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A BO
Sáb
13 de fevere
24 A Bola de SÁBADO
E
M 2010 João Garcia atingiu
o cume do Annapurna, a
8091 metros, tornando-se
então o décimo alpinista a
ascender aos cumes das 14
montanhas com mais de 8000 me-
tros no planeta sem oxigénio arti-
ficial nem carregadores de altitude.
Um herói.
A conversa com A BOLA foi
numa colina para os lados de Alfra-
gide. Antes de começar pedimos a
João Garcia para ver a que altitude
estávamos. «A 106 metros», escla-
receu, abrindo a aplicação dum al-
tímetro. Nada que impressione.
— Custa-lhe viver em Alfragide,
onde as montanhas têm 106 me-
tros de altura?
— Não, sempre vivi na região de
Lisboa. Viver perto de montanhas
talvez me aborrecesse. A desvanta-
gem é que para ir para a serra de
Gredos são 6 horas de carro, para os
Pirenéus são 11 horas de carro, para
Chamonix são 21 horas. É muito
longe. Para ir para o Nepal são 20
horas… e não tenho de conduzir.
— A distância alimenta o gosto?
— Valoriza o produto, sim.
— Tem a Estrela; mas não im-
plica para si um grande desafio uma
serra que se sobe de bicicleta…
— Ah, ah, ah! Note, contudo,
que há uma vantagem quando há
nevões: fecham-se as estradas e
só vai lá acima quem realmente
quer. É a essência do alpinismo:
só atinge o topo quem se esforça,
não quem tem o carro mais po-
tente ou melhores jogadores. Esse
jogo é como o póquer, está vicia-
do. Gosto da Estrela, são de lá as
minhas primeiras histórias. E é
onde às vezes trabalho, ainda que
a nível legal seja difícil fazê-lo lá,
proíbe-se tudo.
— Depois dos 14 cumes, como é
agora a sua rotina anual?
—Antesdissojátrabalhavacomo
organizador de viagens e guia de
montanha. Depois, então, tive essa
fase mais profissional, com um pa-
trocínio dum banco. Mas agora vol-
tei a ter os meus projetos no alpi-
nismo. Tenho viagens e estágios de
fim de semana, um calendário
preenchido. E mesmo assim tenho
tempo para projetos pessoais. Faço
muitas viagens para a Índia, Tibe-
te, Nepal; é a minha especialidade:
ajudar as pessoas a ultrapassar os
seus pequenos everestes com o má-
ximo de segurança e conforto.
Levou a bandeira ao ponto mais alto do Mundo, literalmente
d Alpinismo, ciclismo, Antártida e um monte de 10.000 metros no Havai
Entrevista
Por
MIGUEL CARDOSO PEREIRA
GARCIA
— Tem levado muitos portugue-
ses ao Evereste?
—Àbasesim.Especializei-meno
tracking, que é onde existe merca-
do. E gosto muito de lá voltar, às ve-
zes mais de uma vez ao ano.
— Quais são as dificuldades co-
muns sentidas pelas pessoas nessas
expedições?
— A altitude. Não é fácil subir a
5600 metros, o patamar do vale do
Subirmontanhasnãoé
comportamentoeremita.
Éumafuga,sim.
Masparadepoisvoltar
«Pedalarnasnossas
estradasémaisperigoso
quesubiroEvereste.
Eeuseibemdoquefalo»
Khumbo,quedáacessoaoacampa-
mento base do Evereste. Passamos
por um promontório donde vemos
oEverestea3kmdedistânciaemli-
nha reta — ele está mesmo ali e as
pessoasadoramtirarfotografias.Mas
a essas altitudes já é difícil respirar.
