presente, a escrita já não denuncia qualquer tensão na expressão da cultura e da vivência do falante, como em Mestre Tamoda (1974) de Uanhenga Xitu, cuja significação não se esgota na africanização da língua portuguesa mas passa também pela tematização do desfasamento entre a estruturação cultural da língua portuguesa e a expressão de uma vivência conduzida em lugares não harmoniosos de convivência de diferentes (o português e o kimbundu, a cidade e o campo, a letra e a voz). Mais do que a africanização do português, em Uanhenga Xitu o que é tematizado é a oraturização do sistema verbal português: ora, este é um processo que ultrapassa o código lingüístico e se expande por terrenos translinguísticos como a onomasiologia (a onomástica e a toponímia, sobretudo), a cenarização (o registo das vozes, a rítmica da dicção e a representação dos gestos) e a sugestão musical. Todos esses recursos de narração rubricam-lhe uma forma mimética e permitem identificar, na fala narrativa, a interacção entre a escrita e os textos não escritos incorporados na cultura local, que se dão a conhecer em português. Diferentemente de Uanhenga Xitu, Luandino Vieira faz emergir as suas personagens de um contexto tendencialmente monolingue, regularmente escolarizado e de uma cultura urbana e, naturalmente, resultando de um processo transculturativo. A obra de Luandino, em Angola e na literatura africana de língua portuguesa, é expoente da invenção de uma linguagem literária através da qual comunicou mensagens subversivas – uma linguagem literária que emerge de uma linguagem “letrada” e recriativa, como a de João Vêncio ou de Lourentinho. Enquanto em Uanhenga Xitu a dimensão babélica é sugerida pela confrontação de identidades sociais e culturais, que as diferenças das expressões lingüísticas das personagens encenam – diferenças que remetem semanticamente para a dispersão e para a recusa de um código de comunicação totalitário –, em Luandino Vieira a reinvenção metalingüística é uma via de resistência e atributo de consciência perante a ambiência insuportável à volta: pressão interior e espiritual, opressão sociocultural e política. Por exemplo, em “Estória de Família (Dona Antónia de Sousa Neto)”, uma das três estórias de Lourentinho, Dona António de Sousa Neto & Eu (1981), Tomás aconselha o jovem Paulo a conhecer Assis – que este pensava tratar-se de um músico – pois “sem o Assis não haverá poesia angolana”.14 Se a linguagem literária de Luandino, de intenção anti-colonial e contra a desagregação identitária, indiciando um trabalho peculiar da língua, rubrica significadores de universos socioculturais e perfis éticos e ideológicos, em Mia Couto a língua, igual para todos, permite a singularização de cada uma das personagens, enquanto o léxico desempenha um papel determinante na construção da identidade colectiva e busca uma nova geografia lingüística, isto é, uma nova ideologia para pensar e dizer o país15 . Em tempo pós-colonial, em Mia Couto a ludicidade não é o resultado de um “simples” acto gozoso, embora se sobreponha ao empenhamento político-ideológico sem, contudo, o rasurar pois que as falas do narrador e das