Nãosóparaeles,paramimtambém,
porque vamos com tempo mínimo
deadaptaçãoaaltitude,umprogra-
ma de 12 dias. Estamos a respirar
num local onde a pressão atmosfé-
ricaestáreduzidaametade.Ouseja,
sempre que inspiramos os nossos
pulmões captam metade do oxigé-
nio.Paraestarvivosjátemosderes-
pirar o dobro, portanto; para fazer
exercício temos de respirar o triplo
ou o quádruplo. Depois há dificul-
dades acrescidas, a falta de confor-
to, a menor oferta sanitária. É outro
mundo.Eucontinuoairesinto-me
emcasa:olha,aliéoPumori,jásubi
três vezes por aquele lado; o Ama
Dablan sobe-se por ali; o Evereste
por ali; o Lothse ou o Cho Oyo ou o
Makalu... Há ali montanhas a uma
distânciapalpáveleeupossofalarso-
bre elas a quem vai comigo e, mo-
déstia à parte, isso contribui para as
viagens.
— Encontra preenchimento pes-
soal nessa experiência de vida?
— Absolutamente. É um desafio
físico e mental. Queixamo-nos de-
masiado mas esquecemo-nos que
usamos água potável para lavar as
nossas casas de banho quando mais
de metade deste planeta não tem
acesso a água. Ir lá e ver como vi-
vem as pessoas e regressar é im-
portante. Quando voltamos acha-
mos a nossa vida mais feliz.
— Quanto custa ir numa expe-
dição consigo?
—1790euros,mais800paraobi-
lhete e avião. É como ir de férias.
SUBIR, DESCER
OU FICAR LÁ E MORRER
— Lá em cima consegue-se, de
facto, aproveitar a vista ou o can-
saço não o permite?
— Podemos sentar-nos e olhar à
volta, sim. Porém, confesso que
aproveitomaisaposterioricomasfo-
tografias. Àquela altura não temos
O alpinista João Garcia, 48 anos, subiu todas as montanhas do Mundo com mais de 8000 metros, sem oxigénio, sem carregadores de altitude ANTÓNIO AZEVEDO/ASF
JOÃO
25OLA
bado
eiro de 2016
A Bola de SÁBADO
Entrevista
A BOLA e A BOLA TV com João Garcia em ambiente de montanha. Mas montanha baixinha...
tanta consciência e discernimento,
devidoàhipoxia.Eestamospreocu-
pados com o que falta: descer.
— Descer é mesmo mais difícil?
— A maior parte dos acidentes
acontece nas descidas, porque as
pessoas dão tudo o que têm para
subir e para baixo vêm aos trambo-
lhões. Literalmente. Mas há um as-
peto fácil de perceber: lá em cima
estamos a metade da maratona, fal-
tam os outros 21 km. É chegar mas
ao mesmo tempo não é chegar, é só
estarameiocaminho.Nãopodemos
estar lá em cima de braços no ar, vi-
toriosos como quem cortou a meta
de bicicleta na Torre ou como quem
venceu a maratona. Imagem per-
guntar ao Carlos Lopes que signi-
ficado teria estar em primeiro ao
km 21 duma maratona...
— E os sacrifícios visíveis, os de-
dos e o nariz amputados, nunca o
levaram a questionar o que fez?
— Isto foi um acidente. Foi numa
montanha,podiatersidonumavia-
gemdeautomóvel.Foiumerromeu.
Em 1999 o Evereste foi a pior expe-
diçãodaminhavida,cometemosvá-
rioserros.Jáeraomeuterceirocume
com mais de 8000 metros ao fim
doutras expedições, porque entre-
tanto houve um Shishapangma que
não consegui, um Nanga Parbat que
também não consegui à primeira,
houve ainda uma outra tentativa do
Evereste,várioserros…Todosjuntos
potenciaramlesõesgraveseirrever-
síveis. Mas não é o preço que paguei
para subir o Evereste. Foi um aci-
dente.Hágentequevaidefériasese,
nocaminho,atropelarumcãoepar-
tirocarroissonãosignificaqueare-
paraçãodocarrosejaopreçodasfé-
rias.Doisanosdepoisdestesacidentes
eu já tinha conseguido escalar outra
montanhacommaisde8000metros,
provando a mim próprio que não há
limites,queestátudonanossacabe-
ça. Com as mãos assim é mais difícil
mas possível.
— Ao nível do desporto de com-
petição, de modalidades coletivas,
tem preferências?
— Ciclismo. E triatlo. Fiz compe-
tições de triatlo no final dos anos 80
em Portugal.
—Jásubiumontanhasdebicicle-
ta?
—Já.ÀsvezessuboaserradaEs-
trelacomamigos.Mas,infelizmen-
te,emPortugalpedalarnasestradas
é mais perigoso que subir o Everes-
te.Eeutenhoconhecimentodecau-
sa. Morre muita gente. Mesmo com
pequenasalteraçõeslegaisoproble-
ma persiste, porque o que está em
causa não é a legislação, é a educa-
ção. Há uma falta de cultura des-
portivagritante.Éamodalidadeque
tenho mais problemas para prati-
car,atéporque,comasmãosassim,
tenhomaisdificuldadesparatravar,
tenho de preservar maiores distân-
ciasparapotenciaisobstáculosepre-
firoirprotegidonumpelotãodeami-
gos que costuma sair do Jamor.
— E esqui?
— Sim, esqui randonée, o esqui-
-alpinismo. Pratica-se fora de pis-
ta.
— Há pouco talvez tenha dito um
disparate quando lhe perguntei se
tinha preferência por modalidades
coletivas, porque, pensando me-
lhor, o alpinismo, pela dependên-
cia de quem vai no grupo, é talvez
mais coletivo que qualquer outra
modalidade, não? O João, por
exemplo, tem histórias dramáti-
cas, perdeu amigos em expedições,
conforme escreveu nos seus livros.
—Oalpinismoécoletivoatéaodia
da subida ao cume. Então é indivi-
dual,solitário.Nãosãoaventurasde
homens nas montanhas, são, sim,
aventurashumanasnasmontanhas.
Ou seja, as montanhas estão lá, são
o cenário, o resto passa por resolver
problemasnasrelaçõesentrepessoas.
E o dia de cume é o mais perigoso,
violento a nível físico, são 15 a 20
horas de esforço ininterrupto. Em
qualqueroutramodalidadeépossí-
vel parar. Até é possível desistir,
chamar assistência. Na montanha
desistir é ficar lá, morrer ali. São
sempretemperaturasabaixodezero,
umcansaçoindescritível,tudoàvol-
ta é perigoso, mortal.
A HUMANIZAÇÃO
OU A DESUMANIZAÇÃO
—DisseEdmundHillaryquenão
conquistamosamontanha,conquis-
tamo-nos a nós. Esse apelo, essa
viagemàpurezanatural,éumahu-
manização,peloencontroconsigoe
com uma condição primária, ou é,
por outro lado, uma desumaniza-
ção no sentido em que é, também,
uma fuga dos outros, da sociedade?
— É uma humanização. O bom
sãoaspessoas.Sóestamoscá,vivos,
paranosreproduzireparaserfelizes.
Cadauméfelizàsuamaneira,eusou
felizaescalarmontanhas,éaminha
formadeexpressão.Massousóver-
dadeiramente feliz, atenção, quan-
dopartilhoomeutrabalho.Nãoésó
fazer, é partilhar também. A neces-
sidade dos outros está lá, o regresso.
Percebo que o que eu faço também
sejaentendidocomocomportamen-
toeremita,essataldesumanizaçãode
que fala, essa fuga, mas na essência
não é.
—Nãoéumanecessidadedefuga
como a de Chris McCandless, que
deixoutudoeseembrenhounoAlas-
ca,IntotheWild,umahistóriaclás-
sica que deu livros e filmes?
— Repare que mesmo nesse caso
—quetinhaperturbaçõesfamiliares
— ele ainda assim quis manter con-
tactocomairmã.Há,acredite,sem-
pre o regresso perspetivado.
— O explorador britânico Henry
Worsley morreu há três semanas
quandotentavatornar-seoprimei-
rohomemaatravessarapéaAntár-
tidasemassistência.Jáconsideroufa-
zer algo assim? Isto é: mantendo a
dificuldadedosdesafios,fugiraoce-
nário de montanha?
— Depois do meu projeto dos 14
cumeshouveapossibilidadedecon-
tinuar com um projeto nesse âmbi-
to. Um dos que considerei foi preci-
samentepassaraserexploradorpolar
mas,peloqueestudei,viquetinhade
esforçar-me muitíssimo. Queria ir
aopoloSulbyfairmeans,portantoem
autossuficiência. Percebi que a pre-
paração, no entanto, era, e é, muito
complexa. Logo para começar a lo-
gísticademorariaumano,nãoapre-
pararraçõeseequipamentomassim
aalterarometabolismoalimentarao
ponto de tornar o organismo uma
máquina de queimar gordura. De-
pois, para autonomia de 100 dias te-
ria de fabricar rações com duas por-
ções de quinhentos gramas de
alimentos e combustível — portanto
nãomaisdeumquilopordia—,oque
significava só 100 quilos no trenó,
mais o peso do trenó, mais tendas e
equipamentosdesobrevivência.Per-
cebique90porcentodosucessopas-
saria por essa preparação e tudo o
resto seria gestão de recursos e ges-
tão do corpo.
— Afastou essa possibilidade?
— Afastei. Houve uma crise fi-
nanceira entretanto.
— Precisaria de patrocínios?
—Sim.Massemeperguntarsefi-
quei triste por não ter feito essa ex-
pedição dir-lhe-ei que não. Naque-
la altura aprendi muitíssimo sobre o
assunto e percebi que escalar uma
montanhanosHimalaiasaoladodum
trabalho destes é um sprint. Isto se-
ria uma maratona. Seria interessan-
teparaumportuguêsfazerumacoi-
sa assim, envolveria muita gente,
mostrariamuitacoisa.Iriaincluires-
pecialistas em ração e em nutrição e
suplementaçãodesportiva,dietistas,
a própria indústria alimentar, para
fabricar um forno especial para lio-
filizar os alimentos, a construção do
trenó, que iria, quando se falou nis-
so, ser fabricado pelo senhor Nelo,
que me colocou a casa e conheci-
mentos à disposição. Era um esforço
conjunto.
— Nelo é o empresário de Vila
do Conde que faz as canoas para
todo o Mundo, certo?
— Ele mesmo. Eu até teria gos-
tado de abraçar todo esse projeto
só com produtos portugueses e fei-
tosporportugueses.Opróprioequi-
pamento têxtil poderia ser nosso.
— Uma ração leva o quê?
— O tea bag do pequeno-almo-
ço, dois pedaços de chocolate, uma
barrinha de manteiga desidratada,
hidratos de carbono, proteínas...
— Há um romantismo nacional
nisso, não acha: um país de nave-
gadores, que tem também um dos
mais conceituados alpinistas do
Mundo, vir a ter o primeiro ho-
mem a atravessar a Antártida a pé.
—Visãoromânticamassemcon-
dição financeira, infelizmente.
— Fisicamente ainda vai a tem-
po. O Henry Worsley tinha 55 e
tentou. Que idade tem?
— 48.
— Partilhemos, para finalizar,
uma curiosidade: o Evereste é o
cume mais alto do planeta mas não
a montanha mais elevada. Esse es-
tatuto é do Mauna Kea, a montanha
que forma a ilha do Havai e mede
da base no fundo do Pacífico ao topo
10.103 metros, ainda que só 4205
não estejam submersos. Já foi ao
Havai ver esta montanha?
—Engraçado.Nuncafui,não.Mas
gostava de ir ao Havai participar no
Iron Man, a prova de triatlo, isso
sim. Um dia, de férias. E aproveita-
va para passear nessa montanha.
Digosempreàminhamulherqueas
fériastêmdetersemprealgoparasu-
bir.Avidatemdeservividaasubir.
ANTÓNIO AZEVEDO/ASF
«Infelizes? Nós lavamos casas de banho com água potável...» ANTÓNIO AZEVEDO/ASF

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Jornal A Bola 13-02-2016

  • 1. A BO Sáb 13 de fevere 24 A Bola de SÁBADO E M 2010 João Garcia atingiu o cume do Annapurna, a 8091 metros, tornando-se então o décimo alpinista a ascender aos cumes das 14 montanhas com mais de 8000 me- tros no planeta sem oxigénio arti- ficial nem carregadores de altitude. Um herói. A conversa com A BOLA foi numa colina para os lados de Alfra- gide. Antes de começar pedimos a João Garcia para ver a que altitude estávamos. «A 106 metros», escla- receu, abrindo a aplicação dum al- tímetro. Nada que impressione. — Custa-lhe viver em Alfragide, onde as montanhas têm 106 me- tros de altura? — Não, sempre vivi na região de Lisboa. Viver perto de montanhas talvez me aborrecesse. A desvanta- gem é que para ir para a serra de Gredos são 6 horas de carro, para os Pirenéus são 11 horas de carro, para Chamonix são 21 horas. É muito longe. Para ir para o Nepal são 20 horas… e não tenho de conduzir. — A distância alimenta o gosto? — Valoriza o produto, sim. — Tem a Estrela; mas não im- plica para si um grande desafio uma serra que se sobe de bicicleta… — Ah, ah, ah! Note, contudo, que há uma vantagem quando há nevões: fecham-se as estradas e só vai lá acima quem realmente quer. É a essência do alpinismo: só atinge o topo quem se esforça, não quem tem o carro mais po- tente ou melhores jogadores. Esse jogo é como o póquer, está vicia- do. Gosto da Estrela, são de lá as minhas primeiras histórias. E é onde às vezes trabalho, ainda que a nível legal seja difícil fazê-lo lá, proíbe-se tudo. — Depois dos 14 cumes, como é agora a sua rotina anual? —Antesdissojátrabalhavacomo organizador de viagens e guia de montanha. Depois, então, tive essa fase mais profissional, com um pa- trocínio dum banco. Mas agora vol- tei a ter os meus projetos no alpi- nismo. Tenho viagens e estágios de fim de semana, um calendário preenchido. E mesmo assim tenho tempo para projetos pessoais. Faço muitas viagens para a Índia, Tibe- te, Nepal; é a minha especialidade: ajudar as pessoas a ultrapassar os seus pequenos everestes com o má- ximo de segurança e conforto. Levou a bandeira ao ponto mais alto do Mundo, literalmente d Alpinismo, ciclismo, Antártida e um monte de 10.000 metros no Havai Entrevista Por MIGUEL CARDOSO PEREIRA GARCIA — Tem levado muitos portugue- ses ao Evereste? —Àbasesim.Especializei-meno tracking, que é onde existe merca- do. E gosto muito de lá voltar, às ve- zes mais de uma vez ao ano. — Quais são as dificuldades co- muns sentidas pelas pessoas nessas expedições? — A altitude. Não é fácil subir a 5600 metros, o patamar do vale do Subirmontanhasnãoé comportamentoeremita. Éumafuga,sim. Masparadepoisvoltar «Pedalarnasnossas estradasémaisperigoso quesubiroEvereste. Eeuseibemdoquefalo» Khumbo,quedáacessoaoacampa- mento base do Evereste. Passamos por um promontório donde vemos oEverestea3kmdedistânciaemli- nha reta — ele está mesmo ali e as pessoasadoramtirarfotografias.Mas a essas altitudes já é difícil respirar. Nãosóparaeles,paramimtambém, porque vamos com tempo mínimo deadaptaçãoaaltitude,umprogra- ma de 12 dias. Estamos a respirar num local onde a pressão atmosfé- ricaestáreduzidaametade.Ouseja, sempre que inspiramos os nossos pulmões captam metade do oxigé- nio.Paraestarvivosjátemosderes- pirar o dobro, portanto; para fazer exercício temos de respirar o triplo ou o quádruplo. Depois há dificul- dades acrescidas, a falta de confor- to, a menor oferta sanitária. É outro mundo.Eucontinuoairesinto-me emcasa:olha,aliéoPumori,jásubi três vezes por aquele lado; o Ama Dablan sobe-se por ali; o Evereste por ali; o Lothse ou o Cho Oyo ou o Makalu... Há ali montanhas a uma distânciapalpáveleeupossofalarso- bre elas a quem vai comigo e, mo- déstia à parte, isso contribui para as viagens. — Encontra preenchimento pes- soal nessa experiência de vida? — Absolutamente. É um desafio físico e mental. Queixamo-nos de- masiado mas esquecemo-nos que usamos água potável para lavar as nossas casas de banho quando mais de metade deste planeta não tem acesso a água. Ir lá e ver como vi- vem as pessoas e regressar é im- portante. Quando voltamos acha- mos a nossa vida mais feliz. — Quanto custa ir numa expe- dição consigo? —1790euros,mais800paraobi- lhete e avião. É como ir de férias. SUBIR, DESCER OU FICAR LÁ E MORRER — Lá em cima consegue-se, de facto, aproveitar a vista ou o can- saço não o permite? — Podemos sentar-nos e olhar à volta, sim. Porém, confesso que aproveitomaisaposterioricomasfo- tografias. Àquela altura não temos O alpinista João Garcia, 48 anos, subiu todas as montanhas do Mundo com mais de 8000 metros, sem oxigénio, sem carregadores de altitude ANTÓNIO AZEVEDO/ASF JOÃO
  • 2. 25OLA bado eiro de 2016 A Bola de SÁBADO Entrevista A BOLA e A BOLA TV com João Garcia em ambiente de montanha. Mas montanha baixinha... tanta consciência e discernimento, devidoàhipoxia.Eestamospreocu- pados com o que falta: descer. — Descer é mesmo mais difícil? — A maior parte dos acidentes acontece nas descidas, porque as pessoas dão tudo o que têm para subir e para baixo vêm aos trambo- lhões. Literalmente. Mas há um as- peto fácil de perceber: lá em cima estamos a metade da maratona, fal- tam os outros 21 km. É chegar mas ao mesmo tempo não é chegar, é só estarameiocaminho.Nãopodemos estar lá em cima de braços no ar, vi- toriosos como quem cortou a meta de bicicleta na Torre ou como quem venceu a maratona. Imagem per- guntar ao Carlos Lopes que signi- ficado teria estar em primeiro ao km 21 duma maratona... — E os sacrifícios visíveis, os de- dos e o nariz amputados, nunca o levaram a questionar o que fez? — Isto foi um acidente. Foi numa montanha,podiatersidonumavia- gemdeautomóvel.Foiumerromeu. Em 1999 o Evereste foi a pior expe- diçãodaminhavida,cometemosvá- rioserros.Jáeraomeuterceirocume com mais de 8000 metros ao fim doutras expedições, porque entre- tanto houve um Shishapangma que não consegui, um Nanga Parbat que também não consegui à primeira, houve ainda uma outra tentativa do Evereste,várioserros…Todosjuntos potenciaramlesõesgraveseirrever- síveis. Mas não é o preço que paguei para subir o Evereste. Foi um aci- dente.Hágentequevaidefériasese, nocaminho,atropelarumcãoepar- tirocarroissonãosignificaqueare- paraçãodocarrosejaopreçodasfé- rias.Doisanosdepoisdestesacidentes eu já tinha conseguido escalar outra montanhacommaisde8000metros, provando a mim próprio que não há limites,queestátudonanossacabe- ça. Com as mãos assim é mais difícil mas possível. — Ao nível do desporto de com- petição, de modalidades coletivas, tem preferências? — Ciclismo. E triatlo. Fiz compe- tições de triatlo no final dos anos 80 em Portugal. —Jásubiumontanhasdebicicle- ta? —Já.ÀsvezessuboaserradaEs- trelacomamigos.Mas,infelizmen- te,emPortugalpedalarnasestradas é mais perigoso que subir o Everes- te.Eeutenhoconhecimentodecau- sa. Morre muita gente. Mesmo com pequenasalteraçõeslegaisoproble- ma persiste, porque o que está em causa não é a legislação, é a educa- ção. Há uma falta de cultura des- portivagritante.Éamodalidadeque tenho mais problemas para prati- car,atéporque,comasmãosassim, tenhomaisdificuldadesparatravar, tenho de preservar maiores distân- ciasparapotenciaisobstáculosepre- firoirprotegidonumpelotãodeami- gos que costuma sair do Jamor. — E esqui? — Sim, esqui randonée, o esqui- -alpinismo. Pratica-se fora de pis- ta. — Há pouco talvez tenha dito um disparate quando lhe perguntei se tinha preferência por modalidades coletivas, porque, pensando me- lhor, o alpinismo, pela dependên- cia de quem vai no grupo, é talvez mais coletivo que qualquer outra modalidade, não? O João, por exemplo, tem histórias dramáti- cas, perdeu amigos em expedições, conforme escreveu nos seus livros. —Oalpinismoécoletivoatéaodia da subida ao cume. Então é indivi- dual,solitário.Nãosãoaventurasde homens nas montanhas, são, sim, aventurashumanasnasmontanhas. Ou seja, as montanhas estão lá, são o cenário, o resto passa por resolver problemasnasrelaçõesentrepessoas. E o dia de cume é o mais perigoso, violento a nível físico, são 15 a 20 horas de esforço ininterrupto. Em qualqueroutramodalidadeépossí- vel parar. Até é possível desistir, chamar assistência. Na montanha desistir é ficar lá, morrer ali. São sempretemperaturasabaixodezero, umcansaçoindescritível,tudoàvol- ta é perigoso, mortal. A HUMANIZAÇÃO OU A DESUMANIZAÇÃO —DisseEdmundHillaryquenão conquistamosamontanha,conquis- tamo-nos a nós. Esse apelo, essa viagemàpurezanatural,éumahu- manização,peloencontroconsigoe com uma condição primária, ou é, por outro lado, uma desumaniza- ção no sentido em que é, também, uma fuga dos outros, da sociedade? — É uma humanização. O bom sãoaspessoas.Sóestamoscá,vivos, paranosreproduzireparaserfelizes. Cadauméfelizàsuamaneira,eusou felizaescalarmontanhas,éaminha formadeexpressão.Massousóver- dadeiramente feliz, atenção, quan- dopartilhoomeutrabalho.Nãoésó fazer, é partilhar também. A neces- sidade dos outros está lá, o regresso. Percebo que o que eu faço também sejaentendidocomocomportamen- toeremita,essataldesumanizaçãode que fala, essa fuga, mas na essência não é. —Nãoéumanecessidadedefuga como a de Chris McCandless, que deixoutudoeseembrenhounoAlas- ca,IntotheWild,umahistóriaclás- sica que deu livros e filmes? — Repare que mesmo nesse caso —quetinhaperturbaçõesfamiliares — ele ainda assim quis manter con- tactocomairmã.Há,acredite,sem- pre o regresso perspetivado. — O explorador britânico Henry Worsley morreu há três semanas quandotentavatornar-seoprimei- rohomemaatravessarapéaAntár- tidasemassistência.Jáconsideroufa- zer algo assim? Isto é: mantendo a dificuldadedosdesafios,fugiraoce- nário de montanha? — Depois do meu projeto dos 14 cumeshouveapossibilidadedecon- tinuar com um projeto nesse âmbi- to. Um dos que considerei foi preci- samentepassaraserexploradorpolar mas,peloqueestudei,viquetinhade esforçar-me muitíssimo. Queria ir aopoloSulbyfairmeans,portantoem autossuficiência. Percebi que a pre- paração, no entanto, era, e é, muito complexa. Logo para começar a lo- gísticademorariaumano,nãoapre- pararraçõeseequipamentomassim aalterarometabolismoalimentarao ponto de tornar o organismo uma máquina de queimar gordura. De- pois, para autonomia de 100 dias te- ria de fabricar rações com duas por- ções de quinhentos gramas de alimentos e combustível — portanto nãomaisdeumquilopordia—,oque significava só 100 quilos no trenó, mais o peso do trenó, mais tendas e equipamentosdesobrevivência.Per- cebique90porcentodosucessopas- saria por essa preparação e tudo o resto seria gestão de recursos e ges- tão do corpo. — Afastou essa possibilidade? — Afastei. Houve uma crise fi- nanceira entretanto. — Precisaria de patrocínios? —Sim.Massemeperguntarsefi- quei triste por não ter feito essa ex- pedição dir-lhe-ei que não. Naque- la altura aprendi muitíssimo sobre o assunto e percebi que escalar uma montanhanosHimalaiasaoladodum trabalho destes é um sprint. Isto se- ria uma maratona. Seria interessan- teparaumportuguêsfazerumacoi- sa assim, envolveria muita gente, mostrariamuitacoisa.Iriaincluires- pecialistas em ração e em nutrição e suplementaçãodesportiva,dietistas, a própria indústria alimentar, para fabricar um forno especial para lio- filizar os alimentos, a construção do trenó, que iria, quando se falou nis- so, ser fabricado pelo senhor Nelo, que me colocou a casa e conheci- mentos à disposição. Era um esforço conjunto. — Nelo é o empresário de Vila do Conde que faz as canoas para todo o Mundo, certo? — Ele mesmo. Eu até teria gos- tado de abraçar todo esse projeto só com produtos portugueses e fei- tosporportugueses.Opróprioequi- pamento têxtil poderia ser nosso. — Uma ração leva o quê? — O tea bag do pequeno-almo- ço, dois pedaços de chocolate, uma barrinha de manteiga desidratada, hidratos de carbono, proteínas... — Há um romantismo nacional nisso, não acha: um país de nave- gadores, que tem também um dos mais conceituados alpinistas do Mundo, vir a ter o primeiro ho- mem a atravessar a Antártida a pé. —Visãoromânticamassemcon- dição financeira, infelizmente. — Fisicamente ainda vai a tem- po. O Henry Worsley tinha 55 e tentou. Que idade tem? — 48. — Partilhemos, para finalizar, uma curiosidade: o Evereste é o cume mais alto do planeta mas não a montanha mais elevada. Esse es- tatuto é do Mauna Kea, a montanha que forma a ilha do Havai e mede da base no fundo do Pacífico ao topo 10.103 metros, ainda que só 4205 não estejam submersos. Já foi ao Havai ver esta montanha? —Engraçado.Nuncafui,não.Mas gostava de ir ao Havai participar no Iron Man, a prova de triatlo, isso sim. Um dia, de férias. E aproveita- va para passear nessa montanha. Digosempreàminhamulherqueas fériastêmdetersemprealgoparasu- bir.Avidatemdeservividaasubir. ANTÓNIO AZEVEDO/ASF «Infelizes? Nós lavamos casas de banho com água potável...» ANTÓNIO AZEVEDO/ASF